Estudos Sociedade e Agricultura

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Canrobert Costa Neto

Agricultura familiar e renda da terra


Estudos Sociedade e Agricultura, 10, abril 1998: 118-134.

Resumo: Este artigo apresenta uma interpretação pela qual o desenvolvimento do capitalismo no campo provoca um processo de “recriação” da pequena produção agrícola familiar mercantil que resulta em um tipo de “complementaridade contraditória” entre agricultura familiar e capitalismo industrial-financeiro, levando-se em conta o papel desempenhado pela renda da terra neste processo de expansão da agricultura familiar mercantil.

Palavras-chave: Agricultura familiar; renda da terra; capitalismo.

Abstract: Family Farming and Land Rent. This article presents an interpretation according to which the development of capitalism in the countryside leads to a “recreation” of the mercantile family farming production which results in a type of “contradictory complementary” between family farming and financial industrial capitalism, taking into account the role played by land rent in the process of expansion of mercantile family farming.

Key words: Family farming; land rent; capitalism.

O texto busca recuperar e aprofundar elaborações desenvolvidas por este autor em tese de doutorado defendida em 1995 no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, sob o título Reforma agrária, pequena propriedade e renda da terra na América Latina: a experiência da Bolívia.

Canrobert Costa Neto é professor da UFRRJ/CPDA.


Este artigo procura recolocar o tema da relação entre agricultura familiar e renda da terra. Inicialmente se registra a persistência histórica da agricultura familiar em diversas partes do mundo. A seguir, apresenta-se a conceituação de “economia camponesa” e a sua associação com as interpretações sobre a “funcionalidade” entre agricultura familiar e capital. A partir daí, expõe-se a concepção subjacente ao tema da articulação entre a lógica da pequena produção familiar e a lógica do capital, procurando-se relacionar capitalismo e “recriação” das formas familiares mercantis no campo, nas sociedades capitalistas contemporâneas.

É, então, retomada a definição de “economia camponesa”, agora como fonte de intercâmbio desigual de produtos e mercadorias e de transferência de valor para a economia capitalista, via mercado. Em seguida, é abordada a questão da transferência intersetorial da renda fundiária, partindo-se de uma crítica à tese da transferência intersetorial de valor entre agricultura familiar “camponesa” e capital industrial.

O que se pretende é discutir a possibilidade de haver, ou não, transferência e/ou eliminação da renda da terra em condições de articulação entre capital e agricultura familiar e propor uma concepção de renda fundiária “não-realizada” gerada na pequena produção agrícola familiar mercantil, em articulação com o mercado capitalista. São expostos os mecanismos de interceptação e transferência intersetorial da renda fundiária presente “não-realizada” e as condições de existência da renda fundiária futura, capitalizada. Ao analisar-se a questão do preço da terra na agricultura familiar, busca-se mostrar o modo como, neste caso, o capital submete a renda da terra ao seu controle.

Em suma, a idéia do artigo é sugerir que a “recriação” da pequena produção agrícola aparece como solução contraditória do desenvolvimento do capitalismo no campo, como um processo de “complementaridade contraditória” entre agricultura familiar e capitalismo industrial-financeiro. Pretende-se sublinhar, então, que as teorias a respeito da “funcionalidade” entre a pequena produção agrícola, por um lado, e a grande atividade industrial e de crédito, por outro, não reconhecem a “desfuncionalidade” que é inerente à própria relação em questão.

O século XX registra uma forte presença de formas sociais relacionadas à agricultura familiar[1] em regiões de grande importância para o conjunto da economia mundial. Ainda no século XIX, a guerra civil norte-americana consagrou a agricultura familiar nos Estados Unidos como forma dominante do seu regime produtivo agrário. Na Europa Oriental, nos Balcãs, na América Latina (reforma agrária no México) e na Europa Ocidental (ver as leis inglesas de 1908), as primeiras décadas deste século pareciam indicar um rumo totalmente diverso do curso de desenvolvimento capitalista na agricultura previsto por Marx em função da lei do valor (Vergopoulos, 1986: 107).

Há mesmo na bibliografia uma espécie de exaltação do caráter “progressista” da agricultura familiar, com o surgimento de adeptos do tradicional modelo camponês de sociedade agrária. Na Rússia, os populistas reagiram à social-democracia e ao seu programa agrário que não contemplava a aspiração camponesa de uma reforma fundiária para consolidar o campesinato como classe hegemônica no mundo rural. Também na Rússia, baseando-se em uma “hipotética racionalidade camponesa universal” (Samper, 1989: 136), Chayanov (1987) procurava formular sua teoria da existência de um modo de produção camponês, distinto do desenvolvimento capitalista em geral.

Exaustivamente debatida a partir de então, a grande questão vai ser a da interpretação das razões da permanência da agricultura familiar no panorama agrário e agrícola das sociedades contemporâneas. A continuidade deste referido tipo de agricultura vem desafiando as mais consolidadas teorias que a consideravam ultrapassada e, mais do que isso, totalmente inadaptada ao desenvolvimento do capitalismo no campo.

