Estudos Sociedade e Agricultura

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Claudete Maria Miranda Dias

Balaiada: a guerrilha sertaneja


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 73-88.

Claudete Maria Miranda Dias é professora da UFPI.


Introdução

A Balaiada foi um movimento social ocorrido no Piauí, Maranhão e Ceará, do final de 1838 a fins de 1841. De um lado, grandes proprietários de terra e de escravos, autoridades provinciais e comerciantes; de outro, vaqueiros, artesãos, lavradores, escravos e pequenos fazendeiros (mestiços, mulatos, sertanejos, índios e negros) sem direito à cidadania e acesso à propriedade da terra, dominados e explorados por governos clientelistas e autoritários formados pelas oligarquias locais que ascenderam ao poder político com a “proclamação da independência” do país.

A Balaiada ocorreu simultaneamente no Maranhão e no Piauí, mas este texto concentra-se no movimento da Província do Piauí, procurando desvendar até que ponto ele teve autonomia, em oposição à visão da historiografia dominante segundo a qual ele teria sido apenas uma repercussão dos acontecimentos do Maranhão.

O objetivo principal deste texto é destacar a participação popular no movimento balaio, através do exame da sua composição social, das formas de organização, mobilização, táticas, reivindicações, lideranças e das suas possíveis causas. Além disto, põe-se em relevo a eficácia da repressão liderada pelos governos provincial e imperial e o uso de toda uma série de mecanismos utilizados para acabar com o movimento rebelde.

Segundo a maioria dos documentos e grande parte da historiografia, a Balaiada[1] teve início em dezembro de 1838 na Vila da Manga (MA), estendendo-se até meados de 1841, pelo Piauí e Ceará. Em agosto de 1840 foi decretada anistia assinada pelo Imperador D. Pedro II, mas as autoridades do Piauí e do Maranhão declararam a “pacificação” das províncias apenas em janeiro de 1841.

O período que vai de 1831 a 1840-41, conhecido como Regencial, é marcado pela deposição de D.Pedro I e por forte instabilidade política nas Províncias. Considerado pelo historiador Caio Prado Jr. como uma etapa da evolução do movimento pela Independência, ele marca também a organização do Estado Nacional: “a superestrutura política do Brasil Colônia já não correspondendo ao estado das forças produtivas e à infra-estrutura econômica do país, se rompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas às novas condições econômicas capazes de conter sua evolução” (Prado jr., 1979: 47). No Grão-Pará, Piauí, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, ocorreram insurreições, rebeliões e revoltas, algumas caracterizadas como revoluções. Todas violentamente reprimidas, passando para a história como Cabanagem, Balaiada, Cabanada, Sabinada e Farrapos. Embora com características e objetivos até hoje pouco estudados, esses diferentes movimentos quase sempre tiveram participação popular.

Uma das questões mais importantes para se estudar a Balaiada diz respeito aos testemunhos existentes. Constituindo basicamente documentação oficial - dos que compunham o poder e comandaram a repressão - esses testemunhos tratam os balaios como bandidos, assassinos e facinorosos. Na necessidade de obter informações sobre os balaios e encontrar algum conteúdo desvinculado daquela visão oficial foram lidos mais de oito mil documentos - ofícios, relatórios, ordens do dia, decretos, leis - de origem militar, policial ou governamental, abundante nos arquivos onde foi realizada a pesquisa.[2] Fontes como processos, sentenças, confissões, diários, lendas, cancioneiro e tradições orais; proclamações, pasquins e até mesmo possíveis planos de atuação e reivindicação, apesar de citados na documentação oficial, quase nada foi encontrado, tornando mais difícil, como observa Chauí, “a tarefa de reconstrução do universo social das camadas populares, cuja memória é muito pouco documentada e às vezes apenas esboçada em seus movimentos no nível da documentação” (Apud De Decca, 1981: 14). Entretanto,

se a falta de fonte torna freqüentemente impossível a reconstituição de um movimento de massas dia-a-dia, e se o caráter iletrado de seus membros nos condena a conhecê-los quase só por intermédio de terceiros, há um fato essencial que dispomos: seus atos. E eles são, no curso da história, uma série de explosões e violência, na luta quotidiana contra a opressão social. Embora muitas vezes seus chefes lessem e escrevessem, quase todas as fontes provêm invariavelmente dos setores dominantes que comandaram a repressão, isto é, do bando contrário (Cardoso & Brignoli, 1979: 383).

