Estudos Sociedade e Agricultura

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Luiz Flávio de Carvalho Costa

Prática política no campo: uma experiência da militância comunista


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 89-102.

Luiz Flávio Carvalho Costa é professor da UFRRJ/CPDA.


A entrevista que apresentamos de Nazareno Ciavatta pode despertar o interesse em dois sentidos. Primeiramente, ajustado à sua experiência vivida e inserção social, Ciavatta nos fornece uma visão da práxis política imediata, dos contornos das fazendas, e revela manifestações do cotidiano que normalmente escapam das análises presas no espaço das chamadas forças estruturais. Ciavatta nos fala de um momento - segunda metade da década de 1950 - quando pela primeira vez no país, através do Partido Comunista do Brasil (PCB), a prática sindical se insinua pelo campo. A mobilização de quadros pecebistas para o trabalho no campo não se faz sem dificuldades. Por ser o início da sindicalização rural, falta o apoio da tradição. Era pequeno o conhecimento e incomum o exercício de militância política no meio rural. Faltavam não apenas quadros partidários com experiência na sindicalização do trabalhador agrícola, como também militantes oriundos do próprio meio rural. Eles se movimentariam com maior familiaridade e eficiência do que aqueles que deixavam as luzes das cidades para exercerem seu ofício em terreno desconhecido. Entretanto, o trabalho de recrutamento também se realiza no campo e começa a alterar o perfil do militante comunista em exercício na zona rural. O próprio Ciavatta é de família de lavradores do interior do estado de São Paulo e ingressou no PCB no momento em que os comunistas mobilizavam forças para uma ação política no campo.

O depoimento do lavrador/militante traz aspectos singulares do fazer política no campo, em contraste com o espaço operário-urbano, este sim um meio já então bastante conhecido da atividade comunista A aproximação aos camponeses e o estabelecimento de relações com eles significam dificuldades desconhecidas do militante da cidade. Os primeiros contatos com os trabalhadores das fazendas se dão no botequim, nos dias de compra, nas pescarias, nas quermesses, nas festas. Não é um comunista que se apresenta, senão um sindicalista. Comunismo ainda é uma palavra difícil de pronunciar. Na maioria das vezes, apresentar-se como comunista causa espanto e desperta desconfiança.

Embora difícil, entra-se às vezes nas fazendas durante o dia, quando os trabalhadores estão no local de trabalho, ainda que dispersos. Aqui, o contato cumpre mais a tarefa de fazer acertos da reunião que se realizará mais tarde na colônia. Durante o dia era comum entrar como mascate, vendendo linhas, agulhas, e aos domingos o futebol também era um bom pretexto.

Em geral os militantes entravam à noite nas fazendas. A escuridão enfraquecia o domínio do fazendeiro sobre seu território e tornava a propriedade mais vulnerável. A escuridão amparava quem se atrevia a transpor os limites das fazendas. Havia outra vantagem. Os trabalhadores encontravam-se principalmente nesse espaço de tempo e se criavam, assim, as condições para o contato coletivo.

Embora a dificuldade de contato tornasse mais estreita a ação política, havia explicações menos singelas dos insucessos e oscilações do movimento social. Aqui se encontra o segundo sentido aludido no início deste texto que pode despertar a atenção dos estudiosos: a ambigüidade na qual se debatia o PCB naquele momento em razão do conflito entre a teoria e a prática, no impasse e contradição entre duas estratégias excludentes. Estamos nos referindo às duas estratégias pendulares que marcavam a atuação do Partido: uma envolvendo a idéia de revolução aberta com a derrubada do governo; e outra idéia orientada para a acumulação de forças e para a união com outros segmentos da sociedade. Aqui se insere a mudança operada na pauta de reivindicações agrárias do PCB, agora em favor de conquistas parciais, consubstanciadas nas leis trabalhistas, tendência essa que passa a predominar a partir de 1958.

