Estudos Sociedade e Agricultura

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Ana Maria Galano Mochcovitch Linhart

Êxodo rural, fazendas e desagregação


Estudos Sociedade e Agricultura, 19, outubro, 2002: 6-39.

Resumo: (Êxodo rural, fazendas e desagregação). No presente texto a autora se propõe associar o resultado de enquetes que realizou sobre os “sistemas de produção agrícola” em áreas de cerrado do Alto Paranaíba (MG) ao tema das mudanças sociais que estariam ocorrendo como consequência da maturação dos grandes investimentos feitos na região a partir do final da década de 1970, especialmente na soja. O texto chama a atenção para a especificidade do complexo de relações geradas pelo monopólio da terra na região, realçando nos processos de modernização a função da fazenda como local de expulsão e cenário onde os agregados tentam negociar as condições da sua saída da propriedade. A autora tem como objetivo descrever e analisar este movimento de desagregação, reconstituindo as fases expropriatória e de proletarização da força de trabalho.

Palavras-chave: êxodo rural, fazendas, expulsão.

Abstract: (Rural exodus, large-scale farms and expulsion). In this text, the author relates the results of her surveys on “ agricultural production systems” in the savannah regions of Alto Parnaíba (MG) to the theme of social changes occurring as a result of the maturing of large-scale investments as from the end of the seventies, particularly in relation to soybeans. The essays calls attention to the particularity of the nexus of relations produced by land monopoly in the region, highlighting among the processes of modernization the function of the ranch as a locus of expulsion and a setting where those previously connected to the farm attempt to negotiate the conditions of their exit from the property. The author focuses on this moment of “disconnection”, reconstituting the phases of expropriation and the proletarianisation of the labour force.

Key words: rural exodus, large-scale farms, expulsion.


O presente texto é uma tentativa de associar o resultado de enquetes sobre os “sistemas de produção agrícola” [1] praticados em municípios de áreas de cerrado do Alto Paranaíba (MG) ao tema das mudanças que estariam ocorrendo na base técnico-econômica da produção agrícola local e nas relações entre novas e velhas camadas sociais, com o propósito de refletir sobre a especificidade do complexo de relações determinadas pelo monopólio da terra nessa região.

Tendo iniciado as investigações de um projeto de pesquisa no oeste de Minas Gerais [2] com a análise do, então, enclave de agricultura moderna e capitalizada – a dos lotes de “colonos” do Plano de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba (PAD-AP) e do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER) ou da Companhia de Promoção Agrícola (CAMPO) (Galano, 1984) –, pretendo, futuramente, reinseri-lo no universo social, dito “tradicional”, mas que também passa por intenso processo de transformação. Só assim, parece-me, conseguirei restituir a complexidade das mudanças sociais locais.

 

Êxodo rural: dados e interpretações

Desde a minha primeira visita à sede e aos distritos dos municípios estudados (São Gotardo, Iraí de Minas, Monte Carmelo e Douradoquara), tomei conhecimento dos chamados “bairros proletários”, designação local da concentração de habitações populares. Vi grupos de trabalhadores sazonais serem transportados, em caminhões ou em reboques de trator, dos núcleos urbanos para a colheita do café nos lotes de agricultura moderna. Eram homens, mulheres e crianças. Às vezes, crianças de colo também iam para o campo. Escutei os anúncios de trabalho pelo alto-falante das igrejas e palavras de revolta de mulheres negras, algumas já idosas, que trabalhavam no plantio de café e que não recebiam do intermediário o pagamento  pelos seus dias de trabalho.

O êxodo rural, a multiplicação de postos de trabalho agrícola sazonal, o aumento da população dos centros urbanos são fenômenos consignados nos estudos e diagnósticos oficiais sobre a região do Alto Paranaíba. [3] Esses estudos também explicam, confusa e contraditoriamente, o êxodo rural, ora como conseqüência da modernização da agricultura, ora como resultado da decadência do “sistema tradicional de atividade agrícola” (“A mudança na estrutura produtiva da região e nas formas de produção do campo, o uso intensivo de capitais, insumos, mecanização e a pauta produtiva (sic) funcionam como fatores de expulsão da população rural, explicando, por outro lado, a urbanização”, cf. Linhart, 1984: 23, grifos da autora).