Inexistindo fontes primárias produzidas pelas camadas populares, como escrever a história delas? Significa um desafio estudar as fontes oficiais no sentido de reconstruir a história da população que se organizou contra as autoridades que reprimiram os seus movimentos de rebeldia. Considerando que os fatos não chegam puros até nós, que “os documentos não são os donos da verdade”, e que eles também mentem, foi preciso “forçá-los a falar mesmo contra a vontade”, interrogando, analisando e até questionando, seguindo princípios defendidos pelos historiadores E. H. Carr e Marc Bloch, para que fosse possível elaborar a história das camadas populares que participaram da Balaiada.

Para E. H. Carr, a função do historiador não é amar ou emancipar-se do passado, mas entendê-lo como a chave para a compreensão do presente (Carr, 1978: 23). Segundo ele, o historiador deve libertar-se do fetichismo dos documentos, e entender que eles, por si só, não constituem a história. Por isso Marc Bloch alerta para que se preste atenção ao que o texto nos dá a entender “sem ter a intenção de dizê-lo” (Bloch, s/d: 59). Muitos historiadores reproduzem a fala das autoridades encontrada nessa documentação, surgindo uma história “singularmente desprendida” dos interesses das classes populares e “intimamente vinculada” aos interesses das dominantes (Fernandes, 1976).

Para preservar os interesses das classes dominantes, durante muito tempo, a historiografia brasileira adulterou a história dos movimentos sociais e silenciou sobre a exploração das massas, aprisionando a sociedade nas “malhas da dominação”. Em todas as épocas e em todas as sociedades, as elites utilizam o conhecimento para ocultar os conflitos, mostrar um passado desvinculado do presente e forjar uma consciência de dominação (Freitas, 1978: 10), sem o compromisso de “buscar o lugar onde a história e o saber desta historia se produziram” (Chauí, 1981: 14).

No estudo da Balaiada como um movimento social inserido no processo de lutas pela Independência - que se estende do final do século XVIII até meados do XIX - destaca-se uma historiografia que, apesar de não abordar especificamente os conflitos, traz uma nova interpretação sobre eles, abrindo brechas e interessantes sugestões para a análise da participação popular nesse período. Referimo-nos a Caio Prado Jr. que lançou as bases de uma nova abordagem do processo histórico brasileiro, “uma história que não fosse a glorificação das classes dominantes” (Prado Jr., 1979: 64-77); a Emília Viotti da Costa que chama a atenção para os interesses dos diversos grupos sociais durante as lutas pela Independência; e a Nelson Werneck Sodré que, por sua vez, dá continuidade à revisão historiográfica iniciada por Caio Prado Jr. (Viotti da Costa, 1979; Sodré, 1979).

Além dessa bibliografia, foram consultados outros autores que analisam os movimentos sociais do século XIX no Brasil, e os inserem no contexto da Independência, nisso também rompendo com a tradição historiográfica (Albuquerque, 1981; Fernandes, 1976; Faoro, 1976; Holanda, 1978; Mota, 1972; Rodrigues, 1975).

