Estudos Sociedade e Agricultura

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Héctor Alimonda

O olhar dos viajantes


Estudos Sociedade e Agricultura, 10, abril 1998: 195-199.

Travellers’ Regard

Héctor Alimonda é professor da UFRRJ/CPDA.


Esses bizarros anglo-saxãos, é sabido, gostam de se diferenciar. Em conferências reunidas em ensaio (In the tracks of historical materialism, 1983), Perry Anderson comprovava a vitalidade e elegância do marxismo acadêmico anglo-saxão, em contraposição à crise do “marxismo latino” (isso sem falar no rigor mortis dos então denominados Socialismos Realmente Existentes, lembram?). Agora, nesta década de 90 em que a globalização, a caducidade imediata dos nossos micros e as corridas extenuantes dos fundos de investimento de um lugar a outro do mundo apagaram as outrora ineludíveis referências ao “imperialismo” nos discursos das Ciências Sociais latino-americanas, os “Estudos de Cultura” anglo-saxões estão produzindo alguns trabalhos que colocam, com toda propriedade, o imperialismo como um predicado central para a análise da produção de significações das suas próprias sociedades.

É o caso de Cultura e Imperialismo, do palestino US-based Edward Said, publicado no Brasil pela Companhia das Letras (1995). Said (que não por acaso se iniciou com uma biografia de Joseph Conrad) propõe neste livro a experiência histórica imperialista como o elemento definidor da “estrutura de atitudes e referências” das culturas nacionais (metropolitanas e periféricas) no século XIX e, portanto, como fundamento da cultura internacionalizada global do século XX. Desenvolve sua análise a partir de corpus narrativos de fisionomia literária, sejam abertamente imperialistas (Kipling), inseridos no processo e atormentados pelas suas contradições (Conrad) ou explicitamente alheios ao mesmo, mas o pressupondo como condição natural, incorporada no cotidiano das metrópoles (Dickens e seus mendigos londrinos, que podem virar presidiários na Austrália, marinheiros no Caribe ou milionários na África ou na Índia).

Outro exemplo desta produção é o livro que nos ocupa agora, Ojos Imperiales: Literatura de viajes y Transculturación, da canadense Mary Louise Pratt, professora da Universidade de Stanford. (Tal como Said, Mary Louise Pratt assume explicitamente que sua afinidade com a problemática se vincula com os avatares da própria identidade nacional). Constituindo como corpus um gênero particular de narrativa, a dos “viajantes” no espaço geográfico da África e Hispano-américa, a autora se interroga primeiramente sobre sua relação com a produção do “resto do mundo” para os leitores metropolitanos. Este tema se desdobra em outros dois: essas narrativas formando o predicado essencial de práticas significantes, orientadas para a formação de uma identidade metropolitana e também criando o referencial onde se daria o processo de autoformação das identidades periféricas. Neste intento, Pratt retoma a noção de “transculturación”, do cubano Fernando Ortiz (Contrapunto cubano del azúcar y del tabaco, 1947), próxima da “antropofagia” do brasileiro Oswald de Andrade e já recuperada na década de 70 pelo uruguaio Ángel Rama (Transculturación narrativa en América Latina): as culturas subordinadas passam a incorporar os modelos significantes das culturas dominantes, e a reelaborar a partir deles sua própria experiência histórica, acabando por produzir conteúdos e significações radicalmente novas.

