Estudos Sociedade e Agricultura

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Sérgio Leite

Movimentos da modernidade: novos atores na esfera pública


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 32-44.

Sérgio Leite é professor da UFRRJ/CPDA.


Introdução

A presença das chamadas organizações não-governamentais (ONGs) no cenário político contemporâneo, atuando tanto no campo de defesa de diversos grupos minoritários como na redefinição do eixo programático de novas políticas públicas, tem influenciado o debate sobre o papel dos atores sociais em meio à crise da modernidade. Ainda que de forma diferenciada, a emergência destas organizações, de certa maneira a forma institucionalizada de determinados movimentos sociais (Fernandes, 1994), tem contribuído para redimensionar questões centrais ao desenvolvimento de sociedades do velho e do novo mundo.

Uma reflexão mais acurada sobre o significado dessa “presença” remeteria, por um lado, à análise do perfil e da constituição destes novos atores, da sua internacionalização e do grau de legitimidade das suas práticas, vis-à-vis o posicionamento de outros segmentos sociais convencionais, como, por exemplo, o Estado, a Igreja e o Sindicato. Por outro lado, no debate acima, fica implícita uma discussão mais complexa sobre o caráter da modernidade e sua crise, do surgimento dos atores sociais e sua interação com a sociedade capitalista. Neste campo em particular, são vários os caminhos e as interpretações a serem percorridas, bem como é extremamente difícil uma sistematização consistente sobre o tema em pauta. Um recente e instigante trabalho de Alain Touraine (1992) permite ao mesmo tempo uma aproximação competente ao debate, além de trazer argumentos extremamente interessantes ao contexto aqui referido.

Estas notas, à guisa de uma tentativa inicial de apreender estas novas relações, têm por objetivo recortar o quadro proposto procurando intercalar, na análise, as duas perspectivas apontadas no parágrafo anterior. Dado o escopo do texto, fundamentaremos nossas observações nos trabalhos de Assumpção (1993) e Fernandes (1994) para o retrato e a polêmica em torno das ONGs, sobretudo brasileiras. A ponte com a reflexão mais geral terá nos textos de Touraine (1991a, 1991b, 1992) um ancoradouro importante.

A modernidade em crise

É oportuna a forma com que Touraine situa o debate em torno da modernidade, a partir de uma visão crítica. Para tanto ele aponta três momentos históricos onde a concepção clássica de modernidade entra em crise. O primeiro, o “mundo weberiano” do final do século XIX, “reflete a impotência frente à racionalidade, ao instrumentalismo, impotência para agir e manter-se, frente a inimigos internos ou externos. O segundo nível é muito mais crítico, transformando uma visão otimista, iluminista, numa visão negativa e repressiva da modernidade” (Touraine, 1991a: 178), onde a lógica do sistema sobrepõe-se ao conjunto dos atores, na realidade muito mais agentes, seguindo a expressão de Poulantzas utilizada pelo autor. Esse segundo momento data do pós-guerra. Finalmente, já no campo prático e político, um terceiro momento apontaria a sublevação das forças consideradas irracionais, provocando um processo de fragmentação do modelo em curso, dando elementos às teses pós-modernas que pregam a não correspondência dos atores ao sistema, uma visão destruidora da sociedade.[1]

Ainda no campo da localização dos níveis da crise, Touraine sublinha a diferenciação entre modernidade e modernização, justificando sua proposta de manter o debate no campo próprio da modernidade, afastando, portanto, as concepções liberais, pós-modernas, antimodernas e hipermodernas (Touraine, 1992). Assim, não se trata de confundir a modernidade com o modo puramente capitalista de modernização (idem: 238), como o fez Weber, onde impera a instrumentalidade da racionalidade econômica; mas abrir, no contexto das sociedades programadas, para uma visão que integre um campo cultural, condicionante dos conflitos sociais e das ações políticas que aí se desenvolvem.[2]

Ao invés de insistir na concepção deísta de uma modernidade limitada, Touraine avança para a plena modernidade, não mais sob a égide exclusiva da racionalização, mas agora sob o binômio, carregado de tensão e conflito, dado pela racionalização e pela subjetivação. Para tanto é necessário situar o contexto social em que se inserem essas relações que permitirão o nascimento do Sujeito, qual seja, a sociedade pós-industrial. Esta última pode ser “definida como um tipo de sociedade que aparece quando se passa do tema dos bens materiais ao dos bens culturais e quando o problema da cultura e da personalidade se torna mais importante, mais central do que o problema econômico” (Touraine, 1991b: 37).[3] Vale destacar que nesta concepção a luta de classes deixa de ser o lócus nevrálgico do sistema, para ceder espaço ao conflito social, privilegiando campos como a escola, o hospital e os meios de comunicação, sobretudo a televisão (Peralva et al., 1991).