Já a produção historiográfica propriamente relacionada à Balaiada, incluindo aqui os dois romances históricos, se concentra majoritariamente no movimento rebelde no Maranhão, traçando narrativas que enfatizam o seu caráter político e social do ponto de vista das camadas dominantes da época, senão da própria repressão, passando uma visão unilateral. Ao lado desse oficialismo há uma outra historiografia que aponta para uma interpretação descaracterizando a Balaiada como uma revolta de bandidos. Registre-se ainda uma outra bibliografia que estuda o movimento balaio no Piauí, e que destaca a participação dos escravos no movimento no Maranhão (Alencastre, 1872; Amaral, 1906; Assunção, 1988; Castelo Branco, 1983; Corrêa, s/d; Dias, 1985; Janotti, 1987; Magalhães, 1848; Meneses, 1839; Nunes, 1985; Oliveira, 1987; Rodrigo, 1942; Santos, 1983; Serra, s/d; Tavares, 1984).

Para enfocar a Balaiada como um movimento social, além de Carr e Bloch, este texto tem como referência George Rudé e E. Hobsbawm, autores preocupados em recuperar a história das camadas populares (Carr, 1978; Bloch, 1972; Rudé, 1982; Hobsbawm, 1982) a partir de estudos sobre levantes, rebeliões, revoltas da população pobre da França e da Inglaterra contra a pobreza e degradação na época primitiva, no período pré-industrial e durante as Revoluções Francesa e Industrial.

A história social fornece os parâmetros para a análise da Balaiada. Mesmo considerando que toda história é social e que esta deva integrar os resultados da história demográfica, econômica, política, das idéias e das mentalidades, aos poucos vai se constituindo uma história social, delimitando-se o seu objetivo: “o estudo de grandes conjuntos, as classes, os grupos sociais, as categorias socioprofissionais”, sendo que o estudo da estrutura social, das estratificações e a análise dos movimentos sociais constituem-se nos seus principais domínios, entendida a história social nesse sentido estrito (Cardoso & Brignoli, 1979).

Ao se buscar a especificidade da Balaiada depara-se com uma variedade de termos que vão desde rebelião, revolta, sedição, insurreição, revolução e sublevação. Qualquer uma dessas manifestações podem ser enquadradas no conceito de movimento social, conceito precário e contraditório, entre os estudiosos da questão (Da Silva, 1981; Costa Muls, 1981). Para o historiador Luís Werneck da Silva (1981), os movimentos sociais seriam confrontações deliberadas e crônicas, de tempo longo, permanentes, entre grupos sociais populares e seus reconhecidos opressores e se caracterizariam por pressuporem uma organização. Já para a socióloga Costa Muls (1981), os elementos que configuram os diferentes movimentos sociais, conferindo-lhes especificidade, são a forma como se manifesta seu conteúdo, o significado das reivindicações, a complexidade e a amplitude da dimensão política de suas ações.

A participação popular na Balaiada, sua organização guerrilheira (trincheiras nas matas, ataques de surpresa, a mobilidade dos grupos, fechamento de estradas e outras táticas), sua dimensão geográfica, duração e a ameaça que representou, dão-lhe a conotação de um autêntico movimento popular, “um dos mais sérios e notáveis que o Brasil conheceu”, no dizer de Sodré (1978: 243).

Os estudos sobre os movimentos sociais do século XIX no Brasil, além de raros, são análises ainda preliminares.

Contextualização histórica

Para abordar a Balaiada é preciso compreender o contexto histórico no qual ela se insere: o processo de lutas pela emancipação política do país, que vem desde as conjurações do final do século XVIII e se estende até meados do XIX, quando se consolidou a monarquia constitucional. É uma delimitação que procura resgatar os diversos conflitos e mobilizações populares verificados no período, fugindo dos marcos da historiografia tradicional que “aprisiona os historiadores na constelação dos seus objetivos metodológicos e que determina a forma e o conteúdos das pesquisas” (De Decca, 1981: 14). O processo da Independência foi longo, penoso e violento, permeado de manifestações em várias províncias. O grito do Ipiranga constituiu-se em uma forma encontrada pelas elites para frear as idéias revolucionárias, manter a dinastia, os privilégios do antigo sistema colonial e garantir os interesses econômicos. O movimento de independência foi “um complexo processo no qual lançam suas raízes todos os desenvolvimentos decisivos ulteriores da sociedade brasileira” (Fernandes, 1976: 71).