O dilema de Ciavatta - se nós não temos força para obrigar os fazendeiros a pagar os salários e a cumprir as leis trabalhistas, que dirá tomar a fazenda dele! - é o dilema em que o PCB se encontrou durante um largo período e lhe causou fissuras ideológicas e organizacional e conformou, em largo sentido, a situação das esquerdas no Brasil. Lyndolpho Silva trata esse dilema com desassombro - divide o movimento sindical de 1945 a 1964 em duas etapas, tendo o V Congresso do PCB em 1960 como linha divisória e analisa: "Nossa posição sectária e esquerdista contribuía para os ataques da reação. A nossa linha política naquele período nos levava a ver os sindicatos rurais como mais um instrumento de agitação para a luta armada, dentro da tese errônea da revolução a curto prazo. Em geral, a preocupação principal, logo que surgia um sindicato, não era conseguir seu registro, nem lutar pela sua consolidação e educação das massas de assalariados, por suas reivindicações mínimas, imediatas ou parciais, de acordo com seu nível de consciência. Ao contrário, era marchar para exigências muito elevadas, para lutas violentas, armadas, inclusive, se fosse o caso, arrancar greve sem que a massa estivesse preparada, etc., o que nos levava a cometer aventuras sem conta que só causavam prejuízo." (Lyndolpho Silva, "Sobre a sindicalização rural", datilografado, s/d.)

O trabalho político no campo será afetado por essa incoerência entre palavras e ações, pela coexistência de estratégias conflitantes. A radicalização que daí decorria muitas vezes levava ao isolamento e à perda de influência sobre a sociedade. A idéia de composição, a linha de acumulação de forças, o envolvimento com a estrutura sindical existente com o simultâneo afastamento da estratégia do confronto direto vão produzir resultados visíveis na faixa do movimento social em que atua. Durante demasiado tempo o PCB foi prisioneiro desse enigma: lutar para se integrar à sociedade, reivindicar presença legal em seu seio usando como argumento as leis e normas formais da sociedade e propor a destruição dessa mesma sociedade. Afora esse paradoxo, a confrontação de forças, quando se colocou, parece ter sido sempre uma proposta imprudente, com resultados que ficaram conhecidos, sem variação, como sectarismo e aventureirismo, assim vistos pelo próprio Partido Comunista Brasileiro. O depoimento de Nazareno Ciavatta, a propósito, é elucidativo do embaraço que essa situação causa, tanto no plano mais geral da estratégia de mudança social como no nível mais básico da prática política, no chão da fábrica ou no terreno das fazendas.

 


Entrevista: Nazareno Ciavatta

Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 89-102.

Entrevista concedida a Luiz Flávio de Carvalho Costa em Ribeirão Preto (SP), em 31 de março de 1990.


Como foi sua chegada em Ribeirão Preto e como o senhor se envolveu com o Partido Comunista do Brasil (PCB)?

Bem, eu sou camponês desta região e fui para São Paulo onde passei quinze anos. Voltei de São Paulo em 1954 e fui para Dumont, aqui perto. Fui trabalhar na roça outra vez. Como lá em São Paulo eu pertencia ao Partido, vim a Ribeirão Preto procurar por ele, fui atrás de uma sede que se chamava Panela Vazia. Vim pedir ajuda para organizar um comício em Dumont, porque os preços naquele tempo subiam muito. O Partido fazia esse tipo de comício contra a carestia, os outros não faziam nada, pelo menos é o que me lembro. O Partido queria fundar um sindicato e me convidou para ajudá-lo. Eu também queria fundar um sindicato. Tinha morado em São Paulo e sabia que o sindicato sempre trazia vantagens ao trabalhador. Eu concordei em ajudar. Foram feitas duas reuniões, a primeira no dia 6 de setembro de 1954, na União Geral dos Trabalhadores. A segunda foi realizada no sindicato da construção civil na Vila Tibério. Assim começou a se fazer o sindicato. Quem me deu as instruções de organizar a diretoria e tudo o mais foi o sindicato dos marceneiros.

Quer dizer que os operários urbanos se envolviam com os trabalhadores rurais e prestavam ajuda?

Sem eles não teríamos fundado nada.

