Estudos Sociedade e Agricultura

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Ramón García Fernández

Concentração da riqueza e crescimento econômico no Litoral Norte paulista (1778-1836)


Estudos Sociedade e Agricultura, 10, abril 1998: 165-189.

Resumo: As vilas de São Sebastião e Ubatuba, no Litoral Norte do Estado de São Paulo, têm condições geográficas similares e suas histórias são parecidas em termos gerais. Todavia, antes do "pequeno ciclo do açúcar paulista" do fim do século XVIII e começos do XIX, a riqueza era mais concentrada em Ubatuba do que em São Sebastião, conforme dados encontrados nas Listas Nominativas de Habitantes (censos levantados nas vilas paulistas aproximadamente de 1765 a 1835, que constituem a fonte dos dados de nossa pesquisa)[1] . Sustentamos neste artigo que isso deve permitir explicar as diferenças na organização da lavoura canavieira nas duas localidades, assim como no crescimento econômico havido nelas (grande em São Sebastião, modesto em Ubatuba).  Por sua vez, sugerimos que o impacto desigual da lavoura cafeeira nos dois municípios (Ubatuba apresentou taxas muito maiores de crescimento), também esteve condicionado pela divergência nas trajetórias anteriormente percorridas.

Palavras-chave: Estado de São Paulo: Litoral Norte /  Concentração de Riqueza / Estado de São Paulo: História

Abstract: Concentration of wealth and economic growth in São Paulo’s Northern Coast, 1778-1836. This paper focuses on economic growth in São Sebastião and Ubatuba, two towns of the Northern Coast of the State of São Paulo, between 1778 and 1836.  Both towns have analogous geographical characteristics and had similar histories up to the beginning of the period  here considered. However, favourable conditions in the international sugar market by the end of the XVIIIth century led to an increase in the wealth of São Sebastião but not Ubatuba. Some years later, the beginning of coffee production in São Paulo allowed a stronger economic growth in Ubatuba than in São Sebastião. It is here suggested that the differences in the concentration of wealth in both towns may help to explain their different evolution; in these two cases, a smaller concentration was observed  in the town with better economic performance.

Key words: State of São Paulo; concentration of wealth; economic growth.

Uma versão deste artigo foi apresentada no II Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE), realizado em Niterói em outubro de 1996. O autor agradece a José Flávio Motta pelo estímulo e aos pareceristas pelos comentários.

Ramón García Fernández é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná.


As vilas de São Sebastião e Ubatuba, no Litoral Norte do Estado de São Paulo, têm condições geográficas similares e suas histórias são parecidas em termos gerais. Todavia, antes do “pequeno ciclo do açúcar paulista” do fim do século XVIII e começos do XIX, a riqueza era mais concentrada em Ubatuba do que em São Sebastião, conforme dados encontrados nas Listas Nominativas de Habitantes (censos levantados nas vilas paulistas aproximadamente de 1765 a 1835, que constituem a fonte dos dados de nossa pesquisa).[1] Sustentamos neste artigo que isso deve permitir explicar as diferenças na organização da lavoura canavieira nas duas localidades, assim como no crescimento econômico havido nelas (grande em São Sebastião, modesto em Ubatuba). Por sua vez, sugerimos que o impacto desigual da lavoura cafeeira nos dois municípios (Ubatuba apresentou taxas muito maiores de crescimento), também esteve condicionado pela divergência nas trajetórias anteriormente percorridas.

 

Antecedentes: o Litoral Norte de São Paulo antes do renascimento agrícola

O Litoral Norte do Estado de São Paulo[2] consiste numa estreita faixa de terra, com superfície de aproximadamente 2.000 km2, incluindo a parte insular, localizada entre o Oceano Atlântico e a Serra do Mar, a qual alcança o litoral em várias ocasiões ao longo dos mais de 100 km de comprimento deste; a vizinhança da Serra marca toda a região,[3] bastante acidentada. O Litoral Norte paulista não esteve entre as áreas da Capitania ocupadas logo no começo da colonização portuguesa, mas poucos anos depois, com a pacificação dos índios tupinambás e com a expulsão dos franceses, esse assentamento tornou-se viável. Todavia, seu desenvolvimento foi relativamente lento. O povoamento de ambas localidades teria começado efetivamente por volta do ano de 1600, sendo que as então povoações de São Sebastião (mais ao Sul) e Ubatuba (ao Norte) foram elevadas à categoria de vilas na década de 1630.

O estudo da história da região antes de 1765 (início da elaboração das Listas Nominativas) encontra-se dificultado pela escassez de documentos, ao ponto que já se disse que, após a fundação de Ubatuba “...os cento e quarenta anos seguintes foram mergulhados em trevas” (Cerqueira, 1966: 11). Ernani Bruno (1966: 44, 70 e 71) somente destaca que foram fundadas duas “fábricas de açúcar” na ilha de São Sebastião no primeiro quartel do século XVII, das quais afirma que no mínimo uma delas, o engenho da Praia do Barro, funcionava na metade do século XVII, com uma escravatura numerosa. Outra atividade importante para a economia do Litoral Norte cujas origens se localizam nesse período é a pesca da baleia; a primeira concessão foi outorgada em 1729, sendo a Armação da Ilha de São Sebastião efetivamente instalada em 1734 (Ellis, 1969: 50).

