Estudos Sociedade e Agricultura

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Victor Novicki

Recuperando o indivíduo no movimento dos sem terra: o caso fluminense (1983 - 1987)


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 58-72.

Victor Novicki é mestre pela UFRRJ/CPDA.


A partir da perspectiva do "marxismo analítico", este texto tem por objetivo analisar as estratégias de ação individuais empregadas, pelos atores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), nas ocupações de terras e consolidação dos assentamentos, durante o primeiro governo Brizola (1983/87), no estado do Rio de Janeiro. Representa o esforço de, num primeiro contato com essa corrente teórica, revisitar o debate em torno dos movimentos sociais no campo de luta pela terra e as reflexões que desenvolvi anteriormente (Novicki, 1992). Entendemos que os representantes e mediadores dos sem-terra visualizaram nos assentamentos rurais a possibilidade de construir a síntese ("negação da negação") no meio rural, culminando um processo dialético segundo Marx.

Numa aproximação ao caso brasileiro, os três momentos deste processo poderiam ser assim descritos: 1.) tese - "bairro rural" ou sociedade camponesa, cujas relações internas são marcadas pela ajuda mútua ou solidariedade e inexistência de camadas sociais de níveis diferentes, onde a comunidade domina o indivíduo (Queiroz, 1973), 2.) antítese - caracterizada pela exacerbação da individualidade e por uma desintegração da comunidade, decorrente da penetração da lógica capitalista no campo: "modernização dolorosa" (Graziano da Silva, 1982) e 3.) síntese dos dois momentos precedentes - quando a comunidade é restaurada sem, no entanto, destruir a individualidade.

Neste sentido, os assentamentos deveriam ser o espaço privilegiado para a materialização da "utopia camponesa": uma tentativa de, em novos tempos, edificar a comunidade pela base, fortalecendo nela a perspectiva de um trabalho coletivo com laços de solidariedade, união e fraternidade.

Entretanto, no período pesquisado, prevaleceu a "orientação individual" nos assentamentos rurais fluminenses. A solidariedade social manifestou-se exclusivamente como forma de enfrentamento com os "outros" (proprietários de terras, governo, etc.).

A ação coletiva dos sem-terra restringiu-se à ocupação de terras, à consolidação da ocupação (mutirões) e às manifestações públicas na porta do Palácio Guanabara reivindicando a desapropriação da terra, insumos e equipamentos agrícolas e regularização fundiária.

Nos assentamentos, os que não participaram do projeto coletivista ("roças comunitárias") - a maioria - eram chamados de "sem consciência, egoístas, alienados ou individualistas". A rigor, foram conflitos decorrentes de visões contraditórias de mundo, relacionadas às crenças e desejos dos sem-terra que só se manifestaram após a conquista da terra, quando não mais foi possível a construção de um interesse comum que levasse à ação coletiva.

A bibliografia sobre movimentos sociais no campo e processo de organização nos assentamentos, em sua maioria orientada pelo paradigma marxista, indica como causas para a individualização dos objetivos após a conquista da terra ou "fracasso" das experiências coletivistas (a) a falta de uma "consciência de classe" provocada pela ideologia dominante que, através de diferentes mecanismos, leva ao desvio de seus verdadeiros interesses de classe e (b) a diferenciação interna do grupo, em termos de trajetórias de vida (perspectivas diferentes do ex-pequeno proprietário, do ex-bóia-fria, etc.), de relações com a terra (posseiro, parceiro, arrendatário, assalariado, etc.), momentos do ciclo vital (idade) e de potencial de trabalho familiar (número de filhos) (Cf. Esterci, 1984; Zimmermann, 1989). Assim, no nosso entender, a literatura conjuga o coletivismo e o individualismo metodológicos para dar conta desta questão.

