Estudos Sociedade e Agricultura

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Eduardo Magalhães Ribeiro

Vaqueiros, bois e boiadas – trabalho, negócio e cultura na pecuária do nordeste mineiro


Estudos Sociedade e Agricultura, 10, abril 1998: 135-164.

Resumo: Este estudo analisa a pecuária de “soltas” do Nordeste de Minas Gerais –os vales do Mucuri e Jequitinhonha– dos fins do século XIX a meados do século XX. Investiga, primeiro, o ofício do vaqueiro e seu processo de trabalho na fazenda; depois, procura compreender a relação da pecuária com o ambiente; o comércio de gado é estudado em seguida, analisando-se suas características mercantis e não-mercantis; por último, analisa os comerciantes de gado e o complexo sistema de negócios. O estudo descreve uma sociedade pautada pela ambigüidade, produzida pelo encontro entre novidade e tradição, paternalismo e trabalho, domesticidade e comércio, simbolizada pela velha fazenda.

Palavras-chave: Pecuária extensiva; trabalho rural; Nordeste de Minas Gerais.

Abstract: Cowboys, cattle, and cattle herds – Labour, business and culture in the animal husbandry of North-eastern Minas Gerais. This paper is a study of animal husbandry in North-eastern Minas Gerais, and the valleys of Mucuri and Jequitinhonha in the XIX and XX centuries. First, it analyses the cowboy's art and its labour process, showing how the worker's personal subordination to the landowner allowed the management of the production system. Then, it seeks too understand the relationship between animal husbandry and the environment, looking for its dynamics, and how it has incorporated technical innovations. It also looks at the animal trading system, analysing commercial and non-commercial characteristics of the farm. Finally, the study analyses the tradesman and the complex architecture of the exchange system they built.

Key words: Extensive cattle; rural work/occupation; North-eastern Minas Gerais.

Eduardo Magalhães Ribeiro é professor da Universidade Federal de Lavras.


Para Benjamin Rocha e Zeca Figueiredo, em suas glórias.

Pecuárias

O caráter extrativo, latifundiário e predador da criação de gado fez com que sociólogos, economistas, geógrafos e historiadores transmitissem à posteridade uma imagem muito negativa da atividade. Num estudo clássico, Valverde afirma que a pecuária trouxe ralos efeitos sobre o meio circundante, porque moldou-se a ele; foi ocupação de pouco trabalho e escassas exigências técnicas. Caio Prado Jr. faz mais ou menos os mesmos comentários sobre o assunto, comparando a amplitude da área ocupada pelo gado com o baixo emprego gerado e a miserável produtividade.[1]

Daí veio a interpretação da pecuária bovina  como pouco mais que uma praga dos campos brasileiros, pois quando não está se movendo tocada por incêndios ateados pelos fazendeiros e pela fome dos bois, está afrontando posseiros e sitiantes, tomando terras para garantir seu exclusivo domínio. Em geral os autores destacam, também, as poucas contribuições da criação de gado: serviu para interiorizar o povoamento, produziu alguns magros surtos de riqueza, construiu uma sociedade mais móvel que a plantation clássica.

Estas considerações não deixam de ser parcialmente verdadeiras. Elas se esquecem, porém, de alguns outros aspectos, pois, afinal de contas, pecuária teve tanto de ajustado ao meio quanto as lavouras de coivara ou tocos; foi um sistema de produção bem adaptado. Além disso, a pecuária criou relações sociais e comerciais muito próprias, que ficaram historicamente ofuscadas pela exuberância da plantation.Estudar a organização da produção e do trabalho na criação de gado revela muito dos mitos rurais e da sua dinâmica.

Certo, mesmo, é que a pecuária exigiu muito trabalho: nem sempre são corretas as associações entre criação e ócio, pecuária e fazendeiro absenteísta, gado e estagnação técnica. Apesar de o serviço direto não recair sobre o fazendeiro, cabia ao vaqueiro campear por vastas extensões, dominar muitas técnicas enfrentando uma natureza hostil e incerta. Por isso, nas regiões de pecuária seu ofício deu a base para criar muitas lendas.

Este estudo analisa a pecuária de “soltas” estabelecida no Nordeste de Minas Gerais, nos vales do Mucuri e Jequitinhonha, desde o século XIX. Procura estudar, primeiro, o ofício do vaqueiro e seu processo de trabalho. Mostra que, numa situação onde era impossível o controle do trabalho, somente a valorização cultural, a domesticidade e a subordinação pessoal do trabalhador ao fazendeiro poderiam garantir uma gestão eficiente do sistema de produção.[2] Depois, procura compreender a pecuária na sua relação com o ambiente. Revela que esta atividade não era estática, pelo contrário: incorporou às suas próprias custas e riscos muitas inovações técnicas, que vieram, afinal, fazer sua fama e algumas fortunas. O comércio de gado é estudado em seguida, analisando-se as características mercantis e não-mercantis da fazenda. Nota-se aí a ambigüidade de fazenda e fazendeiro, este um hábil manipulador de símbolos do poder e dos recursos que produzem a riqueza. Por último o estudo analisa os comerciantes de gado e a complexa arquitetura do sistema de trocas que montaram. De novo, aqui, emerge um personagem tão ambíguo quanto o fazendeiro, produzido por encontro de novidade e tradição, paternalismo e trabalho, domesticidade e comércio, que foi, afinal, a velha fazenda de gado.

Vaqueiros e bois

No Nordeste de Minas Gerais, até meados do século XX, fazenda era um mundo: dezenas, às vezes centenas, de moradores agregados,[3] produção variada de mantimentos, pastagens que não respeitavam limites. O gado nas fazendas exigia um acompanhamento regular, embora inconstante. Solto nos pastos, ficava desacostumado às pessoas, bravo e arisco; era preciso vigiá-lo, e os vaqueiros faziam isto todos os dias, apesar de não acompanharem as mesmas reses. Vigiavam áreas, retiros, pastos, mangas, grotas ou currais –os nomes variavam– onde costumavam ficar certos grupos de gado. Este serviço exigia a viagem até o pasto, às vezes viagens de léguas, e constantemente alguma rês carecia de trato, apartação ou medicação. Mas o gado pastava longe –na solta, alongado, dizia-se– e de tempo em tempo era preciso juntá-lo para apartação, castração, ferra ou venda; então demandava meses, às vezes, de rotina perigosa. Foram esses campeios que fizeram da sorte do vaqueiro a mais famosa de todas as ocupações do campo.

Com a vida aventurosa e coragem posta todo dia à prova os vaqueiros deram assunto para uma crônica que separou a sua das outras atividades rurais; fizeram seu prestígio as lidas com bois curraleiros dentro de macegas e capoeiras. Quando suas aventuras são comparadas às dos agregados –que moravam e faziam suas roças na fazenda, que levavam a vida na regularidade farta das lavouras e à distância da casa de sede– pode-se entender porque ocuparam posição ímpar nas fazendas, histórias, lembranças e cultura.

Então, embora a fazenda de gado seja parte menor da historiografia do campo brasileiro, a lenda do vaqueiro se esparrama pelo imaginário deste rural. Visto na memória do fazendeiro, na lembrança do agregado, nos casos contados nas antigas zonas de pecuária, o vaqueiro se agiganta, transforma-se no maior dos personagens. Ele se iguala em expressão à fazenda de gado porque é seu símbolo; marca estórias e produção cultural.

Na festa do Boi-Duro, que acontece todo janeiro no Salto da Divisa durante a semana de São Sebastião, o ponto alto do espetáculo é o desfile de um cortejo formado pelo Pai da Mata, Maria Manteiga, Mulinha de Ouro, Loba e Caçador, pela banda de tambores e pífanos, pelo Boi-Duro e, naturalmente, pelo Vaqueiro. Todos vestidos a caráter, dançam e cantam a estória do boi: O nosso Boi-Duro / vamos vadiar / a nossa brincadeira / até o sol raiar (...) / Eu queria ser vaqueiro, / de vaqueiro boiador, / pra vim aboiar meu gado, / na casa do meu amor.

Numa altura que o grupo já está acompanhado por público bastante para uma representação, o Caçador pergunta aos donos de uma casa se querem a festa do Boi-Duro. Se autorizado, começa: ao som da banda os personagens brigam entre si e com a platéia; o Caçador enfrenta a Loba, Maria Manteiga –homem disfarçado de mulher escandalosa– agarra algum da platéia para sua dança indecente, o Pai da Mata ataca o Caçador, o Boi-Duro dá a testa ao Vaqueiro, até ser morto por este no ferrão. Aí começa a partição do boi, com cantoria puxada pelo Vaqueiro, respondida em coro pelo cortejo, dividindo as partes conforme mereça maior ou menor consideração cada um dos cidadãos, presentes ou ausentes: a “tripa fina” vai para “as menina”, a “tripa grossa” para “as mulher da roça”, o “fi' da costela” vai para “Dona Bela”. Sempre, o coro pontuando: “Boi iaiá, boi que dá. / Ê-ê-ê-Á-á-á, / O seu Tenente, / mandou me chamar.

Vão assim cantando o Vaqueiro e seu coro, revisando a sociedade do Salto, passando a limpo suas diferenças, exaltando os amigos,  criticando uns e outros.