 

O renascimento agrícola e o desenvolvimento da lavoura canavieira no Litoral Norte

A agricultura nunca tinha desempenhado um papel dinâmico em São Paulo[4] até o denominado “Renascimento Agrícola” no Brasil (Prado Jr., 1980, cap. 10). Passaria então a Capitania por uma importante fase de expansão centrada na lavoura canavieira (Petrone, 1968: 14-5).[5] Esta atividade concentrou-se fundamentalmente em três regiões: o Vale do Paraíba, o Litoral Norte e o chamado “Quadrilátero do Açúcar”, região delimitada pelas vilas de Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí (Petrone, 1968:  24). No quadro dessa melhora da situação econômica registrou-se, nas últimas décadas do século XVIII, um elevado crescimento da população livre na Capitania, assim como um aumento do contingente escravo.[6]

Sem dúvida, o Quadrilátero foi a área açucareira por excelência da Capitania paulista, registrando-se ali a presença de uma produção relativamente importante já na década de 1770, atividade que continuaria sendo desenvolvida até a década de 1840. O Litoral Norte e a região vale-paraibana começaram a apresentar uma lavoura canavieira mais significativa na década de 1780,[7] atingindo o ponto mais alto de suas produções por volta do ano 1800 para decaírem posteriormente (embora o Litoral Norte tenha continuado produzindo açúcar e aguardente, atividade que quase desapareceria no Vale).[8]

As Listas Nominativas anteriores a 1798 não trazem dados de produção, de modo que o impacto da lavoura canavieira na economia só pode ser comprovado indiretamente, e a utilização da evolução do número de escravos como proxy da variação da riqueza se constitui em uma alternativa aceitável.[9] Nossos levantamentos demonstram que, na época anterior ao aumento da produção açucareira, a situação dos dois municípios do Litoral Norte era semelhante no que diz respeito à participação dos escravos na população. O impacto do açúcar seria, porém, diferente em cada uma das vilas. São Sebastião apresentaria um rápido processo de enriquecimento (cujo ponto de inflexão pode ser localizado aproximadamente no ano de 1785), enquanto em Ubatuba a situação manter-se-ia praticamente idêntica à dos primeiros censos existentes. Deve ser destacado que o açúcar da região contava necessariamente com algumas vantagens comparativas com respeito ao produzido serra acima, pela maior facilidade no transporte; segundo Petrone “...a má conservação das estradas, os perigos da Serra do Mar e as más condições de travessia da Baixada Santista, prejudicaram de maneira extraordinária o comércio de açúcar...” acrescentando que “...esse problema não afetava o açúcar produzido na ‘marinha’...” (1968: 186).

Os dados da Tabela 1 mostram a divisão da população segundo condição nas duas vilas estudadas[10]. Verifica-se que a participação dos escravos em ambas era relativamente semelhante (entre 20 e 25%) até 1785, momento no qual os escravos em São Sebastião ultrapassam os 30%, sendo que seu peso continuaria crescendo até estabilizar em torno dos 40% a partir de 1794.[11]  Ao contrário, em Ubatuba essa situação inicial manteve-se, e a participação dos escravos só superaria o limite de 25% em 1820, início da fase de expansão cafeeira na localidade, como veremos posteriormente.[12]

 

Tabela 1. Participação dos segmentos em Ubatuba e São Sebastião no total da população (%).

 

São Sebastião

Ubatuba

Ano

Livres %

Escravos %

Ano

Livres %

Escravos %

1777

74,46

25,54

1776

78,61

21,39

1778

75,12

24,88

1778

78,87

21,13

1780

75,46

24,54

1783

76,88

23,12

1782

75,51

24,49

1788

75,73

24,27

1785

68,98

31,02

1790

76,46

23,54

1788

66,16

33,84

1791

76,19

23,81

1790

64,52

35,48

1793

77,98

22,02

1792

68,49

31,51

1796

77,39

22,61

1794

60,95

39,05

1797

75,47

24,53

1796

59,65

40,35

1798

75,23

24,77

1798

61,04

38,96

1801

77,72

22,28

Fonte: AESP - Listas nominativas.

Ao mesmo tempo, verificou-se um grande crescimento da população em São Sebastião, e outro mais moderado em Ubatuba: na primeira vila, a população total cresceu entre 1777 e 1799 à taxa média anual de 3,88%, a que pode ser dividida entre um crescimento de 2,89% para os livres e um de 5,98% para os escravos, mas nesta última localidade a taxa geométrica de crescimento anual entre 1776 e 1801 foi de 2,01% para os livres, de 2,22% para os escravos e de 2,06% para o total da população.[13] Evidentemente, a diferença do ritmo de aumento demográfico aponta para o maior crescimento econômico em São Sebastião no período focalizado graças à lavoura canavieira.[14] Resulta significativo observar que em 1798, primeiro ano em que aparecem dados de produção nas Listas Nominativas, a produção de açúcar em São Sebastião foi de 22.112 arrobas e a de aguardente foi de 245,6 pipas,[15] enquanto que em Ubatuba foram elaboradas apenas 191 arrobas de açúcar e 41 pipas de aguardente, conforme verificamos na Tabela 2.

 

Tabela 2. Produção de açúcar e aguardente no Litoral Norte (1798-1836).

 

São Sebastião

Ubatuba

Ano

Açúcar

(arrobas)

Aguardente

(pipas)

Açúcar 

(arrobas)

Aguardente

(pipas)

1798

22.112,0

245,6

191,0

41,0

1801

7.500,5

204,6

268,0

35,4

1803

7.576,5

158,6

-

37,4

1805

5.920,0

146,0

-

50,0

1808

7.659,0

218,5

-

10,7

1810

5.265,0

271,7

-

17,9

1813

5.381,0

491,6

(b)    -

(b)  105,9

1815

11.322,0

497,2

(b)  371,0

(b)   68,3

1817

6.589,0

322,7

(b)  263,0

(b)   45,5

1821

(a)  11.509,0

(a)  715,2

(b)  335,0

(b)   58,3

1824

(a)  12.370,0

(a)  253,0

(b)  252,5

(b)   29,1

1826

(a)   7.794,0

(a)  289,5

(b)  300,0

(b)   24,3

1828

5.320,0

158,0

150,0

13,7

1836

1.255,0

191,4

-

11,0

(a): dados de Vila Bela de 1820, 1823 e 1825, respectivamente.

(b): dados de 1814, 1816, 1818, 1820, 1822 e 1825, respectivamente.

Fonte: AESP – Listas Nominativas (alguns dados corrigidos conforme explicado em Fernández, 1992: 168-74).