Interessa, neste texto, mapear os interesses e estratégias individuais envolvidos no que parece ser um paradoxo: como sem-terra unem-se para a conquista da terra, depois, como assentados, optam pela titulação da terra e exploração agrícola de forma individual, quando pareceria ser racional ou afinado com os interesses de classe, para sobreviver à concorrência capitalista, explorar a terra coletivamente para reduzir custos e otimizar o processo de trabalho.

Entendemos que, durante suas diferentes trajetórias de vida, os sem-terra forjaram preferências individuais que procuraram maximizar, da mesma forma, tanto no processo de ocupação da terra quanto no assentamento.

 

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Nossa principal referência é o assentamento "Mutirão Campo Alegre", Município de Queimados (Baixada Fluminense), tanto por suas características, quanto por ter sido considerado pelo governo Brizola e pelo MST/RJ um assentamento modelo.

No início da "abertura política" ressurgiram lideranças camponesas do pré-64 na Baixada Fluminense e, em oposição à entidade sindical de Caxias, fundaram o Núcleo Agrícola Fluminense (NAF) em 1978, com o apoio da Igreja (Cedi, 1987). Organizada pelo NAF, a continuidade dos movimentos de ocupação de terras na Baixada Fluminense tornou-se visível com a reocupação de imóveis em Caxias (3) e Nova Iguaçu (1), entre 1978 e 1980, basicamente pelas mesmas famílias que foram expulsas dessas áreas após o golpe de 64. Como as terras reconquistadas tornaram-se pequenas para o número de interessados, organizaram novas ocupações.

A primeira experiência do governo Brizola com o movimento de ocupação de terras para "trabalho", deu-se em agosto/83, quando 72 famílias ocuparam um imóvel em Xerém (Caxias). A segunda e maior ocupação de terras neste período, também organizada pelo NAF e CPT/RJ (Comissão Pastoral da Terra), envolvendo 600 famílias e uma área de 3.500 ha, ocorreu em Campo Alegre (janeiro/84). Tratava-se de antiga fazenda de citricultura transformada nos anos 50 em loteamento urbano que, devido à falência do empreendimento, foi sendo parcialmente "grilado" por pequenos pecuaristas.

Até a decretação da utilidade pública do imóvel, para fins de desapropriação, todas as atividades desenvolvidas pelas famílias de Campo Alegre, tiveram como objetivo sobreviver, resistir na área e consolidar a ocupação. As duas formas de enfrentamento utilizadas, visaram inviabilizar investidas dos "grileiros" sobre os ocupantes individualmente. Uma delas foi o mutirão, onde um conjunto de tarefas indispensáveis como desmatamento, limpeza e aração, construção de moradias, cozinha, vigilância, etc., passou a ser realizada coletivamente. Verificada a impossibilidade de ocuparem a totalidade da área e, ao mesmo tempo, enfrentarem a violência dos grileiros, os ocupantes concentraram suas forças e investiram contra um adversário de cada vez. Assim, a ocupação foi progredindo por etapas.

Diferente de Levine et al (1989), que afirmam existir no marxismo princípios metodológicos peculiares que o distinguem da ciência social "burguesa" - ruptura metodológica irreconciliável; Przeworski (1988: 6) entende que "nenhuma dessas diferenças pode ser claramente estabelecida hoje em dia: tanto a abordagem da escolha racional quanto o marxismo são altamente heterogêneos e evoluem rapidamente".
Os defensores do marxismo analítico rejeitam o coletivismo metodológico do marxismo, criticam o funcionalismo nele implícito e sustentam que a explicação científica dos processos sociais exige a busca de microfundamentos estabelecidos ao nível do indivíduo, com base na motivação dos atores, através de uma análise estratégica. Segundo Przeworski (1988: 5), a questão central é a de responder ao desafio de "fornecer microfundamentos para os fenômenos sociais e, especificamente, basear toda a teoria da sociedade nas ações dos indivíduos concebidas como orientadas para a realização de objetivos racionais".

John E. Roemer defende o "marxismo da escolha racional": "Ao se tentar proporcionar microfundamentos à conduta que os marxistas consideram característica do capitalismo, parece-me que os instrumentos par excellence são os modelos da escolha racional" (Roemer, 1989: 25).

