Estudos Sociedade e Agricultura

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Ana Amélia M. C. Melo

O “desabrigo no mundo” em Graciliano Ramos


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 122-131.

Ana Amélia M. C. Melo é mestre pela UFRRJ/CPDA.


Este texto pretende lançar algumas reflexões sobre a noção arendtiana de “desabrigo no mundo” e a possibilidade de pensá-la na obra romanesca de Graciliano Ramos. Contudo, antes disso, é necessário que se interrogue sobre o sentido que o romance pode ter como veículo de compreensão da era moderna.

A crescente tendência para uma busca constante de enredos na experiência individual marca, decisivamente, o estreito vínculo do romance com a concepção de mundo da era moderna e não é à toa que as primeiras expressões de tal gênero se encontram na Inglaterra do século XVIII.[1] Ao escrever sua ficção Robson Crusoe, Daniel Defoe parte de uma concepção própria sobre a conduta dos personagens e “com isso inaugura uma nova tendência na ficção: sua total subordinação do enredo ao modelo da memória autobiográfica afirma a primazia da experiência individual no romance da mesma forma que o cogito ergo sum de Descartes na filosofia.” (Watt, 1990: 16).

O interesse filosófico pelos processos subjetivos da mente alcança, com o romance, sua expressão literária. Rejeitando tipos humanos genéricos, a nova perspectiva literária encontrará seu enredo em determinados personagens que vivem circunstâncias específicas. Fica claro a preocupação, antes inexistente, em definir no personagem uma pessoa individual, uma identidade pessoal, tendo o tempo um papel importante nessa construção. A fidelidade à experiência humana individual e cotidiana, a preocupação desse gênero literário quanto às singularidades, faz-se a partir de sua inserção num tempo e lugar como premissa de particularidade. O tempo de uma vida humana, a memória, a recordação como forma de contato permanente com uma identidade pessoal, e ainda como forma de construção de uma subjetividade, tomam o lugar do atemporal e do genérico até então predominante na literatura.

Destes pressupostos emerge nosso interesse em estabelecer a relação de sentido da obra de Graciliano Ramos com o mundo moderno, ou, dito de outro modo: com o processo brasileiro de modernização e sua lógica expropriadora e excludente, que afeta particularmente o mundo rural. A tensão interiorizada de seus personagens, as suas interpelações do mundo exterior remetem constantemente a uma busca contínua de compreensão de si mesmo e do próprio mundo. Sociedade e Ego aparecem, na obra de Graciliano Ramos, de forma antinômica. No caso, um mundo árido, hostil e permanentemente aniquilador do sujeito.

É possível pensar essa relação eu/mundo a partir do espírito da incerteza, do sentimento do “não sentir-se em casa no mundo” de que nos fala Hannah Arendt.

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No mundo antigo, o sentimento da segurança de ter seu lugar de existência assegurado e da estabilidade desta ordem mantinha-se à luz da posse de um lar privado. A casa como centro de uma associação natural representava o lugar de proteção do homem; e mesmo como espaço da necessidade não perdia o estatuto de sagrado, inviolável e condição para o exercício da cidadania na Polis. Somente sendo dono desse espaço privado é que o homem podia participar dos negócios públicos não sujeitos às necessidades humanas.

Nessas circunstâncias, o cidadão grego tinha uma dupla forma de existência assinalada num primeiro momento pelo lar privado, onde não somente eram exercidas as atividades da manutenção da vida, mas ainda onde se tomavam as decisões segundo a ordem forçosa de uma relação entre desiguais e pela violência, uma vez que era somente na família que o chefe imperava com poderes incontestes. Numa outra instância, a vivência se fazia num espaço público a partir de uma ação persuasiva e livre. A política aparecia aqui como forma de atividade especificamente humana, como singularidade de um mundo de iguais e absolutamente liberto das carências que aproximam o homem de qualquer outra espécie animal. Enquanto a necessidade de agregação não se constituía em algo característico e único do homem, mas como necessidade de toda espécie animal, e portanto como forma pré-política de existência, como forma de organização necessária à sobrevivência da espécie, é no mundo da política que o homem deixava de ser membro de uma espécie para tornar-se cidadão e viver entre iguais. Era na política que o homem tornava-se verdadeiramente humano, era nela que poderia exercer sua práxis (ação) e lexis (discurso) como atividade genuinamente humana. Neste sentido, a igualdade não só partia de um princípio artificial, o que difere fundamentalmente do conceito moderno segundo o qual todos os homens são iguais por natureza, como nela ainda era preservada a individualidade de cada homem. Não era a igualdade, para os gregos, algo que diluísse cada indivíduo numa massa uniforme de homens iguais, mas a possibilidade de exercício de um viver entre pares onde a cada um afirmava sua singularidade.