O sucesso da lavoura canavieira em São Sebastião ocorreu através de uma forma de organização da produção diferente da que a literatura aponta como característica para o açúcar paulista. Com efeito, a cana não era plantada apenas no pequeno número de engenhos existentes na região mas, ao contrário, era cultivada através de uma vasta rede de agricultores não-proprietários de engenhos, geralmente denominados lavradores na literatura[16] (para maiores detalhes, veja-se Fernández, 1996). Os dados da Tabela 3 mostram que o peso destes produtores foi muito grande em São Sebastião, mesmo quando a lavoura canavieira tinha decaído em relação aos valores de 1798. Veja-se que eles representavam mais de dois quintos dos domicílios (ou fogos, na denominação da época) em 1798; e embora seu peso tenha caído, podemos estimar que entre 1803 e 1821 tenha oscilado entre 10 e 15% dos domicílios[17] (em contraposição, em Ubatuba os fogos nos quais se plantava cana sem engenho ou engenhoca representavam apenas 1,6% do total em 1798 e 0,2% em 1818; perceba-se que os engenhos e engenhocas representavam 2,6% dos domicílios em 1798 e 1,8% em 1818, mais do que os lavradores em ambas as datas).[18]

As evidências disponíveis sugerem que especialmente em 1798, período de auge da lavoura canavieira sebastianense, grande parte das atividades produtivas da vila girava em torno do açúcar: registramos em nosso levantamento que, do total dos chefes de domicílio escravistas, os proprietários de engenhos ou engenhocas representavam 11,7% e os lavradores 56,9%. Inclusive um número significativo entre aqueles que não tinham escravos dedicava alguma parte de seu tempo a esta atividade; com efeito, 32,4% dos fogos não-escravistas plantava cana (os que declaravam alguma atividade agrícola, comercializada ou não, representavam 81,1%).[19]

 

Tabela 3. São Sebastião: participação dos produtores de cana no total dos domicílios.

 

Ano

Proprietários de
engenhos ou
engenhocas (%)

Outros domicílios
nos que se
plantava cana (%)

Média de
lavradores
por engenho

1798

              5,11

          43,08

              9,4

1801

              4,31

          27,55

              7,0

1803

              4,22

          13,58

              3,4

1805

              4,27

          12,82

              3,4

1808

              3,37

          10,11

              3,6

1810

              3,99

            6,80

              1,7

1813

              3,94

            7,56

              2,0

1815

              4,18

          13,96

              3,2

1817

              3.49

            4,79

              1,1

1821(a)

              5,04

          14,35

              3,0

1824(a)

              2,50

            6,57

              2,0

1826(a)

              3,38

            3,82

              1,2

1828

              2,02

            2,85

              1,2

1836

              1,72

            0,49

              0,2

(a) dados de Vila Bela de 1820, 1823 e 1825, respectivamente.

Fonte: AESP – Listas Nominativas.

 

Os dados da Tabela 4 mostram que, especialmente, no primeiro ano para o qual temos registros de produção, indivíduos cujas posses podem ser qualificadas de relativamente modestas participavam da rede produtiva tecida em volta dos engenhos (a posse média de escravos era menor entre os lavradores do que no total dos domicílios da vila, tanto para o conjunto de chefes de fogo como quando se considera apenas os domicílios escravistas).

 

Tabela 4. São Sebastião: média de escravos em algumas atividades selecionadas.

Ano

(a)

(b) *

(c)

(d)

(e)

(f)

1798

   29,0

       9,4

    4,0

    2,3

      6,8

       3,0

1808

   26,0

       8,5

    7,2

  N.D.

      6,8

N.D.

1817

   34,7

       9,9

    5,6

**5,4

      6,4

       2,6

1828

   31,2

     11,4

    8,3

  N.D.

      5,9

N.D.

1836

   39,2

     14,5

    6,3

**4,8

      6,4

       2,5

(a) proprietários de engenhos de açúcar; b) proprietários de engenhos de aguardente; c) lavradores de cana escravistas; d) todos os lavradores de cana; .e) todos os proprietários de escravo; f) todos os domicílios ; N. D.) não disponível.

* inclui engenhos sem atividade especificada; ** existia apenas um lavrador não-escravista nos censos de 1817 e de 1836.

Fonte: AESP – Listas Nominativas.

 

Embora o ano de 1798 responda pela maior proporção de lavradores encontrada em nossos levantamentos (Tabela 3), estes continuariam representando uma parcela ponderável dos agricultores de São Sebastião. A mesma tabela mostra, por exemplo, que ainda em 1821 os domicílios que produziam açúcar sem terem engenhos correspondiam a 14,35% dos existentes nessa vila. Não podemos, todavia, falar de uma relação estável ligando, em média, cada engenho com o número de lavradores a ele vinculados, pois as oscilações no mercado açucareiro fizeram com que esta cifra variasse muito. Ou seja, os dados sugerem que em períodos de relativa redução da produção, o ajuste do volume obtido passaria por um plantio menor de cana nos domicílios sem engenhos. A Tabela 3 mostra a existência de um máximo na quantidade de lavradores por engenho em 1798, um declínio subseqüente com relativa estabilidade de 1808 até 1821, grosso modo, concluindo com uma fase de queda até 1836.[20]

Esta situação leva a considerar quais motivos podem explicar a diferença de desempenho da lavoura açucareira em duas localidades em princípio tão semelhantes. Nos escassos dados existentes, um que chama a atenção é a diferença na concentração de riqueza entre elas. Apontou-se na Tabela 1 que o peso dos escravos na população era semelhante em ambas as vilas em 1778, (ligeiramente maior na meridional). Todavia, verifica-se nas Tabelas 5 e 6 que a propriedade de escravos estava muito menos concentrada em São Sebastião do que em Ubatuba no período anterior ao boom da lavoura açucareira. Vale a pena destacar que o valor do índice de Gini[21] naquela localidade é o menor registro encontrado em nossos levantamentos. Isso é reforçado pelo valor baixo do Gini ampliado, apenas maior que o de São Sebastião em 1828. Por sua vez, embora a propriedade média de escravos ao se considerar todos os fogos na vila meridional (1,44) tenha sido maior que a de Ubatuba até 1828, entre os escravistas a distribuição de cativos era mais igualitária, e desse modo o valor da posse média entre os proprietários (4,35) foi o menor encontrado em nossas pesquisas. Talvez mais significativo resulte o baixo valor da posse mediana:[22] vemos que a metade dos cativos encontrava-se em conjuntos de sete indivíduos ou menos, situação que não ocorria em Ubatuba, e que não se repetiria em nenhuma das duas localidades nem nos momentos de relativa estagnação das atividades econômicas. Observe-se também o tamanho bastante modesto do maior conjunto de cativos de São Sebastião em 1778: apenas 25 indivíduos.