Segundo Elster (1989: 40): "A explicação de uma ação apela a dois processos sucessivos de filtragem. Do conjunto completo dos cursos de ação possíveis em abstrato, primeiro excluímos aqueles que não satisfazem certos critérios lógicos, físicos, econômicos ou mentais... Dentro do conjunto remanescente, apelamos a algum princípio de seleção que explica qual a ação afinal escolhida. A teoria da escolha racional supõe que as pessoas escolherão o curso de ação que preferem ou acreditam melhor. Agir racionalmente é escolher a melhor ação no conjunto viável".

Para explicar o processo de ocupação de terras em Campo Alegre, através das estratégias de ação individuais, de seus microfundamentos, precisamos levar em consideração o perfil urbano dos sem-terra fluminenses mobilizados neste período . Semelhante aos que ocuparam Xerém, no caso de Campo Alegre "houve fusão de movimentos de desempregados, biscateiros, mal aposentados, etc., que se reuniram em torno do trabalho da Diocese de Nova Iguaçu" (CPT/RJ, 1985: 1).

A seguir, relacionamos um "conjunto de ações possíveis em abstrato" para pessoas que, residindo em bairros populares ou favelas, visam melhorar a qualidade de vida: 1) adaptar-se ou continuar como está, residindo em bairros populares ou favelas em condições precaríssimas, 2) reivindicar política habitacional que contemple seus interesses, votar em candidatos preocupados com a questão, etc., 3) reivindicar a realização da Reforma Agrária ou aplicação do Estatuto da Terra, eleger representantes afinados com a proposta, etc., 4) ocupar terras para fins urbanos ou agrícolas e forçar a execução de políticas públicas, 5) buscar melhor colocação no mercado de trabalho e 6) delinqüência, marginalidade com a qual convive.

Ao aplicarmos o primeiro filtro - as "restrições" que definem as "ações possíveis", obtemos o seguinte conjunto: 1) reivindicar política habitacional ou Reforma Agrária, via canais institucionais ou político-partidários, tem-se revelado de baixa eficácia, 2) impossibilidade de ocupar individualmente áreas supervalorizadas na área urbana, pois serão retirados, presos, etc., opção viável apenas no processo de formação de favelas, onde já residem, 3) ocupar individualmente terra para fins agrícolas, opção factível somente na realização de uma "posse" em terras devolutas, que não sabe onde se localizam, 4) face à baixa qualificação profissional, são poucas as possibilidades de mobilidade social e 5) a ocupação de terras ataca o pilar da sociedade capitalista - o direito de propriedade - e tornar-se um "fora-da-lei" (marginalidade ou "invasor" de propriedade privada), pode levar a uma situação pior que a atual.

Dado o conjunto de "ações possíveis em abstrato" e as "restrições", a escolha racional seria adaptar seus desejos e crenças (ou seja, assumir que "não tem jeito" e continuar sobrevivendo em bairros populares ou favelas), para reduzir a tensão gerada quando se acredita que não se pode alcançar o que se quer.

Entretanto, diferente do que pressupõem o individualismo metodológico e o marxismo (Roemer, 1989), existe um processo de formação social das preferências. Em primeiro lugar, elas são contingentes e alteram-se historicamente. Em segundo, de acordo com Przeworski (1988: 9), a política não se dá numa arena, mas numa ágora: "a identidade coletiva vai sendo transformada continuamente - moldada, destruída e novamente moldada - como resultado de conflitos no curso dos quais partidos políticos, escolas, sindicatos, igrejas, jornais, exércitos e corporações empenham-se em impor uma forma particular de organização à vida da sociedade". As preferências se conformam nesse quadro, mas isso não é contraditório com o fato de que as pessoas agem segundo suas preferências.