Especialmente entre os marxistas, dos mais diversos matizes, o debate tornou-se acirradamente fértil, o que conduziu a diferentes posicionamentos e teses. O ponto de partida das discussões tem sido a constatação, unânime entre os principais estudiosos, não só da permanência da agricultura familiar, mas de sua associação ao mercado, em discussões que, basicamente, se iniciam na década de 50 e se estendem aos dias atuais.

Primeiramente o debate se voltou para interpretações acerca do conceito de “economia camponesa”, originário de Chayanov,[2] mas foi adquirindo outras conotações desde então. Passou-se a explicar a existência de uma “economia camponesa” pelo fato de que o campesinato exerce uma atividade econômica que não visa a obtenção do lucro, mas garantir a sua própria subsistência. Outra característica da “economia camponesa” seria a de que ela se constitui em pequenas propriedades agropecuárias auto-suficientes, fazendo com que as relações mercantis externas apareçam apenas como complementares. Dessa forma, a “economia camponesa” estaria numa relação de subordinação ao mercado, uma vez que na dinâmica da concorrência intercapitalista não lhe seria permitido um desenvolvimento adequado. Demonstrações inequívocas desta dependência seriam exatamente o crédito obtido a taxas usurárias e o alto preço dos insumos adquiridos fora do setor agrícola.

A persistência do sistema de produção agrícola familiar –no caso em questão, particularmente a “economia camponesa”– seria explicada pela sua “funcionalidade” em relação ao sistema capitalista como um todo e pelo seu papel no processo de acumulação capitalista e nas relações daí resultantes. A “economia camponesa”, desta maneira, não representaria exatamente um modo de produção, pois não chega a constituir um sistema global de acumulação, formado por instituições estatais e estruturas de reprodução ideológica. Ela tampouco se confundiria com uma economia natural, justamente por estar inserida de muitas formas no mercado.

A utilização do conceito de “economia camponesa” serve, assim, para investigar a continuidade das formas agrárias baseadas na pequena propriedade de caráter eminentemente mercantil. Em uma “economia camponesa” desse tipo, fatores sociopolíticos, como a retenção de parte da população rural à terra visando conter a migração às cidades e o desemprego, desempenhariam funções que garantiriam sobrevida histórica a essa “economia minifundista camponesa”, gerando estímulo à constituição de organizações cooperativas de pequenos produtores rurais (Bartra, 1981: 308).

Outras teorias, avessas às premissas da chamada “economia camponesa”, também procuram as razões da permanência da pequena produção familiar. É o caso da corrente que enfatiza a articulação entre a lógica da pequena produção e a lógica do capital, partindo de um outro tipo de pressuposto contrário às formulações de ordem estruturalista e de tendência a-histórica, contidas na designação genérica de “economia camponesa”. Essa concepção preocupa-se em buscar interpretações de fundo histórico sobre a sobrevivência e regeneração da agricultura familiar, enquanto forma social dinâmica, não se restringindo ao “mundo” tipicamente camponês.

Marx demonstrou que na produção camponesa em geral –a qual abrange as diversas formas da agricultura familiar– o preço do produto é igual ao custo de produção, sendo o preço de mercado fixado a um nível inferior ao da produção. O tempo de trabalho gasto pelo agricultor, comparado ao tempo de trabalho transformado em preço, resulta em trabalho fornecido gratuitamente aos demais setores da sociedade, o que explicaria, por si só, a importância da agricultura familiar mercantil para a reprodução do próprio sistema capitalista. Um setor da historiografia marxista, dedicado a esse tema da reprodução da agricultura familiar tem chamado a atenção para o fato de que o agricultor é o responsável pela manutenção da terra como um meio de produção que produz mercadoria, consubstanciando também uma relação possível e necessária com o capitalismo.[3]

Diferenciada do conceito de campesinato tradicional, a noção de moderna agricultura familiar tecnificada procura dar conta tanto da expansão capitalista quanto da redefinição de antigas relações sociais agrárias. Não apenas as subordinando à reprodução do capital –caso do próprio campesinato– mas também engendrando outras relações não-capitalistas, igualmente necessárias. O capitalismo “recria” a agricultura familiar ao manter formas de captação de trabalho gratuito no campo.[4]

Esse tema dos mecanismos de contínua reabertura de espaço para a produção simples de mercadoria também leva à crítica das teses da “funcionalidade” da pequena produção familiar mercantil. Ao invés de “funcionalidades” haveria uma “não-funcionalidade” ou “a-funcionalidade” (Lovisolo, 1989), revelando que a existência das unidades mercantis simples[5] não necessariamente integra os padrões de acumulação capitalista.