Ainda caracterizando a estabilidade, as certezas da pré-modernidade, está a questão da verdade do mundo. Partindo do pressuposto da existência de uma verdade a priori, o homem antigo e sobretudo o homem grego tinham garantida a verdade através da revelação. Numa atitude contemplativa do observador, a realidade se abriria a seus olhos. Era por meio de uma postura passiva que se estabelecia a relação entre o homem e o mundo.

A perda destas certezas e ainda do sentimento de abrigo acham-se ligadas a eventos que definem a era moderna. A nova concepção astrofísica do mundo de Galileu e a dúvida cartesiana colocavam apenas uma certeza: a de que a realidade, tal qual aparece, pode ser ativamente enganosa.

Mais do que uma constatação de que os sentidos enganam, a dúvida de Descartes com a “filosofia da suspeita” inaugura um novo grau de fundamento. A filosofia moderna dava-se conta de que a questão da verdade não estava mais localizada nem nos sentidos nem na razão, na qual se partia do pressuposto da existência de algo exterior que se revelaria por si. De agora em diante realizava-se um movimento no qual o homem intervinha para eliminar as aparências. Fora por meio de um instrumento —o telescópio de Galileu— na sua interferência na realidade que se abrira a possibilidade de um conhecimento verdadeiro, sendo tal conhecimento instaurado pela dúvida.

Neste momento, a dúvida se estabelecia como fundamento do homem que passava a duvidar de que a compreensão humana constituísse demonstração de verdade. Não se tratava, porém, de uma dúvida cética, paralisadora, de uma dúvida que morresse em si mesma, mas de uma dúvida posta como método para se chegar a uma verdade e que se resolvia positivamente no conhecimento.[2]

A questão da certeza no depoimento dos sentidos ou da razão tornou-se crucial para a modernidade. E, se havia uma solução, ela só poderia ser encontrada no homem que duvidava. Somente uma certeza poderia haver: a dos processos subjetivos da nossa mente, a dos processos internos à consciência.

Diante deste “interesse cognitivo da consciência em relação ao seu próprio conteúdo” o homem achava-se unicamente diante de si mesmo. Enquanto que, em relação à realidade mundana, esse processo introspectivo não poderia garantir previamente a existência de tal realidade, pelo menos proporcionava a certeza da existência de um eu pensante. À medida que a realidade se dissolve em “estados de alma subjetivos” (para reconstruí-la novamente), dá-se partida ao pressuposto fundamental da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que ele próprio faz.

Através de um jogo da mente consigo mesma, o homem se fechava à realidade e produzia a partir de si “verdades convincentes”. Na constatação das incertezas em relação às verdades, chega-se a um terreno de aspectos movediços, exigindo-se de agora em diante esforço para transpô-lo, o que significa, neste sentido, atividade de uma consciência que somente voltada para si mesma chegaria à verdade, portanto, a uma resposta encontrada na introspecção.

O surgimento deste elemento introspectivo estritamente não representava a solução para um conhecimento que não se garantia mais pela evidência, mas sim a solução moderna do mencionado desabrigo e que aqui tem o alcance de uma nova “concepção de mundo”. Jogado num terreno movediço, o homem buscará um caminho que ao menos lhe assegure alguma certeza.

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A introspecção filosófica tem sua contrapartida na história do processo social que se desenvolve na era moderna. A configuração do espírito introspectivo criado a partir da perda da certeza e da estabilidade do mundo aparece emblematicamente no contexto do impacto da expropriação da propriedade e no fim avassalador de um lugar privado no mundo.

Com o advento das sociedades capitalistas, a expropriação das terras camponesas —e o acúmulo de riqueza, como nunca ocorrera no passado—, criavam uma lógica perversa, realimentando mais expropriações e riquezas num processo que abarcava toda a sociedade.