Como se fundava um sindicato? Que medidas vocês tomavam nesse sentido?

O Partido ficou de me ajudar. Comecei a trabalhar e me mudei para Ribeirão Preto. Comecei a viajar, arranjar os registros de nascimento do pessoal, escrever para fora para que me mandassem cópias de registros de nascimento. O camponês tem medo de dar documentos para os outros, eles têm esse cuidado, mas depois eu os devolvia. A fundação desse sindicato aconteceu no dia 31 de janeiro de 1955. O PCB e eu gastamos dinheiro nisso. O aluguel da sede custava 600 cruzeiros. Foi aberto o sindicato, vieram caminhões de todos os lados, fizemos reuniões. Tinha muito camponês, pois o sindicato era bem aceito, apesar da violência da polícia e dos fazendeiros.

Por que eles aceitavam?

Porque eles sabiam que o sindicato ia pôr lei na roça.

Que leis eles queriam?

As leis trabalhistas. Colonos, meeiros, camaradas, todos. Eles queriam ter direito porque não havia direito algum. O direito aqui era a polícia entrar e prender se alguém reclamasse. Delegado naquele tempo só subia na vida se fosse truculento, caso contrário ficava lá naquela baixada mesmo. Os trabalhadores se encontravam em dificuldades para fazer os fazendeiros pagarem o salário. Os fazendeiros também não entendiam de lei. Os camponeses me exigiam boletins com as leis trabalhistas, o material do Partido, o jornal Terra Livre. Queriam um papel para poderem falar: "é isso que vocês têm que me pagar e não aquilo que estão me pagando".

Eles esperavam uma orientação do Partido para negociarem com os fazendeiros?

Esperavam uma orientação dos sindicatos. Naquele tempo a miséria era muito grande. Os fazendeiros pagavam a metade dos salários de lei, de modo que a miséria era terrível. Sofriam mais aqueles que não trabalhavam em fazendas de café: meeiros, parceiros, camaradas, peões, vaqueiros. Trabalhavam 10, 11, 12 horas por dia pela metade do salário. Não havia lei. Certa vez os trabalhadores da fazenda São Sebastião do Alto vieram ao sindicato e me falaram da miséria, que suas casas pareciam chiqueiros de porco, chovia dentro… Eu disse a eles que o sindicato tentaria ajudar, mas eles acharam que a providência seria fazer greve. Eu recomendei que eles falassem com o fazendeiro.

Então a greve era uma proposta deles e não do sindicato?

Não propus greve porque sabia que era perigoso. Até o sindicato poderia ser fechado. Eu alertei que se eles fizessem greve a primeira coisa que iria acontecer era a polícia prender todos. Eles responderam que não tinham medo porque já estavam com a corda no pescoço. Eu recomendei então que eles se organizassem. Dois meses depois voltaram e disseram que estavam preparados para a greve e que não haviam falado com o fazendeiro, porque ele andava com um 38 na cinta. Eu era presidente do sindicato. Eles tinham o direito de fazer greve porque não recebiam salário.

Qual era o apoio do PCB? Eles mandavam o jornal Terra Livre? Como o senhor conhecia esses direitos?

Eu conhecia esses direitos por ter morado em São Paulo. E, por ser do sindicato, eu estava em contato freqüente com os sindicatos operários. Os trabalhadores disseram que precisavam dos boletins porque os fazendeiros falavam que não sabiam quanto eles tinham que pagar. O fazendeiro também era um ignorante, podia até ter vontade de pagar mas não podia, pois não sabia o valor. Aí saiu a greve. Aconteceu o que eu havia previsto: a polícia foi lá e prendeu os grevistas. Trouxeram 32 homens em cima do caminhão. Mandaram uma intimidação para eu ir à polícia, e eu fui. Começou aquele gritaria, aquela valentia de delegado, tira, DOPS, dizendo que eu era comunista, que estava fazendo a revolução, que estava botando fogo em Ribeirão Preto, no Brasil. Ele perguntou ao líder dos camponeses se não sabia que eu era comunista. "Olha, doutor, eu não sei se é comunista, mas sei que para nós esse homem é muito bom porque defende a gente da pobreza", respondeu o camponês mostrando a calça rasgada e os pés descalços.