Neste contexto de bipolaridade (Razão/Sujeito) ganham peso as relações que o Sujeito estabelece entre a sua própria vida e a Nação, e aquelas que a Razão mantém entre a lógica do consumo e da empresa, provocando um fluxo de complementaridade entre estes pólos, ao contrário da modernidade “dividida”, onde a racionalidade instrumental articulava os quatro parâmetros acima (vida, consumo, nação, empresa). Assim, recorrendo mais uma vez ao próprio autor, “De um lado, a nossa sociedade de produção e de consumo de massa, de empresas e de mercados, é animada pela razão instrumental. Ela é um fluxo de transformações e um conjunto de estratégias de adaptação e de iniciativa num meio ambiente instável e fracamente controlado. De outro lado, nossa sociedade está ocupada pelo desejo individual e pela memória coletiva pelas pulsões de vida e de morte e pela defesa da identidade coletiva.” (Touraine, 1994: 231).

Historicamente Touraine situa o final da década de 60 como o momento de crise das sociedades industriais, ressalvando que não se trata de uma análise etapista/evolucionista, muito menos historicista. Na realidade esse período marca o desgaste dos valores e atores das sociedades industriais calcadas no processo de industrialização e luta de classes, consolidadas a partir do século XIX, que, já nos anos 80, chega inclusive a opor acentuadamente os campos do cálculo econômico e da identidade cultural, aumentando o risco eminente de uma desagregação completa. No entanto, o autor observa o “renascimento do social” através da presença de novos atores em cena (Touraine, 1992).

Vale aqui um parênteses, dado nosso propósito comparativo, para ressaltar que a atividade associativa, como aponta Fernandes (1994) ganha peso nos anos 70 e se desenvolve aceleradamente na década seguinte, especificamente para movimentos como os de mulheres, indígenas, minorias étnicas, ecologia e de consumidores.[4] Muitas vezes com origem filantrópica, ou ainda presos à instrumentalidade racional dominante, esses movimentos vão assumindo, ao longo desse período, características outras, quer em relação ao campo de atuação e grupo de beneficiários, quer ainda no debate político mais geral.[5]

Sujeitos, atores e movimentos sociais

Segundo Touraine o Sujeito é a vontade de um indivíduo agir e ser reconhecido como ator, onde a subjetivação consiste na penetração do Sujeito no indivíduo e, portanto, a transformação - parcial - do indivíduo em Sujeito[6]. “A subjetivação destrói o Ego que se define pela correspondência de comportamentos pessoais e de papéis sociais e é construído pelas interações sociais e pela ação de agências de socialização. O Ego se parte: de um lado o Sujeito (o Eu e sua relação com o Id), de outro o Si-mesmo (Self). O Si-mesmo associa natureza e sociedade, assim como sujeito associa indivíduo e liberdade”. Ou ainda, “(...) A idéia de ator social não é separável da idéia de sujeito, porque se o ator social não se define mais por sua utilidade para com o corpo social ou por seu respeito aos mandamentos divinos, quais princípios o guiam senão os de se constituir como sujeito, de estender e proteger a sua liberdade ? Sujeito e ator são noções inseparáveis e que resistem conjuntamente a um individualismo que restitui a superioridade à lógica do sistema sobre a do ator, reduzindo este último à procura racional - portanto calculável e previsível - de seu interesse.” (Touraine, 1994: 221-222).