Para Caio Prado Jr. a Independência teve a feição de um “arranjo político” articulado à revelia da sociedade brasileira. A grande propriedade não foi tocada; permaneceu a mesma estrutura de produção escravista e foi a oportunidade para a afirmação no poder local dos grupos proprietários de terra e de escravos e dos comerciantes, principalmente a partir da deposição de D. Pedro I em 1831. Esta decorreu da teimosia do Imperador que não cedia aos interesses das oligarquias brasileiras e insistia em governar com o apoio dos portugueses, inaugurando a Regência, uma das fases mais violentas do século XIX, e que “dá acabamento ao processo de Independência, definindo o campo e as formas políticas que ocupam e dão fisionomia ao Estado em nosso país” (Sodré, 1979: 249). Um estado elitista e autoritário, instrumento dos grupos dirigentes da época que “assumiram os novos papéis políticos e jurídicos ou administrativos em todas as esferas da organização do poder” (Fernandes, 1976: 16). A sociedade brasileira da primeira metade do século XIX permanecia com as mesmas características dos tempos coloniais e no Piauí não era diferente: grande parte da população era escrava, e quando livre, vivia em péssimas condições de pobreza, sem acesso ao trabalho e à terra.

O passado histórico da sociedade piauiense é marcado por lutas e conflitos sangrentos, constantes desde os tempos de sua colonização, quando a população nativa foi morta, escravizada, aldeada e expulsa para dar lugar às grandes fazendas de gado.[3] A guerra contra a população nativa foi longa e cruenta. O branco colonizador implantou uma estrutura baseada na pecuária extensiva, predadora e escravista - durante muito tempo a principal atividade econômica da província. É a partir dessa época que surgem os grupos sociais: de um lado, os donos das fazendas, grandes sesmeiros, formando as camadas dirigentes; de outro, os posseiros, os vaqueiros, lavradores e escravos, as camadas populares inseridas em uma sociedade em transição cuja “superestrutura política já não correspondendo ao estado das forças produtivas e à infra-estrutura econômica do país se rompe, para dar lugar a outras mais adequadas às novas condições econômicas ...” (Prado Jr., 1979: 47). Essa transição corresponde à crise do sistema colonial, às lutas pela independência e à formação de um Estado Nacional excludente do direito à cidadania e do acesso à terra para a imensa maioria da população pobre. É essa população pobre que explode em manifestações de descontentamento durante toda a Regência, como na Balaiada.

A participação popular na Balaiada

A Balaiada foi um movimento que se estendeu por quase toda a província do Piauí, tanto no que se refere aos balaios, quanto às forças da repressão, envolvendo quase a totalidade de seus municípios, como Parnaíba, Piracuruca, Campo Maior, Jerumenha e Paranaguá, além das margens e vales dos principais rios (Parnaíba, Poty, Canindé, Gurgéia) e interior das matas, ocupados pelos rebeldes balaios, ou seja, os vaqueiros, artesãos, lavradores, pequenos fazendeiros, escravos, índios, mestiços e caboclos. Eles pegaram em armas e conduziram a Balaiada contra as arbitrariedades do Barão da Parnaíba que governava o Piauí desde 1823 de forma autoritária e clientelista. Este constitui um dos principais motivos que levaram os setores populares a participarem da Balaiada no Piauí e se unirem aos balaios do Maranhão.

O governo do Barão da Parnaíba formou verdadeiras trincheiras às margens do rio Parnaíba para tentar impedir a influência que os rebeldes do Maranhão exerciam sobre os do Piauí, para bloquear as constantes passagens pelo rio que une e separa o Piauí e o Maranhão. Com a intensificação do conflito cresciam as dificuldades do governo para conseguir recrutas, sendo obrigado a recorrer a reforços de fora da província. Os proprietários de fazendas de gado piauienses forneciam mantimentos como farinha e carne seca para as tropas. O recrutamento militar utilizado em todo o país foi uma das pistas para identificar a participação popular na Balaiada. Objetivando formar contingentes armados para combater as revoltas em todo o país, atingia basicamente as camadas pobres da população, constituindo-se em um instrumento opressivo sobre o caboclo, o mulato, o negro, a “arraia miúda” ou a “ralé”, segundo expressões da documentação oficial. A situação de pobreza e exploração tornava-se mais crítica, provocando resistência e deserções das “fileiras legais”. O recrutamento foi largamente utilizado desde o período colonial e à época da Balaiada foi intensificado pelo governos provincial e imperial.[4]