Depois disso o fazendeiro dispensou os líderes, cinco ou seis. Eles vieram para o sindicato e passavam fome. Havia uma audiência marcada para a semana seguinte, mas eles quiseram ir imediatamente à Justiça. Os fazendeiros já estavam lá e a polícia prendeu um dos camponeses que estava conosco. Eu resisti mas o delegado não quis saber de história. Houve uma discussão entre mim e o delegado e começaram os pontapés. Foi um tumulto. Mas nós conseguimos entrar no Departamento do Trabalho. Os soldados ficaram do lado de fora, mas logo vieram reforços. O dr. Tavera, advogado do sindicato, veio para nos defender. Fomos presos, uns 25 homens, mas apenas eu e o Luís Anaconde, o líder deles, ficamos na cadeia.

Alguém era do Partido?

Não tinha isso, ninguém era do Partido. Isso pode ter ocorrido em 1945. Agora eles se filiavam aos sindicatos. Eu fiquei preso em Cravinhos. O delegado me removeu porque queria me esconder. Para mim até que foi bom - a cadeia e a comida eram melhores que as de Ribeirão Preto. A polícia fez sair no jornal A Cidade, do dia 8/4/1955, a notícia de que eu era comunista e que queria derrubar o Governo, e que tinha minado todos os trabalhadores do campo. O jornal não disse que eu era presidente do sindicato. O Luís saiu depois de 8 dias, mas eu fiquei. O Partido considerou que estava demorando demais para eu sair da cadeia e mandou um advogado de direitos políticos de São Paulo que me visitou na cadeia. O dr. Tavera entrara com pedido de habeas-corpus, mas como eu era acusado de agressão e desacato à polícia, o juiz negou. Fiquei preso por dois meses.

Outros sindicatos foram fundados nessa época?

O de Franca foi fundado logo depois, mas não ficou muito tempo aberto. Foram também fundados sindicatos pelo Partido em Morro Agudo e Altinópolis, mas também de curta duração. Eu estive no Rio de Janeiro em 1956. O Partido mobilizou os presidentes dos sindicatos para um encontro com o ministro. O assunto era a legalização dos sindicatos rurais. O ministro Nélson Omenha (PTB) nos disse que faltava em Ribeirão Preto a instalação da Junta de Conciliação e Julgamento, para onde deveriam ser encaminhadas as reclamações. Sem ela, os sindicatos ficariam vulneráveis, presas fáceis da polícia. Ele estava mais certo que o Partido. Em maio de 1957 se instalou a Junta. Fui expulso do Partido em setembro de 1957.

Por que o senhor foi expulso?

Os trabalhadores queriam ir para um lado e o Partido para outro.

O senhor poderia explicar melhor isso? O que os trabalhadores queriam e o que queria o PCB?

Os trabalhadores queriam as leis trabalhistas. Os sindicatos foram fundados para implantar as leis trabalhistas para o homem do campo, e isso era um compromisso nosso com eles. Mas o Partido, não sei se todo ou em parte, não entendeu ou não quis entender dessa forma. Eles queriam que eu levasse ao homem do campo o seu material que pregava a derrubada do governo. O Partido tinha lançado em 1950 o Manifesto de Agosto, que pregava a derrubada do Governo, a divisão das fazendas, etc. Isso foi reafirmado em 1954. Era estatutário. O programa era claramente de derrubada do governo. Eu fui expulso por essa razão. Isso prejudicava todos, não apenas o camponês. Não se podia abrir a boca que diziam "esse aí quer derrubar o governo".

O material do Partido dessa época orienta no sentido de se estabelecer leis de proteção ao trabalhador rural, como férias, salário mínimo, descanso semanal remunerado, etc. Eles não aplicavam isso?