A festa do Boi-Duro é uma tradição reconstruída a duras penas: quase todos que a fazem já saíram há tempos do Salto, são migrantes, e retornam de empregos urbanos para a semana de folia.[4] Ela pode, sem dúvida, ser entendida como uma representação daquela sociedade, um acerto das contas entre o cortejo e a comunidade que aplaude ou vaia a partição que está sendo feita. A festa também pode ser entendida como um momento de inversão dos lugares ocupados pelas pessoas nessa sociedade. Quem é oprimido ou marginalizado, nos dias de festa se torna o herói, principal personagem; há valorização simbólica do que no cotidiano é subordinado. Ela pode ser analisada de muitos modos, é claro; mas é possível entendê-la como homenagem que os pobres do Salto –sitiantes, ex-agregados, aposentados, os recém-urbanizados– prestam ao Vaqueiro e ao Boi: o Vaqueiro-Herói que puxa o cortejo enfrenta um Boi bravo e o derrota, distribui as partes do vencido a seu critério e fica –uma vez por ano e simbolicamente– dono nas ruas do Salto de um espetáculo que foi seu nas mangas de pasto, onde sempre foi o rei.

Como o Salto, toda a sociedade rural do Mucuri e Jequitinhonha, principalmente das partes baixas dos dois rios, cultivou a história do vaqueiro. No alto Jequitinhonha, de unidades familiares e raras fazendas de gado, o vaqueiro também tem seu lugar bem guardado, embora não seja nada que sequer se aproxime da sua desenvoltura nas áreas de criação, porque vaqueiro não existe sem fazenda, e fazenda espalha a lenda do vaqueiro e a sua própria.

Essa lenda é alimentada por duas circunstâncias: a complexidade da tarefa e a proximidade que mantiveram com fazendeiros e casa de sede. O trabalho era artesanal, executado e controlado por ele mesmo; um saber. A proximidade era a condição para o controle do trabalho, pois em ofícios artesanais, apenas as relações hierárquicas e domésticas ou o controle do produto do trabalho permite administrar convenientemente o trabalhador. O fazendeiro que não podia gerir o trabalho artesanal, geria o trabalhador que a fazenda moldava.

O ofício de vaqueiro era uma arte. Trabalho em pecuária alongada além de incerto, aventuroso e a cada dia e estação sujeitar o trabalhador a uma quantidade de riscos, exigia destreza e treino. Gado criado solto embrabecia; então o vaqueiro devia dominar um serviço que exigia anos de adestramento: laçar gado bravo, domar animais de sela, amansar vacas de leite, dar campo em mangas sem fecho, colocar em boiada gado arribado que passava às vezes meses ou anos sem ver curral; era um serviço especializado.

A lembrança do herói romântico, apegado ao cavalo e à pouca-vergonha com moças em fundo de cozinha de casa de sede, é só o fragmento mais cotidiano da vida de vaqueiro. A saída para o serviço exigia cavalos mansos, arreios e laços fortes para a delicada e perigosa tarefa de lidar com gado de solta; exigia uma sabedoria aplicada à idade, raças, meio, clima e costumes de fazenda.[5] Era um serviço que não prescindia do ferrão para enfrentar gado bravo nas apartações, e ao usar aquela zagaia para boi o vaqueiro deveria possuir adestramento e sangue-frio bem dosados, para medir a altura do redemoinho da rês, firmar a ponta da vara sem vacilar, dar o recuo certo –“remar”, como definem eles– para garantir que a topada fosse uma e acertada, porque naquela disputa não existiam duas chances. Laço e chincha também eram fundamentais para cura dos gabarros e bicheiras porque nem todo gado chegava ao curral, e nem sempre os currais eram perto.

O gado era, ainda, outro domínio, com manias e segredos. Quando um vaqueiro saía para dar um campo, dificilmente sabia o que encontraria, e sua habilidade estava em improvisar nas mais difíceis situações. Joaquim, da fazenda Jatobá, escrevia constantemente para seu “Padrinho e Patrão”; sempre, antes das novidades, começava: “Hoje cedo eu saí corrigindo as mangas...,” porque conhecia o incerto que havia no seu ramerrão, e relatava os descontroles que a natureza impunha ao seu cálculo.[6]

Ao contrário dos demais trabalhadores de um fazenda, o vaqueiro labutava com o indócil. Gado criava seus ritmos próprios, independente da sucessão de seca-e-s'água dos agregados cultivando suas lavouras de mantimentos; soltar os bezerros de leite na manhã antes de ir dar um campo era a única rotina num dia de serviço. Podia encontrar vaca parida dando testa para topada, garrote caído em valeta, garanhões se retalhando em brigas, gado fugido de manga, bezerro novo com bicheira; sabia pouco do que o esperava, o que seria seu dia; mas, certo, era gastar o tempo num serviço extenuante, cheio de desafios; aí, era a hora em que fazia prevalecer sua arte, que aproveitava para também a divulgar.

A arte do vaqueiro era, com razão, saber dos mais considerados; vaqueiro foi o oficial de um artesanato.[7]

Vaqueiro, por ser artesão e dono de sua arte, foi um trabalhador próximo ao fazendeiro; seu trabalho, obediência e solidariedade foram para a casa de sede; seu mundo era diferente daquele do trabalhador ordinário das lavouras. Nas fazendas de gado era costume o vaqueiro ser criado na casa, convivendo na comunidade da família duma sede.

Natal, vaqueiro de Águas Formosas, entrou aos 16 anos no serviço de um fazendeiro; quando o vaqueiro antigo saiu, exerceu o ofício por anos seguidos. Morou na casa de sede, nela recebia roupa, bom trato e comida. Quando, aos 24 anos, depois de muitos adiamentos resolveu finalmente casar-se, largou aquela que fora sua casa contrariando os patrões. Saiu chorando de uma fazenda que não pode esquecer e ficou na sua lembrança o aprendizado na luta diária do campo, nas madrugadas chuvosas em que enfrentara um curral com meio metro de lama, nos coices das vacas malabazadas, e num dia inteiro, a seguir, em lombo de cavalo.[8]

Manelinho, da fazenda Sul América, criou-se lá, foi vaqueiro na glória da fazenda, viveu seu declínio, e depois dela acabada mudou-se para o batente da cancela da velha casa de sede. Zeca Figueiredo, gerente no esplendor da fazenda, narrava sua história como exemplo, pois Manelinho ficou morador da casa, acostumado ao patrão, à fazenda e seu sistema; fora, define, “o cavalo de pegar os outros”.[9]

Um fazendeiro do Pavão, Minas Gerais, contava que regia a vida do vaqueiro da infância à aposentadoria; ferrava-lhe as reses de costume no ano, zelava por elas, selecionava, trocava, vendia, orientava os negócios até reunir o que julgava bastante. Então resolvia o penúltimo negócio para o protegido: desfazer do gadinho e comprar a terrinha; e o último: doar o gado que servia para o antigo vaqueiro tornar-se um criador “embaixo de minha gerência e conselho”, dizia.

Mas a domesticidade que confundia trabalho e dependência, foi uma armadilha para os dois. Geraldão, vaqueiro do Chumbo, Bahia, jamais deixou de ser procurado pelo patrão, mesmo 20 anos depois de saído do serviço, quando já era dono de seu próprio terreno: o fazendeiro recorria a ele nas necessidades de mediação e conselho.[10]

O vaqueiro era próximo da sede por necessidade, seu resultado; conhecedor dos seus sistemas, glórias, desmandos e fraquezas, defensor da sua ordem e nome. Até meados do século XX, quase sempre foi o único assalariado regular da  fazenda, e embora na maior parte das vezes o salário fosse muito baixo, era distintivo e compensado pela regularidade de ofertas de dons que a fazenda concedia nos negócios, partilhas e apoio; no destino que repartia com os fazendeiros. Um vaqueiro da fazenda São Vicente recebera ao final de anos de serviço 70 cabeças de gado em doação e cinco alqueirões em usufruto: nunca admitiu, nos anos que ainda viveu, retirar  seu gado da criação “embolada” com a fazenda. Mais tarde, quando sentiu a proximidade da morte, chamou os filhos diante do fazendeiro e determinou que nunca reivindicassem nada além do que já havia recebido e, depois de morto, queria que a terra retornasse à fazenda e a partilha dos seus bens fosse feita pelo fazendeiro.[11]

Foi um trabalhador próximo do fazendeiro, mas isto ainda não diz tudo; teria que ser próximo, sobretudo porque desincumbia-se, por meio de sua arte, de uma tarefa não-controlável, um trabalho sem ritmo definido; havia somente um vago rumo geral em cada estação e o restante era determinado pelo meio, situação e temperamento dos animais. Era trabalho artesanal, fundamental para a renda da fazenda: às vezes a única entrada em dinheiro e o vaqueiro partilhava dos seus destinos também por ocupar-se da atividade que era a principal fonte de dinheiro e liquidez da fazenda. Por isto o patrão devia conceder especial importância e atenção mais delicada a este serviço, mais que todos os outros.