Parece-nos extremamente interessante a “torção” realizada por Touraine na transposição do conceito de indivíduo àquele de Sujeito.[7] Nesta passagem Touraine, sem abrir mão da sua crítica feroz ao domínio da razão e aos conseqüentes totalitarismos de direita e de esquerda que inibem a liberdade do sujeito, nem tampouco fazer qualquer concessão ao narcisismo individualista; resgata elementos presentes quer na concepção teísta (onde a religião incumbe-se de corroborar o processo de resistência do sujeito à opressão da razão instrumental) ou iluminista (onde a substituição de Deus pela racionalidade das leis da Natureza, fruto do processo de “desencantamento do mundo”, levou à consideração, ainda que pela porta dos fundos, da presença do sujeito) pertinentes à construção do Sujeito.[8]

Resta, portanto, pensar no processo de recolhimento dos pedaços da modernidade “partida” (éclaté), sem restaurar qualquer princípio universal e unificador, como o foram, em circunstâncias diversas o Estado (em especial o Estado populista nas nações latino americanas) e a presença de Deus.[9]

Em primeiro lugar o autor insiste na argumentação em prol do diálogo racionalização/subjetivização para explicar a modernidade plena[10], para depois localizar nos movimentos sociais (ou ainda movimentos culturais) o ponto nevrálgico da relação dual, acima referida. “A resposta precisa que este livro dá é que a razão e o Sujeito, que podem realmente tornar-se estranhos ou hostis um ao outro, podem também unir-se, e que o agente desta união é o movimento social, isto é, a transformação da defesa pessoal e cultural do Sujeito em ação coletiva dirigida contra o poder que submete a razão aos seus interesses.” (Touraine, 1994: 394).

Nesta perspectiva o movimento social guarda uma ação coletiva desencadeada pelo sujeito e sua formação depende do grau de integração entre três aspectos: a definição do ator, seu adversário e do campo de conflito ou negociação entre atores (Touraine, 1991b). Vale lembrar que a visibilidade do Sujeito, sem nenhuma conotação funcionalista, é dada pela sua relação com outros sujeitos.[11] E desta forma atores e conflitos passam a definir o Sujeito, como um modo de construção de experiência social. Assim, o conflito não se dá entre as classes mas entre os atores/ sujeitos enquanto tais (Touraine, 1991 b).

Recorrendo, novamente, ao autor: “um movimento social está formado por dois aspectos, que não podemos separar: um aspecto conflitivo, que consiste no enfrentamento de um ator com outro ator social. Por exemplo, uma classe social com outra classe social. Um enfrentamento que ocorre no interior de uma relação de poder, de dominação social. Esse é o primeiro aspecto. O segundo é uma orientação positiva em direção a valores centrais de uma sociedade. Não se trata, portanto, nem de uma visão puramente conflitiva, nem de uma visão participacionista, nem uma em termos de contradições, ou funcionalista. Minha idéia central mais simples é a de que o movimento social envolve um conflito entre atores opostos mas que têm algo em comum: as orientações culturais”. Ou ainda: “o conflito social é visto como unidade de orientações culturais e polarização de modelos sociais. Se não existem os dois elementos, não há movimento social.(...) O movimento social é muito mais do que a defesa de interesses particulares. É uma vontade de construir ou reconstruir a sociedade em seu conjunto, de maneira favorável aos interesses de um grupo” (Touraine, 1991b: 32-33)

Atores e movimentos sociais na América Latina

Segundo Touraine as sociedades latino-americanas possuem algumas especificidades que poderiam caracterizar essas nações de passado colonial como sociedades “caleidoscópicas” e fragmentárias. Na realidade coexistiriam diversos sistemas de estratificação: sociedade mercantil (oligarquia, burocracia, povo, pobres); sociedade industrial (gerentes/executivos de empresas, técnicos, trabalhadores, desempregados); modo e grau de participação ao desenvolvimento para o interior (elite dirigente, sub-elite setorial, cidadãos, marginais); efeitos da dependência (financeiros, consumidores voltados ao mercado internacional, assalariados dependentes, setor informal). A forma de desenvolvimento destas sociedades teriam como elementos comuns a entrada de recursos estrangeiros para setores não-produtivos, a presença da oligarquia, em detrimento dos empresários na condução da economia, fraca capacidade de inovação tecnológica e industrialização truncada (Touraine, 1989).