 “Assim, no Alto Paranaíba, têm-se hoje dois segmentos, um ao lado do outro, originando um mecanismo distinto de funcionamento. De um lado, a área dos vários projetos já implantados e em vias de implantação. De outro, as áreas que, por restrições naturais, ficaram fora da região prioritária de recuperação dos cerrados. Estas áreas estão ainda num sistema tradicional de atividade agrícola, perdendo grande parte de sua população rural, que se transforma em bóia-fria para as culturas comerciais, sobretudo do café, ou são liberadas para as cidades da região e para outras regiões (ibid: 25, grifos da autora).

Em pesquisa acerca dos efeitos dos planos federais sobre desenvolvimento do cerrado e do PAD-AP, Múcio França procurou medir a expulsão de trabalhadores agrícolas na área daquele último programa (França, 1984). Em 1983, portanto nove anos após a instalação do PAD-AP, o número de trabalhadores permanentes havia diminuído muito. Os lotes de “colonos” do PAD-AP e membros da cooperativa Cotia só empregavam um trabalhador permanente por 100 ha, enquanto, em 1976-77, havia 4,9/100 ha nas unidades de produção pertencentes ou exploradas por agricultores locais.

A consulta a dados estatísticos relativos à população total dos municípios estudados e à “situação do domicílio” da população dá uma idéia do quanto alguns daqueles municípios se despovoaram: ao longo de 40 anos, de 1940 a 1980, São Gotardo perdeu cerca de 43% da sua população, enquanto Douradoquara diminuiu 20% seus habitantes entre 1960 e 1980. Os dados relativos à “situação do domicílio” permitem apreciar a dimensão do êxodo no mesmo período. O contingente da população que deixou o campo é muito maior que o decréscimo do número relativo de habitantes dos respectivos municípios: em São Gotardo, a população rural passou de 19.961, em 1940, a 4.831, em 1980; ou seja, diminuiu 75,9%. Em Douradoquara, entre 1960 e 1980, essa relação foi de 54% (de 2.793 para 1.298).

Os municípios, cuja população total aumentou ou experimentou decréscimo inferior a 20%, ainda assim sofreram importante redução no seu número de habitantes residentes na área rural: Monte Carmelo, cuja população total cresceu 12,2% no período 1940/1980, ou 14, 8%, entre 1960/1980, apresentou, nos mesmos períodos, diminuição no número relativo de habitantes em meio rural de 70% e 36%. Iraí de Minas perdeu 14% de sua população total entre 1960 e 1980, e 38% dos seus residentes no campo.

O início do êxodo rural não coincide com mudanças na base técnico-econômica da produção agrícola chamadas, correntemente, de modernização e que datam da década de 1970. Tomando-se como exemplo São Gotardo e Monte Carmelo, os dois municípios principais (por suas superfície, população e volume e, valor da produção), até 1980, observa-se que a população rural começa a diminuir entre 1950 e 1960. Trata-se mesmo do período em que Monte Carmelo sofreu o maior decréscimo de população rural (- 54%). Já em São Gotardo, a diminuição do número relativo de habitantes residentes no campo é progressivo: - 25%, no período entre 1950 a 1960, - 43,6%, entre 1960 a 1970, e – 51%, entre 1970 e 1980.

Assim, sem discordar da observação de Múcio França, segundo a qual são restritos os postos de trabalho permanente criados pelos Planos de Assentamento Dirigido, tentei compreender como ocorrera a expulsão de trabalhadores antes da década de 1970 e verificar se, atualmente, não haveria, além da modernização, outros processos sociais aos quais também se pudesse atribuir o êxodo rural.