Não era um trabalho administrável, e muita vez –ou na maioria das vezes– a dedicação explicava o bom resultado: exigia paixão de caçador ao gado arribado, pronto atendimento à vaca que expunha a “madre do corpo”, conhecimento dos sestros das reses do rebanho para encontrá-la nos esconsos. Tudo isso era essencial numa pecuária de “soltas”, e não poderia ser bem-feito com o estímulo de apenas um pequeno salário e alguma repreensão. A sorte do fazendeiro ia às mangas com seu vaqueiro, por isto conservar com ele uma intimidade, apoiar seus ocasionais desmandos e rompantes, tolerar-lhe os relaxos, era uma modesta contrapartida à dedicação que recebia. Essa indisciplina do serviço de gado teria que resultar na associação do vaqueiro à casa de sede, na domesticidade: proximidade era condição para fidelidade quando o fazendeiro não podia controlar o trabalho, mas apenas alguns dos seus frutos.[12]

Aquelas regalias de vaqueiro vinham da sua dedicação. Numa sociedade de poucas oportunidades e, às vezes, enormes distâncias sociais, elas chegaram a ser importantes. Não era apenas o salário –quando todos os trabalhadores recebiam equivalências em mercadorias ou alimentos preparados– que embora reduzido, era dinheiro; não eram, também, as lavouras de mantimentos que vaqueiro fazia ou alugava outro para fazer, porque isto era direito de todo morador de fazenda. Regalia de vaqueiro vinha do conhecimento e oportunidades de negócios que fazia junto ou à sombra do fazendeiro: era receber gado “na sorte”, ou seja, percentagem dos bezerros nascidos no ano, que podia chegar até 25%; gerir um retiro com total liberdade e extrair dele as vantagens do gado na “meia” e serviço dos outros; ou ficar sem salário, mas receber o leite das vacas paridas para criar porcos ou fazer requeijão, ou os dois, e vender; ou receber do fazendeiro gado “afetado” (de aftosa) para curar gabarros, recriar, negociar; ou merecer avais para negócio de terra ou gado. Junto a tudo isto, o fazendeiro podia admitir o “criame embolado”, quer dizer, dava os pastos, e o vaqueiro gastava um só serviço e remédios para cuidar do gado da fazenda e do seu.[13]

Não eram, porém, só econômicas as vantagens de vaqueiro. Eram, também, e talvez, principalmente, simbólicas: acesso ao quintal e à cozinha da casa de sede, tocar boiada nas viagens de gado, ascendência sobre  fazendeiros e a secundação no poder sobre agregados.

A estabilidade temerária e artesanal do trabalho com gado produziu um trabalhador especializado com algumas tarefas diferenciadas repartidas ao longo do ano –apartação, junta etc.– e regularidades profundamente irregulares marcaram o cotidiano de um vaqueiro de pecuária na solta, pois ao contrário do lavrador, o vaqueiro era requerido o ano inteiro, sem lazer ou rotina, num trabalho cuja seqüência era aventura e risco. Daí veio a mística e a lenda dessa “sociedade rústica dos vaqueiros”.[14]

Bois

Pecuária, no Nordeste de Minas, foi –e em fins do século XX continuou sendo– uma atividade vinculada à natureza, como a lavoura: sua expansão foi baseada na apropriação de recursos do ambiente, e a princípio era mesmo dependente da lavoura. Mas, ao contrário desta, sempre manteve algum vínculo com os mercados, o que certamente explica as suas notáveis transformações técnicas.

As primeiras informações sobre criação no Jequitinhonha datam dos anos 1860; na época o viajante Hartt encontrou vaqueiros campeando nas chapadas do Alto-dos-Bois. Seu crescimento, no entanto, ocorreu já para fins do século XIX, mais no baixo Jequitinhonha e, de maneira geral, muito associado às levas de baianos que começaram a migrar a partir dos anos 1890, quando chegavam famílias de criadores para Vigia, Fortaleza e São Miguel.

A expansão deve-se à combinação entre pecuária, agrego e lavouras[15]. Não havia recompensa para quem derrubasse matas e formasse pastos, processos trabalhosos e caros; derrubava-se para produzir mantimentos; a criação de gado vinha depois, sobre uma terra já amansada. Pecuária manteve uma associação forte –embora não exclusiva– com abertura de mata, lavoura e posse, surgia depois delas. Não foi, então, a criação de gado que abriu matas do baixo Jequitinhonha ou Mucuri; pelo contrário, resultou da abertura feita por lavradores ou madeireiros, nunca o inverso.[16]

Criação exigia terra desmatada, pasto natural, sistema extensivo e fogo, muito fogo mesmo. Ele torava, além dos pastos, capoeiras e matas, a ponto de o baixo Jequitinhonha ter transformada quase toda sua floresta em cinzas, e tê-la quase extinta no intervalo de 50 anos –entre meados dos anos 1860 e fins dos 1910, entre a viagem de Hartt e a de Santos Maia– quando não restou muito do que fora a Mata Atlântica que encantara os viajantes do começo do século XIX. Mas a criação de gado também consumia madeiras: as fabulosas “cercas de tesouras” usadas para repartir pastos, feitas com tora deitada sobre tora de madeira de lei, ficando a de cima presa na parte superior de dois esteios cruzados em forma de “X”; as cercas de mourão furado, feitas de encaixes de madeira lascada,  repartiam pastos por léguas, e nos finais do século XX ainda podem ser vistas no Pampã e Mucuri.[17]

Os agregados e suas roças móveis de coivaras, que deixavam para trás capoeiras ou pastos, deram as condições para o sistema de criar alongado que fez a fama dessas áreas, foi a base do seu negócio e às vezes do seu sustento. Mas é arriscado falar que agregado serviu principalmente para abrir terras e formar pastos, porque além de terem sido muito complexas suas relações com a fazenda, era muito elevada a capacidade de suporte nessas terras recém-abertas, e os rebanhos não eram muito grandes. A lembrança dos pioneiros de matas do Pampã, Mucuri e Jequitinhonha, é que terras boas e novas de empastação sustentavam duas cabeças adultas por hectare, ou 10 reses por alqueire mineiro; é a mesma informação das anotações de contas-correntes de fazendeiros, que até os anos 1940 e 1950 tenderam para ficar nessa média. Em vista do tamanho dos rebanhos, havia terra com sobra para lavoura e criação. Por exemplo, a fazenda Santana do Poço, no Salto, nos anos 1930 comerciava anualmente algo em torno de 2.000 novilhos de apartação. Supondo uma taxa de desfrute de 25% e intervalo entre partos de 24 meses, conclui-se que o rebanho era mais ou menos 8.000 cabeças; dada aquela capacidade de suporte, a criação ocuparia, no máximo, 4.000 dos estimados 50.000 hectares da fazenda – modestos 8% da área total. Outra fazenda que deixou registros da taxa de lotação foi a Sul América, em Itaobim: segundo suas notas de gado, em 1955 pastaram 1.500 “garrotes boiadeiros” em seus 1.400 ha, ao lado de matas, capoeiras e roças de muitos agregados.[18]

A pecuária herdou benefícios da agregação e da posse: foram geradores de aberturas nas matas do Jequitinhonha e Mucuri, frente de expansão constante, oferta permanente de batedores de mangas, cerqueiros, valeiros e recurso cativo para formar pastos novos nos terrenos amansados. O convívio entre agrego e criação deixou registrados poucos conflitos até meados do século XX; a posse ou o uso transitório da terra deveria já fazer parte da lógica do lavrador itinerante, e, pressionado pelo gado, o sistema acabou por ficar marcado pela complementaridade. Na metade final do século a contradição ficou patente, pois as terras perderam em fertilidade, ganharam preço, a pecuária alongada e o agrego desapareceram, desabou todo o sistema. A destruição da combinação estável da pecuária com a lavoura liquidou por fim aquilo que fizera possível a fazenda e seu mundo.[19]

A criação usou predatoriamente recursos naturais. Mas, em face da predação praticada nas roças e visto pela lógica que movia o posseante pioneiro e o fazendeiro de gado, não havia desperdício, porque eram recursos tão livres, fartos, acessíveis, redundantes, que seria impensável poupá-los naquele momento. Abria-se a mata para moldar humanamente a paisagem rural, garantir sustento e até construir patrimônio familiar; era –acreditava-se– uma benfeitoria.

Apesar de ser considerada por estudiosos uma exploração tecnicamente estagnada, a pecuária passou por algumas transformações importantes no manejo, pastaria e, principalmente, rebanhos. A qualidade e a produtividade que a criação de gado no Nordeste de Minas Gerais mostra em fins do século XX resultam dessas mudanças, que acrescentaram ao seu caráter extensivo os melhoramentos que ampliaram a produção.

A primeira mudança foi na capacidade de suporte das pastagens. Os pastos nativos de campos que os criadores pioneiros encontraram no Jequitinhonha, formados pelos capins redondo, mimoso, favorito, peludo e vários outros capins-de-campo, nunca serviram para alimentar muito gado porque suas densidade, palatabilidade e constância não eram das melhores. Eles produziram à base de fogo freqüente: depois de queimados brotavam tenros e forneciam pastagem por curto período.

Nas terras férteis de cultura usadas para pasto existia o chamado capim-pernambuco –pasto baixo e duro– e, desde o começo do século XIX, o capim meloso ou gordura –Melinia minutiflora– de origem africana, que expandia com a fronteira agrícola invadindo as roças abandonadas na trilha do povoamento. O meloso, apesar da sua razoável capacidade de suporte e boa aceitação pelo gado, apresentava alguns inconvenientes: muito sazonal, pouco tolerante às altas temperaturas e nada resistente ao fogo. Apesar de fixar-se com sucesso nos altos Jequitinhonha, Mucuri e Doce, nunca alcançou resultado parecido nas zonas baixas, quentes e férteis dos rios. Lá, o capim de abertura foi, primeiro, o citado pernambuco e logo depois o capim provisório, também chamado jaraguá (Hyparrhenia rufa), extrema ou vermelho: o apelido varia de acordo com o lugar. O provisório era bem adaptado nessas zonas baixas, apresentava facilidade de reprodução e produzia abundantemente, de modo que toda a primeira expansão de pecuária no baixo Jequitinhonha –como em quase toda Minas Gerais– foi feita sobre ele. A difusão do jaraguá em lugar dos pastos nativos foi a primeira mudança técnica significativa na pecuária. Junto dele estabeleceram-se o bengo ou angola –Brachiaria mutica–, capim de várzeas, e o sempre-verde –Panicum maximum gongyloides– empregado por algum tempo no baixo Jequitinhonha.[20]

A segunda grande transformação no pastejo ocorreu dos anos 1910 em diante, com a introdução do capim-colonião (Panicum maximum jacq), que se tornou o símbolo de boa pecuária. O colonião, como quase todos os capins de pasto do Brasil, veio da África. É uma gramínea alta, de 3 metros; segundo alguns autores em terra nova de mata alcançava até 6 metros, e Arnaldo Cathoud, que viajou pelo Jequitinhonha nos anos 1930, afirma tê-la encontrado com até 8 metros; resistente a pragas, fogo, secas, tem excelente aceitação por bovinos e eqüinos. Sua outra grande vantagem é a propagação por sementes, minúsculas; levadas por vento e pé de boi, esparramou-se por todo baixo Jequitinhonha, Pampã e Mucuri. Capim bem enraizado, o colonião suporta pisoteio todo o ano, sem problema para rebrota. Implantado numa área, multiplica-se rapidamente e resiste muitos anos.

