Estudos Sociedade e Agricultura

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Leonilde Servolo de Medeiros

Catolicismo e política


Estudos Sociedade e Agricultura, 10, abril 1998: 190-194.

Leonildo Servolo de Medeiros é professora da UFRRJ/CPDA.


Numa conjuntura em que as lutas no campo se tornam novamente visíveis para o grande público, em que as entidades de representação dos “sem-terra” e dos “trabalhadores rurais” aparecem como atores significativos, é extremamente oportuna a publicação do livro De corpo e alma. Catolicismo, classes sociais e conflitos no campo, de autoria de Regina Reyes Novaes.

Enfrentando alguns dos dilemas da teoria social sobre os caminhos pelos quais é possível pensar a constituição de formas de ação e organização dos trabalhadores, a autora, tendo como universo empírico os conflitos rurais que ocorreram na Paraíba nos últimos 40 anos, procura refletir sobre o tema de constituição das classes sociais, enfatizando a noção de processo. Sob essa perspectiva, procura analisar os conflitos “como componentes de um campo de forças no qual se modificam sincrônica e diacronicamente atores, organizações e palavras de ordem” (p. 7). Ao mesmo tempo em que o faz, coloca-se o desafio de explicar o lugar ocupado pela religião e pela Igreja Católica na formação de identidades políticas, uma vez que “enfatizando as noções de processo e de experiência social abre-se espaço para a dimensão cultural, da qual a religião é parte e na qual as crenças e símbolos religiosos são matéria-prima para a construção de identidades que motivam e respaldam lutas sociais” (idem.). Por esse caminho, a autora busca entender o fato, aparentemente paradoxal, de que uma parte dos católicos se aproprie do discurso universal, próprio a essa religião, para dar sentido às ações de classe, contando com o apoio da hierarquia eclesiástica, para quem a delimitação do rebanho desconhece esse tipo de fissuras e luta.

Tendo com ponto de partida a constatação de que, nos anos recentes, especialmente no que se refere aos conflitos que envolvem disputas por terra, a linguagem religiosa tem fornecido contornos para a constituição de identidades políticas, Regina Novaes se movimenta em direções distintas, mas complementares. Trata-se, para ela, de rastrear o passado em busca quer das contradições em que estiveram e estão envolvidos os trabalhadores do campo, quer das relações que, em diversos momentos, se estabeleceram entre a dimensão religiosa e as alternativas de organização que se colocaram para esses mesmos atores sociais. Trata-se ainda de buscar os processos em cujo seio emergiram determinadas identidades e se configuraram oposições.

Com esse objetivo, são recuperados alguns momentos da trajetória da relação entre Igreja Católica e trabalhadores do campo. Com esse intuito, a autora discute a conformação das regras de dominação no interior das grandes propriedades açucareiras paraibanas (vigência da “lei da chibata”) e mostra como o catolicismo se constituiu não apenas em um reforço à ideologia dominante, mas também como experiência coletiva vivida e como base do senso comum gerado pela realidade social que informa as relações sociais no cotidiano. Por esse viés, mostra como a religião acabou por fornecer matéria-prima para diferentes formas de resistência, inclusive as que se configuraram nas Ligas Camponesas.

O rompimento das regras tradicionais de dominação gerou processos conflitivos, através dos quais se cristalizaram, no início dos anos 60, as identidades “camponeses” e “latifundiário”. Sem entrar no debate sobre a propriedade ou impropriedade teórica da utilização dessas categorias para designar determinados grupos sociais, a análise se volta para o processo que lhes deu densidade social, trabalhando-as como uma definição política que remete “à maneira pela qual os trabalhadores articularam e ordenaram experiências sociais coletivamente vividas em um processo concreto de conforto e diferenciação, em curso na religião, a partir do qual se delinearam os conteúdos e contornos de sua identidade camponesa” (p. 55). Assim, naquela conjuntura, o latifúndio não era uma propriedade com tais ou quais características: “quase como um emblema mítico – sintetizava um conjunto de normas, atitudes e comportamentos atualizados pelo conjunto dos proprietários rurais, respaldados nas instâncias de poder local” (p. 51). No polo oposto, “para ser camponês era preciso, sobretudo, dissipar o medo, enfrentar os conflitos, transpor o espaço do poder privado do latifúndio e ocupar espaços públicos...” (p. 53). Analisando a constituição desta identidade, a autora aponta como um de seus elementos fundantes a concepção de que a luta se dava “sob os poderes de Deus” em busca da “lei da nação”, indicando um determinado nível de integração entre a luta desenvolvida e a religiosidade popular. Em que pese a intervenção da Igreja no processo de organização dos trabalhadores e a emergência dos “sindicatos de padres” por oposição às Ligas Camponesas, estas traduziram um certo “entusiasmo pela base” e puderam utilizar politicamente e com eficácia uma religiosidade preexistente.