 

Expulsão e fazendas

No convívio, em reuniões sindicais e com trabalhadores rurais de outra região de cerrado, pude perguntar onde eles viviam antes de chegarem às favelas de Paracatu. Vinham de sítios, eram mulheres ou filhas de ex-sitiantes. A razão que davam para o deslocamento era a de que, nas fazendas, não havia escola para os meninos estudarem. Nunca falavam de expulsão.

Essa foi, no entanto, a primeira indicação obtida sobre a fazenda como local de onde poderia partir a expulsão. Depois, encontrei agregados que tentavam negociar as condições da sua saída das fazendas. Existiam pequenos proprie­tários aos quais já não mais se cediam terras a meia, circunstância que tornava quase impossível sua permanência no campo. Ou que ali ficaram sem substancial perda de sua autonomia. Finalmente, achei a própria fazenda que já expulsara e que ainda continuava a expulsar agregados.

A partir do resultado desses encontros, alguns deles tendo originado entrevistas gravadas, e com base em dados estatísticos, pareceu-me possível formular a hipótese de que o êxodo rural está principalmente relacionado à fazenda, empreendimento agropastoril ou cafeeiro. Reforçando essa hipótese, a conclusão a que chegou Margarida Maria Moura em sua análise das mudanças sociais ocorridas no Vale do Jequitinhonha (MG) afirma que: “O Vale do Jequitinhonha, há duas décadas, vivencia a expulsão do agregado no interior da fazenda, a compressão e supressão das permissões para plantar na fazenda, dadas a pequenos sitiantes, e a invasão da posse camponesa por falsos fazendeiros. As fazendas, que antes eram estabelecimentos agropastoris, agora tendem ao pastoreio extensivo puro e simples. Por ser essa atividade mais lucrativa, todo o solo é revertido ao plantio do capim, retendo-se apenas um ou dois vaqueiros para os cuidados da criação. Simultaneamente, empresas de grande porte, nacionais e multinacionais, exploram nas chapadas a madeira nativa, que é substituída gradativamente por plantações de eucaliptos. São essas empresas as principais responsáveis pela expropriação do campesinato que mora nas grotas e que depende, de modo vital, da chapada para complementar sua reprodução econômica e social. (...) Mas, se a empresa florestal expropria, a fazenda também expropria. A fazenda precisa da aliança com a empresa reflorestadora para sobreviver. Caso contrário, também estará ameaçada pelo grande poder econômico daquela. Assim, para a fazenda, ela é o inferno e o céu também.” (Moura, 1988: 3)

A partir dos anos 70, as transformações econômicas ocorridas no Alto Paranaíba são muito mais variadas e complexas do que aquelas que tiveram lugar no Vale do Jequitinhonha.

Em estudo recente acerca das grandes tendências de evolução da agricultura mineira, Maria Regina Nabuco e Mauro Borges Lemos periodicizaram o processo de recuperação da produção agrícola do Estado, levando em conta a crise dos anos 60 (Nabuco e Lemos, 1988). A primeira etapa correspondeu à recuperação da cultura cafeeira no início da década passada: “Com o Plano de Renovação e Revigoramento das Cafezais (PRRC) acionado a partir de 1969/1970, Minas Gerais foi o Estado que mais se beneficiou da chamada “nova cafeicultura” brasileira (dotada de melhor tecnologia e deslocada das áreas mais sujeitas às geadas), superando o Paraná como maior produtor nacional, já no final dos anos setenta” (ibid: 91).

A segunda etapa, que se iniciou pouco mais tarde, foi a da “expansão da agricultura capitalista no cerrado, gestada a partir do plano pioneiro de colonização do PAD-AP (Plano de Assentamento Dirigido do Alto Parnaíba), criado em 1973, sucedido por planos estaduais, tais como o Plano Noroeste, o PCI (Programa de Crédito Integrado) e federais (POLOCENTRO e PRODECER)” (Idem).