Bem, eu não sei... Se o jornal falava uma coisa, depois os líderes do PCB mudavam tudo. O Partido me convidou para fundar o sindicato para trazer as leis trabalhistas. Isso foi explicado aos trabalhadores rurais durante a fundação. Depois, queriam que eu fosse ao campo levar o material do Partido favorável à derrubada do governo.

Os camponeses não aceitavam essa orientação?

Claramente, não aceitavam. Eles não tinham condições para isso. Eu procurava inicialmente seguir a orientação e dizia a eles que os fazendeiros não pagavam, abusavam deles, a polícia prendia, e que só mesmo fazendo uma revolução iria resolver aquele estado de coisas. Um camponês disse para mim: "Olha, Ciavatta, se nós não temos força para obrigar os fazendeiros a pagar os salários e cumprir as leis trabalhistas, para derrubar o governo vai ser ainda mais difícil". Daí eu percebi que o Partido estava errado.

Eu levantei essa questão dentro do Partido. Um dirigente me criticou dizendo que eu queria fazer coisas paliativas, como a aplicação de leis trabalhistas. Eu expliquei que tínhamos discutido essa questão com os camponeses e que nós havíamos concordado que o importante era a luta pela aplicação das leis trabalhistas. Disse-lhe também para ele mesmo distribuir o material de derrubada do governo, porque eu iria distribuir os boletins para garantir os salários. Dessa forma eu estava em sintonia com os trabalhadores rurais. O sindicato era dos trabalhadores, e não do Partido. Tinha um assistente do Partido no sindicato, o Feijão, que me apoiava.

Essa discussão durou dois anos, mas eu aprendi. Eu cheguei ao ponto de não ter mais condições de obedecer ao Partido. Eu não acatava mais a ordem de divulgar material que pregava a derrubada do governo, mesmo porque, desconfiada de mim que estava a polícia, se fosse pego com esse material eu estaria perdido.

Como foi a sua expulsão do Partido?

Fui expulso oito dias depois de uma áspera discussão com o Girotto, dirigente do Partido. Para mim foi uma batalha, fui desligado sem um tostão, devendo dois meses de aluguel. Trabalhar nas fazendas não podia mais, porque os administradores, fiscais, puxa-sacos, todos me conheciam, mandavam o empreiteiro me mandar embora. Cheguei a essa situação, e então fui ao prefeito Gustavo Romano para arrumar serviço, prometido para o mês seguinte.

Mas o senhor foi expulso do Partido, e não do sindicato.

O Partido e a polícia, pressionada pelos fazendeiros, queriam me tirar o sindicato. Escrevi uma carta pedindo meu afastamento do Partido. Depois de uns dias veio um tira ao sindicato e me entregou uma intimação para eu comparecer à polícia. Já tinha sido expulso do PCB, mas ainda era presidente do sindicato. Chegando à polícia o escrivão me disse que era amigo do Luciano Lepera e que admirava nossa luta. Perguntou-me há quanto tempo eu era presidente do sindicato. Respondi que ia fazer dois anos em outubro, mas era mais. O estatuto previa mandato de dois anos. Mas eu estava lá porque ninguém queria ficar no sindicato, pois já tinham me visto ser preso, mandado para a cadeia na calada da noite para São Paulo. Ninguém queria a presidência e, por isso, não havia disputa pelo cargo. Foi então escrito um documento onde era colocada minha saída para a admissão de uma nova diretoria. Com aquele documento a polícia acalmou os fazendeiros.

Os camponeses vinham ao sindicato?

Sim. Eles vinham saber a orientação, se havia leis trabalhistas, vinham para pegar os boletins para distribuí-los nas fazendas. A perseguição era terrível.

O senhor visitava as fazendas?

Visitava à noite.

Durante o dia era mais difícil?

Sim. Além do mais, durante o dia não encontrava ninguém porque estavam trabalhando. Ia às fazendas durante a noite e nem sabia direito onde eu estava. Havia desconfiança de estarem ocorrendo assassinatos. Quando pediam para ir a uma fazenda eu não dizia quando ia, chegava de surpresa. Em muitas fazendas eu saí escoltado - os camponeses me levavam para fora porque temiam um assassinato. Uma vez na fazenda São Pedro eu quis sair à noite mas eles não deixaram. Alertaram-se de que havia jagunços querendo me dar uma surra. Saí às 5:30h na companhia deles, depois de tomar café com pão de broa e fui pegar um ônibus para Sertãozinho.