Na passagem entre a "luta por um direito" (terra para morar e/ou trabalhar, implementação da lei) e a "luta contra o direito" (movimentos de ocupação de terras) - "direito insurgente" (Fachin, 1988; Baldez, 1989), assumem importância alguns fatores que conformam e revelam uma dada correlação de forças existente na sociedade civil e que podem ampliar o conjunto de ações factíveis. São eles: a conjuntura, os mediadores e representantes dos movimentos de luta pela terra, o "tempo", o governo e a lei.

a. conjuntura: pode restringir o conjunto de ações possíveis (qual seria o resultado de uma ocupação de terras durante o último regime de exceção?). Entretanto, nos anos 80, vivíamos mais uma conjuntura de redemocratização e de politização da questão agrária ao nível nacional;

b. mediadores e representantes: através da mobilização ou "conscientização" provocam uma transformação na ordem de preferências ao construírem uma identidade coletiva. Isto levou à ampliação do conjunto de ações possíveis, com a incorporação da "ocupação coletiva de terras". Diferente de uma ocupação individual, uma ocupação coletiva de terras como a de Campo Alegre, envolvendo 600 famílias, criou um fato político que não poderia ser desconsiderado, principalmente naquela conjuntura;

c. "tempo": "sei que vou morrer, não sei o dia" - esta restrição natural por si só atribui racionalidade em "descontar o futuro". É possível imaginar, numa média ponderada, o peso atribuído ao futuro por quem vive em situação tão precária: o futuro é aqui e agora;

d. governo: após vinte anos, partidos de oposição ao regime militar assumem governos eleitos diretamente pelo voto (1983), o que levou à adequação dos mecanismos de seletividade do Estado - estrutura, ideologia, processo e repressão (Offe, 1984), à nova conjuntura, de forma a incluir determinados interesses como passíveis de tratamento político, como a luta pela terra ;

e. legislação: o sistema jurídico - a lei - é um campo estratégico pois, sendo um sistema composto por um conjunto de normas abstratas, gerais e formais, possibilita diferentes interpretações que também refletem uma dada correlação de forças existente na sociedade (Poulantzas, 1986).

Ao aplicarmos o segundo filtro - "algum princípio de seleção", considerando o conjunto das ações factíveis, agora ampliado pelos fatores acima considerados, chegamos à seguinte conclusão: a ação coletiva para a ocupação de terras é uma escolha racional para o "indivíduo-sem-terra".

A partir deste momento os sem-terra e seus mediadores e representantes defrontaram-se com o problema seguinte: como a ação coletiva de indivíduos racionais, motivados por ganhos materiais pessoais, é possível, levando em consideração os seus "custos" e o "problema do free-rider" (carona)?

Offe e Wiesenthal (1984: 70), entendem que a ação coletiva é racional porque, diferente do capital, os trabalhadores não podem "fundir-se", mas associar-se: "Somente na medida em que essas associações dos relativamente sem poder conseguirem formar uma identidade coletiva, de acordo com padrões nos quais os custos de organização estão subjetivamente esvaziados, poderão elas esperar mudar a relação de poder original. Por outro lado, somente aqueles que estão relativamente sem poder é que terão razão para agir em termos não individuais, na base de uma noção de identidade coletiva, simultaneamente gerada e pressuposta por suas associações".

Roemer (1989: 33) afirma que a luta de classes caracteriza-se por romper as "restrições" e que existe uma resposta com base na teoria da escolha racional para o paradoxo da ação coletiva: "os indivíduos obtêm prazer na cooperação com outros aos quais consideram tão explorados quanto eles, e quando juntos podem vencer; e que evidentemente, obteriam menos prazer 'deixando que a história passasse longe'. Da opressão comum nasce um vínculo que faz com que as pessoas queiram lutar quando acreditam que as outras também lutarão".

Por que participar da ação coletiva? Por que não deixar os "custos" envolvidos na ocupação de terras para os outros, aguardar os resultados e, se positivos, usufruí-los? Esta questão está relacionada ao paradoxo do free-rider, formulado por Olson (1971): o indivíduo racional não contribuirá para os custos de prover "bens públicos", mas beneficiar-se-á deles.