Foi o colonião que fez a fama da pecuária do Nordeste de Minas. A espantosa capacidade de suporte que permitia, explicam as duas cabeças de gado por hectare/ano, ou 10 animais por alqueire.[21] Ele operou milagres na terra fértil do Jequitinhonha e do Mucuri, mas carecia tratá-lo com zelo, conservá-lo livre da rebrota das capoeiras e dar folgas ao pisoteio para mantê-lo viçoso. Nos tempos do colonião produtivo os vaqueiros receitavam que um pasto bom precisava só de três “fês”: foice, fogo e folga. Foice era serviço de agregados, nas empreitadas que ocupavam uma parte do tempo de não-trabalho das lavouras. Folga era decisão de vaqueiros: os mais sábios deles aprenderam que não podiam lidar com o colonião sobrecarregando-o de gado, era preciso deixar capim sobrar, mesmo que fosse, já, um pouco de desperdício; os bons vaqueiros sabiam regular boca de vaca, momento de entrada e saída de um pasto, mesmo porque 30 dias de pousio eram o bastante para refazer qualquer manga nas décadas iniciais de ocupação da terra da mata. E quanto ao fogo, as queimadas eram feitas a títulos diversos: limpar as mangas de pasto dos matos maninhos ou miunças, acabar com parasitos, fortalecer o capim, dar cinzas para o gado e outras explicações tão diferentes e enfáticas que é impossível entender manejo de pasto sem um fogo constante e voraz. Foi graças a esses manejos que o colonião dominou a paisagem física, econômica e cultural do Nordeste de Minas; foi manejado assim, embora viajantes e memorialistas tenham se lembrado apenas do fogo.  

A difusão do colonião induziu essas transformações no manejo, na medida que a criação e os pastos prosperaram nas primeiras décadas do século XX. No correr desses anos, principalmente no baixo Jequitinhonha, foi-se tornando maior o cuidado com os pastos, sua repartição, zelo pelo volume de gado, perfilhamento do capim, limpa.[22] A partir dos anos 20 os fazendeiros preparavam mais cuidadosamente suas invernadas, os pastos de engorda para gado na seca que conseguiam fazer o boi ir conservando a carne que ganhava no tempo das águas. As repartições de pastos foram feitas com cercas de moirões furados, ou cercas de tesoura, ou simplesmente separadas por matas virgens mantidas intocadas, cerca viva e natural; proporcionava um uso mais equilibrado aos pastos, dava vigor às rebrotas, garantia uso compartilhado de roças e pastagens, e daí vinha o costume de criar retiros e entregá-los a um vaqueiro que governava ali pastos, gados e agregados.[23]

Mas a maior e mais importante de todas as transformações técnicas na pecuária foi mesmo o melhoramento dos rebanhos, que começou por volta dos finais do século XIX.

No começo da pecuária na zona do Jequitinhonha o rebanho era formado pelo conhecido pé-duro, curraleiro ou  comum, o gado sem raça, que ia do centro de Minas ou da Bahia para lá. Era muito resistente às rústicas condições da criação: suportava a solta, produzia largado em gerais, agüentava parasitos, calor e seca. Apresentava, porém, grandes problemas: baixíssima produção de carne e leite, demasiado tardio, pouco fértil. O intervalo entre partos, segundo contam vaqueiros antigos, durava 36 meses; as novilhas entravam no calor por volta dos cinco anos, o boi chegava à maturidade por volta dos sete anos, quando alcançava algo em torno de sete arrobas (210 quilos de peso vivo) e possuía, folcloricamente, sete palmos de chifres. Nos anos 20, na exposição agropecuária em Fortaleza, ganhou fama o boi “Junqueira”, pelo tamanho dos chifres. Era o modelo de boi daquele tempo.[24]

Nessa época era o gado possível, mas os vaqueiros, criadores e boiadeiros lembram-se sem saudades daquele boi mais antigo, que depois vieram a chamar, vulgarmente, “bunda-de-sovela” por não fazer musculatura na anca e afinar da frente para trás. Lembrando desse gado, o fazendeiro Moisés Gonçalves, Seu “Ioiô”, do Pavão, dizia: “Não tinha boi ruim porque nada prestava, tudo era sem raça, tudo era ruim.”[25]

No Jequitinhonha e Mucuri o melhoramento do pé-duro chegou a ser feito com o gado malabar, uma raça que praticamente desapareceu, deixando duas versões sobre o seu surgimento. De acordo com J. Duarte, um navio indiano aportara em Salvador com a tripulação doente e fora obrigada a descer a boiada que transportava; esse gado, cruzando sem critério com o curraleiro, dera origem ao malabar. Outra versão, de domínio público, conta que um europeu em finais do século XIX se interessara por criar um gado adaptado ao semi-árido e às condições da pecuária brasileira: cruzara então a rusticidade do pé-duro com o ganho de peso e precocidade do holandês e do zebu, mais o caracu, dando origem então ao malabar. Qualquer que seja a versão correta, certo é que o malabar foi o padreador de muitos rebanhos do Jequitinhonha e já do Mucuri, até por volta dos anos 30.[26]

O malabar foi o melhorador do pé-duro, mas não era considerado muito superior a este. Cruzando, suas vantagens costumavam ser anuladas, reproduzindo um curraleiro com pouca melhora. Uma história contada por J. Duarte ilustra isso: seu agregado Zé da Baixinha queria vender-lhe um novilho; quando perguntou se era de raça ou sem raça, o vendedor disse que “não é de raça nem sem raça: é malabar” (Duarte, 1972: 130).

O gado malabar sumiu dos pastos e da história da pecuária, engolido pelo zebu, que operou a mais profunda revolução técnica na pecuária do Jequitinhonha, Mucuri e de toda Minas Gerais.[27]

O zebu é um gado rústico, precoce, pesado: reúne as boas qualidades que faltam ao curraleiro. De origem indiana, divide-se em gir, nelore, guzerá e indubrasil, este último resultado de apuramento genético feito no Brasil mesmo. Ele começou a ser introduzido em 1875, no fim do século cresceram as importações por criadores do Triângulo Mineiro, no começo do outro século elas aumentaram mais, e entre 1910 e 1920 ocorreu seu apogeu, a febre do zebu. Dos anos 20 em diante o zebu foi consenso e misturou-se intensamente com os rebanhos curraleiros. Depois dos anos 40, suas características já eram dominantes no rebanho de praticamente toda Minas Gerais. O zebu foi levado para o Jequitinhonha nos anos 20 por Theopompo Almeida e Hermano de Souza.[28]

A partir daí esparramou-se, melhorando ganho de peso, produção leiteira e precocidade dos rebanhos. Aqueles bois que iam ao abate aos sete, passaram a ir mais cedo, aos quatro anos, pesando 16 ou 18 arrobas; novilhas pariam já aos três anos: quase que duplicou a possibilidade de desfrute do rebanho com a revolução do zebu.[29]

Porteira afora

Num artigo dos anos 50 Washington Albino reparava que o curral era o principal meio de comunicação de uma fazenda do interior de Minas Gerais com o mundo: apenas através dele abriam-se suas portas.[30]

Esse é um dos aspectos mais complexos da velha fazenda de gado. Sua característica ao mesmo tempo autárquica e mercantil, mistura de aspectos senhoriais e comerciais, impede classificá-la como empresa, mas não oculta a evidente importância da circulação de valores por meio da pecuária. Definitivamente não era empresa, pois seu principal produtor de mercadorias, o vaqueiro, estava preso ao fazendeiro por laços que dificilmente podem ser considerados salariato, como a dependência pessoal, domesticidade, apadrinhamento, fidelidade vitalícia. Os pagamentos aos vaqueiros eram fluidos: parcelas em dinheiro miúdo, animais, bens de consumo; as contas-correntes arrastavam-se por anos; incluía sempre a comida enquanto fosse solteiro e morasse na casa de sede, e a roça de mantimentos feita com a família depois que se casava. Eram pagamentos em espécie: “200 cruzeiros e uma bezerra, mais duas mudas de roupa e uma espora” (Fazenda Araguaia, 1948 ms) por ano; outras vezes era cessão de produtos do serviço, como leite para o queijo ou percentagem nos bezerros. Além do mais a fazenda mantinha com sua clientela de agregados laços que podiam representar muito, mas não relações capitalistas de produção.