Finalmente, o primeiro quinquênio da década de 1980 corresponde à fase de “consolidação da ocupação do cerrado mineiro, onde o processo de maturação dos investimentos no final da década anterior criara as condições para a utilização da capacidade de produção recém-instalada. É a soja que vai corporificar a penetração do capital nesta segunda fase de sua expansão no Estado...” (ibid: 92)

Ora, desde a década de 1960, algumas micro-regiões do Alto Paranaíba (dentre as quais, a de Patrocínio, que engloba o município de Monte Carmelo) conheceram notável expansão da lavoura cafeeira. Quanto aos produtos (soja, arroz, cana-de-açúcar, mandioca, milho, abacaxi, laranja) que se adaptaram às terras ácidas do cerrado, suas principais áreas de cultivo encontram-se nas regiões do Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba, Alto São Francisco e noroeste de Minas Gerais. São produtos crescentemente cultivados segundo padrões que se beneficiaram das políticas públicas de apoio à intensificação da agricultura no cerrado (crédito, pesquisa agronômica, assistência técnica, infra-estrutura viária e de armazenamento).

Paralelamente a essas mudanças na pauta produtiva e no sistema de produção agrícola, particularmente no que concerne ao café e o milho, houve ampliação da superfície de pastagens formadas e o surgimento de áreas de reflorestamento com fins comerciais ou especulativos.

É ante tal quadro de múltiplas mudanças na base técnica e econômica da produção agropecuária da região que se pode avaliar melhor a inexatidão dos diagnósticos, atribuindo perda de população a um sistema de produção agrícola – o “tradicional”, vale dizer o da fazenda – em benefício de outro, o dos “projetos” de agricultura mecanizada, tecnificada e capitalizada. Como se demonstrou acima, há decréscimo da população total em três, num conjunto de quatro, dos municípios estudados e da população residente no campo.

Se a fazenda, há mais de três décadas, iniciou a expulsão de agregados e passou a limitar as terras cedidas em parceria, este processo está ainda em curso, assim como ainda persiste a invasão de terras por parte dos camponeses.

Atualmente, ações de expropriação camponesa ocorrem ao mesmo tempo que se instalam, ou já se consolidam, novas explorações agrícolas capitalizadas. É possível que essas novas explorações venham a participar diretamente do processo de expropriação camponesa, à medida em que algumas delas começam a ampliar sua superfície inicial. [4] No presente texto, interessa-me, no entanto, descrever e analisar o processo de expulsão que tem seu centro motor na fazenda, tentando reconstituir esse movimento em duas etapas: o de expropriação e o da proletarização, que foi certamente o processo principal ao longo dos anos 70 e continua sendo predominante na década de 1980.

A pesquisa de campo que deu origem a este trabalho não se orientou desde o início para a observação dos conflitos entre campesinato e fazenda. Constatei a existência de policultura-pecuária na região quando fiz o levantamento preliminar dos sistemas de produção agrícola praticados localmente. Verifiquei simultaneamente que havia várias modalidades de sua prática, o que configurava não um, mas vários sistemas de produção agrícola. Assim, levando em conta apenas a variável força de trabalho, há policultura-pecuária praticada com base:

a) no trabalho familiar;

b) no trabalho familiar e no trabalho de trabalhadores submetidos a diversas relações sociais de produção não-capitalistas;

c) apenas em trabalhadores sujeitos a relações não-capitalistas; e

d) no trabalho familiar e no trabalho assalariado sazonal.

Com exceção da última, todas as demais modalidades de relações sociais produtivas eram permeadas por conflitos (com ou sem violência física) e, assim como as categorias de trabalhadores que as sustentam, tendem a desaparecer.

Na seção seguinte apresentaremos tanto categorias de trabalhadores em vias de desaparecimento, como a categoria de fazendeiros que desempenham papel ativo no processo de expulsão de camponeses.