Como então ocorre que pessoas contribuam para a conquista de bens públicos? Olson conclui que isto não pode ser feito apelando ao interesse individual. Bens públicos precisam ser providos por uma decisão arbitrária ou mesmo coerciva.

As lideranças dos sem-terra e os mediadores e representantes do movimento procuraram eliminar o problema do free-rider através de uma "lei": somente os que participassem das "reuniões de conscientização" (ou de construção de uma identidade coletiva) e da ocupação da terra poderiam ter lotes no assentamento. A titulação coletiva da terra, proposta pelo MST/RJ e pelo governo, e rejeitada pela maioria dos assentados, é um outro exemplo de mecanismo utilizado para conter o interesse individual.

O custo de uma ação coletiva para ocupar terras não é baixo, podendo até "custar a vida": viver sob tensão em face da possível violência pública e/ou privada; pode ocorrer de não conseguir nada e ser retirado da terra; sair do seu barraco/casa e viver em barracas de plástico ou lona por período indeterminado; sem fonte de renda, alimentar-se-á graças às doações (governo, mediadores, etc.) até a primeira safra, etc. Não seria racional, portanto, assumir estes custos. Este problema nos remete a um outro "limite da racionalidade": as pessoas fazem cálculos e tomam decisões, sem seguir as regras clássicas da racionalidade. Esta linha de pesquisa é chamada de estudo da escolha "anômala" ou "heurística": "Quando se pede a alguém que escolha entre diferentes situações em que há um balanço de recompensas e riscos de vários custos, a pessoa provavelmente escolherá a opção de risco se o problema for apresentado dando ênfase ao ganho, ao invés de ressaltar a possibilidade de perda" (Collins, 1994: 156).

Da perspectiva de quem não tem nada, a possibilidade de "conquistar a terra" tem um significado tal que supera os custos envolvidos: adquirir uma área onde morar e/ou trabalhar, sem despender recursos financeiros, era inimaginável individualmente.

Uma outra proposta de solução racional para a criação da solidariedade social são os "jogos repetidos", em que os agentes não jogam um único jogo, mas uma série de jogos com os mesmos parceiros. No nosso estudo de caso isto poderia ser assim exemplificado: após uma série de tentativas individuais fracassadas de conquistar a terra, em que interagiram sem-terra-proprietários-governo, a ação coletiva passa a ser considerada uma solução racional.

Como vimos, os sem-terra estavam sendo mobilizados para a ocupação de imóveis para fins urbanos mas, segundo entrevista com assessor da CPT/RJ, com o surgimento da possibilidade, eles ocuparam Campo Alegre.

Por que o MST/RJ mobilizou atores urbanos para a conquista da terra rural? A "teoria sociológica do oportunismo", proposta por Offe e Wiesenthal, pode ajudar no entendimento deste paradoxo. Segundo ela, as organizações operárias adotam o "oportunismo" para superar as ambigüidades de orientação, de forma a levar a uma definição de interesses coerentes e dos meios para alcançá-los.

Segundo Offe e Wiesenthal (1984: 105), as práticas organizacionais oportunistas podem ser caracterizadas sociologicamente por três elementos:

1. "inversão da relação meios-fins" - se o objetivo era pressionar o governo através de grande número de ocupações, que em seu conjunto significavam a luta pela reforma agrária, e o "material humano" disponível e mobilizável no Rio de Janeiro era de perfil urbano, isso foi feito;

2. "a prioridade é dada às realizações imediatas e de curto prazo, enquanto oportunidades e conseqüências futuras são ignoradas ou negligenciadas" - várias ocupações foram realizadas sem que houvesse um processo de organização adequado (seleção das melhores áreas a serem ocupadas, estratégias de ação no confronto com proprietários, etc.). Isto levou a que: a) no caso de Campo Alegre, ocupassem uma terra com baixa fertilidade natural, o que exigiu grandes investimentos para torná-la produtiva, b) fracassassem outras tentativas de ocupação, porque houve "vazamento de informações" (a polícia e os proprietários da terra estavam esperando a chegada dos sem-terra), c) ocorressem casos de ocupar a "terra errada", com localização diferente daquela identificada e selecionada como passível de ocupação, por ser inexplorada, etc.;