Outra pista importante para caracterizar a composição social da Balaiada diz respeito à origem de seus líderes, homens das camadas populares, tanto no Piauí quanto no Maranhão. Como o vaqueiro Raimundo Gomes que iniciou o movimento na Vila da Manga e foi visto em quase toda a província organizando grupos e mobilizando a população; como Manoel dos Anjos Ferreira, o “Balaio”, artesão da palha, cujo apelido deu nome ao movimento e, de todos eles, o mais radical. Outros lideranças também se destacaram: como o “Ruivo”, igualmente vaqueiro; os irmãos Aguiar, pequenos fazendeiros no Sul do Piauí e os controvertidos José Mascarenhas e Lívio Lopes Castelo Branco, ideólogos do movimento. Cosme Bento das Chagas, “o preto Cosme”, escravo foragido que liderou mais de seis mil escravos no Maranhão é outro líder, que se empenhara na união dos balaios com os escravos durante o auge do movimento, entre meados de 1839 e começo de 1840. A maioria dos líderes dos grupos balaios, eram conhecidos por apelidos como Andorinha, Tempestade, Trovão, Relâmpago, etc., denotando a sua origem popular. Até hoje perdura esse hábito de apelidar as pessoas das camadas populares.

Para Caio Prado Jr., os balaios “não souberam ligar o seu movimento ao dos escravos, que teriam se aproveitado da agitação reinante, para levantar-se em vários pontos da província. Os levantes desconexos e mal orientados, em nada contribuíram para fortalecer a insurreição”. O autor minimiza a participação dos escravos, afirmando que tinham a “direção grosseira” de um escravo chamado Cosme, auto-intitulado Tutor, Imperador e Defensor das Liberdades de todo o Brasil. Mas não deixa de observar que “os chefes legais, tudo fizeram para impedir a união de sertanejos e escravos” (Prado Jr., 1979: 72).

Nossa opinião é a de que os escravos não se aproveitaram de nenhuma “agitação” para se organizarem em quilombos ou para fazerem suas insurreições, como foi o caso do quilombo do Cosme. A história da rebeldia escrava antecede aos movimentos do período regencial e se prolonga até a oficialização da abolição da escravidão. A rebeldia dos escravos existiu desde o início do regime escravista.

As autoridades temiam a união dos escravos rebeldes com os movimentos da população livre, e tomavam medidas de controle e manipulação para impedir, como por exemplo, a proibição de “ajuntamentos”; a figura do capitão do mato, prêmios para captura de escravos foragidos, a anistia que não alcançava os escravos, entre outras. A Balaiada no Piauí foi a expressão viva do descontentamento da população. Suas causas estão fincadas na estrutura agrária piauiense, baseada na grande propriedade pecuarista e na expropriação dos posseiros por meio dos dízimos. Os motivos mais imediatos relacionam-se com o governo ditatorial do Barão da Parnaíba, com as medidas de intensificação do recrutamento militar, além da Lei dos Prefeitos que prejudicara as lideranças municipais opositoras ao regime político.

De 1839 a meados de 1841, o Piauí foi praticamente tomado pelo movimento, que ocupou uma extensa área compreendendo os vales e ribeiras dos principais rios, principais povoações e vilas, de Parnaíba ao norte até Parnaguá ao sul da província e as matas férteis do interior, além de repercutir nas províncias vizinhas.