Assim, na parte que nos interessa mais de perto, as características acima adicionadas à pouca demarcação entre a vida pública e a vida privada, bem como à dificuldade de estabelecer uma clara distinção entre a sociedade civil e o Estado, tornam esta parte do continente um conjunto de nações de atores sem ação.[12] As lutas sociais vivenciadas não se constituem propriamente em movimentos sociais, pois ainda que carreguem um forte caráter contestador, possuem limitado impacto político (idem, ibidem).[13]

Cabe referência específica ao papel do Estado nacional-popular que, atuando como elemento unificador dessas sociedades, subordinam os atores sociais ao poder político e corroboram para a convivência entre o processo de modernização econômica e a desarticulação ideológica e política.

Montado o quadro, agravado pelo extremo grau de desigualdade social observado, o autor parte para o prognóstico: “nesse sentido, minha conclusão não é de tipo prático, mas exige frisar a importância dos três problemas centrais que mencionei: primeiro, diminuir as desigualdades; segundo, aumentar a vinculação entre o sistema de decisão política e os grandes interesses sociais; e terceiro, e isso é mais difícil, evitar a separação que se observa hoje entre o mundo moderno e o mundo popular. (...) Por isso penso que os estudos sobre os movimentos sociais não são estudos à margem da sociedade. Situam-se no seu centro, porque o problema não é saber se o sistema político pode integrar todas as demandas, o que envolve uma visão muito superficial dos movimentos sociais. Pelo contrário, trata-se de saber em que condições a sociedade pode ser dirigida pelos atores sociais, por suas negociações e seus conflitos, dentro de um marco nacional” (Simão, Cardoso, Touraine, 1991: 25). Acrescente-se o fato de que o Estado latino-americano, afundado na crise fiscal, não mais possui o elemento mobilizador e unificador de outrora.

Vale lembrar ainda, seguindo a análise de Oliveira (1994), que o regime autoritário, no caso brasileiro pelo menos, não logrou constituir/mobilizar os movimentos ao seu favor (como foi experimentado pelo Estado populista), contentando-se em reprimir ou tutelar o movimento sindical, impedindo a constituição de uma sociedade política.

Novos atores e esfera pública: a presença das ONGs

Não é desnecessário lembrar o limite destas notas. Desta forma, com base nas questões levantadas anteriormente tendo como referência a obra de Touraine, é oportuno passarmos agora para uma reflexão final sobre a possibilidade de compreender as organizações não-governamentais como emblemáticas dos novos movimentos sociais. Na realidade Fernandes (1994) vai mais longe na definição de um “terceiro setor” na América Latina, incorporando instituições formais e informais, desde que se incluam na rubrica “organizações privadas com finalidades públicas”.

Fernandes (1994: 43) aponta para o fato de que tais associações e organizações, emergentes na América Latina a partir da década de 70, foram conceituadas de “‘movimentos’ para acentuar sua natureza instável e mutante, distinta da obtida em estruturas que se organizam numa longa duração. E chamados ‘sociais’ devido ao seu distanciamento em relação aos aparelhos de Estado. Apesar do envolvimento constante em matérias de interesse público, não foram chamados ‘movimentos políticos’ justamente porque lhes faltavam as conexões que os integrassem a alguma política sistemática de governo”.[14] O autor ressalta, ainda, seu caráter descentralizado, visando a formação de redes de relacionamento, priorizando o trabalho e a assessoria no local de moradia ao invés do local de trabalho, tradicional reduto do movimento sindical.