3. "ênfase nos critérios quantitativos de recrutamento e mobilização em vez de critérios qualitativos, tais como a formação e expressão de identidades coletivas" - pressionar o governo, através de diversas ações imediatas, sem realizar (quando houve) um adequado processo de conscientização dos sem-terra, quanto aos objetivos do Movimento e a formação de uma identidade coletiva, implicou em profundos problemas de coordenação que emergiram no processo de consolidação dos assentamentos assistidos pelo governo estadual, quando não mais existiu um interesse coletivo.

Dado o perfil urbano dos sem-terra fluminenses, por que eles ocuparam terras para fins agrícolas? Segundo Jon Elster, a teoria da escolha racional possui limites e falhas porque não nos diz qual racionalidade requer ou porque as pessoas não se comportam como a racionalidade requer. São quatro os problemas levantados por Elster (1986: 17-20) no processo de tomada de decisão: 1.) "Mantendo desejos e crenças fixos, pode existir mais de uma ação prescrita pela teoria da escolha racional?", 2.) "A não-existência de um comportamento racional surge se o agente é incapaz de comparar todas as alternativas."; 3.) "A não-existência de crenças racionais surge em escolhas sob incerteza" e 4.) "A não-existência de uma ótima quantidade de evidências surge a partir da nossa inabilidade para avaliar o valor marginal esperado da pesquisa por informação".

No que se refere ao sem-terra fluminense, sem tradição agrícola, podemos fazer observações sobre o processo de tomada de decisão quanto a ocupar "terra para fins urbanos" ou "terra para fins agrícolas": para o sem-terra, qualquer uma das opções é melhor do que continuar na situação em que se encontrava (rejeição às favelas, escapar do aluguel e da marginalidade nas favelas, etc.). Por um lado, o ator é indiferente às duas opções, ambas são racionais para o "indivíduo-sem-terra", mas completamente diferentes; por outro, desenvolver atividades agrícolas, para a maioria, era uma experiência nunca antes realizada, o que caracterizaria a ocupação de "terras para fins agrícolas" como um "comportamento não-racional", porque o ator é incapaz de comparar as alternativas ou não sabe como vai reagir à nova situação de agricultor. Estes aspectos exemplificam as duas primeiras falhas ou limites da teoria da escolha racional, apontados acima por Elster.

Este mesmo autor propõe que, para fins explicativos, a teoria da escolha racional precisa ser suplementada por uma teoria causal, que funcionaria como um terceiro filtro: 1.) as restrições que definem o conjunto de ações possíveis, 2.) a racionalidade opera para excluir alguns elementos do conjunto e 3.) "algum outro mecanismo" (hábito, gosto, etc.) que explica porque uma das alternativas, que não foi eliminada pela consideração da escolha racional, é escolhida para realização.


Diferente de outras unidades da federação, a natureza da questão agrária fluminense está intimamente vinculada aos processos de urbanização e de especulação imobiliária. Entendemos que parte significativa dos sem-terra, hoje de perfil urbano, possui origem familiar rural. Neste sentido, levantamos a seguinte hipótese: o "terceiro filtro" proposto por Elster, no caso do sem-terra fluminense, pode ser o peso atribuído ao "passado idealizado" ou à "época da fartura" (saudosismo). A decisão de participar de uma ação coletiva para ocupar "terras para fins agrícolas", representou a possibilidade de uma "volta ao campo", "volta às origens". Origem familiar remota ou recente, origem real ou desejada...