Já existiam muitos trabalhadores que moravam nas cidades? Era mais difícil estabelecer contatos com esses trabalhadores?

Muitos já moravam nas cidades e o contato com eles era mais difícil. Eles vinham às fazendas de caminhão e sempre procuravam também serviços nas cidades. Eles pouco vinham aos sindicatos, contrariamente àqueles que moravam ainda nas fazendas.

Era freqüente a expulsão de trabalhadores das fazendas?

As expulsões de trabalhadores das fazendas se tornaram mais freqüentes quando as leis trabalhistas começaram a se impor, porque os fazendeiros precisavam reformar as casas e cumprir uma série de exigências trabalhistas. O Estatuto do Trabalhador Rural acelerou as expulsões. Em vez de cumprir as obrigações eles preferiam dispensar aqueles trabalhadores e contratar bóias-frias. Foi o que eles fizeram.

Quer dizer que as leis trabalhistas, em certo sentido, prejudicaram os trabalhadores agrícolas?

Era uma luta, não era? Durante a luta tem todas essas conseqüências. De qualquer jeito acho que foi válido. O camponês não tinha mesmo futuro. Ele vinha para a cidade e o filho poderia trabalhar numa indústria, tirava carteira de motorista, aprendia serviço de pedreiro, mecânico, podia melhorar sua vida. Na cidade tinha aluguel para pagar, mas com família grande sempre melhorava a situação.

Famílias grandes viviam melhor do que as pequenas?

Sem dúvida.

Quais eram os principais tipos de trabalhador rural desta região?

O colono do café tinha uma caderneta expedida pelo Departamento Estadual do Trabalho e nela figuravam algumas leis de Getúlio Vargas que o fazendeiro era obrigado a cumprir, como aquela que diz que o trabalhador na roça tem o direito de plantar alimento para a manutenção de sua família. Antes, para segurar o trabalhador, os fazendeiros davam um pedaço de terra para o roçado. Depois, quando veio a cana-de-açúcar, começaram a derrubar tudo. A cana, quando substituiu o café, botou gente para fora e mandou muitas pessoas para as cidades. O colono do café pegava por mil pés de café. A cada mil pés ele recebia uma quantia. Era mais ou menos 4 mil pés de café para cada trabalhador. Ele tinha que dar conta daquela quantia e depois fazer a panha do café. Todos os colonos de uma fazenda juntavam-se para apanhar café. Quando acabava a colheita eles voltavam a tratar dos seus 4 mil pés. Uma família com 2 ou 3 homens tratava de 10 a 12 mil pés de café. Em um alqueire paulista, me parece, dá 2.200 pés. Cada colono tratava mais ou menos de 2 alqueires.

Os colonos do café tinham direito a um roçado?

Sim. Tinha fazenda que dava, a cada quantidade de café tratado, um pedaço de terra para plantar. Depois, quando começou a vir a cana, tudo se acabou. Teve terra de café que virou pasto.

Camarada é aquele que trabalha por dia e recebe por mês de acordo com a quantidade de dias que trabalha. O descanso semanal não era remunerado. Trabalhava em qualquer serviço: capinagem, fazer cerca, derrubar mato, plantação... Os camaradas eram os que mais vinham aos sindicatos, mais do que os colonos que também freqüentavam os sindicatos. Quando o colono ia trabalhar em outra fazenda como camarada, ele recebia menos que os outros camaradas, pois os fazendeiros diziam que ele já era colono em outra fazenda. Eles abusavam.

Empreiteiro era aquele que contratava homens para fazerem um determinado serviço como apanhar café, quebrar milho, plantar milho, etc. Muitos trabalhavam por empreitada. O trabalho era também por mil pés de café, mas eles não tinham contrato para ficarem na fazenda o ano inteiro. Era só por uma determinada época. O colono era fixo e quem trabalhava por empreitada podia mudar, ir embora no final do mês.