Para esses grupos, a perda da propriedade significava a perda do seu lugar no mundo. Antes abrigado nesse pedaço do mundo, o homem com sua família sentia a proteção que reinava no lar e era neste lar ainda que seu processo vital individual se realizava. Assim, o processo de expropriação gerava um grupo de despojados que procurava na nova organização do mundo, o abrigo que antes encontrava no lar.

As atividades do labor, da reprodução e da sobrevivência humanas e, portanto, da necessidade, que tinham seu espaço garantido na esfera privada, passam a ser exercidas agora no espaço comum, público, onde tornam-se plenamente admitidas.

A perda da antiga privatividade não somente significava a expansão do labor para o mundo público, mas ainda a procura de abrigo mediante uma transferência do caráter de um (o mundo privado) para outro (o mundo público). Desabrigado, este homem encontrará na classe social, na comunidade, a proteção que pertencia ao lar.

Na era moderna, a sociedade aparece como uma família de proporções gigantescas.[3] Como na família que se organiza a partir da vontade de poucos sobre muitos, a sociedade se torna normalizadora, atropelando o que lhe é essencial —a singularidade do indivíduo. O que inicialmente aparecia como proteção vai se tornando, aos poucos, ameaçadora da intimidade.

Assim, a intimidade vai deixando de se colocar em oposição à política e ao público para aparecer em contraposição ao que possuía de mais próximo, ou seja, a sociedade.

Agora a sociedade aparecia como lugar de perversão do coração, de aniquilamento da intimidade, como observa Rousseau.[4]

Como se verá mais adiante, busca-se mais uma vez na introspecção, no retorno a si mesmo, a solução para o desamparo. Mas resta ainda se perguntar se nesta volta para si está o caminho seguro para o moderno desamparo humano de que fala Hannah Arendt. [5]

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Ao propor desde o primeiro momento uma radical volta para o interior do sujeito, a obra romanesca de Graciliano Ramos leva a tais questões. A permanente situação crítica em que seus personagens são lançados quase sempre diz algo sobre o conflito homem/mundo no qual a tentativa de superação se faz a partir de uma interiorização, a partir de uma volta da consciência para dentro de si mesma

Pensada esta subjetivação em seu ponto extremo de tensão, é possível levantar algumas interrogações. A freqüente busca de uma compreensão da obra de Graciliano Ramos a partir dessa referência à manifestação da subjetividade —olhando de dentro da própria subjetividade para estabelecer os traços e a psicologia dos seus personagens— abriu-se uma possibilidade de análise que, não excluindo necessariamente esta perspectiva, poderia tentar vê-la fora desse subjetivismo radical, considerando-a como manifestação de um processo maior que encerra uma percepção da relação eu/mundo quase sempre como aniquiladora do sujeito.

O sentimento de estranhamento do mundo, do seu não-reconhecimento como lugar seguro de existência, leva a uma interrogação sobre essa relação e a sua singular problematização para a era moderna, considerada esta última nas conseqüências desestabilizadoras que acarreta o processo de modernização.

A expropriação da propriedade, que significa perda de lugar no mundo e a crescente complexificação da sociedade, com suas novas concepções, põem o homem diante de uma nova situação, tornando a sua relação com o mundo permanentemente desconfortável.

A presença dessa tensão na obra graciliana —essencialmente em São Bernardo e Angústia— abre a possibilidade de uma análise crítica que busque compreender o sentimento de estranhamento do mundo, o subjetivismo e a sua relação com a esfera da política nas narrativas desses romances. Diferentemente de Angústia, onde o personagem Luiz da Silva se apresenta como sujeito que traz o sentimento de estranhamento do mundo estreitamente relacionado com a erosão de seu vínculo anterior a um lugar privado perdido, em São Bernardo tal desabrigo se faz presente pelo processo de constante apropriação e desumanização das relações dos indivíduos-personagens com o mundo. Em ambos a relação com a esfera da política é reduzida e recoberta pela esfera da necessidade e pela esfera do social como organização dessa necessidade.