Recomendo enfaticamente a leitura deste livro, especialmente seu segundo capítulo. Direi porquê. O tema desse capítulo é nada menos que a forma em que a literatura de viagens e a história natural se catalisaram mutuamente para produzir “uma forma de consciência eurocentrada global”. A história começa em 1735, data de dois fatos fundantes de toda a interpretação da autora, “novos e profundamente europeus”. Um deles foi o lançamento da primeira grande exploração científica européia, destinada a determinar a forma da Terra. Depois de muitas vicissitudes na área andina, um dos poucos sobreviventes, Charles-Marie de la Condamine, acabou descendo o Amazonas e produzindo um relatório célebre: Relation abrégié d’un voyage fait dans l’intérieur de l’Amerique Méridionale (1745). Este texto não tem fisionomia de discurso científico, mas é uma narrativa de sobrevivência, que não desdenha recorrer a nenhum dos componentes míticos que povoaram a Amazônia para os olhos europeus. Com ampla divulgação, a aventura de La Condamine se tornou o primeiro best-seller da literatura de viagens, acalentou imaginações metropolitanas e, por essa via, contribuiu para a formação de significações e de identidades.

O segundo desses fatos fundantes vincula-se diretamente aos estudiosos da problemática agrária. Trata-se da publicação, nesse mesmo ano de 1735, do Systema Naturae, do naturalista sueco Carl Linneo. É sabido que se trata de um sistema descritivo destinado a classificar todos os vegetais da Terra, conhecidos e desconhecidos, segundo seu sistema reprodutor. Mas Pratt aponta muito mais do que isso: seria, na verdade, o início de um gigantesco projeto científico e cultural europeu, consistente no intento de reduzir o “resto do mundo” às normas padronizadas de uma racionalidade ilustrada, por meio do apego a um método rigoroso de recoleção e classificação.

Com efeito, o projeto de Linneo logo se desdobra de acordo com a expansão européia, em uma verdadeira “estratégia messiânica”. Os “apóstolos de Linneo” (assim foram chamados) começaram a percorrer o mundo, ao longo das linhas e rotas dessa expansão, cumprindo fervorosamente com as tarefas classificatórias. Para Pratt, assim como a conversão religiosa foi o impulso da primeira fase da expansão européia, protagonizada pela Europa do Sul, a história natural põe em funcionamento uma nova lógica secular global, onde a Europa do Norte será predominante. Agora era possível narrar a Natureza, diz Pratt, “e o que se conta é uma história de europeus que se urbanizam e se industrializam e ao mesmo tempo se lançam pelo mundo na procura de relações de não exploração com a natureza, ainda que a estejam destruindo nos seus centros de poder (...) O naturalista naturaliza a presença e a autoridade globais da Europa burguesa”.

A história natural, então, acabou estabelecendo não apenas um paradigma de cientificidade, mas, estendendo seu ímpeto metodológico para a cultura, constituiu a própria forma de perceber as relações da Europa do Norte, ilustrada e racional, com o “resto do mundo”. Por um lado, a sistematização científica dos conhecimentos sobre a natureza nega validade aos conhecimentos “empíricos” atesourados por outras culturas e, portanto, nega essas próprias culturas, e nivela todo o planeta como espaço a ser apropriado e reorganizado desde a perspectiva da razão metropolitana. Mas, também, afirma Pratt, esse mesmo movimento se projeta dentro das fronteiras européias: trata-se de um discurso urbano, que se corresponde com a subordinação do mundo rural e com a racionalização da produção agrária, desqualificando os saberes camponeses: “o campesinato europeu passou a ser visto como apenas algo menos primitivo do que os habitantes da Amazônia”. O sistema de Linneo, diz Pratt, seria inseparável dos vastos projetos de apropriação do planeta e de disciplinamento social que acompanham a acumulação de capital.

Se entende agora porque destaquei este capítulo do livro de Mary Louise Pratt. Porém, o resto da obra é igualmente sugestivo, com o comparecimento sucessivo de diferentes figuras e narrativas. Aparece a “anticonquista”, um discurso (ou marcas em um discurso) crítico da ordem colonial, que afasta o viajante-enunciador das atrocidades observadas, às vezes para postular as virtudes de uma outra ordem (como muitas narrativas de ingleses na América Latina, críticas da ordem colonial ibérica, a partir do postulado das virtudes da colonização britânica). Outro tipo de viajante-narrador do século XIX é aquele que explicitamente assume a missão de “vanguarda do progresso”, produzindo narrativas orientadas a avaliar a potencialidade econômica dos territórios explorados, assim como a relevar a infra-estrutura disponível para os futuros empreendimentos.