 

A desagregação

Os estudos acerca da morada e da agregação em áreas de lavoura canavieira e cafeeira (Carvalho Franco, 1983; Sigaud, 1979), culturas comerciais destinadas principalmente à exportação, serviram-me de orientação para compreender a condição do agregado, mas não se adequavam completamente à questão da relação social com a qual eu me defrontava no cerrado mineiro. Posteriormente pretendo explicitar de modo sistemático as semelhanças e diferenças nesses dois contextos como uma contribuição ao amplo painel de relações de trabalho não-livre existente no campo brasileiro. Aqui, sirvo-me, provisoriamente, da definição de agregado constituída por Margarida M. Moura, considerando que a fazenda-empresa agropastoril do Vale do Jequitinhonha é mais próxima da fazenda do cerrado mineiro e que a relação social de agregação, por ela descrita, recobre muitos aspectos da relação de agregação que pude observar. [5] No estudo “Agregados, parceiros e posseiros: a transformação do campesinato no Centro-Oeste”, de Mireya Suárez, também estão relacionados elementos de caracterização das relações entre fazendeiros e agregados semelhantes às que encontrei em fazendas do cerrado mineiro (Suárez, 1982).

Empresa agropastoril ou empresa em que se pratica a policultura-pecuária, a fazenda do cerrado mineiro que expulsa agregados pode ter um proprietário absenteísta ou ser propriedade de uma família que tem prática produtiva direta (ibid, 1982: 21). Pode ser uma fazenda com superfície superior a 1.000 ha, mas que possui uma mínima porção cultivada em parceria com um único agregado e sua família, além do cultivo intensivo da ponta ou pedaço explorado sob regime de agregação. Pode ser uma fazenda com cerca de 150 ha, na qual estão instalados proprietários, dezenas de agregados e suas respectivas famílias, além de ter parte da sua superfície explorada por parceiros residentes fora da fazenda. Nos dois casos, seus sistemas de produção atravessam uma etapa de transformações que coincide com a expulsão de agregados, a desagregação. Se nesses tipos de fazendas há agregados, os proprietários mantêm relações diferentes com aquela categoria de trabalhadores, sem que ainda assim se desfigure sua autonomia subordinada. Nem que desapareça, quando da expulsão, o aprendizado e a prática de resistência dos agregados. Só assim a questão dos direitos e da sua expressão judicial poderiam ter vindo associar-se intimamente ao processo de desagregação.

O presente texto não esgota a análise das diferentes dimensões daquele processo, principalmente a da relação entre as mudanças na base técnico-econômica da produção naquelas fazendas e a expulsão dos agregados. Com base em entrevistas confrontadas com a bibliografia relativa aos processos de expulsão, procurei fazer um primeiro registro da simultaneidade daqueles dois processos

 

Da reserva de valor à pastagem formada e desagregação

Ao entrevistar pequenos produtores que praticam policultura-pecuária, deparei-me com agregados que tentavam resistir à sua expulsão por meio de recurso judicial. Antes de examinar como se dá a dissolução dos laços que uniam proprietário e morador, vejamos, num caso concreto, o modo como aquelas relações se estabeleceram:

Seu José e a sua mulher instalaram-se na Fazenda P., em 1963. Trata-se de uma fazenda de 1.920 ha, cujo proprietário é absenteísta e reside em outro município da região em estudo.

Como vieram instalar-se naquela fazenda? “Com o consentimento dele (o proprietário). Eu morava lá embaixo. Ia mudar para C. e já era trabalhador para ele. Eu já tocava roça prá ele.” Segundo Seu José, foi quando o proprietário lhe propôs: “Você vai morar na casa velha em riba ou faz um rancho. Fiz o rancho com quintal, mas mais pequeno. Essa casinha ficou rebuçada com palha de buriti durante anos. Depois ficamo com medo do fogo.” Em 1975, Seu José construiu uma casa de alvenaria, com telha de barro, um amplo quintal com paiol e casa de despejo ou mantimento. Ao mudar-se para a segunda casa, Seu José já era pai de cinco filhos vivos, todos nascidos na fazenda.

Esses trechos do relato e as informações transcritas confirmam a análise de Maria Sylvia de Carvalho Franco acerca da natureza do ajustamento inicial entre proprietário e morador (Franco, 1983: 24). O ajustamento baseava-se “em uma afirmada cordialidade. Esta era a condição para que o agregado fosse acolhido”. [6]

Seu José gozava das boas graças do proprietário que confiava na manutenção de um bom entendimento entre si. Caso Seu José não satisfizesse o proprietário, este não teria autorizado a construção da segunda casa, nem permitido a plantação de árvores frutíferas – bananeira, laranjeira, abacateiro, goiabeira, mangueira – e pés de café no quintal da casa nova. E Seu José também tinha notícias de comentários favoráveis a seu respeito, formulados por filhos do proprietário: “um peão, um meeiro tão bom.”