E aqueles que não recebiam em dinheiro?

Os arrendatários formavam um outro grupo de trabalhadores. Havia muita encrenca entre eles. Arrendavam a terra, aravam, faziam a plantação e, depois de fazer todo aquele serviço mais bruto, deixando a terra melhor, vinham os fazendeiros (não todos) e soltavam as vacas no meio da roça para o sujeito ir embora. Isso realmente acontecia. Ele tinha todo aquele trabalho e, quando ia receber o benefício, era expulso. O arrendatário vendia seus produtos e pagava o dono da terra em dinheiro. Quem pagava em espécie eram os parceiros, meeiros e terceiros. O sindicato dava muito apoio também aos não-assalariados. Os meeiros trabalhavam na terra de ameia, mas as fazendas também os chamavam para trabalhar de camarada, por dia. Eles faziam de tudo.

Houve repressão por aqui em 1964?

Muito pouco. Eu apanhei. Fui acusado como o comunista mais perigoso por aqui. Fui o primeiro a ser preso. Seis horas da manhã a polícia estava me procurando na praça. Andavam feito cachorro louco para me pegar. Eu lerdeei muito. Escutei no rádio que o João Goulart tinha fugido, mas achei que, por estar desligado do Partido, eles não me procurariam. Mas estava enganado e eles vieram mesmo. Diziam que eu era um comunista covarde, porque tinha medo de falar qual era a minha ideologia, e aí desciam o cacete. Não era de quebrar clavícula, mas doía. Fui interrogado mais de duas horas e meia. A polícia não entrou nas fazendas. Nessa altura, o movimento camponês estava muito fraco.

E a Igreja, como atuava?

Os sindicatos se consolidaram aqui porque certa linha da Igreja assumiu o comando através do padre Celso. A Igreja assumiu o lugar do Partido de maneira geral e se tornou mais importante que ele. O sindicato de Batatais, por exemplo, foi reconhecido quando estava o Antônio Sampaio, da linha da Igreja, na sua direção. Sem a Igreja era muito difícil ter sindicato, embora as leis trabalhistas, de certa forma, já penetrassem no campo. A Igreja atuava por conta própria. Ela fundava o sindicato e levava os direitos até os trabalhadores. Ela fazia isso melhor do que o Partido.

O que era mais forte para o camponês, o boletim ou a reforma agrária?

O boletim! A bandeira da reforma agrária era importante para o Partido, não para os camponeses. De qualquer forma temos que reconhecer que o Partido estava lutando, tanto que as cadeias estavam cheias deles, e o cemitério também... A reforma agrária não penetrava nas massas. Nunca penetrou porque é uma coisa que depende de lei e nunca se fez uma lei para repartir das terras abandonadas.

Nos congressos e encontros camponeses o tema da reforma agrária estava sempre presente.

Quem participava dos congressos e encontros camponeses eram os sindicalistas, não os camponeses que moravam nas fazendas, porque eles não tinham condições para isso. Quem participava eram os sindicalistas e os operários, mais algum camponês proprietário de um pequeno sítio. O resto não participava.

Em 1954 eu fui a uma reunião em São Paulo para discutir essas questões. O sindicato de Ribeirão Preto não havia sido fundado. Discutia-se o problema da terra, a reforma agrária... No fim acabou em lei trabalhista, porque o povo não tinha força para outra coisa. Pois o camponês não me falou "nós não temos força para obrigar o fazendeiro a pagar nossos salários, que dirá tomar a fazenda dele"? É preferível uma rolinha na mão do que cinqüenta voando. O Partido queria cinqüenta voando e nenhuma na mão. Agora os comunistas estão sozinhos, cantando o meu boi morreu...

O senhor está aposentado? Quantos anos tem?

Moro em Ribeirão Preto, estou aposentado e vou fazer 79 anos. Tenho quatro filhos. Uma filha morreu durante a luta em 1956.