Tabela 5. Estrutura de posse de escravos na vila de São Sebastião,  Litoral Norte: principais indicadores estatísticos.

Ano

Total de proprie-

tários

Total de chefes de fogo

Total de escravos

Média nos fogos com escravos 

Média de todos os fogos

Mediana da posse

Posse mediana

Índice de Gini

Índice de Gini ampliado

Maior conjunto de escravos

1778

   167

    505

  727

4,35

1,44

3

       7

0,4737

0,8260

    25

1788

   217

    584

1.340

6,18

2,29

3

     13

0,6023

0,8522

    97

1793

   229

    625

1.515

6,62

2,42

3

     13

0,6101

0,8571

  110

1798

   350

    805

2.385

6,81

2,96

3

     15

0,6154

0,8328 

  130

1808

   330

    831

2.235

6,77

2,69

3

     14

0,6016

0,8418

    91

1817

   415

1.007 

2.657

6,40

2,64

3

     13

0,5988

0,8347

  143

1828

   474

1.190 

2.784

5,87

2,34

3

     10

0,5546

0,8226

  101

1836

   473

1.242 

3.045

6,44

2,45

3

     12

0,5956

0,8460

  140

Fonte: AESP – Listas Nominativas.

Tabela 6. Estrutura de posse de escravos na vila de Ubatuba,  Litoral Norte: principais indicadores estatísticos.

Ano

Total de proprie-
tários

Total de chefes de fogo

Total de escravos

Média nos fogos com escravos

Média de todos os fogos

Mediana da posse

Posse mediana

Índice de Gini

Índice de Gini ampliado

Maior conjunto de escravos

1778

     64

    269

  362

5,66

1,35

3

      11

0,5622

0,8958

    49

1787

     88

    343

  443

5,03

1,29

3

      10

0,5511

0,8848

    40

1798

   105

    379

  513

4,89

1,35

3

        8

0,5486

0,8749

    47

1808

   105

    415

  518

4,93

1,25

3

        8

0,4961

0,8725

    41

1818

   156

    546

  721

4,62

1,32

3

        8

0,5202

0,8629

    44

1828

   245

    727

1.748

7,13

2,40

4

      16

0,5974

0,8643

    87

1836

   315

    846

2.661

8,45

3,15

4

      22

0,6345

0,8639

  140

Fonte: AESP – Listas Nominativas.

 

A brusca mudança em todos os indicadores 10 anos mais tarde, já em pleno auge da lavoura açucareira e antes das restrições de Lorena, sinaliza o rápido crescimento que esta vila passou, o qual contrasta fortemente com a relativa estagnação do município setentrional. Resulta importante voltar aqui à Tabela 1, pois podemos verificar nela o caráter gradual e sistemático do crescimento em São Sebastião, afastando o receio de que a comparação das Tabelas 5 e 6 tivesse sido feita em anos atípicos.[23]

Evidentemente, o aumento da riqueza verificado nesse período tão curto mostra que os moradores de São Sebastião, especialmente seus senhores de engenho, souberam aproveitar o estímulo propiciado pela conjuntura internacional favorável, o que deve ter exigido solucionar a organização da produção canavieira, problema em si não trivial. Podemos entender que quando a melhor utilização da capacidade instalada de um engenho qualquer exija uma quantidade de cativos superior àquela que o seu dono tenha ou possa adquirir, nesse caso a decisão mais adequada seria a de reduzir ao mínimo a ociosidade dos equipamentos, conseguindo cana fornecida por terceiros sem recursos para construírem engenho próprio. Dado um certo tamanho de engenho, quanto menor o número de escravos de seu proprietário, maior será sua necessidade de mão-de-obra de terceiros. Por outro lado, quanto menos recursos tiverem estes, maior precisará ser o seu número para atingir a quantidade de trabalho que garanta a melhor utilização do equipamento. Não é necessário, além disto, que as pessoas empregadas nessa atividade sejam exclusivamente escravos; em regiões com abundância de homens livres relativamente pobres, estes, junto com suas famílias, podem responder por boa parte do trabalho exigido. Logicamente, na medida em que o tamanho dos engenhos variar, o total de mão-de-obra requerido alterar-se-á em consonância.

Pode se postular, tentando interpretar os dados de São Sebastião e à luz destas reflexões gerais, que o significativo aumento da demanda de açúcar em um período muito curto excedeu a capacidade de investimento em escravos dos senhores de engenho (ou daqueles que viessem construí-los nesse período), o que os impediu de cultivar –com terras e escravos próprios apenas– quantidade de cana necessária para o aproveitamento integral da capacidade de suas unidades produtivas. Isto abriu espaço para que outros indivíduos fornecessem a matéria-prima que os donos de ditas instalações precisavam, conformando-se assim essa estrutura atípica na Capitania. Destaque-se, outrossim, que quanto a tamanho e capacidade produtiva, os engenhos do Litoral Norte parecem ter sido semelhantes à média dos existentes na Capitania, embora bastante menores do que os característicos do açúcar nordestino (Fernández, 1992: 203-6).

Quanto a Ubatuba, a modesta taxa de crescimento da população cativa e a manutenção, grosso modo, da proporção desta no conjunto da população entre 1778 e o final do século XVIII não sugerem que as restrições de Lorena possam ser responsabilizadas por terem impedido a consolidação de uma economia açucareira particularmente importante. Chamamos a atenção para o fato de que menos de 5% dos domicílios desta vila voltavam-se à cana-de-açúcar em 1798, e aqueles que o faziam dedicavam-se especialmente ao fabrico de aguardente; nesse momento a produção de alimentos, sobretudo de farinha de mandioca, representava a ocupação principal de seus agricultores.