Ao agregado e à sua família cabiam o plantio e a colheita de milho, feijão, arroz e mandioca. A esses cultivos, os da roça (chamados “a lavoura deles”), Seu José contrapunha o seu gado: “Eu tinha quatro vacas”. E mais oito porcos; tinha galinhas e dois galos; e ainda dois cavalos utilizados como meio de transporte.

Na plantação à meia, os gastos referentes a adubo e sementes eram descontados da parte da colheita a ser apropriada pelo agregado: “Eu tocava com ele a meio e dividia o adubo. Era semente e adubo associado. Metade do adubo é a gente que tem que pagar.” Além de entregar ao proprietário metade da colheita, Seu José vendia-lhe o eventual excedente a preço fixado pelo dono da terra.

Em troca do terreno para a casa, do espaço para o quintal e a criação, e do cultivo em parceria, Seu José referiu-se a, pelo menos, uma retribuição de caráter obrigatório: “Eles vinham e enchiam o carro de goiaba”, produto do quintal e não da roça. Talvez a razão para que só tenha sido citada essa forma de retribuição obrigatória, ou encargos pessoais confiados pelo proprietário, deva-se ao fato de a entrevista ter sido realizada quando Seu José já considerava “covardia minha: eu encher o paiol deles...”. [7]

É que, em maio de 1983, “vieram me dizer que era prá nós sair. Veio o filho dele (...) Em junho do mesmo ano, o pai veio com os três filhos. Arrancou o arame nosso. Levou até a madeira. Um arame cercava dois pastinhos e outro fazia um tapume e um pedaço perto do córrego, prás vaca não passar pro outro lado dele.” Além disso, “eles ficaram falando que nós tem que sair. Disseram prá vizinha que iam passar o trator na casa. ”E, para não deixar dúvida sobre a disposição de cumprir as ameaças, o proprietário tirou a água e tapou com o trator o olho d’água.”

Ao descrever e comentar a “expulsão costumeira do agregado”, Margarida M. Moura afirma que “as ameaças do fazendeiro ao agregado e a sua família podem ser simbólicas, de ordem material e de ordem física. Sua combinação ou sucessão, ou até mesmo alternância, de acordo com a natureza da demanda, é indicativa de que vários nichos de seu modo de vida devem ser sucessivamente minados de contradições, até que o agregado visualize o fim de sua condição social” (Moura, 1988: 102).

Há aqui total coincidência no repertório de ameaças registrado no caso do Vale do Jequitinhonha e na área do cerrado. Em ambas regiões, encontrou-se: derrubada e corte de cercas (ibid: 104), corte da água, “ordens de ‘boca’ que evoluem em veemência e animosidade” (ibid: 102).

Ao fim de vinte anos de trabalho na Fazenda P., Seu José e sua família deixaram de interessar ao proprietário. Mais uma vez a reflexão de Maria Sylvia de Carvalho Franco, sobre as relações entre grupos dominantes e dominados sob a ordem escravocrata, nos permite compreender o duplo movimento que ocorre quando há ruptura nas “associações morais” em função da reorientação dos interesses. Por um lado, “a ação dos grupos dominantes frustava as expectativas de seus negócios, o proprietário de terras deu prioridade a estes, embora com isto lesasse seus moradores e, assim, interrompesse a cadeia de compromissos sobre a qual assentava, em larga medida, o seu poder. Diante da necessidade de expandir seu empreendimento, nunca hesitou em expulsá-los de suas terras” (Carvalho Franco, 1983: 99).