Mas, porteira afora tudo mudava de figura, e o fazendeiro procurava preço para seu gado, buscava com titubeio e paciência os cruzamentos de raças mais produtivos e maior rentabilidade nas vendas. Os registros de compras e vendas nas contas-correntes das fazendas mostram como eles procuravam organizar aquele caos, conseguir lucros,  economizar no que podiam, ganhar nas beiradas dos prazos e nos descontos dos juros.[31]

No curral, negociante e senhor tornavam-se a mesma pessoa: um fazendeiro. Na apartação de gado de descarte, em seleção para invernadas, nos negócios de meação de boiada, por cima das réguas de peroba, no batente de cancelas de monjolo, corrigindo a faina dos vaqueiros, regulando o gado que sai ou fica e, principalmente, negociando a boiada, o fazendeiro fez no curral a síntese das diferenças. Para entender a fazenda do Nordeste mineiro não basta ter uma das imagens, mas as duas, negócio e não-negócio; e só é possível compreender sua lógica percebendo a importância das relações que estabelecia com o meio físico, pois foi a partir dele que os homens e o mercado criaram essas relações específicas.

O principal componente da produção da fazenda era dado: a extração. Viveu daquilo que o ambiente ofereceu, tanto quanto a roça de toco ou coivara, só que numa escala maior, pois, diferente desta, combinou extração com mercado. Empreendimento de fronteira, extrativo e mercantil, a fazenda não controlava o processo produtivo e este fluía ao sabor da natureza: enquanto pastos brotavam, colonião perfilhava, vacas pariam e agregados produziam, o fazendeiro só corrigia. Essa produção por dons da natureza, como mágica, combinava-se com o sistema de negócios, associando comércio e extração, surgindo daí o empresário da mata, produtor aventureiro, o rentista da selva sugando os recursos com que a natureza dotara o meio e que o domínio privado permitia transformar no benefício próprio que foi a fazenda.

Mas, mesmo o comércio de gado –a faceta mercantil da fazenda– não era organização estritamente empresarial, porque embora se tornasse freqüente no correr do século XX, eram transações com lentas e enoveladas negociações, que aconteciam numa economia de baixíssima liquidez.[32] Vender uma boiada, nos anos 20, era negociar, entregar os bois, esperar serem levados, unidos a outros rebanhos, formada a grande boiada, feita a viagem para o ponto-de-venda, colocado o gado na invernada para engorda, refeito, engordado, entregue; então era só esperar que passasse aquele prazo de 90 ou 180 dias para o boiadeiro receber o pagamento; fazer a jornada de volta e saldar os compromissos assumidos com o dono do gado:  demora de ano ou dois, entre negociar e receber dinheiro. Foi assim até por volta de meados do século XX; raros aqueles que carregavam dinheiro no contado, mas diversos os que o possuíam espalhado em muitos créditos de largos prazos. Era freqüente a circulação de promissórias, títulos e o repassamento de papéis de um para outro dono por anos, com juros e descontos –dependendo do emitente– numa cadeia de dívidas, compromissos e obrigações.

Os negócios eram travados uns com os outros e não se resolviam facilmente. Os cadernos de contas-correntes, correspondências e diários de fazendeiros são excelentes fontes para pesquisar essas transações.

Os diários e a correspondência dos anos 20 do fazendeiro e negociante Helvécio Ribeiro, mostram que ele resolveu sair da Bahia a caminho da “mata”, como faziam tantos outros conterrâneos. Suas atividades baianas eram muitas, mas pouco rendosas, a fazenda de seu pai certamente seria herdada por irmão mais novo, por isso  labutava com ofícios e negócios rurais e urbanos, fora da fazenda. Os seus diários no período 1922/1930 mostram que entre a tomada da decisão e a saída passaram-se três anos, e gastou esse período –conforme suas agendas– desatando a teia de compromissos, acertos, interesses familiares e de terceiros, promissórias a receber, dívidas a saldar e negócios ligados uns aos outros. A liquidação tomava muito tempo, pois o ajuste de alguns negócios implicava assumir outros que ele julgava mais certos ou solváveis: trocou créditos em um jornal por um bilhar, créditos em uma representação comercial por uma casa, dívidas com um por créditos com outro. No correr desses anos foi a Salvador e Ilhéus receber de devedores seus, aproveitou a viagem para quitar débitos alheios por encomenda, que acabou misturando aos seus. Sair daqueles “rolos” e “tranças”, transformar créditos “quase certos” em bens mais líquidos, quitar ou transferir débitos seus para outros, foi a tarefa dos três anos.[33]

Saiu da Bahia, enfim, em 1928, com arrieiro e tropa formada. Mas, antes dos anos de 1935, nunca deixou de ter créditos e débitos cruzados na Bahia, onde voltava, às vezes. Nota-se nos diários a dificuldade para resolver o varejo, que exigia mais que racionalidade econômica: carecia tato, paciência, conversa, esperteza. Créditos improváveis transformaram-se em bons negócios, pois recebeu uma boa fazenda em troca de dívidas; mas, também créditos sadios podiam dar péssimos resultados.[34]

O gado era o bem mais negociável e passava de um para outro fazendeiro; circulavam documentos que os uniam em redes de interesses e dinheiro. Papéis como este de Wilson “Tiná” Trindade: “Comprei a Idalino Ribeiro: 65 vacas indubrasil; 14 novilhas indubrasil; 34 bezerros indubrasil; 7 garrotes indubrasil; 1 garrote indubrasil; 9 garrotes comuns (boiadeiros): 130 reses por Cr$ 650.000,00. Nas seguintes condições: um título com 1 ano Cr$ 250.000,00; 1 título com 18 meses Cr$ 400.000,00. Vencimento em primeiro de março de 1953 e primeiro de outubro respectivamente, sendo ambos prorrogáveis a juros de 2% por tempo indeterminado conforme interessar. Esta combinação foi feita em presença do Senhor Eliezer Ferraz e ficou esclarecido e assinado por Idalino Ribeiro ao lado esquerdo das promissórias emitidas por mim” (Contas correntes da fazenda Sul América, ms).

O livro de contas correntes da fazenda Sul América contém anotações desse tipo e o controle de empréstimos feitos ou tomados, com prazos grandes, sempre mais de dois anos, com taxa de juros entre 1 e 2% ao ano. Aqueles negócios, pelo período que é possível segui-los, emendavam-se com outros, quitados com títulos de terceiros –parceiros de outros negócios variados– e repassados à frente, de modo que, rigorosamente, não se encontra o fazendeiro liquidando em dinheiro uma dívida contraída. Os acertos da fazenda Sul América com o meeiro de uma boiada para partição de lucros acontecia de dois em dois anos; mas como o sócio sempre reinvestia capital e lucros, o fazendeiro embolava o fim daquele negócio –gado que entrava livre e seu como resultado de partilha bianual– com o começo ou o meio de outro; aí se perde quem seguir a trilha da formação desse complexo patrimônio. Nos quase 40 anos de registros sistemáticos da fazenda Sul América, uma única vez há liquidação de créditos da sociedade na boiada: em 1952 a fazenda apurara um lucro de Cr$ 332.770,00 que entrou em caixa, e no correr de todo o tempo parece ter sido a única ocasião de efetiva liquidez do fazendeiro Trindade.[35]

Compromissos de dívidas firmados em promissórias –endossadas e postas a circular– uniam fazendeiros, boiadeiros, invernistas e negociantes em laços sólidos de dívidas cruzadas. Eram negócios baseados no conhecimento que cada parceiro possuía do outro e permitiam dilatação dos prazos e transferência dos débitos. Quanto maior a possibilidade de débito, maior a capacidade de negociar. J. Duarte, por exemplo, saiu de Sergipe para a Bahia, de lá para Belmonte, daí subiu o Jequitinhonha comprando bois. Considerou-se, por fim boiadeiro quando um fazendeiro comentou que ele era um homem realizado: Duarte devia dinheiro da barra de Belmonte à barra do Araçuaí, ao longo de todo o Jequitinhonha; recebia, portanto, crédito e confiança bastante para comprar todo o gado que queria (cf. Duarte, 1976).

Os boiadeiros faziam negócios longamente embolados mas também fragilmente controlados, como aqueles dos fazendeiros. A apuração de débitos e créditos era demorada, durante longos períodos sustentavam-se as mesmas contas em aberto com renovações periódicas e liquidações parciais. Um controle fluido, igual ao que era feito com agregados, armazéns fornecedores, devedores, boiadeiros, outros fazendeiros. As mesmas trocas de títulos e bens numa circulação infinita. Em Joaíma –que foi um grande centro boiadeiro, produtor de vaqueiros afamados em toda a zona do Mucuri, Jequitinhonha, Doce e Pardo– conta-se a história do boiadeiro Antonico Miranda que começou a ser perseguido pela idéia que seus débitos eram maiores que seus créditos. Obcecado por isso, tentava de todo modo fazer um balanço dos títulos que emitira e dos créditos por receber, e nunca conseguia chegar a resultado conclusivo. Desesperado, tomou formicida, morreu. Seu inventário durou dois anos e ao fim dele sua mulher e herdeiros descobriram-se muito ricos. Os créditos, afinal, superavam os débitos.[36]

Quase não existiam transações líquidas e finais: eram pagamentos fatiados, longas transferências de umas para outras dívidas miúdas. Mesmo representantes comerciais agiam assim. Amadeu Martell, viajante comercial no Mucuri e Jequitinhonha do começo do século XX, revela numa carta ter aceito algodão de fazendeiro devedor; certa vez fechou por uma noite um cabaré para seu deleite e cobriu a “rainha daquela casa de tolerância” com os cristais que recebera por um débito demoradamente cobrado.