 

O Litoral Norte e o auge do café

A combinação das restrições às exportações e a reversão da conjuntura internacional levaram à decadência do açúcar sebastianense em relação ao pico do fim do século XVIII. A relativa estabilização posterior, com uma ligeira recuperação entre 1813 e 1824, aproximadamente (Tabela 2) permitiu apenas um modesto crescimento da população: entre 1799 e 1825 a população total cresceu à taxa geométrica de 0,80% ao ano, sendo que os homens livres apresentaram uma taxa de 0, 89% e os cativos 0, 66%. Por sua vez em Ubatuba entre os anos de 1798 e 1814 (anos que delimitam um período ao longo do qual a participação dos escravos na população desta vila foi caindo de forma contínua, evidenciando relativa estagnação, conforme a Tabela 1) a população total cresceu a uma taxa de 2,01% ao ano, correspondendo 2,42% aos livres e 0,56% aos cativos.[24]

A partir dessa última data verificou-se na vila setentrional um período de significativo crescimento econômico; o peso dos escravos passou de 19,71% dos habitantes em 1814 para 41,56% em 1836 (Tabela 1). Nesse período a população total aumentou à taxa de 3,75%, sendo que os livres o fizeram a 2,27% ao ano e os escravos à surpreendente taxa de 7,33% ao ano. E sem dúvida o fator por trás desta prosperidade foi o desenvolvimento da lavoura cafeeira. Os dados das Tabelas 8 e 9 mostram que mesmo quando a produção de café era uma atividade pouco importante, o volume colhido em Ubatuba era maior que o de São Sebastião, superioridade que se manteve ao longo de todo o período estudado. Mais ainda, vale destacar que em 1798 havia mais chefes de fogo produzindo café do que cana naquela vila.

A diminuição da importância da cana-de-açúcar foi acompanhada, em linhas gerais, pelo crescimento do café. Todavia, esse processo foi diferente nas duas vilas, como já dissemos. Os dados da Tabela 7 mostram que em 1798 em Ubatuba os agricultores voltavam-se fundamentalmente à produção (comercial ou não) do que aqui denominamos “outras lavouras”, com participações semelhantes do café e da cana entre os proprietários (reduzidas) e entre os não-proprietários (desprezíveis). A partir desse momento a vila setentrional assistiu a uma queda contínua da percentagem de fogos envolvidos no plantio de cana e de outras lavouras, enquanto um número crescente de agricultores voltava-se ao café, ao ponto de que já em 1818 dedicava-se a esta lide aproximadamente a metade dos chefes de fogo escravistas na agricultura. Este processo continuaria, de modo que em 1836 praticamente a totalidade dos chefes de fogo na agricultura plantavam a rubiácea.

 

Tabela 7. Produção de café no Litoral Norte (1798-1836).

 

Ano

São Sebastião

Ubatuba

 

(arrobas)

(arrobas)

1798

                24,5

                94,9

1801

                35,0

              261,1

1803

                59,0

              447,1

1805

                50,0

              682,5

1808

              114,0

              567,2

1810

              167,0

              511,0

1812

              N. D.

              717,0

1813

              117,0

       (b)   991,0

1815

              161,0

       (b)   776,5

1817

              168,0

       (b)   509,9

1821

      (a)   981,0

     (b)  1.445,5

1824

     (a) 1.639,0

     (b)  3.307,7

1826

     (a) 5.575,0

    (b) 11.408,0

1828

           8.238,0

         14.796,0

1830

               N.D.

         14.094,0

1836

         23.515,0

         37.181,3

N. D.: não disponível.

(a): dados de Vila Bela de 1820, 1823 e 1825 respectivamente; (b): dados de 1814, 1816, 1818, 1820, 1822 e 1825, respectivamente.

Fonte: AESP – Listas Nominativas; alguns dados corrigidos conforme explicado em Fernández (1992:  168-74).

 

Enquanto isso, o predomínio inicial da lavoura açucareira em São Sebastião foi sendo paulatinamente modificado, verificando-se um aumento na produção das outras lavouras nos censos de 1808 e 1817 (Tabela 7). A deterioração da qualidade das informações apresentadas nas listas no ano de 1817, evidenciada pela explosão dos agricultores com plantios não-especificados nas duas vilas, impõe cautela nos comentários sobre a evolução das atividades agrícolas; todavia, parece razoável interpretar que os não-proprietários de escravos abandonaram massivamente a produção de cana, cultura que ficou virtualmente restrita aos senhores de engenho e a uns poucos lavradores escravistas, o que explica o crescimento da média de cativos dos que se dedicavam a ela (Tabela 4). O papel desempenhado pelo café em 1817 era ainda bastante modesto na vila meridional, mas a partir desta data seu crescimento seria contínuo: aproximadamente a metade dos proprietários com atividade especificada o cultivavam em 1828 em São Sebastião, e seria já claramente a lavoura dominante em 1836. Esse processo foi acompanhado em todo o Litoral Norte por mudanças semelhantes na média de escravos possuídos pelos cafeicultores. As Tabelas 8 e 9 mostram que esta variável teve uma queda nas duas vilas entre 1798 e 1817/8, para aumentar desse momento até 1836, descrevendo uma curva em forma de “U”.

 Tal evolução nos leva a sugerir um caminho provável sobre a difusão do café na região. Inicialmente o café teria sido uma atividade à qual alguns (poucos) agricultores, em geral relativamente abastados, voltavam-se em forma complementar (Tabelas 8 e 9).

O retrocesso da atividade canavieira deve ter se traduzido, basicamente em São Sebastião, como uma redução da demanda, por parte dos engenhos, da cana produzida por terceiros. A opção que se apresentava para estes lavradores era a de continuar com a produção de alimentos, comercial ou não, e das outras lavouras comerciais. Entre elas, o café deveria aparecer, para alguns, como uma alternativa promissora. O ingresso destes indivíduos relativamente mais pobres no grupo dos cafeicultores pode explicar a queda evidenciada no tamanho médio dos conjuntos de escravos alocados nesta atividade na fase de seu deslanchar. Parece razoável postular que, em conseqüência, o sucesso desta cultura, evidentemente influenciado pelo aumento dos preços verificado por volta de 1820 (Fernández, 1992: 183-6), permitiu um duplo movimento: por um lado, enriqueceu quem a ela se dedicava; por outro, motivou a entrada daqueles que ainda não tinham se sentido atraídos por ela. Isto convergiu no aumento tanto do total de produtores na atividade quanto da sua média de escravos, a qual cresce entre os proprietários nas duas vilas no período de 1817/8 a 1828, continuando a fazê-lo em 1836, assim como também entre todos os chefes de fogo na atividade quando comparamos 1817/8 com 1836 (Tabelas 8 e 9).