Finalmente, tal generalização da relação entre propriedade e apropriação não pode deixar de ser pensada na sua apresentação mais específica que é a da relação entre a propriedade agrária e expropriação camponesa vista em Graciliano Ramos em mais de uma ocasião (Vidas Secas, São Bernardo, Angústia).

Essa relação entre as ciências sociais e a literatura traz ainda inúmeras interrogações. O possível conflito entre verdade e ficção que aparece com freqüência na bibliografia apenas lança novas questões. Para a análise da obra de Graciliano a relação proposta não pode primeiramente deixar de pensar que se trata apenas de “fragmentos do universo que se delimitam por nossa maneira de olhar” (Starobinski, 1976: 132), ou seja, não se pretende chegar aos fatos passados ou a uma visão totalizadora dos mesmos, mas unicamente evidenciar construções que dele foram feitas e que se constituem apenas como fragmentos e que a própria reflexão é ainda fragmentária.

Por suas características deliberadamente não comprometidas com a realidade, a obra de Graciliano não deixará de representar uma “fatia da vida” pensada nos limites de qualquer fonte histórica. “Em nenhum caso o que os historiadores chamam de um acontecimento é agarrado direta e inteiramente; é-o sempre incompleta e lateralmente, através dos documentos ou dos testemunhos, digamos através dos Tekmeria, dos vestígios” (Veyne, 1987: 14). Neste sentido, a literatura também pode ser o vestígio de uma época e, como tal, deve passar pelo crivo de uma análise crítica onde o dado de verdade, como em qualquer fonte, é posto em xeque uma vez que se tem nela apenas uma interpretação. Tal como no romance, a história é narrativa de acontecimentos e portanto seleciona, simplifica e organiza. Mesmo partindo de personagens e situações fictícias, o romance não deixa, igualmente, de colocar situações humanas reais e que, portanto, envolvem valores e sentimentos mundanos.[6] Sendo assim, da obra romanesca não escapa o gesto intencional, o engajamento, como propõe Sartre. Ao usar a palavra, ao nomear o mundo, o escritor dá às coisas um aspecto então inexistente, e portanto muda esse objeto. O gesto furtivo passa a existir efetivamente, torna-se revelado, logo conhecido, vem a propósito de algo; encarna um projeto servindo-se da palavra como modalidade de ação.[7]

Contudo, teria a arte, ou especificamente a literatura, realmente alguma função e utilidade? Acarretaria ela alguma espécie de conhecimento à semelhança das ciências sociais, ou estaria em conflito com a verdade? É preciso chamar atenção para o fato, também unicamente moderno, da necessidade de se atribuir à arte tal funcionalidade e sentido.

“Noções tais como as de que as artes devam ser funcionais, de que as catedrais preenchem uma necessidade religiosa da sociedade, de que um quadro nasce da necessidade de auto-expressão do pintor como indivíduo e é procurado em vistas de um desejo de auto-aperfeiçoamento do espectador, noções dessa natureza guardam tão pouca conexão com a arte e são tão recentes historicamente que somos tentados simplesmente a pô-las de lado como preconceitos modernos (...); mas se a beleza de uma catedral como a de qualquer construção secular, transcende necessidades e funções, é certo que jamais transcende o mundo, ainda que o conteúdo da obra seja religioso.” (Arendt, 1992: 261).

Ainda sobre a literatura, é possível pensá-la em termos da relação entre o elemento interno e o externo do texto. Ao elemento interno é necessário garantir-lhe existência independente, com os caracteres que lhe dão coerência, da mesma forma que o elemento externo deve interferir no questionamento de seu conteúdo; constituindo dessa maneira, uma interpretação do externo que, infiltrando-se no interno a partir de nosso olhar, possibilite uma problematização que vá além do romance. “Assim as estruturas intrínsecas só se tornam evidentes se aceitarmos abordá-las de fora, iluminando as suas formas próprias com uma luz extrínseca, fazendo-lhes perguntas que elas estão longe de fazer elas próprias.” (Starobinski, 1976: 138).

O enfrentamento destes dois elementos na obra literária requer uma relação em que o constante diálogo entre eles deve ser mantido como uma necessidade constitutiva da análise interpretativa; o elemento externo adquirindo um caráter internalizante, ou seja, um externo que não se mantém como dimensão que de fora se apodera do seu objeto para demonstrar, com pretensa neutralidade, a correção de qualquer teoria, mas sim, que pretende infiltrar-se no interior do texto com a finalidade de, refletindo com ele, chegar a algum ponto comum, numa interseção entre o externo e o interno.

