Estudos Sociedade e Agricultura

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Héctor Alimonda

Mercosul: o ponto de vista das centrais sindicais


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 115-121.

Texto preparado como esboço de capítulo de livro a ser publicado no Canadá por Common Frontiers, organismo de coordenação das redes sociais da América do Norte. Traduzido do espanhol por José Eugenio Guimarães.

Héctor Alimonda é professor da UFRRJ/CPDA.


Em 24 de março de 1991, os governos da Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai firmaram o Tratado de Assunção com o objetivo de formar um bloco de integração econômica regional a partir de 1º de janeiro de 1995.

O Tratado instituiu um processo governado pela lógica do mercado, sem nenhuma previsão de seus efeitos nas sociedades nacionais nem de participação de interesses sociais nas negociações. Devido a isso, as centrais sindicais dos quatro países, por intermédio da Coordenação das Centrais Sindicais do Cone Sul, passaram a exigir uma ampliação do debate. Como conseqüência, os governos criaram em março de 1992 um subgrupo de trabalho dedicado aos temas das relações trabalhistas, permitindo a participação consultiva nas negociações do “setor privado”, formado por empresários e sindicatos.

Desde então, a rede formada pelas centrais sindicais dos quatro países se constituiu na principal articulação social presente às discussões do Mercosul. Além de desenvolver análises de alto nível sobre a situação, destaca-se na elaboração de propostas alternativas. A exposição que se segue está centrada essencialmente nessa experiência.

Porém, a princípio, destacamos dois elementos que consideramos fundamentais:

1. O projeto do Mercosul supõe uma integração Sul/Sul entre países bastante diferenciados em termos de desenvolvimento relativo que, porém, estão lado a lado no cenário de relações de poder econômico e político internacionais. A possibilidade de constituição de um mercado comum como alternativa regional condicionou fortemente as atitudes das centrais sindicais e das redes sociais frente a esse processo.

2. Como conseqüência da ação conjunta desenvolvida ao longo desses anos, as centrais sindicais dos países signatários reuniram suas propostas em torno da Carta de Direitos Fundamentais do Mercosul, apresentada aos Chefes de Estado das quatro nações em Colonia del Sacramento, Uruguai, em janeiro de 1994. Na mesma época o documento foi devidamente registrado na Secretaria Executiva do Mercosul, em Montevidéu. Até o momento nenhum governo se posicionou a respeito. É a essa Carta de Direitos que o nosso texto se refere, um documento realmente existente, aprovado consensualmente por seis centrais sindicais: CGT/Argentina, CUT/Brasil, CGT/Brasil, FS/Brasil, CUT/Paraguai, PIT/CNT/Uruguai.

A Carta de Direitos Fundamentais do Mercosul foi concebida como um instrumento para garantir proteção social, política e cultural aos povos destes países. Chama a atenção para possíveis transformações na estrutura produtiva dos países membros, que podem ocorrer em prejuízo dos trabalhadores e do conjunto dos setores populares. É, nesse sentido, uma proposta complementar ao Mercosul. Persegue o desenvolvimento conjunto e se previne contra os efeitos nocivos de uma reestruturação selvagem, na qual a busca de competitividade implique na destruição das parcas conquistas sociais que os trabalhadores e setores populares dos países signatários conseguiram até o momento. Entretanto, sobre isso, os governos nunca emitiram qualquer pronunciamento concreto. Junto com a Carta, as centrais solicitaram a ratificação e implementação de cláusulas convencionadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Dois posicionamentos fundamentais sobre o conteúdo da Carta foram discutidos quando da elaboração do documento. O primeiro sustentava que a Carta deveria fazer referências a alguns poucos direitos sociais e de organização sindical efetivamente exigíveis perante a Justiça, de forma tal a obter a vigência real dos mesmos. O segundo, que terminou se impondo, defendia a inclusão de amplo conjunto de direitos sociais, inclusive ampliando o espaço mais restrito do âmbito sindical. Julgava-se necessário expandir os limites da cidadania e dos direitos sociais, além dos trabalhistas.