Tabela 8. São Sebastião, Litoral Norte: participação dos chefes de fogo cuja ocupação se encontrava na agricultura, classificados segundo o tipo de atividade agrícola.

 

Ano/Atividade

1798

1798

1808

1817 (a)

1817(a)

1828

1836

1836

 


Escra-

vistas

Não-
escra-

vistas


Escra-

vistas


Escra-

vistas

Não-
escra-

vistas


Escra-

vistas


Escra-

vistas

Não
escra-

vistas

Só cana (%)

      78,5

     47,4

    37,1

    28,7

     0,4

    9,1

       2,1

      0,3

Só café (%)

        0,4

           -

      3,8

      2,1

     1,6

  27,4

     77,9

    79,8

Cana e café (%)

        1,9

       0,7

      1,1

         -

         -

    6,9

       7,1

          -

Outras lavouras (%)

      16,9

     42,6

    54,6

    21,0

   27,3

  10,0

       3,7

      5,4

Não especifica (%)

           -

           -

      1,9

    46,1

   66,0

  46,0

       9,2

    14,2

Outras (%)

        2,3

       9,3

      1,5

      2,1

     4,7

    0,6

           -

      0,3

Total (n. absoluto)

       266

      270

     264

     286

    256

   350

      326

     372

(a): Obs.: “Só cana” e “só café” indicam que o agricultor não plantava esses dois produtos em forma conjunta, e que podia plantar algum outro tipo de produto; “outras lavouras” indica que não plantava nem cana nem café.

Fonte: AESP – Listas Nominativas. 

 

Tabela 9. Ubatuba, Litoral Norte: participação dos chefes de fogo cuja ocupação se encontrava na agricultura, classificados segundo o tipo de atividade agrícola.

 

 

Ano/Atividade

1798

1798

1808

1818

1818

1828

1836

1836

 


Escra-

vistas

Não-
escra-

vistas


Escra-

vistas


Escra-

vistas

Não-
escra-

istas


Escra-

vistas


Escra-

vistas

Não
escra-

vistas

Só cana (%)

12,6

1,6

3,2

5,6

-

0,5

-

-

Só café (%)

10,3

0,5

32,6

47,3

20,8

85,0

78,3

66,4

Cana e café (%)

2,3

-

4,2

2,1

-

4,5

1,9

-

Outras lavouras (%)

74,8

97,4

60,0

40,8

74,5

9,0

3,9

6,8

Não especifica (%)

-

-

-

-

0,4

-

15,1

25,7

Outras (%)

-

0,5

-

4,2

4,3

1,0

0,8

1,1

Total (n. absoluto)

87

192

95

142

279

200

259

369

(a): Obs.: “Só cana” e “só café” indicam que o agricultor não plantava esses dois produtos em forma conjunta, e que podia plantar algum outro tipo de produto; “outras lavouras” indica que não plantava nem cana nem café.

Fonte: AESP – Listas Nominativas.

 

Tabela 10. Litoral Norte, Vila de São Sebastião: produtores de café, diversas informações.

Característica / ano

1798

1808

1817

1828

1836

Participação dos cafeicultores escravistas
no total de domicílios escravistas (%)

2,0

3,9

1,4

26,6

60,5

Participação dos cafeicultores no total
de chefes de fogo (%)

1,1

N. D.

1,0

N. D.

49,0

Média de escravos dos escravistas

20,0

6,8

3,2

7,2

8,0

Média de escravos (todos os cafeicultores)

15,6

N. D.

1,9

N. D.

3,8

Obs.: Considera-se como cafeicultor todo chefe de fogo que plantava café, mesmo que não fosse sua atividade principal.

Fonte: AESP - Listas Nominativas.

 

Tabela 11. Litoral Norte, Vila de Ubatuba, produtores de café, diversas informações

Característica / ano

1798

1808

1818

1828

1836

Participação dos cafeicultores escravistas
no total de domicílios escravistas (%)

10,5

33,3

44,9

75,5

72,4

Participação dos cafeicultores no total
de chefes de fogo (%)

3,2

N. D.

23,6

N. D.

57,8

Média de escravos dos escravistas

10,3

6,7

4,9

7,8

9,3

Média de escravos (todos os cafeicultores)

9,4

N. D.

2,6

N. D.

4,3

Obs.: Considera-se como cafeicultor todo chefe de fogo que plantava café, mesmo que não fosse sua atividade principal.

Fonte: AESP - Listas Nominativas.

 

Essa descrição geral não nos deve esconder as diferenças existentes entre Ubatuba e São Sebastião. A mais evidente, qual seja, a importante presença da cana-de-açúcar nesta última, deve ter brecado de alguma maneira a introdução e/ou a especialização na produção de café. Dever-se-ia acrescentar, porém, que não somente a existência de vultosos capitais empatados nos engenhos levava seus donos a retardar a aposta na rubiácea. Ao que tudo indica, os restantes moradores dessas vilas açucareiras, mesmo quando não produzissem cana, por algum motivo não encontravam muitos estímulos para adotar a nova cultura. Como conseqüência dessa diferença de ritmo na introdução do café, modificou-se a situação relativa dos agricultores de ambas as vilas. As Tabelas 5 e 6 mostram que os agricultores ubatubenses possuíam em média menos escravos do que seus colegas de São Sebastião, tanto quando se consideram todos os chefes de fogo como quando se investiga apenas os senhores de escravos, de 1787 até 1818. O ano de 1828 registra uma reversão nas tendências apontadas, crescendo significativamente a média de escravos em Ubatuba, enquanto esta variável cai na Velha São Sebastião. Outrossim, o valor alto da posse mediana, indicando que mais da metade dos escravos de Ubatuba pertenciam a conjuntos de 16 ou mais indivíduos em 1828, e de mais de 22 em 1836, mostram a intensidade do processo de crescimento econômico pelo qual passou esta localidade.