O movimento balaio contou com a participação de diversos grupos sociais, como os pequenos fazendeiros, vaqueiros, artesãos, lavradores, escravos, índios, formando uma massa heterogênea complexa, cuja principal reivindicação - o fim do governo do Barão da Parnaíba - unia a todos. Foram essas camadas populares que enfrentaram a violenta repressão comandada pelo Barão da Parnaíba, Brigadeiro Manoel de Souza Martins.

Aparentemente o movimento não propunha mudanças estruturais da sociedade e a maioria da população nele engajada não estaria preparada para formular suas reivindicações mas, sem dúvida, estava disposta a se livrar da opressão e conquistar a liberdade individual. A Balaiada foi um movimento único no Maranhão e no Piauí: as lideranças atuaram em ambas as províncias; os grupos de rebeldes se locomoviam de uma para outra; as táticas de guerrilha foram usadas simultaneamente (ataques às fazendas, libertação dos escravos das fazendas). A área geográfica tem as mesmas características (vale dos rios, interior das matas), bem como as reivindicações se assemelhavam, além de sofrerem uma repressão que agiu unida.

O que distingue o movimento no Piauí é a ditadura do Barão da Parnaíba. No Maranhão, os presidentes eram substituídos praticamente todos os anos, criando grande instabilidade política, econômica e social, enquanto no Piauí o Barão permanecia. As condições de vida da população eram as mesmas e o estopim do movimento - o recrutamento militar - era intenso em ambas as províncias.

No decorrer de todo o movimento, uma das táticas mais usadas pelo aparato repressor foi impedir o contato entre os balaios das duas províncias (fortificando acampamentos militares às margens do rio Parnaíba). Apesar disso os grupos de balaios passavam de um lado a outro do rio, juntando-se para “tomarem” as vilas mais importantes e atacarem as capitais, rigorosamente defendidas, sobretudo depois da tomada espetacular de Caxias, no Maranhão. No Piauí, os balaios cercaram várias vilas, mas não chegaram a ocupar nenhuma delas, e a capital, continuamente ameaçada, nunca foi atacada.

Os balaios propunham um novo governo, tendo como base o pacto social elaborado por um dos líderes, que representava a parcela dos pequenos fazendeiros. Como sempre sucede, a massa popular analfabeta e rude está apta para lutar e escolher os seus líderes mas não para governar, contradição presente também em outros movimentos. As lideranças dos fazendeiros que formavam uma parcela alfabetizada é enfatizada pela historiografia resistente em reconhecer a liderança originada dos grupos populares, citados na documentação por apelidos, mas que não deixaram seus próprios documentos por serem analfabetos. O índios, os escravos, os sertanejos pobres, não souberam formular suas idéias mas, na prática, agiram em sua defesa.

A repressão armada

Para enfrentar e vencer os balaios rebeldes e garantir a manutenção da ordem pública, o governo do Piauí se armou com forças internas e contingentes de outras províncias, utilizando toda sorte de táticas e métodos.

A organização das “forças legais” espelha o nível da repressão. Observando-se o tipo de armamento usado, os meios usados para formar as tropas (mercenários, aventureiros e jagunços), inclusive a ajuda recebida de outras províncias, como Rio de Janeiro, Bahia e Ceará, tem-se uma idéia do nível da repressão desencadeada contra os balaios.

Graças ao prestígio pessoal do Barão da Parnaíba, o governo provincial recebeu apoio dos fazendeiros piauienses para o abastecimento das tropas, além de dinheiro, armas e munição provenientes de outras províncias, o que explica muito bem a derrota dos balaios. Embora estes fossem muito mais numerosos, em geral saiam derrotados dos combates mais importantes (estrategicamente planejados), inclusive nos conflitos próprios da guerra de guerrilha, que era usada por ambos os lados.[5]

A quantificação dos efetivos dos balaios é confusa e dificilmente pode ser precisada devido à grande mobilidade dos grupos que formavam a espinha dorsal do movimento rebelde. Segundo a repressão, no Maranhão eles teriam chegado à cifra de 11.000 balaios e no Piauí, entre 6 a 8.000. Esses dados são imprecisos, mas calculando que foram mais de 6.000 os mortos e os prisioneiros entre as dezenas de grupos de balaios espalhados pela província, pode-se ter uma idéia aproximada.