Tão logo terminou a redação da Carta, a mesma foi apresentada aos Presidentes dos quatro países e protocolada na Secretaria Geral do Mercosul. Daí em diante, as Centrais se comprometeram a tomá-la como eixo de referência e de orientação para suas propostas de âmbito nacional. Além do mais, concordaram em divulgar os conteúdos do documento frente a outras forças, sociais e partidárias. Entre as ações concretas promovidas nesse sentido vale destacar a Conferência Sindical pela Democratização do Mercosul, realizada na Câmara Municipal de São Paulo em 16 de dezembro de 1994. Mais de 100 dirigentes sindicais, partidários e de organizações democráticas da sociedade civil dos quatro países participaram do evento. Presentes também estavam representantes de organizações sindicais internacionais.

Além da adoção da Carta de Direitos Fundamentais, as centrais sindicais solicitaram:

·       Estabelecimento de um acordo regional, com normas básicas de saúde e segurança no trabalho;

·       Regulamentação de mecanismos que permitam negociações regionais (por empresa e por setor);

·       Comissões de empresas multinacionais e direitos de organização e afiliação sindical;

·       Realização de diagnósticos setoriais sobre os efeitos da integração nos níveis de emprego e de qualificação profissional;

·       Articulação destes temas com a definição de políticas de apoio à reconversão produtiva e ao estabelecimento de canais permanentes de negociação dos acordos e políticas setoriais;

·       Constituição de um Fundo de Apoio à Reconversão e à Requalificação Profissional.

Nos termos da estrutura institucional do Mercosul, as centrais sindicais propuseram a criação de um Foro Econômico-Social como instância de consulta obrigatória, dotada de autonomia e amplo poder de iniciativa, permitindo acesso a informações rápidas e oportunas sobre as decisões tomadas pelos órgãos do Mercosul. Esse Foro, inicialmente, seria constituído por trabalhadores e empresários e, no futuro, estaria aberto à participação dos demais setores organizados e representativos da sociedade.

Institucionalmente, a estrutura do Mercosul apóia-se tão somente sobre a Comissão de Comércio, instância destinada a arbitrar conflitos. As Centrais Sindicais solicitam a criação de duas outras Comissões hierarquicamente idênticas: a de “Políticas Produtivas e Mercado de Trabalho” e a de “Assuntos Sociais, Regionais, e Meio Ambiente”. Cabe à primeira, ocupar-se dos temas vinculados à reconversão, promoção e complementaridade produtiva, assuntos trabalhistas relacionados com esses processos e desequilíbrios regionais. A segunda comissão terá como objetivo o tratamento de temas ligados às áreas de saúde, educação, cultura, família, direitos humanos e meio ambiente.

Concomitantemente, as Centrais Sindicais consideram necessário fortalecer tanto a Comissão Parlamentar Conjunta dos países do Mercosul, bem como a capacidade de controle parlamentar sobre os seus organismos.

 

Conteúdo da Carta de Direitos Fundamentais

A Carta de Direitos Fundamentais do Mercosul é concebida como um documento que contribua para elevar as condições de vida e fortalecer a democracia nos países signatários. Pretende, por outro lado, garantir mecanismos de proteção aos setores sociais mais expostos às conseqüências deletérias do processo de integração. Inspira-se numa concepção mais ampla de proteção aos direitos humanos, situada além do estrito âmbito dos direitos trabalhistas. Engloba direitos individuais fundamentais dos cidadãos, alusivos à vida, bem-estar, liberdade, saúde, educação, alimentação, meio ambiente saudável, trabalho, previdência social e outros. Não deixa de lado os direitos coletivos tais como liberdade de organização sindical, negociação coletiva, férias, garantia de emprego, participação, informação e direito de consulta. Estabelece, ademais, que as organizações de um determinado país sejam reconhecidas e legitimadas por todas as demais unidades signatárias.

A Carta de Direitos Fundamentais pode ser interpretada através de três princípios básicos:

·       Princípio de interdependência dos tratados;

·       Princípio de progressividade dos direitos trabalhistas;

·       Princípio protetor.

A Carta deverá ser aprovada pelos poderes legislativos dos países membros, na forma de um documento anexo ao Tratado de Assunção, passando a vigorar de forma imediata. Orientarão sua aplicação normas comunitárias (caso existam) e normas nacionais. Serão considerados competentes em sua aplicação os tribunais do país de origem do cidadão, do seu lugar de trabalho ou residência (dependendo do que for arbitrado).