Destaque-se, por último, que nos anos da decolagem da lavoura cafeeira em Ubatuba (do fim do século XVIII até 1815, aproximadamente) pode-se interpretar que a localidade passou por um processo de estagnação (baixo crescimento do contingente cativo) e desconcentração da riqueza, conforme indicam, nas Tabelas 5 e 6, as trajetórias da média de escravos nos fogos escravistas, a posse mediana e especialmente o Gini, índice que atingiria seu mínimo em 1808. Todavia, podemos interpretar que o sucesso do café favoreceu em forma desigual os produtores, de modo que a partir desse momento a riqueza voltaria a se concentrar continuamente até o fim do período estudado.

 

Conclusões

Estudamos, neste artigo, dois momentos de crescimento nas sociedades do Litoral Norte paulista, ocasionados pelo aumento da demanda externa de produtos agrícolas que já eram cultivados com anterioridade no local: o açúcar e o café. Verificamos em ambos os casos que a localidade na qual a riqueza se encontrava menos concentrada conseguiu crescer mais rapidamente (São Sebastião com o açúcar em fins do século XVIII, Ubatuba com o café por volta de 1820). Entendemos que este resultado é bastante significativo, e pouco apontado na literatura. Todavia, entendemos que qualquer tentativa de generalização do mesmo exigiria uma investigação muito mais ampla; o intuito deste paper é o de chamar a atenção para a possibilidade de ocorrência deste tipo de fenômeno, através do estudo de um caso específico.

Destacamos, finalmente, que um resultado menos surpreendente é aquele verificado quando começou o boom da lavoura cafeeira: encontramos ali que a estrutura produtiva mais especializada, e que apresentava melhores resultados no período anterior, qual seja a de São Sebastião, teve mais dificuldades para se adaptar à nova situação do que a menos especializada de Ubatuba, na qual continuava se realizando basicamente uma agricultura comercial de alimentos e onde o plantio de cana teve um impacto bastante modesto.

 

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Fontes primárias manuscritas

Arquivo do Estado de São Paulo: Listas Nominativas dos Habitantes da Vila de São Sebastião (latas 161 a 165), da Vila de Ubatuba (latas 186 a 191) e da Vila Bela da Princesa (latas 192 e 193).

 

Notas

[1] As características das Listas Nominativas são discutidas longamente em Marcílio (1974) e em Balhana e Westphalen (1984); um estudo sobre sua consistência foi efetuado por Fernández (1989).

[2] Por Litoral Norte entendemos a região formada pelos atuais municípios de São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba. A demarcação temporal da investigação decorre das características da única fonte primária documental utilizada, as Listas Nominativas de Habitantes da Capitania de São Paulo, tipo de censos que foram levantados com regularidade variável, para a região considerada, no período mencionado, e que se conservam hoje no Arquivo do Estado de São Paulo (AESP).

[3] A utilização do termo “região” não pretende ser rigorosa e através dele só queremos chamar a atenção para o fato de que os municípios do Litoral Norte apresentam uma “...relativa homogeneidade de suas condições naturais...” (Silva, 1975: 10).

[4] Excetuando-se a curta fase do açúcar vicentino no século XVI (Ellis Jr., 1944: 51).

[5] Deve ser também considerado o estímulo que significou para a indústria açucareira paulista, e brasileira em geral, a elevação dos preços internacionais deste produto como conseqüência da crise de oferta decorrente da desorganização que a guerra de independência norte-americana acarretara para a produção açucareira de Jamaica e outras ilhas do Caribe, situação que seria posteriormente reforçada pela Revolução Haitiana (Castro, 1976: 118-9). Também corresponde destacar que foram importantes para tal desenvolvimento das atividades agrícolas os esforços de alguns governadores de São Paulo nesses anos, especialmente o Morgado de Mateus (1765-1775), Bernardo José de Lorena (1788 a 1797) e Antonio José de Melo Castro e Mendonça (1797 a 1802).

[6] Marcílio (1974: 299) indica a existência de uma população global de 78.885 habitantes em 1765; Rangel (1990: 61a), utilizando outras fontes, encontrou uma população de 83.672 indivíduos (juntando dados sobre a população livre em 1765 e a escrava em 1768). Em 1798, Marcílio (1974: 300) indica uma população por volta de 160.000 habitantes, dado compatível com os 155.000 indicados por Rangel (1990: 363) para essa data, apontando que a população aproximadamente dobrou em pouco mais de 30 anos. Deve ser enfatizado que a introdução de escravos africanos foi ocorrendo gradualmente ao longo do século XVIII, período onde eles foram substituindo paulatinamente os índios administrados.

[7] Embora seja provável que tenha começado por volta de 1770 (Queiroz, 1967: 150). Petrone aponta que a produção de açúcar na região deve ter começado entre 1780 e 1790, embora anteriormente já fosse produzida aguardente (1968: 27).

[8] As informações quanto aos volumes totais de açúcar fabricados na Capitania mostram uma tendência crescente na produção entre 1797 e 1847 (Petrone, 1968: 152-66). Importa lembrar outrossim que, em termos absolutos, a produção açucareira da Capitania pouco representava no conjunto da Colônia (Simonsen, 1978: 364; Prado Jr., 1980: 84). Todavia, a importância crucial deste período decorre do surgimento, a partir daí, de uma classe capitalizada de senhores de escravos, fato este que desempenha um papel essencial para compreender a passagem gradual do açúcar ao café nestas áreas. Conforme Queiroz (1967: 265), “Os capitais representados pelas fábricas de açúcar e escravaria, além de certas condições básicas, como uma rede viária, que também se devia ao açúcar, pos-sivelmente terão sido o núcleo econômico-financeiro sobre o qual se assentaria a produção cafeeira”.

[9] Para uma defesa mais detalhada desta posição, consulte-se Fernández (1992:  253-7).

[10] Vila Bela da Princesa foi desmembrada de São Sebastião em 1806; neste estudo, porém, referir-nos-emos ao município de São Sebastião como uma única entidade, desconsiderando essa divisão.

[11] A participação dos escravos na população antes de 1785 é relativamente importante em ambas as vilas; a falta de dados de produção nas Listas Nominativas desses anos, assim como nosso desconhecimento de outras evidências diretas ou indiretas impede, porém, afirmar com precisão quais foram as atividades que permitiram essa acumulação de riqueza.