No século XIX, a viagem de Alexander von Humboldt pela Hispano-américa e sua narrativa estabelecem um novo paradigma das relações sociedade-natureza, a partir da qual virão a ser imaginadas as novas nacionalidades do continente. Aqui também Pratt avança mais e contra a opinião corrente. Humboldt não seria influenciado pelo romanticismo; ao contrário, é a narrativa de Humboldt que constitui o romanticismo. Nesta radical inversão dos sentidos habituais, Pratt propõe então o romanticismo como o primeiro “efeito de refluxo” de uma área periférica (no caso, Hispano-américa em vésperas da Guerra da Independência) sobre as metrópoles européias, provocando drásticas reformulações das visões de mundo, a partir dos mecanismos antropofágicos da transculturação. Os americanos se pensaram com instrumentos europeus: Europa se pensa a si mesma desde fora. (Aliás, Pratt lembra, com Benedict Anderson, que o modelo de Estado-Nação republicano se formula a partir de um ir e vir entre América e Europa). A seguir, a autora analisa a “autoformação criolla”, através do venezuelano Andrés Bello, do cubano José Maria Heredia e do argentino Domingo Faustino Sarmiento, cujo “Facundo” tem epígrafe de Humboldt.

A leitura crítica minuciosa de Mary Louise Pratt também não esquece dos temas de gênero. Seu trabalho dedica uma atenção especial às narrativas femininas de viagem. São convocadas, entre outras, Flora Tristán e Maria Graham. Nelas, a viagem tem uma dimensão de procura de auto-realização pessoal, que se vincula de alguma forma com uma maior sensibilidade para o reconhecimento das injustiças sociais. Daí que suas narrativas adquirem um caráter altamente político.

Deixo de lado, por razões de espaço, a consideração de outros capítulos, especialmente os dedicados à África, que são empolgantes. O capítulo 3, sobre as marcas da progressiva presença branca na África do Sul em narrativas dos séculos XVIII e XIX, e o estudo sobre o relato de Richard Burton da sua chegada ao Lago Tanganika, modelo de “retórica vitoriana da descoberta”, são exemplares como análise de discurso.

E, pulando até estes anos globalizados, a viagem de Mary Louise Pratt acaba com os olhares dos viajantes desde o terraço do Sheraton San Salvador, enunciando o “lamento do homem branco”. As ilusões do progresso e da europeização do planeta acabaram. Só se divisa um Terceiro Mundo caótico, incompreensível porque carente de história e de referentes culturais, que seriam patrimônio exclusivo do Primeiro Mundo. Um formidável mecanismo de negação exime de qualquer responsabilidade os metropolitanos em relação a esse panorama: essa responsabilidade não existe, porque esses lugares não têm história. Em Gana, Alberto Moravia enxerga África como “a pré-história, quando a humanidade ainda não tinha aparecido”, um panorama “informe” como “a face de uma criança, que ainda carece de significados” (sem reparar sequer na denominação do território na geografia imperial, até 1957: Costa d’Ouro). Paul Theroux atravessa a Patagônia de trem e se irrita pela falta de significações da paisagem. Em El Salvador em guerra, a norte-americana Joan Didion só vê a escuridão e um terror que não pode ser narrado.

Em tempo: o livro de Mary Louise Pratt, lamentavelmente, não inclui análises de narrativas sobre o Brasil (nem sobre seu Canadá nativo, o que seria muito interessante); porém, se refere a três viajantes que escreveram sobre o Brasil: Charles-Marie de la Condamine, Maria Graham e Richard Burton – um tema atraente à espera de um pesquisador.

Mary Louise Pratt. Ojos Imperiales – Literatura de viajes y transculturación. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 1997, 385p.