A repressão foi violenta, com ataques aos acampamentos dos balaios, combates corpo a corpo, típicos de uma verdadeira guerra civil. Nesses combates, as forças da repressão apreendiam a “bagagem” dos balaios, contendo panfletos, proclamações, planos, conforme consta nas correspondências enviadas ao presidente da província do Piauí. Nada disso tem sido encontrado.

Para reforçar a guerra contra os balaios, o governo regencial, em fins de 1839, enviou para o Maranhão o oficial do exército Luiz Alves de Lima, mas no Piauí o Barão da Parnaíba, presidente e comandante das armas da província garantiu a repressão, dirigindo as operações militares diretamente de Oeiras, então a capital do Piauí. Ambos receberam títulos de nobreza pela façanha de pacificar as províncias. O primeiro, agraciado com o título de Barão de Caxias e o segundo, de Barão passou a Visconde.

O aparato repressor contou com um contingente superior a 6 mil praças e o seu material bélico era infinitamente maior que o dos balaios. O governo compreendia que somente o poder das armas venceria um movimento das dimensões da Balaiada cuja participação popular crescia e ameaçava o governo da província.

A eficácia da repressão armada é o fator primordial para a derrocada geral da Balaiada e não a falta de uma organização, de uma base ideológica ou a formulação de programa alternativo de governo. O governo foi mais eficaz: contou com recursos suficientes e, com isso, conseguiu conter o movimento, coibir e refrear o fluxo daqueles que se organizavam para expressar o descontentamento popular.

Os balaios não estavam preparados para enfrentar um aparato militar de tamanha envergadura, cujos oficiais comandantes conheciam a tática da guerrilha, adotada pelas duas partes, numa tradição de revoltas que vinha desde as lutas pela independência. Além disso, empenhado em manter a ordem, o governo soube aproveitar as dissensões internas do movimento, acenando com a anistia concedida pelo imperador D. Pedro II em 1840 e fechando o cerco em torno das maiores concentrações dos balaios, no interior das matas de Campo Maior, Parnaíba e Parnaguá. O governo adotou também a tática de fortalecer as fazendas, para impedir que os balaios obtivessem recursos para seu sustento alimentar.

A repressão armada significa violentar, conter, punir, castigar, ou seja, é o exercício da ação pela força. Mas a repressão “não é apenas uma imposição exterior que despenca sobre nós, mas também um fenômeno sutil de interiorizarão das proibições e interdições externas” e, nesse sentindo, a repressão aparece “como um ato de domínio e de dominação, e o reprimido como submissão à vontade e à força alheia - como que uma alienação” (Chauí, 1984: 13). Visto dessa maneira, a repressão à Balaiada também se reveste de forma ideológica, na medida em que ela adulterou a memória dos balaios, prolongando-se ao longo do processo histórico. A eficácia da repressão extrapola o fim do movimento, atingindo qualquer tipo de oposição e contestação, gerando uma historiografia que difunde o ponto de vista oficial. Os grupos sociais que comandaram a repressão saíram fortalecidos politicamente. Puderam inculcar por gerações uma versão unilateral sobre o movimento, ocultando da memória coletiva esse passado violento. A sociedade piauiense se desenvolveu desconhecendo um fato da maior relevância para a sua história.

Conclusão

Segundo a tradição dominante em nossa história, as classes populares seriam ignorantes e alienadas, incapazes de conduzirem os seus próprios interesses e de realizarem mudanças. Aqueles que ousaram se levantar contra a ordem social sempre foram vistos como bandidos, subversivos ou terroristas, argumento que as classes dominantes utilizam para justificar a dominação e a repressão, quando o status quo é ameaçado.