“Por outro lado, o momento da ruptura inesperada do código moral pelo proprietário é também a ocasião para que o morador compreenda o caráter precário e transitório das relações de dependência e permite a consciência, pelo dominado, de transgressões virtuais aos costumes. Essa noção substitui a passiva imagem da imutabilidade sagrada dos compromissos...” (ibid: 100).

Com base no relato de Seu José, tem-se uma indicação dos novos projetos do proprietário da Fazenda P. : “Em 1981, disse prá (família) mudar. Passou o trator por cima do milho. Pôs semente de coloninha”. E, em 1983 “tomaram as outras roça”.

Assim, muito provavelmente, o proprietário decidiu transformar a terra antes cultivada em pastagens formadas.

Se, de início, Seu José ficou “desorientado”, em junho de 1983 já mudara de estado de espírito, pois procurou um advogado da Federação dos Trabalhadores Agrícolas de Minas Gerais (FETAEMG). O eixo do conflito aberto entre Seu José e o proprietário é a recusa do último a pagar indenização pelas benfeitorias:

“Vocês me pagam o servicinho e nós sai”.

“Não, a gente não paga nada”.

O próprio proprietário, ou um de seus filhos, indicou a instância em que pretendia que o conflito fosse tratado no nível jurídico: “Se a gente achasse que tinha direito, que fosse procurar”.

Mas, Seu José e a família também passaram, eles próprios, a transgredir, ao menos em sua nova representação das relações com o fazendeiro, a crença na propriedade da terra. É assim que a esposa de Seu José afirmava a convicção de que eram ilegítimas não só a propriedade privada da terra como a passividade diante da sua existência. Convicção que parece ter ela adquirido há pouco tempo por intermédio de conhecimentos transmitidos por um padre:

“Antes não existia escritura de terra, não. Padre R. explicou como começou a escritura de terra aqui. O roubo das terras dos índios. Os escravos pretos... Hoje o povo branquiou mais um pouquinho, mas a escravidão não acabou. Deus lutou; porque os trabalhadores não vão lutar? Tem umas coisas que Deus não quer”.

Seu José confiou ao advogado da FETAEMG a tentativa de ajuste com o proprietário: “É sem-vergonha. Dr. N. está mexendo prá mim”. Foi à sede do município vizinho tratar do acerto que se encaminhava para a fixação de uma soma, paga em quatro prestações, para indenização das benfeitorias, mais o direito de “tocar roça” durante dois anos. Nesse ponto, “estava vencendo a hora do carro (transporte coletivo) vir”, e Seu José não sabia ainda como se concluíra a negociação.

A reação de Seu José ao processo de expulsão ilustra as transformações políticas então em curso nos campos do Alto Paranaíba.

Ao ser expulso da Fazenda P., Seu José não está apenas sendo despedido, mas também perdendo o direito de morada num lugar determinado, no qual será substituído por outro morador que, por sua vez, restabelecerá a relação tradicional de agregação. Sua expulsão corresponde a uma “interrupção do direito costumeiro da agregação” (Moura, 1988: 99).

Pressionado por vários tipos de ameaças, Seu José não decide, no entanto, sair de “livre vontade”: “Uma saída de livre vontade resulta em antecipar-se a uma deterioração mais funda de suas condições de vida” (idem).

Por que a família de Seu José decide ficar, resistir à expulsão? Como interpretar a atitude do fazendeiro?

Margarida M. Moura fala da adesão “sindical partidária numa linha de classe” ou da vinculação a grupos da Comissão Pastoral da Terra (CPT) como resultado da fratura que a expulsão de agregados representa para o pacto so­cial. No caso de Seu José, ele e sua família viviam num município em que não havia sindicato de trabalhadores rurais e onde apenas se esboçava a constituição de um grupo de encontro da CPT. Isolados fisicamente na Fazenda P., pois eram então a única família agregada no local, eles não estavam, no entanto, dissociados de outros trabalhadores do distrito. Tinham ligações familiares, consangüíneas, com um grupo de trabalhadores que também viviam sob pressão, ameaçados de expulsão por um grileiro. Conheci-os todos juntos e era evidente a importância da solidariedade familiar frente às ameaças do fazendeiro, cuja propriedade sobre a terra era consolidada e a posse do grileiro buscava legitimidade como uma propriedade em formação.