Essa aproximação ao “social” num primeiro momento explica-se também pelo contexto político extremamente opressor, sufocando as práticas políticas convencionais de partidos e sindicatos e possibilitando a essas novas organizações, sobretudo aquelas com matriz eclesiástica, um trabalho comunitário quase que imperceptível às antenas do regime. Com algum exagero, talvez pudéssemos estabelecer uma analogia ao campo em que Touraine também situa os novos movimentos, ou seja, ao campo social e cultural. Fazendo a crítica a Habermas e Lefort, Touraine (1991a, 1992) não crê na capacidade de unidade política como meio de pavimentação do novo espectro societal. Na realidade ele parece pregar uma desvinculação dos atores sociais ao sistema político, ainda que considere os conflitos sociais e a emergência do Sujeito vitais ao processo democrático. Esta passagem nos parece, no entanto, problemática. No caso das ONGs, suas lutas, para além do social e do cultural, enfronham-se, também, na disputa de um projeto político (veja-se as articulações, por exemplo, entre associações de agricultura orgânica com o Partido Verde na Alemanha), e, para além dos “direitos humanos”, várias dessas organizações desfraldaram a bandeira da democracia como lema central. A partir deste ponto, não se trata apenas da maior ou menor visibilidade aos problemas das minorias, mas também de situar estas organizações em relação ao poder do Estado, aos partidos políticos e ao caráter extensivo do conceito de cidadania. Se, como prega o discurso liberal, não cabe mais falar de direita ou esquerda, o marco das organizações mais ou menos progressistas persiste na caracterização implícita ao meio. Movimentos ambientalistas são exemplos fartos de organizações com pouca postura humanista como quer Touraine.

Porém ao ressaltarem a importância de lutas específicas contra o processo de desagregação e desigualdade social, estas organizações, mais conhecidas como entidades de assistência e ação comunitária nos anos 70, de assessoria e capacitação nos anos 80 e de atores e movimentos nos anos 90 (Assumpção, 1993)[15], não focalizam exclusivamente os conflitos no campo instrumental-racional, para uma nova aproximação à Touraine, mas sobretudo fora dele. Segundo Fernandes (1994: 72) o campo de atuação das ONGs na América Latina pode ser definido como de “educação para o desenvolvimento com ênfase na promoção social”. Em termos de áreas específicas de atuação, podem ser arroladas: criminalidade/violência/drogas: 1%; negros e índios: 1,6 %; formação qualificada/assessoria: 40,6%; educação : 36%; pesquisa: 15,98%; desenvolvimento/promoção social: 29,50%; desenvolvimento rural: 15,78%; saúde: 20%; mulher: 11,58%; meio ambiente: 18,12%; comunicação: 18,58%; direitos humanos: 8,70%; projetos de financiamento: 8,64% (Fernandes, 1994).

Finalmente, na ausência de uma conclusão formal, resta ainda colocarmos uma última questão: na medida em que o objeto da ação destas instituições limita-se ao espaço público, pois renunciam ao lucro privado e ao poder de Estado, abre-se a possibilidade de pensar sua participação na definição de políticas mais gerais, com caráter marcadamente público, não necessariamente governamentais.[16] Tal direcionamento implica, ademais, no questionamento do processo de distribuição dos fundos públicos, reivindicados pelas ONGs sem, no entanto, comprometer sua autonomia institucional.[17]

Este parece ser o ponto também ressaltado por Oliveira (1994: 12): o processo de democratização pressupõe uma influência maior no campo de origem dos movimentos sociais, ou seja, no âmbito das políticas públicas. Estas deixariam de oscilar junto às conjunturas para serem mais institucionalizadas. Esta transição teria, no entanto, uma conotação negativa, como demonstrado em Touraine (1991b: 38-39), para quem “a autonomia (dos movimentos sociais) é um fato positivo, mas o desenraizamento das forças políticas frente aos atores sociais é obviamente negativo. E a única resposta possível é a de que vamos assistir a algo que não é muito interessante: a criação, entre o mundo político e o mundo social, de um mundo intermediário, que é o mundo da opinião pública”.

Não se trata, porém, de negligenciar o papel do Estado, ou identificá-lo apenas no campo da dominação opressora, como parece propor Touraine, mas de refunda-lo, e com ele, um novo espaço político da sociedade moderna, redefinindo a esfera pública, onde, cada vez mais, as associações da sociedade civil têm assumido importância crucial.

Referências bibliográficas

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Touraine, Alain. Em defesa da sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.

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__________.Critique de la modernité. Paris, Fayard, 1992. (Para esta Revista as citações no corpo do texto foram extraídas da edição em português Crítica da modernidade, Petrópolis, Vozes, 1994. No entanto, as referências que não envolvem transcrição de trechos da obra do autor reportam-se à edição em francês).

Touraine, Alain, Wieviorka, Michel. “A intervenção sociológica: método de estudo dos movimentos sociais”. In: Peralva et al., 1991, op.cit.

Weber, Max. L’Éthique protestante et l’esprit du capitalisme. Paris, Librairie Plon, 1967.