A rede pouco formal de débitos, créditos e garantias apresentava seus riscos. Quando um devedor falia –fazendeiro, comerciante ou boiadeiro de vulto, todos viviam atolados em dívidas– desencadeava um movimento geral de quebradeiras, tal a quantidade de títulos e papéis de uns empenhados com outros, lastreados em negócios eternamente pendentes. Era por isso, então, uma sociedade onde o título de dívida deveria ter solidez, fundado primeiro na confiança que o próprio emitente merecia, segundo nos seus bens de raiz e terceiro no patrimônio dos seus avalistas, geralmente comerciantes. Daí a importância que mereceram as casas comerciais Colombo (Jequitinhonha), Bazar 36 (Fortaleza), Manuel Martiniano (Teófilo Otoni), Idalino Ribeiro (Salinas), para citar as principais. Eram pontos-de-venda, mas também de garantias, empréstimos, penhores e descontos. O lastro da confiança, porém, era vital: os costumes de honrar o negócio pelo fio de barba, garantir a palavra, sustentar todas as garantias que fornecera, eram fundamentais para a sobrevivência individual e para a manutenção  do próprio sistema.[37]

Em caso de protesto ou inadimplência os avalistas honravam os documentos que haviam assinado. Era a palavra, código de honra, mas também garantia pessoal e coletiva. O aparente desprendimento que havia em falir por conta de outro, dava a confiança necessária para o fazendeiro ou boiadeiro falido recomeçar sua fortuna com novas e multiplicadas pequenas dívidas. Em muitos casos podia refazer o todo, ou pelo menos partes do seu patrimônio, contando apenas com as relações pessoais, conhecimento de mercado e nome que soubera honrar. Theopompo Almeida, boiadeiro de levar 15.000 bois por ano à Bahia, faliu em Fortaleza, foi para Joaíma, se refez, ficou dono da fazenda Ypiranga; de novo lá teve problemas financeiros; saiu para a “mata”, morreu em Carlos Chagas, ainda pela terceira vez recomeçando, sem dinheiro, mas deixando excelente conceito comercial. Argel, boiadeiro que foi para o Mucuri e Jequitinhonha nos anos 40, chegara a negociar em torno de 60.000 bois num mês; faliu por três vezes –numa por haver comprado bois a Cr$ 120,00 e entregue a Cr$ 75,00 a arroba, obrigado pelo contrato com o frigorífico, perdendo então gado e fazendas– e em duas delas conseguiu reconquistar novamente confiança dos clientes para voltar a montar um negócio ainda mais vultoso que o anterior. Era, portanto, uma sociedade de códigos rígidos de confiança, baseada em princípios mercantis costumeiros e sólidos.[38]

Boiadeiros

Através dos negócios de gado por aqueles tortuosos acertos as fazendas das zonas de criação do Nordeste de Minas foram resolvendo seus problemas de dinheiro, construindo modestas e até importantes fortunas. Nisso foi fundamental o empenho dos compradores de gado, os boiadeiros, que regavam essa economia com seus pagamentos vasqueiros e demorados.

A relação do fazendeiro com o boiadeiro era de negócios, é certo. Mas suas transações possuíam lógica tortuosa: eram embolados negócios e confiança, em viagens constantes formando boiadas reunidas de áreas imensas. O costume do boiadeiro era comprar na “perna” –quer dizer, avaliando “no olho” o peso ou simplesmente determinando preço por um lote maior– bois magros, erados e castrados que seriam conduzidos e engordados para o abate. Raras fazendas produziam sistematicamente grandes lotes de bois, pelo menos aquele boi “terminado” aos quatro anos. Por isso muitos fazendeiros compravam uns dos outros, formavam lotes um pouco maiores e os passavam a outros fazendeiros, que por fim os negociavam com boiadeiros. Eram cadeias de vendas, porque negociar compensava mais que produzir, e melhor ainda negociar um lote maior de gado, que recompensava a viagem de centenas de quilômetros, durante meses, com bagagem, despesas, acidentes e, depois do zebu, o risco da aftosa. Foi esse o trajeto dos boiadeiros pioneiros do baixo Jequitinhonha, que faziam longas viagens tocando curraleiros à procura de quem os aceitasse comprar em prazo inferior a dois anos.[39]

Nas viagens existiram percursos famosos pelas dificuldades. A rota das 10 léguas de Cachoeirinha, no caminho de Itabuna, forçava as boiadas a passarem por 60 quilômetros de matas fechadas, tremedais terríveis, com onças, queixadas e febres. Dura também era a rota de Campos, no começo dos anos 40, quando o gado atravessava a floresta compacta do baixo rio Doce e os passadores precisavam cercar a boiada com fogueiras para espantar as onças. Piorava tudo ainda quando o gado em viagem caía afetado –atingido pela febre aftosa– babava, perdia peso, ficava com o casco em chagas; a boiada era forçada a parar por semanas e até meses.

Boiadeiro foi esse misto de criador e negociante, cercado pela aura romântica da aventura, informação e viagem – que envolveu também vaqueiros, tropeiros, viajantes comerciais e peões, personagens que lidaram com estradas e animais. Eles viajavam em equipe, formada por passadores e peões –peões de boiadeiros– que faziam o movimento e fama da boiada; criaram técnica e folclore, porque seu ofício, como o do vaqueiro, exigia especialistas. Cada posição em serviço guardava seu segredo e serventia: guia, contador, contraguia, coice, arribada, cozinha e tralha; a elas acrescentaram a cantoria, que dava o tom da marcha, o aboio e sua escala formada por primeira e segunda voz, contracanto e requinta. Assim entende-se o verso da festa do Salto, pois o cantador diz que queria ser vaqueiro, mas não qualquer vaqueiro e, sim, “vaqueiro (a)boiador”, que sabe as cantigas do aboio, o canto comprido que apruma o gado, comove e seduz.[40]

Na monetarização desse mundo os boiadeiros cumpriram papéis tão importantes quanto os fazendeiros. Foram a saída dessa “muralha feudal” que reclamava Albino, forneceram a modesta liquidez dessa sociedade de abundância, e abriram as rotas que foram gradativamente irrigando essa economia com um dinheiro que ficou menos ralo, ao mesmo tempo que a fartura minguava.

A criação de gado foi-se tornando aos poucos um negócio, uma prosperidade demorada. Levar boiadas do Jequitinhonha para Vitória da Conquista e daí a Salvador era um estirão de quase 1.000 quilômetros e os bois viajavam  20 ou 40 quilômetros num dia. O mercado baiano foi promissor e único até os trilhos chegarem a Montes Claros no final dos anos 20, e foi por lá, aos poucos, pela via de Salinas, que as boiadas procuravam o rumo do  Oeste e depois iam embarcadas para o Sul, Belo Horizonte ou Rio de Janeiro.

Mas a grande transformação veio dos anos 30 em diante, com a abertura da rota de Campos, que se tornou o centro mais importante de invernadas de gado mineiro. Foi o contato de Campos que abriu o Mucuri para uma pecuária comercial estável. Os boiadeiros passaram a reunir lá “um gado miúdo” que ficava escondido dentro das touceiras de capim-colonião. Na mesma época começou a entrada do gado pelo Pampã, inicialmente uma extensão das fazendas de Joaíma; mas certo é que o gado entrou no Mucuri pelo Norte, e acabou tornando-se um bom negócio vendê-lo para o Sul. Do ponto de vista das rendas foi uma verdadeira revolução, pois os boiadeiros campistas andavam por toda aquela zona formando lotes que saíam no rumo aproximado do que veio a ser a rodovia Rio-Bahia, depois costeavam a divisa do Espírito Santo, atravessavam o baixo rio Doce, parte da Mata mineira e chegavam ao Rio de Janeiro. Lá a boiada era refeita, engordada, abatida e posta no mercado da capital federal.[41]

O mercado novo só prosperou daí por diante. Serviu para transformar a criação de gado em um bom negócio no Mucuri, principalmente, serviu para dar ao baixo Jequitinhonha três grandes mercados: Bahia, Montes Claros, Campos. Foi a partir dos anos 40 que o baixo Jequitinhonha transformou-se num produtor sistemático, e então seleção, precocidade, comércio puderam valer mais, e os fazendeiros acrescentaram dinheiro ao seu rompante senhorial. Mercados, negócios e dinheiro vieram muito aos poucos, a pecuária não surgiu com eles.

Assim, por vias longas, tortuosas e difíceis, a fazenda monetarizou-se, a terra começou a ter um certo preço e o mercado fundiário surgiu ligado ao movimento de gado e à renda que foi criando. Na história que se escreveu, na arquitetura das casas de sede, nos grandes currais ficou impressa a trajetória comercial da pecuária. Mas, para o povo da roça e dos currais foi aventura o que ficou da lembrança de boiadas, boiadeiros, bois e vaqueiros, memórias tão marcadas pela época quanto a velha fazenda sem dinheiro e sua fartura tirada da mata.

 

Referências bibliográficas

Fontes manuscritas

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Contas Correntes da Fazenda Gameleira, 1917/1939, Araçuaí.

Contas Correntes das Fazendas Jatobá e Butequim, 1960/1970, Teófilo Otoni.

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Correspondência de Germano Cunha Mello, 1960/1970, Teófilo Otoni.

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Notas

[1] Consultar Valverde (1985) e Caio Prado Júnior (1962); ver também os estudos de Santos Filho (1957),  Castro (1972), Oliveira Vianna (1957) e Queiróz (1957).