Na verdade, de acordo com a crítica de Lovisolo, as teses da funcionalidade/complementaridade encerrariam uma visão dualista da relação capital/agricultura familiar. As três proposições básicas sobre a funcionalidade, de duvidoso caráter explicativo, seriam as seguintes: a) a unidade mercantil simples preenche a necessidade de reprodução de mão-de-obra do modo de produção capitalista; b) a u.m.s. permite a reprodução da força de trabalho do setor industrial a custo menor que o da reprodução capitalista; c) a u.m.s. transfere valor para a acumulação capitalista ou elimina a desacumulação provocada pelo pagamento da renda da terra (idem: 209-23).

Os postulados “b” e “c” merecem maior atenção, uma vez que há uma aparente unanimidade, mesmo com posições matizadas, quanto à persistência e expansão das formas sociais familiares agrícolas em vários momentos do avanço do capitalismo no campo.

Para a corrente constituída em torno do conceito de “economia camponesa” seria necessário relacionar a pequena produção ao processo de acumulação capitalista global, ressaltando a questão da expropriação do camponês quando de sua vinculação ao mercado. O pequeno produtor não somente permitiria a acumulação em outros setores, notadamente no ramo industrial, ao prover alimentos barateados à população, como também transferiria valor para a sociedade quando interfere indiretamente na fixação do valor da força de trabalho urbano-industrial.

Essa transferência de valor decorreria da constante deterioração dos preços agrícolas em relação aos preços industriais, isto é, resultaria tanto das relações de troca quanto do atraso relativo da pequena produção agrícola com respeito ao setor industrial. No mercado, os produtos agrícolas não gozam de reciprocidade do valor-trabalho, já que o preço de mercado corresponderia à valorização média do produto, levada em conta a taxa média de lucro das relações capitalistas em geral. A grande massa de produtores não-capitalistas (os agricultores) forçaria os preços agrícolas para baixo, contribuindo para a redução do valor da força de trabalho industrial, já que a incidência dos alimentos no custo geral familiar é muito alto, especialmente, em países não desenvolvidos.

Conseqüentemente, a depreciação do valor da força de trabalho industrial canaliza lucros superiores para os empresários capitalistas e confere um ritmo mais acelerado à acumulação. Mediante estas vias –mercado e deterioração das relações de troca– os setores mais desenvolvidos e concentrados da economia se apropriam dos excedentes produzidos pelas suas áreas mais atrasadas, configurando um tipo clássico de funcionalidade (a reprodução da força de trabalho do setor industrial a custo menor).

Alguns críticos da tese da “funcionalidade” tentam mostrar que essas vantagens obtidas pelo setor industrial capitalista ao subordinar a pequena produção mercantil, na verdade, são aparentes, uma vez que os baixos preços agrícolas não chegam efetivamente ao consumidor final (Sandroni, 1980). Este tipo de crítica, entretanto, não se sustenta quando se percebe que os preços estão sujeitos a tabelamentos e a interferências políticas que podem fixá-los de cima para baixo, de conformidade com os interesses do capital urbano e industrial (Martins, 1986: 130-32).

Desse modo, os preços agrícolas não são fixados tendo em vista a lógica da reprodução ampliada do capital na própria agricultura, mas conforme as necessidades de reprodução do capital na indústria. O excedente de produção de “tipo tradicional” responderia por uma forma inusitada de acumulação de capital no meio urbano, garantindo baixos salários mediante subvenção indireta do consumo dos assalariados e da classe média.

Essa discussão se desenvolve melhor quando os autores procuram compreender os intrincados meandros que ligam a pequena produção familiar mercantil à renda da terra.[6]

Uma destas correntes chama a atenção para um “novo” tipo de “funcionalidade” entre agricultura familiar e capital tentando mostrar como o mecanismo de preços opera uma verdadeira transferência intersetorial de renda (Abramovay, 1992: 227-40). Os beneficiários de tal transferência seriam não só os setores que lidam diretamente com a compra de produtos agrícolas e com a venda de insumos e máquinas, mas o conjunto do sistema econômico, à medida que ocorre redução da parte do orçamento das famílias dedicado diretamente à alimentação.

Outro ponto relevante da discussão, relacionado com a “funcionalidade” da “economia camponesa” na redução do custo da força de trabalho industrial, em função da persistência de unidades mercantis simples, é o que se pode denominar de “indeterminação” social da vantagem alcançada pelos segmentos urbanos ante os setores agrícolas “atrasados”.

Para Marx, os pequenos produtores mercantis deixam de receber a renda da terra, o lucro e parte de seu salário. Na medida em que isso acontece, o remanescente que lhes cabe deve ser qualificado como “salário” e o restante (o lucro e a renda) vai para o conjunto da economia. O questionamento é o seguinte: qual o setor da economia –e da sociedade– que se beneficia com o trabalho fornecido gratuitamente pelo agricultor familiar mercantil?