[1] “Durante a época da modernidade limitada, o homem se julgou deus; ele se embriagou com o seu poder e se aprisionou em uma jaula de ferro que foi menos a das técnicas que a do poder absoluto, de um despotismo que se queria modernizador e que se tornou totalitário. Ao mesmo tempo, a partir da metade do século XIX, a idéia de modernidade foi cada vez mais recoberta pela idéia de modernização, pela mobilização de recursos não econômicos e não modernos visando assegurar um desenvolvimento que não pode ser espontâneo, endógeno. Esses dois movimentos se conjugaram para apagar a primeira imagem da modernidade cuja força total vinha do seu papel libertador. À medida que os antigos regimes se decompõem ou são derrubados, os movimentos de libertação se esgotam e a sociedade moderna se reencontra prisioneira de seu próprio poder de um lado, e de outro, das condições históricas e culturais de sua realização. Tendo chegado ao fim do século XX, a modernidade desapareceu, esmagada por seus próprios agentes, e se reduziu a um vanguardismo acelerado que se transforma em pós-modernidade desorientada. É desta crise da protomodernidade que nasce, paralelamente às brincadeiras da pós-modernidade e os horrores do mundo totalitário, a modernidade mais completa na qual nós entramos (...)” (Touraine, 1994: 386).

[2] Touraine (1992: 415). Reconhecendo a importância da passagem do ascetismo fora do mundo ao ascetismo dentro do mundo para o surgimento do Sujeito, Touraine critica severamente a concepção de modernidade presente em Weber, buscando alargar, dentro do próprio campo do modelo racional (“o único que nos protege contra os particularismos que necessariamente nos levam à guerra, ao racismo, etc.” (Touraine, 1991a: 180), as bases do pensamento e da sociedade moderna. Assim, para o autor, o “interesse da análise weberiana do capitalismo é, portanto, privilegiar o caso histórico onde as crenças religiosas contribuem diretamente para isolar uma lógica econômica do resto da vida social e política. Seu perigo seria levar a acreditar que esta análise vale para a modernidade em geral. O que Weber descreve não é a modernidade, mas uma forma particular de modernização que se caracteriza ao mesmo tempo por uma grande concentração de meios a serviço da racionalização econômica e pela forte repressão exercida sobre as pertenças culturais e sociais tradicionais, sobre as necessidades pessoais de consumo e sobre todas as forças sociais identificadas pelos capitalistas como o âmbito das necessidades imediatas, da preguiça e da irracionalidade.” (Touraine, 1994: 35). Da mesma forma, o autor sublinha a diferenciação entre os conceitos de burguesia e de capitalista, vinculando o segundo à lógica do modelo weberiano (idem: 274). Ver, também, Weber (1967).

[3] Ver ainda Touraine (1976). Para um outro tipo de análise que relativiza o aspecto econômico no bojo das sociedades modernas, ver Polanyi (1978).

[4] “Um survey que realizei em 1982 sobre organizações não lucrativas de serviço social em 16 comunidades norte-americanas mostrou que 65% das organizações então existentes haviam sido criadas depois de 1960. Praticamente cada um dos grandes movimentos sociais das últimas três décadas nos Estados Unidos (...) teve suas raízes no setor não lucrativo. Na França, o número de associações deu um salto igualmente expressivo. (...) Entre 1980 e 1986, a arrecadação das organizações filantrópicas britânicas cresceu cerca de 221%. Estimativas recentes registram em torno de 275.000 charities na Grã-Bretanha, com um ingresso equivalente a mais de 4% do produto nacional bruto. Na Itália, pesquisas indicam um forte impulso na formação de organizações voluntárias nos anos 70 e 80. Das organizações encontradas em 1985, 40% haviam sido criadas depois de 1977” (Salamon, L., Anheier, H.K. In search of the non-profit sector. I: The question of definitions. Voluntas 3/2, Manchester: Manchester Univ. Press, 1992. Apud Fernandes (1994: 17).

[5] Dados os limites deste texto não pretendemos abordar as questões metodológicas e semânticas que perpassam o tema das associações sem fins lucrativos e não governtamentais. O tema foi revisto, à exaustão, por Assumpção (1993).