[2] São raros os estudos sobre trabalho rural; mais raros ainda sobre gestão, controle e processos de trabalho. Uma das poucas tentativas de interpretação do assunto foi feita por Loureiro (1981). Tratando dos processos gerais de produção rurais a autora assinala que a relação íntima da agricultura com a natureza é um dificultador do controle estrito, taylorista, do trabalho, na medida que as rotinas flutuam ao sabor das estacionalidades.

[3] Agregados eram moradores de fazendas, com acesso à terra para lavouras e, eventualmente, empreiteiros ou assalariados. Para descrição e análise mais detalhada desses lavradores consultar Martins (1981), Moura (1988) e Ribeiro (1996).

[4] Acompanhando a festa do Boi-Duro, em janeiro de 1994, no Salto da Divisa, foi possível refazer a trajetória dos seus integrantes. Os mais jovens, quase todos, moram em Porto Seguro (BA) e voltam para a festa.

[5] Cada cavalo, por exemplo, podia apresentar seu defeito, e estes eram muitos –aluado, boleador, coiceiro, doido-de-cabeça, empacador, fogoso, galope-desunido, hético, intuído, jogador-de-bunda, ladrão, madraço, nhato, passarinheiro, quartela-baixa, refugador, solto-dos-quartos, transcurvo, velhaco, xotão ou zureta– que demandavam sua técnica exclusiva de correção. Cada cavalo possuía uma natureza, e existiam métodos muito diferentes de lidar com eles, suaves ou brutais, que iam -ou vão- desde o trato gentil ao potro na desmama, até a brutalidade da “professora”, o cabeção de serrilha feito para “quebra” de animais defeituosos. Seu  fabulário particular acabava se grudando aos vaqueiros que os usavam, e Álvaro da Silveira recolheu muitas histórias de animais de serviço; entre eles, a rima-de-negócio, comum em Minas Gerais, que relaciona o defeito do cavalo com sua cor. O difícil, mesmo, é prová-lo verdadeiro nas horas de fazer “rolos”, “catiras”, “baldrocas” ou, simplesmente, trocas: “Cavalo alazão, ou frouxo ou ladrão; Cavalo pedrês, para carga Deus o fêz; Cavalo rosilho, só a poder de muito milho; Cavalo baio, mesmo depois de morto ainda dá trabaio. Cavalo alazão, deixa o dono com os arreios na mão. Cavalo pintado, só na parede” (Silveira, 1922: 98, 395).

[6] As cartas de Joaquim estão na Correspondência de Germano Cunha Mello (ms). Euclides da Cunha mostrou a incerteza deste trabalho publicando o bilhete de um vaqueiro que contava ao patrão os resultados do serviço. Depois de empenho e esforço para reunir o gado, ao fim só pode esclarecer ao fazendeiro: “Patrão e amigo, participo-lhe que a sua boiada está no despotismo. Somente quatro bois deram o couro às varas. O resto trovejou no mundo.  Seu amigo vaqueiro F.”  (Cunha, 1967: 93).

[7] A rusticidade do serviço nas juntas e apartações assombrou em 1918 o poeta Eduardo Santos Maia na sua visita a Joaíma. Diante da violência dos serviços de ferra no curral, fazia suas considerações simbolistas: “No curral, a poucos metros da vivenda senhorial, o gado se escoiceia, e muge, e escava; marruás, no cio, erguem-se de quando em vez sobre as vacas predispostas à fecundação; as crias, presas noutro compartimento, berravam insistentemente, correspondidas pelos urros aflautados e fundos das mães, a rodearem a prisão, pacientes, incansáveis... (...) Espetáculo arrepiante e penoso é o da ferra: três ou quatro vaqueiros pulam no curral, munidos de grossa corda de couro cru trançado e laça aqui, derriba ali, peia acolá! Um ferro, uma letra, um monograma, um sinal, embutido num cabo de madeira ou de osso, numa fogueira adrede enrubescido, aguarda o momento de judiar... Quando a rês se encontra perfeitamente tolhida nos seus movimentos e na posição desejada, um meninote, para tal serviço designado, na voz de –’traga o ferro’– leva-o, entregando-o a um dos vaqueiros. Este procura o sítio costumeiro, toma posição adequada e pousa-o candente na pele do animal, erguendo-se uma fumarada de cheiro ativo, característico de cabelo queimado, ficando em negro o fac-símile da marca abrasada. O pobre bicho geme doridamente e dos seus grandes olhos escorrem duas lágrimas, vagarosas e longas...”  (Maia, 1936: 131).

[8] A história do aprendizado de Natalino Martins, o Natal, está reproduzida em Ribeiro (1996).

[9] Zeca Figueiredo, entrevista em Ribeiro (1996);  cavalo de pegar os outros é uma referência ao animal manso, que pousa na beira da casa e permite ensilhá-lo a qualquer hora para reunir o resto da tropa.

[10] Os relatos do fazendeiro Seu Ioiô, do Pavão e Geraldão, do Chumbo, resultam de entrevistas, de 1994. Casos de doação de bens imóveis e gado a vaqueiros do Mucuri e Jequitinhonha são muito freqüentes nas histórias contadas e mais ainda nas representações. Embora possam às vezes ser doações culturalmente construídas, os casos encontrados são expressivos o bastante para serem levados em conta. Ocorreram principalmente nas grandes fazendas; mas mesmo nas outras nunca deixou de ser importante a dívida declarada dos fazendeiros a seus vaqueiros.

[11] Pelos apontamentos de contas-correntes das fazendas, até os anos 1970 o ordenado mensal da um vaqueiro chegava a um máximo de meio salário mínimo. O caso da São Vicente foi contado por Pedro Emílio de Almeida Peixoto, em entrevista de junho 1994.

[12] Um caso rotineiro narrado por Zeca Figueiredo, vaqueiro de Itaobim, aconteceu quando o fazendeiro vendera uns bois e 16 deles ficaram perdidos numa macega, na beira do Jequitinhonha: “Eram bois alevantados na beira do rio. Aquilo era mato só, não tinha uma aberturinha. Na primeira vez que esse gado viu a gente, arredimunhou, coriscou, baixou a cabeça e só via pau quebrando. Entrei no mato com a mula, vi: saí mais um boi preto. O boi, na carreira, quando a mula encostou na anca dele só vi vaqueta abrindo. Eu vim escambado, vim cheirando a anca dele, descemos, açoitando. Passou um valo, passou uma cerca de arame velho que tinha dentro do mato e eu nem dei decisão, vinha como vinha. Se o arame me pega em cheio tinha me matado, porque eu não sei como é que parava em arame quebrado. Do jeito que vinha, passou. O garrote na frente, quando chegou na beira do rio, que ali dá umas veredas limpas, quando ele tiçou na beira do rio, no claro da vereda eu estava embutido nele. A mula era boa demais, de rédea era boa, era igual cavalo para correr. Quando ele saiu no limpo, eu pus no chão, derrubado; ele caiu, levantou, tornou a correr, eu tornei puxar o sedenh’, ele caiu. Eu esbarrei a mula e pulei no chão e peguei ele. Segurei no vazio dele. Aí eu não tirei o laço, estava amarrado na garupa da mula. Puxei a mula para perto, tirei a ponta do cabresto. Garrote de dois anos. Tirei o laço, pus na cabeça dele com’um cabresto para ele não enforcar, amarrei numa toiça de pau, pus o formigão no nariz do boi. Nisso, eu acabei. Aí, silençou... Ficou quieto. Falei: É, o meu eu peguei...” (Zeca Figueiredo, entrevista, julho, 1994, reproduzida em Ribeiro, 1996).

[13] Sobre as regalias de vaqueiro, consultar Duarte (1972 e 1976), Moura (1988) e Ribeiro (1996).

[14] A citação é de Euclides da Cunha (1967). Nesta pesquisa foram entrevistados os vaqueiros Natalino Martins (Águas Formosas), José Zeca Ribeiro de Figueiredo (Itaobim) e o empreiteiro e gerente José Curralinho (Teófilo Otoni). Foram coletadas informações nos cadernos de contas-correntes de fazendas, em conversas com boiadeiros, vaqueiros, passadores; deles, agradeço em particular os ensinamentos de Benjamim Rocha, Alírio Côco, Ozório Dudu, Adãozinho do Sítio Novo. Para entender a importância do trabalho do vaqueiro foi fundamental, também, entender sua relação com o fazendeiro; aí valeram o cronista J. Duarte (1972, 1976, s.d.) e entrevistas com os fazendeiros Diniz V. de A. Coutinho, Moisés Gonçalves, Pedro E. A. Peixoto, entre outros.

[15] As informações mais antigas sobre criação no Nordeste de Minas foram dadas por Hartt (1941). Para entender a pecuarização são importantes as pesquisas sobre migrações baianas feitas por Almeida (1977), Duarte (1972, 1976), Tetteroo (1919) e Santos Filho (1957).

[16] Sobre a expansão da pecuária consultar os autores citados acima; ver também Santos (1970) e Sol (1981).

[17] Cathoud (1936), descreve em sua nota de viagem o que viu no baixo Jequitinhonha e Pampã: o fazendeiro riscava um fósforo, e aí, protegidas as cercas já feitas, o fogo liquidava o que estivesse a seu alcance. J. Duarte (1976) escreveu, e muito, sobre o assunto. Curiosamente, o tempo que a terra fica devastada, entre a queima e a rebrota do pasto, não costuma provocar dificuldades para o gado: de acordo com José Curralinho e Zeca Figueiredo, a cinza “é forte”, tem “sustança” bastante para garantir o gado até a chegada dos “invernos”.