Daí os movimentos pela independência serem fatos minimizados, justamente por mobilizarem a população em várias partes do país. Todos foram violentamente reprimidos pelas forças dos governos regencial e imperial. A memória histórica tem sido descaracterizada para dar lugar a uma visão de que quem dispõe de condições e de capacidade para dirigir e governar são sempre minorias proprietárias e elites intelectualizadas - mentalidade que permanece até os dias atuais e só contribui para manter a acomodação e o autoritarismo.

De fato, as lutas pela Independência foram abafadas e em seu lugar forjou-se a consciência do brasileiro pacífico, avesso à violência e a história dos mitos e dos heróis.

Que relevância teria para a história do Brasil um estudo que realça um movimento popular ocorrido no século passado em um estado pobre e esquecido como o Piauí? Que relação teria esse movimento com as lutas de independência e com o processo de formação do Estado nacional?

A história apresenta uma dinâmica de fatos e acontecimentos de tal ordem que é impossível elaborar um conhecimento global, mesmo que seja o estudo de um aspecto, de um caso. A Balaiada no Piauí é um acontecimento que durante muito tempo escapou à maioria dos historiadores. Um dos primeiros a estudá-la foi o Professor Odilon Nunes, historiador autodidata que pesquisou em documentos da época e publicou um volume em Pesquisas para a História do Piauí, na década de 1970 (Nunes, 1975). Ele proporciona um conjunto significativo de sugestões para a continuação das pesquisas em vários aspectos da história do Piauí ainda sem estudos mais aprofundados, como a guerra de extermínio das populações nativas durante a colonização, os conflitos de terras com a ocupação por colonos e colonizadores, a participação popular nas lutas pela Independência e na Balaiada; as tradições culturais, a família, a escravidão, a economia pecuarista, o cotidiano nas fazendas, os jesuítas, e muitos outros. Mas a visão que transmite sobre os balaios alterna o reconhecimento dos balaios como bravos camponeses e sertanejos e como ferozes bandidos.

Essa obra de Odilon Nunes poderá orientar outros pesquisadores dos movimentos populares do século XIX no Brasil, não só por chamar a atenção para um período tão pouco conhecido, como pelas novas questões sugeridas para um novo enfoque de história social no Piauí, abrindo interessantes perspectivas metodológicas.

A Balaiada é ainda um assunto para ser estudado, principalmente a extensão que o movimento alcançou em outras províncias, como a do Ceará, e uma possível ligação com a Cabanagem no Pará. Existem indícios que mostram que a repressão tentou impedir essa última ligação.

Com a derrota dos balaios, mantiveram-se as péssimas condições de vida da população piauiense e o analfabetismo; as oligarquias rurais se fortaleceram mais ainda sob a liderança do Barão da Parnaíba que governou o Piauí até o ano de 1843, quando o governo do Segundo Império resolveu destituí-lo, após denúncias e acusações feitas por um irmão seu, deputado federal na Corte do Rio de Janeiro pela província do Ceará.

A historiografia brasileira ainda continua difundindo a idéia de que a Balaiada ocorreu apenas no Maranhão.

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Notas

[1] Nome dado pela historiografia, devido ao apelido de Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, um dos líderes mais importantes do movimento, artesão da palha.

[2] Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Biblioteca Nacional e Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Gabinete Real Português e Casa Anísio Brito (Arquivo Público do Piauí).

[3] Os conflitos de terra primeiro ocorreram entre a população nativa e os sesmeiros, depois entre posseiros e sesmeiros. Em 1697 existiam mais de 100 fazendas de gado no Piauí e em 1762 elas superavam a 500, espalhadas por toda a capitania, margeando os principais rios.

[4] A correspondência entre as autoridades do Piauí com as de outras província e com o governo no Rio de janeiro é significativa. Ver o Livro de Registro de Ofícios para fora da Província - 1836/1843. Arquivo Público do Piauí, Teresina.

[5] Esses aspectos estão relatadas em várias correspondências. Ver o Livro de Registro de ofícios para fora da Província (1836/1843)  -  Livro 163. Casa Anísio Brito, Teresina-PI.