A concepção em torno do modelo de “economia camponesa”, que aponta a “funcionalidade” desta em relação ao capital industrial urbano, compreende que parte do trabalho familiar agrícola, não remunerado, beneficiaria basicamente os setores economicamente dominantes dos ramos industrial, comercial e financeiro, uma vez que a redução dos preços dos alimentos básicos, mais cedo ou mais tarde implica na própria depreciação do valor da força de trabalho, com conseqüentes perdas salariais.

Pode-se perceber neste tipo de análise centrada na articulação entre a agricultura familiar/capital industrial financeiro, a partir de uma dinâmica histórica, que a renda fundiária a ser potencialmente retida pelo agricultor, na realidade, flui para os lucros bancários, via dependência do sistema de crédito, e também incrementa a taxa de lucro das grandes empresas industriais ao baratear a reprodução da força de trabalho industrial (Martins, 1986).

É preciso também verificar até que ponto são apenas as indústrias urbanas as que se beneficiam do rebaixamento dos preços agrícolas. Interpretações mais recentes apontam para a moderna agroindústria como a mais interessada neste tipo de situação (Abramovay, 1992). A relação desse setor com a agricultura familiar se estabelece no chamado “complexo agroindustrial”, no qual se reproduz a relação capital-trabalho e o crédito oficial é decisivo, à medida que, monopolizado pela grande empresa, desestimula a produção minifundista, perpetuando a subordinação econômica e social da agricultura familiar (Wilkinson, 1986: 199-211).

Essa polêmica acerca da pequena produção familiar tanto diz respeito à possibilidade ou não da existência de alguma forma de transferência de valor do campo para a cidade ou para outro setor, mais moderno e poderoso, do próprio campo, quanto à uma possível “reacumulação” capitalista dentro e fora da agricultura provir da eliminação, pura e simples da renda da terra. Ou seja, a senha para abrir a discussão consiste em verificar a ocorrência de transferência de mais-valia intersetorial, do agrícola para o setor urbano industrial, ou se a agricultura familiar tão-somente fornece trabalho gratuito.

 É possível corroborar a interpretação segundo a qual a ocorrência de transferência de valor entre segmentos produtivos depende fundamentalmente do “pleno funcionamento da lei do valor”, o que não sucede nas situações em que se envolve a pequena produção familiar mercantil. De acordo com Marx (1981: 923-4), em condições de pequena produção ocorre uma “perturbação” da lei do valor, na qual o trabalho excedente dos agricultores familiares é cedido gratuitamente à sociedade.

Há, porém, outros ângulos da questão a serem apreciados. Vertentes marxistas, identificadas com as concepções que remetem à existência estrutural da “economia camponesa”, valem-se das noções de “intercâmbio desigual” e de “troca de não-equivalentes” para dizer que ocorre transferência de valor quando o agricultor vende sua mercadoria a um preço inferior ao de seu valor, realizando, assim, uma operação de troca de não-equivalentes.

De acordo com Bartra (1987: 300) “o intercâmbio desigual parece gerar uma quantidade de valor, que na realidade não provém do próprio intercâmbio. É o lucro que o dono da unidade produtiva embolsaria se o trabalhador não fosse ele mesmo”. Outro argumento abstrai os efeitos perturbadores da lei do valor: os intercâmbios entre mercadorias e entre produtos do trabalho consistiriam em troca de equivalentes ajustados e regidos pela lei do valor (Coello, 1987: 219).

Em síntese, essas interpretações sustentam que a circulação de mercadorias, via intercâmbio, gera valor que pode ser transferido, assim como a renda, de um setor para outro, ou de um modo de produção para outro.

Se nos remontamos às noções de Marx sobre renda da terra, percebemos alternativamente que a preservação da pequena produção familiar, na verdade, está associada a fatores de sustentação do desenvolvimento capitalista, havendo sólidas razões que justificam pensar em complementaridade entre ambos. As transferências de valor ou de renda da terra são inviáveis se se parte da premissa de que devido à peculiaridade de sua organização mercantil e de seu autoconsumo, a pequena agricultura familiar não é regida pela lei do valor. Quanto à renda fundiária, esta tampouco é passível de ser transferida do contexto econômico agrário para o industrial, desde que se conceba tal transferência como necessariamente vinculada às formas capitalistas de produção, as quais, para existir, dependem da plena vigência da lei do valor, o que não ocorre na produção “camponesa”.

Em relação ao problema da eliminação, ou não, da renda da terra no contexto da pequena produção mercantil, podemos colocar a questão nos seguintes termos: se a renda fundiária não é transferida setorial ou intersetorialmente das pequenas áreas de cultivo mercantis, então ela seria simplesmente eliminada, propiciando algum tipo de lucro automático ao segmento socioeconômico diretamente envolvido nas transações com o pequeno produtor? E mais: se a renda da terra se determina pelo movimento do capital plenamente constituído, o próprio capital poderia eliminá-la em seu benefício? Deve-se então não só questionar esta funcionalidade nas relações entre o capital e a agricultura como é preciso caracterizar as relações entre o capital e a agricultura familiar, no que diz respeito à renda da terra.