[18] Sobre fazenda Santana do Poço ver Otelino Sol (1981); a fonte dos dados da fazenda Sul América são os cadernos de contas-correntes, 1943/1964. Dados sobre capacidade de suporte, desfrute e intervalo entre partos foram coletados em entrevistas e registros de contas-correntes das fazendas.

[19] Em relação aos agregados, o domínio da fazenda costumava ser tão completo que limitava a margem de contestação, ver Ribeiro (1996); segundo Tetteroo (1919) e Castaldi (1957), fazendeiros costumavam usar gado como meio de pressão sobre posseiros confinantes para conseguir a terra.

[20] Uma análise dos diversos capins, origens, vantagens e deficiências encontra-se em Marques (1969). Tratam do assunto também Primavesi (1984) e vários números da revista Informe Agropecuário. As informações sobre expansão do capim meloso estão em Saint-Hilaire (1975); sobre o provisório ver Silveira (1922), Sol (1981) e Duarte (1976). A maior parte das informações sobre vantagens relativas e manejos populares de capins foram conseguidos em entrevistas campo, principalmente com Justino Obers, vaqueiros e criadores.

[21] Uma capacidade de suporte equivalente a esta só foi regularmente alcançada com os capins braquiária em solos corrigidos de cerrado a partir dos anos 1980, com o custo, alto, da mecanização e adubação.

[22] As pastagens do Salto foram descritas assim: “se o viajante cai do animal, cai no capim colonião. Se procura, tem dificuldade em encontrar um ramo para bater no animal.” (Sol, 1981: 112).

[23] Sobre técnicas de pecuária ver Sol (1981), Duarte (1972; 1976) e Zeca Figueiredo em  Ribeiro (1996).

[24] Sobre gado do Mucuri e Jequitinhonha ver J. Duarte (1972 e 1976) e Almeida (1977); sobre raças e manejos ver Marques (1969). Outras informações vieram das entrevistas com Zeca Figueiredo, Pedro E. A. Peixoto, Otelino Sol, Diniz V.A. Coutinho e Natalino Martins. Esse gado curraleiro recebia críticas de todos os lados: o Doutor Rebourgeon, contratado pelo Conselheiro Afonso Penna para opinar sobre os problemas da pecuária mineira, dizia que a mortalidade atingia 50% dos bezerros, a produção leiteira média de uma vaca era 1,5 litros/dia; ver Rebourgeon (1884); para comentários sobre europeização do rebanho ver Silveira (1919, 1922). Segundo J. Duarte este boi curraleiro possuía “aspas” –os chifres– enormes, e também “quartos chochos, peito esguio e difícil engorda” (Duarte, 1972: 122). Em 1936, quando fez uma viagem ao rio São Francisco da Bahia, Cândido Versiani (Ribeiro, 1996) descrevia o gado como “pé-duro ao extremo”, e, dizia que “seus bois são menores que os nossos bezerros”: mas já falava depois da revolução que foi a adoção do zebu.

[25] Entrevista de junho, 1994.

[26] Diniz V. de A. Coutinho, antigo possuidor desse gado, definiu em entrevista o malabar como “meia-orelha, pesado, umbigudo, peito largo, pouco leiteiro; vermelho, amarelo ou azeitona.” E J. Duarte, também criador, deu outra definição, parecida: “boi meio azeitonado, de cara escura, corpulento, chifres curtos e pouco curvados, com uma pinta preta dentro da orelha, considerada característica da raça.” (Duarte, 1972: 129).

[27] Houve disputa séria na imprensa sobre as boas e más qualidades do zebu, e Álvaro da Silveira foi um defensor intransigente da sua introdução, substituindo o caracu e as raças européias. Silveira sustentava polêmicas  com os defensores da introdução de lavouras e raças exigentes em Minas Gerais; manteve por anos debate acalorado com um articulista de um jornal de São Paulo. Ele dizia que os campos mineiros produziam capim-redondo, que nenhuma serventia possuía; mas, havia uma máquina que transformava-o em proteína: era o gado zebu, que não exigira mais que campos e sal para criar a riqueza do Triângulo Mineiro. Diante da mortandade de gado europeu, dos desperdícios feitos em nome do melhoramento genético, por que não deixar o zebu pastar livremente para fazer da rusticidade riqueza? Silveira (1919) louvava a sabedoria rústica dos criadores: quem entendia de agricultura não escrevia sobre o assunto; e quem escrevia, nada entendia do agricultor.  Sobre zebu ver Marques (1969), Lopes e Rezende (1984),  Duarte (1976) e a revista Informe Agropecuário (vários números).

[28]  José Vaqueiro, passador de gado de Theopompo Almeida, gastou um ano para percorrer 100 léguas, de Buenópolis até Pedra Azul, tocando a pé as primeiras 160 cabeças de zebu que foram do Triângulo Mineiro para o Jequitinhonha. Sobre José Vaqueiro e sua viagem consultar Almeida (1977) J. Duarte (1976: 96) afirma que Hermano de Souza cruzava Nelore com Malabar e era muito criticado por criar gado de orelhas curtas: “A paixão pelos chifres enormes desaparecia para surgir o amor às orelhas longas e pendentes. Peso, precocidade, qualidade da carne e rendimento não entravam nas cogitações dos fazendeiros. Orelhas, chifres, barbela e umbigueira eram objeto de discussões entre os ‘entendidos’. “

[29] João de Senna Santos, memorialista, antigo morador de fazenda, contou-me a história duma novilha Gir, cheia por um boi famoso, comprada em Uberaba, nos anos 30, e levada para o Nordeste de Minas. Criou-se na fazenda enorme expectativa pela parição. Certo dia, um menino entrou correndo na cozinha, gritando que a novilha finalmente tinha parido. O fazendeiro pulou atarantado, perguntando: –”O bezerro tem muita orelha?” ”Não senhor”–respondeu o menino– ”só tem duas.”

[30] Segundo Albino  “Este curral constitui a única fresta de rompimento da muralha feudal com a venda de bois para pontos distantes. No mais, são o auto-abastecimento quase completo e o regime feudal típico.” (Albino, 1956: 133).

[31] Nesta pesquisa foram analisados os cadernos de contas-correntes das fazendas Sul América (Itaobim), Córrego Seco (Novo Cruzeiro), Araguaia (Carlos Chagas), Jatobá (Teófilo Otoni), Butequim (Teófilo Otoni) e Gameleira (Comercinho do Bruno), cobrindo o período 1917/1980, e a correspondência a eles associada.

[32] Diniz Vieira, na entrevista citada acima, contou que nos anos 20, em Urucu, recebeu 180 cabeças do melhor malabar em paga de cinco anos de trabalho; durante um ano andou por onde pode e não conseguiu fazer o gado virar dinheiro.

[33] “Rolos” ou “tranças” são os nomes dos negócios que não envolvem apenas dinheiro, mas também bens; em algumas regiões recebem o nome de “catira”.

[34] Entre estes diários dos anos 20 pesquisados encontra-se longa carta de um antigo devedor baiano que contava a história de uma briga por herança: um mau-caráter seduzira sua irmã há 10 anos, casara-se, fazendo-a escrava de seus caprichos; ela fora levada a falsificar a assinatura do pai no testamento, de modo a excluir o irmão da melhor herança e o restante penhorara em seu proveito, com o sogro ainda em vida; vendera a casa da mãe e a própria casa onde morava o missivista, que decidira ir às armas, mas errara o tiro ao cunhado e fora processado, tendo então que vender seu comércio –último bem!– para pagar as despesas forenses. Desculpava-se, então, por não poder pagá-lo naquele ano; no próximo, quem sabe...

[35] Equivalia a 300 salários mínimos de 1952 e era metade do lucro  de dois anos sobre 1.500 bois.

[36] A história de Miranda foi relatada por José Curralinho; outras pessoas em Joaíma contam-na muito parecida.

[37] Maria Sylvia de Carvalho Franco (1974) analisou os negócios rurais nessa perspectiva: a aparente informalidade ocultava os mecanismos que agilizavam os negócios feitos nessas sociedades de pouca liquidez.

[38] Informações sobre Theopompo Almeida estão em Alírio Almeida (1977). Outras, foram prestadas por Pedro E. Almeida Peixoto, seu sobrinho-neto, em entrevista citada; o caso de Argel foi relatado em entrevista.

[39] Ver sobre boiadeiros Almeida (1977), Duarte (1972, 1976), Sol (1980).

[40] Os serviços da viagem de gado eram muitos. O ritmo era essencial, pois forçando a boiada ela estropia, estropiada não anda, perde peso, perde até gado; o segredo era “fazer o casco” do gado na saída, com dois ou três dias de marcha vagarosa, saindo nas madrugadas e parando no sol das 10 horas, caminhando à tarde duas ou três curtas horas, para o casco endurecer. Nas paradas do forte do sol rodava o gado em lugar de pasto e aguada, ia conhecendo a boiada, dosando a caminhada, descobrindo o boi arisco e fujão, que dá trabalho aos vaqueiros de arribada. Depois de três ou quatro dias, sabendo o trato do gado, o peão colocava o gado no ritmo que dura semanas ou meses. Nessas viagens tocadas por vaqueiros conhecedores do ofício e do rebanho, o gado não perdia peso, chegava a seu destino lustroso e sadio. Ver sobre boiadas Duarte (1972, 1976), Santos Filho (1957) e a entrevista de Natal em Ribeiro (1996).

[41] A citação é de Paternostro (1937). Sobre a expansão de pecuária ver Duarte (1972, 1976), frei Samuel Tetteroo (1919, 1922), mais Almeida (1977), Sol (1981) e Santos (1970). As histórias dos mercados e boiadas foram coletadas em entrevistas.