[12] Todos os dados mencionados neste artigo que não se encontram nas tabelas apresentadas têm como fonte as Listas Nominativas, e baseiam-se em nossa análise (Fernández, 1992).

[13] Consideramos neste trabalho que a taxa de crescimento da população sirva como proxy do nível de atividade, especialmente no caso dos cativos, para os quais altas taxas representam maiores compras por parte dos senhores, evidenciando-se assim períodos de prosperidade.

[14] A evolução do Litoral Norte esteve condicionada não somente pelas tendências gerais da Capitania, mas também foi influenciada pelo funcionamento de seus portos, os quais foram objeto de políticas completamente contraditórias desde 1789 até a abertura do Brasil ao comércio internacional em 1808. A primeira medida a representar um golpe forte contra o incremento da economia desta área foi adotada pelo Governador Lorena, que, em 1789, resolveu proibir todo comércio marítimo que não fosse feito diretamente entre Santos e Lisboa. Tal determinação foi considerada muito perniciosa ao Litoral Norte pelos habitantes da região naquela época (vejam-se evidências nesse sentido em Cerqueira, 1966:  16-9, e em Holme, 1971: 9-11), avaliação que foi compartilhada mais recentemente por um especialista na história da região (Almeida, 1959: 106). Estas medidas foram revogadas pelo governador seguinte, Melo Castro e Mendonça. Todavia, considerando que ele tomou posse em 28/06/1797, e que a liberação das exportações foi efetuada em diversas etapas, ao longo de 1798, podemos concluir: a) que as medidas restritivas não devem ter sido muito efetivas se em 1798, ainda na época de limitação das exportações, foi produzida uma quantidade maior de açúcar da que seria fabricada em qualquer ponto do período 1801-36; e b) que havia um potencial de crescimento maior que essas medidas inibiram em parte, e que só se manifestou plenamente logo após a eliminação delas. O Litoral Norte deveria passar novamente por um período difícil com a adoção de novas restrições ao comércio marítimo, pois em junho de 1803 o governador seguinte, França e Horta, dispôs que muitas das mercadorias embarcadas nos portos da Capitania devessem ser enviadas apenas para Santos ou, senão, diretamente para Portugal. Esta medida abrangia vários dos principais produtos de exportação do Litoral Norte; o açúcar, inicialmente excluído da determinação, foi posteriormente incluído nela (Petrone, 1968: 32-3). Nossos dados de produção permitem acreditar que o efeito destas restrições deve ter sido mais significativo do que normalmente se supõe quando confrontados com as medidas semelhantes do governo Lorena. Comparando o número de escravos nos anos de 1803 e 1808 vemos que em São Sebastião eles diminuíram em 6,8% e em Ubatuba não variaram, constatando-se, na hipótese mais otimista, um quadro de estagnação.

[15] Medida equivalente a 480 litros; convém esclarecer que o problema das medidas em toda a historiografia do período colonial brasileiro merece maiores pesquisas. Para uma discussão das unidades utilizadas nesta pesquisa e dos critérios que nos levaram a isso, consulte-se Fernández (1992:  303-12).

[16] Schwartz (1988) separa os lavradores de outros empregados e dependentes dos engenhos; nossos dados não permitem fazer essa separação, e por isso denominamos genericamente como “lavrador” qualquer agricultor que plante cana sem ser dono de engenho ou engenhoca.

[17] Os valores apresentados na Tabela 3 representam o patamar mínimo de participação destes produtores, porque em vários censos aparecem muitos indivíduos classificados apenas como agricultores, sem especificar quais eram suas lavouras. Não dispomos desse valor para todos os anos, mas podemos exemplificar a importância desta distorção mencionando que em 1817 representavam 30,0% do total de domicílios, e que 34,0% dos domicílios escravistas em 1828 encontravam-se nesta categoria (porém apenas 1,5% dos escravistas em 1808).

[18] A principal atividade agrícola de Ubatuba, nos primeiros anos nos quais os dados relativos à produção constam nas Listas Nominativas, foi a produção de alimentos (especialmente farinha de mandioca, mas também outros), tanto para consumo dos produtores quanto com fins comerciais; este ponto foi estudado em forma mais detalhada por Holme (1971).

[19] Os dados referem-se a todos os domicílios vinculados à lavoura canavieira, seja como atividade principal ou secundária.

[20] A média de quase 10 lavradores por engenho no período do auge açucareiro em São Sebastião representa uma cifra significativamente superior às constatadas por Schwartz na Bahia (1983: 274), de três a quatro lavradores (arrendatários, meeiros ou pequenos proprietários), embora ele mencione também a existência de situações com dezessete e até 30 lavradores por engenho (1988: 255).

[21] Reservaremos o nome de “índice de Gini” para aquele que mede o grau de concentração entre os proprietários de escravos; por sua vez, definiremos como “índice de Gini ampliado” àquele que considera todos os chefes de fogo de uma localidade.

[22] Para evitar confusões, denominaremos “posse (ou propriedade) mediana” à mediana dos cativos, enquanto reservaremos o termo “mediana da propriedade (ou posse)” para a mediana do tamanho dos conjuntos de cativos. Vejamos um exemplo: numa localidade hipotética há 10 proprietários com um escravo cada um, cinco com 10 escravos cada um, um com 20 e outro com 31, totalizando 17 proprietários e 101 escravos. Nessa situação, a mediana da propriedade seria a quantidade de escravos possuída pelo proprietário mediano, ou seja, o nono, isto é, um escravo. A posse mediana seria o tamanho do conjunto de cativos que incluísse o escravo mediano, ou seja, o qüinquagésimo primeiro, isto é, 10 escravos.

[23] As poucas informações disponíveis, embora mostrem a existência de uma correlação negativa entre a concentração da riqueza e o crescimento econômico nas localidades estudadas (o que consideramos que representa, em si, um dado muito interessante), são insuficientes para nos permitir afirmar com alto grau de certeza qual foi a forma pela qual ambos fenômenos se vincularam. Acreditamos, porém, que seja possível efetuar algumas especulações plausíveis a partir das informações existentes.

[24] Tomando o intervalo 1801-14 as taxas de crescimento para a população livre e total caem, mas ainda assim superam as de São Sebastião acima apresentadas.