Aqui é preciso lembrar que a renda da terra se constitui em parcela necessária da mais-valia gerada na agricultura e que sua eliminação somente ocorreria pela supressão da lei do valor, isto é, do fim das relações capitalistas de produção. Deve-se admitir, porém, que determinadas situações podem inviabilizar a “realização” da renda fundiária. Fala-se numa terceira variante para a identificação dos caminhos percorridos por essa renda numa situação de ocorrência do fenômeno da “perturbação da lei do valor”. Trata-se da possibilidade da “não-realização” da renda da terra sob certas condições peculiares.[7]

A renda fundiária “não-realizada” está absolutamente relacionada à atividade agrícola familiar parcelária mercantil, uma vez que esta, em geral, dispõe de condições para uma acumulação de tipo capitalista, mas apenas gera excedentes comercializáveis, caracterizando uma situação histórica de “perturbação da lei do valor”, na qual a renda fundiária é gerada, mas tem a sua realização produtiva impossibilitada.

A não-realização da renda fundiária resulta, necessariamente, da “perturbação da lei do valor” enquanto lei geral do movimento do capital, e é isso que impede a determinação dos preços pela lei do valor. A renda “não-realizada”, gerada na atividade agrícola familiar, pode vir a ser apropriada, sob determinadas circunstâncias históricas por setores não-agrícolas e, em algumas ocasiões, pela agroindústria.

Sabe-se que o agricultor familiar fornece trabalho gratuito à sociedade e que este trabalho de diferentes formas redunda em meio de acumulação de capital na indústria urbana e na própria agroindústria. Dessa forma, a renda “não-realizada” se relaciona com o trabalho despendido pelo agricultor familiar durante o processo de produção de mercadorias permanentemente reproduzido. A parcela de trabalho gratuito transformada em renda “não-realizada” geralmente é apropriada, por diferentes segmentos, através da relação mercantil, criando valor e conseqüentemente proporcionando acumulação de capital nestes setores.

Na agricultura familiar, a renda não-realizada não se constitui em parcela de valor e, de fato, não é apropriada pelo pequeno produtor familiar, cabendo aos segmentos capitalistas industrial e financeiro a captação da riqueza na forma de valor, assim acelerando o seu processo de acumulação. Resta, então, saber de que forma o capital industrial controla a renda da terra “não-realizada”, submetendo a pequena produção agrícola ao seu domínio.

É preciso então reconhecer que todo o processo daí decorrente é balizado por relações absolutamente enquadradas no nível da circulação do capital. A renda da terra “não-realizada” se estabelece a partir de duas formas, não-cronológicas, não-excludentes e não necessariamente concomitantes. Essas referidas formas podem, também, não ser encontradas conjuntamente em um mesmo quadro histórico-social. Trata-se do que poderíamos chamar de teses das rendas: presente e futura ou virtual.

Em relação à renda presente, “não-realizada”, é importante perceber a existência de mecanismos que, na prática, viabilizam a apropriação gratuita do trabalho desenvolvido na pequena produção agrícola. Trata-se de caracterizar o fenômeno definido como “interceptação da renda fundiária”. É exatamente a possibilidade do capitalismo industrial e financeiro vir a controlar a renda da terra, a partir da utilização de um dispositivo particular que lhe permite, mesmo mantendo a propriedade formal do solo em mãos do agricultor familiar, poder dirigir a renda para fora do setor agrícola (Vergopoulos, 1986). Para que se considere tal perspectiva, é necessário adotar previamente algumas ressalvas, visando adaptá-la à linha teórica escolhida neste texto como a mais adequada à temática em questão.

É necessário considerar então que, a “interceptação” da renda consiste na capacidade de utilização e no aproveitamento do trabalho gratuito do pequeno produtor, por parte de outros setores da economia. Falar em “interceptação da renda” é admitir implicitamente algum tipo de transferência da própria renda ou de valor, o que, como vimos, não ocorre nas relações da agricultura familiar com o capital industrial e financeiro.

Mesmo assim, tal caracterização daria conta de algum tipo de “interceptação” que determinaria a forma adquirida pela renda “não-realizada”, desde o instante em que se verifica o contato mercantil do produtor familiar com o empresário capitalista, aliás, em muitos casos mediado pelo Estado.

Trata-se de uma interceptação político-econômica, não da renda da terra em si, mas da renda “não-realizada” –por isto mesmo ainda não transformada em valor– ou seja, da parte gratuitamente fornecida pelo pequeno produtor agrícola que vai para o mercado. Esta incorporação ocorre porque os preços das mercadorias agrícolas, oriundos da produção familiar, são suficientemente baixos, a ponto de afetar o valor da força de trabalho industrial, via redução do custo da cesta de produtos alimentares como vimos anteriormente. Isto implica na contração da massa salarial na indústria e no conseqüente incremento da lucratividade da atividade empresarial.