Referências bibliográficas

Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1983.

__________. “A crise da cultura: sua importância social e política”. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1992.

Augusto, Maria das Graças de Moraes. O absurdo na obra de Graciliano Ramos ou de como um marxista virou existencialista. Dissertação apresentada à IFCS, UFRJ/IFCS, 1981.

Brayner, Sônia. Graciliano Ramos: seleção de textos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.

Cândido, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo, Editora Nacional, 1980.

Coutinho, Carlos Nelson. “Graciliano Ramos”. In: Cultura e Sociedade no Brasil. Belo Horizonte, Oficina do Livro, 1990.

Lafetá, João Luiz. “O mundo à revelia”. In: Ramos, G. São Bernardo. São Paulo, Record, 1985.

Ramos, Graciliano. Angústia. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.

__________. São Bernardo. São Paulo, Record, 1985.

Rousseau, Jean-Jacques. “Discurso sobre as ciências e as artes.” Os Pensadores, vol II, São Paulo, Nova Cultura, 1988.

Sartre, Jean-Paul. O que é literatura? São Paulo, Ática, 1989.

Silva, Carlos da. A poética da falência em Graciliano Ramos. Dissertação apresentada à Unesp, 1991.

Starobinski, Jean. “A literatura: o texto e seu intérprete”. In: Le Goff, J. e Nora, P. História: novas abordagens. São Paulo, Martins Fontes, 1976.

Veyne, Paul. Como se escreve a história. Lisboa, Edições 70, 1987.

Watt, Ian. A ascensão do romance. São Paulo, Cia. das Letras, 1990.

Wellek, René e Warren, A. Teoria da literatura. Biblioteca Universitária, s/d.

 

Notas

[1] [1] “O romance é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora. As formas literárias anteriores refletiam a tendência geral de suas culturas a conformarem-se à prática tradicional do principal teste da verdade: os enredos da epopéia clássica e renascentista, por exemplo, baseavam-se na História ou na fábula e avaliavam-se os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção de decoro derivada dos modelos aceitos no gênero. O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual —a qual é sempre única e, portanto nova. Assim o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade.” (Watt, 1990: 14).

[2] “A dúvida cartesiana não duvidava simplesmente de que a compreensão humana fosse acessível a toda a verdade ou que a visão humana fosse capaz de tudo ver; para ela a inteligibilidade da compreensão humana não constitui demonstração de verdade, tal como a visibilidade não constitui prova de realidade. É uma dúvida que duvida que exista essa coisa chamada verdade e com isto descobre que o tradicional conceito de verdade, fosse ele baseado na percepção dos sentidos, na razão ou na crença em alguma revelação divina, valera-se do duplo pressuposto de que o que realmente existe se revelará por si mesmo e que as faculdades humanas são adequadas para recebê-lo.” (Arendt, 1983: 288).

[3] “O que chamamos de ‘sociedade’ é o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-símile de uma única família sobrehumana, e sua forma política de organização é denominada nação.” (Arendt, 1983: 38).

[4] “Atualmente, quando buscas mais sutis e um gosto mais fino reduziram a princípios a arte de agradar, reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e enganosa, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impõe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se os usos e nunca o próprio gênio. Não se ousa mais parecer tal como se é, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem.” (Rousseau, 1988: 140).

[5] “O indivíduo moderno e seus intermináveis conflitos, sua incapacidade de sentir-se à vontade na sociedade ou de viver completamente fora dela, seus estados de espírito em constante mutação e o radical subjetivismo de sua vida emocional nasceram dessa rebelião do coração” (Arendt, 1983: 49).

[6] “Por essência, a história é conhecimento através de documentos. A narrativa histórica coloca-se para além de todos os documentos, visto que nenhum deles pode ser o acontecimento (...) o que aproxima a história assim escrita da história romanceada” (Veyne, 1987: 15).

[7] “Ao falar eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la, desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, transpasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engaja-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir.” (Sartre, 1989: 20).