Uma outra ferramenta de análise alternativa à teoria da escolha racional, com vistas a responder a mesma pergunta, provém da "posição neo-racionalista", que argumenta existir limites na capacidade do indivíduo ser racional ou de processar informações. Esta corrente formulou o "princípio da racionalidade limitada" ou "teoria da satisfação", que afrouxa o suposto maximizador da teoria da escolha racional: "as pessoas não procuram a melhor alternativa no conjunto de ações possíveis, mas limitam-se àquela que parece ser 'boa o suficiente' ou satisfatória" (Elster, 1986: 25).

Segundo este princípio, os sem-terra desejavam um lote de terra para morar, mas no conjunto de ações concretas possíveis, apresenta-se a possibilidade de conquistar a "terra de trabalho", o que não é a melhor opção mas satisfaz.

Em outro trabalho Elster (1989: 40) faz as seguintes considerações: "Embora a versão padrão da teoria [da escolha racional] apresente condições e preferências como independentes entre si, elas podem ser interdependentes. As condições dependem das preferências se a pessoa decide de antemão eliminar certas opções do conjunto viável, o que pode ser feito para evitar a tentação ou - paradoxal-mente - para melhorar uma posição de barganha. Ao contrário, as preferências dependem das condições se a pessoa, consciente ou inconscientemente, adapta o que quer ao que pode obter".

Podemos abordar esta mesma questão também de outro ângulo. A decisão entre "terra para fins urbanos" e "terra para fins agrícolas" foi tomada num quadro de "informações incompletas" - quando o agente somente pode atribuir probabilidades numéricas aos diferentes resultados possíveis (qual seria a reação dos proprietários de terra e do governo?). Nestes casos, a teoria da escolha racional entende que o critério de decisão sob risco é escolher a opção que maximiza a utilidade esperada (Elster, 1986). Ambas alternativas possuem o mesmo grau de risco, mas a "terra para fins agrícolas", além de ter superfície maior, oferece a possibilidade de realizar uma agricultura de subsistência.

Conquistada a terra, é na dinâmica interna dos assentamentos que emergem as principais tensões. Elas não se deram na relação assentados - governo, mas principalmente entre assentados e CPT/RJ e entre assentados e MST/RJ. Estes conflitos foram causados pelo descompasso dos objetivos e práticas do "movimento real do indivíduo-sem-terra" em relação às propostas do MST (Cf. Grzybowski, 1987; Medeiros, 1989; Torrens, 1991).

Durante o processo de ocupação e de consolidação da ocupação houve uma convergência de interesses entre os sem-terra e seus mediadores e representantes - a luta pela terra. Após a conquista da terra emergem as contradições existentes entre a "utopia comunitária" proposta e as relações reais que conseguem estabelecer internamente. Podemos supor que ocorreu uma "adesão retórica" ao discurso coletivista do Movimento.

Os principais problemas que emergiram referiram-se à definição sobre a forma de titulação da terra e a organização da produção, e tinham como cerne a desconfiança, a suspeita entre os assentados:
a. titulação da terra: diferente do MST/RJ, CPT/RJ e governo, que propunham a titulação coletiva como mecanismo contra a compra de terras por grandes proprietários e de autopreservação de um modo de vida, os assentados em sua maioria queriam a titulação individual. Alegavam priorizar necessidades futuras como parcelamento da terra (herança), venda para compra de novas parcelas, etc.;

b. organização da produção: os assentados rejeitaram a proposta de exploração coletiva da terra. Defendiam seu ponto de vista argumentando "não querer trabalhar para os outros ou mais que os outros", devido às diferentes capacidades de trabalho, idade, etc. Apesar das vantagens da exploração coletiva (redução de custos, maximização da força-de-trabalho, etc.), suas tentativas fracassaram.

Conforme ressalta Elster (1989: 40): "deve ser sublinhado que a teoria [da escolha racional] diz que a pessoa escolherá a ação que acredita mais adequada a seus propósitos, o que não quer dizer que seja a melhor num sentido mais objetivo".

 

Referências bibliográficas

 

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