A “interceptação” é comumente associada a uma forma de captação de renda voltada exclusivamente para fora do setor agrícola. Pode-se considerar, porém, a hipótese segundo a qual os rendimentos provenientes da absorção da parte gratuita do trabalho familiar agrícola, cada vez mais intensamente, possa ser drenada em benefício da acumulação agroindustrial. Assim sendo, não se pode descartar a possibilidade de que uma considerável fatia da renda “não-realizada” venha a ser transferida para o próprio setor agrícola, mais localizadamente, para os complexos agroindustriais.

Os mecanismos de interceptação que determinam a forma principal de apropriação da renda “não-realizada” do pequeno produtor, hipoteticamente, se configuram nas próprias relações entre o agricultor e os sistemas de crédito rural; nas estruturas de comercialização e nos preços dos produtos agrícolas, e também têm a ver com as alocações intersetoriais de recursos econômico-financeiros públicos e privados.

A idéia básica da tese da renda futura é a de que o agricultor produz sem obter o correspondente ao custo de oportunidade dos seus fatores, estando aí embutido um mecanismo de transferência setorial e intersetorial. O agricultor conservaria o controle de suas atividades, apesar das inúmeras dificuldades com que viesse a se deparar. Isto ocorreria porque, além de não existirem grandes oportunidades de trabalho fora do meio rural, ele seria beneficiado pela valorização de seu patrimônio fundiário.

As perdas causadas pelas baixas cotações agrícolas seriam compensadas, de alguma maneira, pela virtual elevação do preço da terra, neste caso, do pequeno agricultor mercantil. Ao renunciar à renda presente, ele contaria com o usufruto da renda futura (capitalizada) a ser gerada ao longo do tempo (Abramovay, 1992: 219).

É possível problematizar a questão introduzindo dois outros elementos. Primeiro: se a renda futura, qualquer que seja a situação histórica, permanece efetivamente com o produtor familiar, ou não. Neste caso é necessário não esquecer que a expansão da agroindústria exportadora ocorre, nos países de capitalismo não desenvolvido, paralelamente à conservação das formas remanescentes de agricultura familiar e, em geral, às custas delas. Em segundo lugar, é pouco provável que o conjunto da agricultura familiar, ou mesmo qualquer fração dela, tenha consciência da atitude que seria necessário tomar, de “trocar” a renda presente, confiscada na sua relação com o mercado, por uma renda virtual.[8]

De qualquer maneira o que importa salientar nessa discussão sobre a renda futura é ter claro que ela remete à concepção de renda capitalizada da terra. Deve-se, assim, investigar a hipótese de a renda “não-realizada” poder vir a se transformar, ao menos em parte, em renda capitalizada, enquanto a renda presente, igualmente “não-realizada”, iria contribuir, juntamente com o nível da taxa de lucro, para o “rebaixamento do valor da força de trabalho”.[9]

É verdade que, de fato, em seu curso histórico, o capital, transforma o caráter da renda fundiária. Esse processo de transformação alcança a agricultura familiar mercantil que passa a ter sua existência, em função do desenvolvimento da propriedade capitalista da terra, mediada pela relação que estabelece com o conjunto da sociedade, ou seja, mediante a renda capitalizada da terra, virtual e através da renda “não-realizada”, presente.

Nesse contexto, é preciso observar a vinculação da pequena produção às modificações que ocorrem na dinâmica tanto da renda da terra quanto no preço da própria terra no processo de compra e venda. Quando a situação de “não-realização” da renda da terra tende a se generalizar, a renda fundiária passa a ser obtida diretamente em função do preço da terra e suas variações podem ser reconhecidas a partir do referido preço.

Torna-se necessário então atentar para a relação do sistema de crédito com o conseqüente endividamento do agricultor familiar, pois são o crédito e as dívidas por ele contraídos que o obrigam a intensificar a jornada de trabalho. Ademais, a dívida dos agricultores tende a se desenvolver com maior rapidez que o investimento agrícola, provocando uma crônica disparidade entre o ingresso e a saída dos rendimentos obtidos na agricultura familiar. Isto inviabiliza, na prática, o acesso do proprietário agrícola à renda que se capitaliza, uma vez que o processo de endividamento impede a transformação desta última em acumulação financeira que, de fato, resulte da venda da propriedade.

Em suma, o que queremos sugerir é que se coloque mais atenção no fato de que o agricultor familiar, ao exercer a sua atividade de forma direta, sem promover ou se submeter a um efetivo sistema de assalariamento de mão-de-obra, não experimenta um processo de sujeição (subsunção) do trabalho ao capital, de maneira formal ou real. Tais formas de sujeição não ocorrem porque o que se encontra submetido ao capital é a renda da terra e não diretamente o trabalho assalariado.[10]

Nas condições em que se encontra o agricultor familiar, mesmo não possuindo a propriedade real da terra, o capital se apodera da renda fundiária. O estágio que já alcançou a relação capital/propriedade da terra criou um processo de dependência do pequeno produtor ao crédito bancário e aos intermediários, impondo-lhe normas de comercialização altamente favoráveis ao capital.