A repressão e a desmobilização que se seguiram ao golpe militar de 1964 foram acompanhadas da introjeção do medo e descristalização da identidade “camponês”. No entanto, paralelamente, também reorganizou-se o sindicalismo e constituiu-se um determinado padrão de comportamento na relação das entidades sindicais com os conflitos, guiado pela prudência, pela busca do cumprimento da lei, pela utilização de expedientes administrativos, exemplificados pelo encaminhamento de ofícios, relatórios, denúncias, não retomando as intensas mobilizações do período que precedeu ao golpe. Nesse processo, há uma mudança de peso no aval religioso. A Igreja Progressista apóia os sindicatos, mas não vai diretamente ao campo. Ao mesmo tempo, difunde-se a categoria trabalhador rural que passa a identificar o trabalhador sindicalizado. A “lei do sindicato” – ainda que de forma ambígua e contraditória – aparece “como potencialmente construtora do espaço público em contraposição ao poder privado dos patrões” (p. 116).

É em meados dos anos 70, quando se identifica a expulsão de trabalhadores dos engenhos e usinas e revigoram-se os conflitos pautados na resistência na terra, que a ação da Igreja muda de caráter. Fruto da renovação nas concepções no seu interior, um de seus segmentos procura se realizar, na prática, a tese da “Igreja-povo de Deus”. Com isso, abre-se um novo espaço de organização, através das comunidades eclesiais de base. O resultado é que sacraliza-se a política e, de certa forma, garante-se a vigência de um discurso com características proféticas e a construção de um tipo particular de ética e de identidade. Isso se dá concomitantemente a crises e rupturas que predispõem uma parcela dos trabalhadores a perder o medo e a resistir, seja através da “lei do sindicato”, seja através da “lei da necessidade”, expressão cunhada no interior desse discurso profético para designar a ativação e/ou criação de concepções de direitos dos trabalhadores. A Igreja, nesse momento, teve papel importante na transformação dos conflitos que emergiam em fatos políticos, obrigando diversos setores da sociedade a se posicionar com relação a eles e constituindo um novo patamar para as lutas.

Discutindo como, nos anos 80, emergem novos atores e mediadores (agentes de pastoral, organizações legais etc.), a autora busca ressaltar como a ação da Igreja favoreceu a explicitação de determinados recortes de classes, integrados nas experiências de resistência e ofereceu uma nova linguagem, através da qual essas contradições puderam se expressar. Indica ainda que essa presença e a configuração de novas identidades podem ser lidas através da incapacidade do sistema político de absorver as reivindicações dos trabalhadores do campo.

Paralelamente são discutidos alguns dos impasses da ação eclesial no sentido de constituir a unidade dos católicos para além das divisões internas da Igreja e das suas opções de ação numa sociedade dividida.

São inúmeras as contribuições que o livro de Regina Novaes traz. Além do enriquecimento da bibliografia sobre os movimentos sociais rurais, é um importante estudo sobre a ação da Igreja no campo, a partir de uma experiência particular, mas extremamente significativa, posto que desvenda múltiplas dimensões da prática dessa instituição, quer no plano dos significados da ação da Igreja institucional, que no plano da religiosidade popular.

Além disso, é uma análise seminal das lutas no campo, ultrapassando polarizações comuns e buscando refletir sobre como os conflitos são elaborados na experiência dos trabalhadores mobilizados. Dentro dessa linha, fornece pistas extremamente ricas para se conhecer um tema muito pouco explorado na literatura no campo das ciências sociais, que é o das características do sindicalismo que se constitui no pós-64.

Poderíamos chamar a atenção para outros aspectos em que o trabalho traduz avanços significativos no conhecimento. No entanto, gostaríamos de ressaltar o que, a nosso ver, é o mais importante e faz dele um trabalho modelar e de leitura fundamental, inclusive, para um público mais amplo que o dos especialistas em “questões agrárias“ ou “estudos sobre religião“: a sua dimensão teórico-metodológica. Utilizando-se das contribuições da historiografia social inglesa contemporânea, combinada com uma sólida formação antropológica, o estudo abre estimulantes perspectivas para se pensar a formação de classes e a de identidades, através do resgate das experiências dos sujeitos, referentes a normas, padrões, concepções morais e religiosas que, em determinadas conjunturas, podem alimentar resistências. Como o título do trabalho indica e a autora assinala ao final do trabalho, “no que diz respeito às lutas pela terra, a construção de identidades mobilizadoras entre trabalhadores do campo – que podem ser lidas através da ótica das ‘classes em ação‘ – envolvem questões do corpo e da alma” (p. 212).

O texto foi apresentado originalmente em 1987, como tese de doutorado, ao Departamento de Ciência da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, mas aparece agora revisto e acrescido de um novo capítulo e de um posfácio, onde é apresentada uma síntese das lutas no campo no Brasil, enfatizando suas dimensões simbólicas, a partir do relato da trajetória de três mulheres, em três tempos diferentes, mas não necessariamente lineares e sucessivos, conformando identidades diversas: o tempo de Elizabeth Teixeira (o dos “camponeses”), de margarida Maria Alves (o dos “trabalhadores rurais”) e de Diolinda Alves de Sousa (o tempo dos “sem-terra”).

Regina Reyes Novaes. De corpo e alma: catolicismo, classes sociais e conflitos no campo. Rio de Janeiro, Graphia, 1997, 238p.