[6] O autor chega mesmo a falar num novo princípio central de moralidade calcado na liberdade (Touraine, 1992: 244-5).

[7] O autor dedica várias páginas ao tratamento dessa passagem que, por questões óbvias, não serão retomadas aqui. (Cf. Touraine, 1992).

[8] “A secularização não é a destruição do sujeito, mas sua humanização. Ela não é somente desencantamento do mundo, ela é também reencantamento do homem e coloca uma distância crescente entre as diferentes faces dele mesmo, sua individualidade, sua capacidade de ser sujeito, seu Ego e o Si-mesmo que constroem fora dos papéis sociais. A passagem para a modernidade não é a da subjetividade para a objetividade, da ação centrada sobre si para a ação impessoal, técnica ou burocrática. Ela conduz, da adaptação ao mundo para a construção de mundos novos, da razão que descobre as idéias eternas para a ação que, racionalizando o mundo, liberta o sujeito e o recompõe.” (Touraine, 1994: 243).

[9] Diversamente da dicotomia holismo-individualismo utilizada por Louis Dumont para caracterizar a passagem à sociedade moderna, Touraine propõe a sociologia do sujeito versus o individualismo racionalista (Touraine, 1992).

[10] Esta dicotomia pode também ser lida, na obra em questão, pela relação de dominação entre “dirigentes” e “dirigidos”. Ao negar o conceito de classe social e luta de classes, e a conseqüente abordagem marxista em torno da exploração da força de trabalho, o autor não precisa a nova base de dominação, apenas localizando no sujeito a expressão das resistências pela liberdade e no segmento portador da razão instrumental a prática do cálculo e da defesa dos interesses econômicos. Ver Touraine (1992).

[11] “É somente quando o indivíduo sai de si mesmo e fala ao outro, não nos seus papéis, nas suas posições sociais, mas como sujeito, que ele é projetado fora do seu próprio si-mesmo, de suas determinações sociais, e se torna liberdade.” (Touraine, 1994: 239).

[12] “A dificuldade, no caso europeu, é deslocar uma análise objetivista, em termos de processo histórico, e propor uma análise em termos de atores. No caso latino-americano, o problema é compreender em que condições se formam atores desprovidos de ação, personagens sem estrutura, que podem transformar-se em agentes de um processo de mudanças históricas” (Simão, Cardoso, Touraine, 1991: 19).

[13] Uma boa análise e resenha do debate acerca dos movimentos sociais, populares e sindicais e seu rebatimento no caso brasileiro, pode ser encontrada em Lesbaupin (1994).

[14] Ou ainda, segundo Assumpção: “(...) essas entidades e seus agentes, como se viu, passam em sua maioria dos ‘grupos atingidos’ para os ‘movimentos’, ou o Movimento, no singular, palavra-chave que começa a reinar no centro do ideário, das esperanças e das especializações, para os anos 80, desse conjunto de agentes e entidades” (Assumpção, 1993: 381).

[15] Várias das grandes ONGs de desenvolvimento brasileiras têm se auto-denominado como atores, movimentos ou mediadores políticos por excelência.

[16] “Ou seja, o conceito (de terceiro setor) denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. ‘Bens e serviços públicos’, neste caso, implicam uma dupla qualificação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivas. (...) Quaisquer que sejam as variantes, no entanto, há um elemento comum que deve ser fixado: o conceito implica uma expansão da idéia corrente sobre a esfera ‘pública’” (Fernandes, 1994: 21)

[17] O Jornal da Abong, 11, de agosto de 1995, traz uma série de artigos sobre o caráter “não-governamental”, “semigovernamental”, “neogovernamental” dessas instituições, sua diferenciação em relação às demais entidades sem fins lucrativos e sua participação na distribuição dos fundos públicos. Os artigos associam, ainda, este debate à crise de financiamento das ONGs, argumentando que o momento atual implica que estas questões estejam amadurecidas o quanto antes, forçando uma participação ativa e autonôma dessas organizações na administração dos recursos públicos. Ver especialmente os trabalhos de Durão (1995) e Grzybowski (1995). Sobre o conceito e problematização da importância dos fundos públicos no processo de valorização do capital, ver Oliveira (1993).