A expansão do capitalismo industrial e financeiro no campo nada mais é do que o próprio caminho da sujeição da renda fundiária ao capital. Este impõe a sujeição da renda da terra, via controle indireto da pequena produção, tanto mediante a interceptação da renda presente “não-realizada”, quanto através da aquisição dos direitos sobre a propriedade legal da terra, num verdadeiro processo de territorialização de sua propriedade capitalista. A agricultura familiar, portanto, gera renda fundiária que, ao não se realizar –seja sob a forma de sua inclusão no preço final do produto (renda presente) ou no preço da terra (renda virtual, futura)– é desviada para diferentes setores da economia capitalista, ao baratear a reprodução da força de trabalho, contribuindo assim para a ampliação da margem de lucro das empresas.

Em resumo: se se pode aceitar muitas proposições de bibliografia sobre o tema da permanência histórica da pequena produção familiar, em relação ao capitalismo, deve-se, entretanto, encarar com bastante reserva as teorias sobre a “funcionalidade” existente entre capitalismo e agricultura familiar, pois elas omitem a “desfuncionalidade” entre a expansão do capitalismo financeiro e industrial no campo e a manutenção de formas agrícolas mercantis não-assalariadas.

Em virtude disso deve-se relativizar a tendência a supervalorizar a “superioridade” da pequena produção familiar mercantil, pois a manutenção ou mesmo a “recriação” das formas “camponesas” expressam sempre elementos contraditórios do movimento do capital na agricultura.

 

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Wilkinson, John. O Estado, a agroindústria e a pequena produção. São Paulo-Salvador: Hucitec/Cepa, 1986.

 

Notas

[1] Neste artigo, a diferenciação terminológica entre campesinato e agricultura familiar serve-nos para designar as formas assumidas historicamente pela pequena produção familiar mercantil, (cf. Lamarche, 1993; Abramovay, 1992; Moreira, 1995a). Fundada no modelo “camponês”, que dentre outras características preserva a “inter-relação entre a organização da produção e as necessidades de consumo”, a agricultura familiar visa produzir valores de uso e não valores de troca e tem “autonomia relativa em relação à sociedade como um todo”. A agricultura familiar não-camponesa possui características próprias, tais como as encontradas nas formas de tipo “colonial”, nas quais já prevalecia a produção mercantil. Cabe, porém, ressalvar que, embora na proposta metodológica esboçada neste artigo tratemos de abordar situações relacionadas com a agricultura familiar não-camponesa, fazemos referências a “economias camponesas” preservando o sentido que lhes atribui a bibliografia específica. Assim sendo, sempre que empregado neste trabalho, o termo “economia camponesa” refere-se a formas de agricultura familiar “camponesa” mercantil.

[2] Para Chayanov, o sistema econômico da unidade de trabalho familiar pode ser definido pelas seguintes categorias: 1. rendimentos provenientes do trabalho familiar; 2. preço das mercadorias; 3. reprodução dos meios de produção; 4. preços do capital na circulação do crédito; 5. preços da terra (Chayanov, 1987: 118). Para ilustrar o “debate clássico” entre Lênin e Chayanov sobre exploração familiar e trabalho assalariado, ver Wilkinson, 1986, capítulo 2.

[3] Sérgio Silva, por exemplo, assinala que “a condição para que o camponês não se transforme em um capitalista como outro qualquer consiste (ou consistia até o advento dos grandes monopólios) em que o capital dinheiro a sua disposição não atinja o montante suficiente para liberá-lo das tarefas produtivas” (Silva, 1981: 146).

[4] Em minha tese de doutorado procurei estudar um caso de “recriação” do campesinato parcelário, através de um processo de reforma agrária com a disseminação de pequenas propriedades. Nesse caso, a reforma agrária permite ao capital o controle sobre a renda da terra em geral, impedindo a sua realização sob a hegemonia do sistema latifundiário tradicional e interceptando a renda “não-realizada”, gerada pela atividade agrícola mercantil familiar, no processo de reforma agrária. Em pesquisa específica procurei mostrar como a reforma agrária boliviana, iniciada em 1953, ao privilegiar a distribuição parcelária da terra, terminou provocando um processo de apropriação sistemática do trabalho gratuito que o pequeno produtor fornece à sociedade, que foi transformado em fonte de acumulação de setores capitalistas urbanos e agroindustriais (Costa Neto, 1995).