Para tratar dos temas relacionados aos direitos e liberdades assegurados na Carta terão competência a Comissão de Direitos Fundamentais do Mercosul e o Comitê de Especialistas. O primeiro instituto será constituído por dois representantes de cada um dos governos e por um representante de cada setor profissional dos países signatários. Desempenhará as seguintes funções: a) velar pelo cumprimento dos direitos e obrigações estabelecidos na Carta; b) elaborar diretrizes que garantam maior eficácia à Carta e aos direitos por ela reconhecidos; c) adotar medidas necessárias para os Estados cumprirem com as resoluções do Comitê de Especialistas; e d) propor ao Conselho do Mercosul a suspensão da liberação de tarifas, aplicação de multas e outras sanções econômicas contra os países que não cumprirem as resoluções da Comissão.

Quanto ao Comitê de Especialistas, trata-se de órgão técnico do qual participam personalidades renomadas, moralmente idôneas e dotadas de notório saber quanto aos direitos humanos e sociais. Devem atuar com total independência dos governos e organizações profissionais. Serão designados pelo Conselho do Mercosul, a partir de listas apresentadas pelos governos, organizações de trabalhadores e de empregadores. A intenção é manter uma composição tripartite. A título consultivo, a OIT será convidada a participar das discussões do Comitê de Especialistas. Este desempenhará as seguintes funções: a) avaliar os informes anuais apresentados pelos governos sobre as medidas adotadas para assegurar a vigência dos direitos consagrados na Carta do Mercosul; b) solucionar as queixas apresentadas contra os Estados por parte das organizações de trabalhadores ou de empregadores, no caso de violação de direitos ou de liberdades fundamentais; c) responder às consultas e emitir pareceres sobre opiniões que lhes serão solicitadas pela Comissão de Direitos Sociais ou pelo Conselho do Mercosul; d) submeter à consideração da Comissão de Direitos Sociais propostas que visem dar maior eficácia à Carta do Mercosul e à proteção dos direitos por ela reconhecidos; e) solicitar aos governos, em qualquer momento, informes sobre temas determinados relacionados aos direitos estabelecidos pela Carta; e f) receber diretamente informes das organizações de trabalhadores ou de empregadores.

Em caso de negação ou violação de direitos fundamentais reconhecidos pela Carta, os demais governos poderão solicitar a aplicação de multas previstas pela legislação anti-dumping.

Reiteramos que o caráter do acordo Sul/Sul do tratado favoreceu a adoção desta estratégia por parte das Centrais Sindicais, sem reservas em relação às possíveis violações de soberania daí resultantes. Em caso de acordos Norte/Sul, não há posições definidas por parte das centrais. Em abril de 1994, em função das discussões finais da “Rodada Uruguai do Gatt”, o presidente Central Única dos Trabalhadores (CUT), Jair Meneguelli, se pronunciou explicitamente pela vigência deste tipo de mecanismo. Tal parecer, não obstante, não chegou a se constituir em posição definida por parte da Central.

 

Outras experiências no âmbito do Mercosul

Em 1994 tiveram lugar as reuniões entre organizações agrárias dos quatro países signatários com vistas à constituição de uma “rede”. Participaram a Federação Agrária Argentina e a Central Única dos Trabalhadores, através de sua Secretaria Rural. Está prevista uma reunião, provavelmente para a formalização da “rede”, a ser realizada em Porto Alegre ainda em 1995.

Em dezembro de 1994, a bordo do Rainbow Warrior, o navio do Greenpeace, no trajeto de Montevidéu a Buenos Aires, realizou-se uma reunião de organizações ambientalistas dos países do Mercosul e do Chile. Foi emitida uma declaração, na qual se denunciava a ausência de considerações sobre os impactos ambientais do processo de integração. Pedia-se aos governos a constituição de uma comissão específica para cuidar desse problema.

Com base na exposição, parece ser razoável afirmar que existe nos países do Mercosul um amplo espaço para o exercício mútuo da solidariedade entre as muitas organizações sociais preocupadas com a justiça social e a democratização da sociedade. Percebe-se que há também um grande potencial para a colaboração dessas organizações em “redes” de apoio mútuo, englobando-se nesse esforço outras regiões do Continente.