[5] Na proposição de Lovisolo, a “unidade mercantil simples” se aproxima da forma assumida pela agricultura familiar mercantil. Porém, como assinalamos em nota anterior, a noção de “economias camponesas” abrange as formas da agricultura familiar “camponesa” mercantil, dentre as quais se insere a u.m.s. É preciso esclarecer, no entanto, que a u.m.s. não é compreendida como “funcional” em relação ao capitalismo industrial urbano, agroindustrial ou financeiro, não podendo assim ser enquadrada no rol das postulações em torno do conceito de “economia camponesa” especificamente abordado neste trabalho.

[6] Este artigo incorpora o argumento segundo o qual a renda territorial absoluta é a responsável pela condição geral de existência da renda da terra. Tal concepção faz a abstração da qualidade geral das terras, dos diferenciais de fertilidade e define a ocorrência de renda fundiária a partir das condições médias de inversão do capital na terra. Assim, a mais-valia extraordinária, base da renda da terra, resulta da incorporação da própria terra ao sistema capitalista e o monopólio da terra, considerado em termos capitalistas, encontra sua fundamentação na esfera produtiva e não simplesmente no processo de circulação do capital. A renda fundiária é interpretada, portanto, como resultado da diferença entre a mais-valia extraída nas relações agrárias e o lucro médio global capitalista, e não como de uma transferência de mais-valia do setor capitalista industrial urbano para o setor de produção agrícola.

[7] De acordo com Sérgio Silva, “a não-realização da renda só pode ser pensada como o resultado de fatores que perturbam o funcionamento da lei do valor como lei geral do movimento do capital e, em conseqüência, abalam a própria determinação dos preços pelo valor”. E ainda: “nesses casos, a não-realização da renda representa a não-realização de uma parcela qualquer do valor ou como a apropriação gratuita por parte do setor não-agrícola de um tempo de trabalho despendido na agricultura” (Silva, 1981: 154-155).

[8] Se, em termos práticos, o agricultor familiar estiver imbuído da idéia de que pode vir a desfrutar da renda capitalizada futura, incorporando no preço final da propriedade as transformações introduzidas na sua terra ao longo do tempo, deve-se examinar a possibilidade deste pequeno produtor vir a intensificar a tecnificação, alterando as condições de fertilidade do solo, redefinindo os espaços de localização interna da atividade produtiva etc. Agindo desta maneira, o agricultor familiar estará provocando alterações nos níveis de sustentabilidade socioambiental local. Os novos padrões de sustentabilidade daí decorrentes podem se vincular à utilização ecologicamente adequada dos recursos naturais, paralelamente à garantia econômica básica de reprodução familiar; ou à idéia de preservação ambiental associada a de progresso social, melhoria das condições de vida e possibilidade de reprodução econômica ampliada (Moreira, 1995a). Para satisfazer a este último grau de exigência, seria necessário que o agricultor familiar não sacrificasse a renda presente (comumente confiscada na competição intercapitalista mercantil) em troca da renda futura, capitalizada.

[9]Abramovay observa a respeito: “No livro I d’O Capital (Parte IV) Marx mostra como a redução do valor da força de trabalho é a forma objetiva para a forma especificamente capitalista da produção e como esta redução depende não do aumento da produtividade em qualquer segmento da divisão do trabalho, mas naqueles nos quais se apóia diretamente o consumo dos trabalhadores assalariados” (Abramovay, 1992: 220).

[10] Uma terceira possibilidade de sujeição do trabalho agrícola familiar mercantil ao capital, seria aquela que Marx rotulou de “subsunção ideal”, ou seja, a de um “tra-balhador independente” que se imaginaria na condição de “capitalista de si mesmo”. Esta hipotética forma de subordinação indireta do trabalho agrícola familiar ao capital só seria possível supor se a sujeição indireta pudesse percorrer o caminho, não idealizado, de sujeição da renda da terra ao capital. Aqui, o conceito de renda da terra deve ser reafirmado interpretando a renda absoluta como parcela inquantificável da renda da terra, renda da terra em geral e as rendas diferenciais como “diferenciais que constituem as expressões de diferentes condições médias de aplicação do capital” e não “uni-camente de qualidade da terra” (Silva, 1981: 112). Estas noções parecem se aproximar do conceito ressignificado de renda da natureza, na medida em que este incorpora o valor-trabalho e o conhecimento como saber social do que seja “natural”. A renda da natureza não é, pura e simplesmente, natural (no sentido de uma dádiva), pois ela só passa a existir em função da “naturalidade da sociabilidade capitalista”, como uma internalidade do social-histórico e não o contrário. Assim sendo, seria válido supor que a sujeição econômica da agricultura familiar poderia ser interpretada como uma subordinação da renda da natureza ao mercado capitalista. E então que a “subsunção ideal” também poderia ser pensada como uma subordinação do trabalho agrícola familiar “ à cultura e ideologia hegemônica” capitalista. Para os conceitos de “subsunção ideal”, “naturalidade da sociabilidade capitalista” e renda da natureza ver Moreira, 1995a, 1995b e 1996.