Enquanto os depoimentos da mulher de Seu José reproduzem o discurso veiculado pelo padre ou pela ação pastoral, o agregado encaminha, por meio do departamento jurídico da Federação dos Trabalhadores Agrícolas, uma ação indenizatória. Há aqui, curiosamente, superposição de suas concepções e táticas de encaminhamento da luta pela terra. [8]

Finalmente, como interpretar a atitude do fazendeiro, quando propõe que o conflito seja levado à justiça, paralelamente à prática de procedimentos costumeiros de violência para forçar a expulsão?

A literatura sobre a expulsão de moradores e de agregados insiste na indisposição de fazendeiros a enfrentá-los na esfera judicial (Moura, 1988: 77; Sigaud, 1979: 73). Pode ser, como se verá adiante, a razão mesma para se efetuar expulsões preventivas. Seu José não enfrentava, no entanto, um fazendeiro tradicional: absenteísta, sua fazenda sequer tinha uma casa-sede. Fazendeiro com um só agregado, levava a extremos limites a sub utilização de seus quase 2.000 ha.

Dificilmente se pode falar em “velho empreendimento agropastoril” quando se trata dessa fazenda. Sua transformação em pastagem formada, processo puramente pecuário em meados dos anos oitenta, insere-se tardiamente na “incorporação produtiva de terras do cerrado”. Qualquer que seja o futuro destino da superfície – o empreendimento pecuário pode ser apenas a etapa intermediária entre a reserva de valor e a ocupação com cultura intensiva de grãos – a expulsão do agregado é a condição para tornar a fazenda plenamente solo-mercadoria numa das regiões de mais rápida valorização da terra no Estado de Minas Gerais.

Aqui não existiam relações de compadrio, celebração de festas de padroeiros, freqüentes convivências na casa-sede etc. entre a família do proprietário e a do agregado. Para esse tipo de proprietário absenteísta não parece haver qualquer vantagem em preservar “um pacto social que obriga, em seus múltiplos elementos, a continuação de um fluxo de reciprocidade entre dominantes e dominados” (Moura, 1988: 100).

Nesse caso, a truculência do proprietário combina-se com um comportamento que quer privilegiar o contratual, por saber que a tradução judicial de um vínculo costumeiro revela-se vantajosa para quem preserva a propriedade e apenas indeniza a perda da posse da terra.

 

Do trabalho agregado ao trabalho assalariado sazonal: uma fazenda em processo de modernização

Uma segunda categoria de fazendeiros que praticam policultura-pecuária é constituída por proprietários de superfícies de mais de 100 ha que habitam em casas-sede de fazenda, ou residem em povoados, e cujas explorações estão passando por significativas mudanças em sua base técnico-econômica paralelamente a transformações em suas relações sociais de produção.

Dentre os casos aqui examinados, há duas explorações com rebanho leiteiro importante, uma com 100 e outra com 150 vacas, e uma terceira que, recentemente, iniciou o cultivo de café com 19.000 pés. Nas três propriedades usam-se insumos industriais (correção de solo com calcário e fósforo, sulfato de amônio para adubação do milho; sementes selecionadas de milho e arroz, e inseticidas no tratamento de sementes, ou diretamente contra insetos). Todas dispõem de instrumentos de preparo e plantio (sulcador, plantadeira, carpideira e arado) movidos por tração animal e utilizam patrolas alugadas. Uma das explorações é servida com energia elétrica [9] que aciona uma raladeira de mandioca e um “engenho” para moagem de cana. As três explorações recebem assistência técnica da Emater e aquelas que produzem leite são também assistidas por técnicos da Nestlé.

Finalmente, todas beneficiam-se de empréstimos concedidos pelo Banco do Brasil para custeio das safras de milho e arroz.

Foi com base em parcelas herdadas ou cedidas pela família que se constituíram essas explorações:

“Isto foi herdado: cinco alqueires. Mas foi tirada no muque. Fui comprando uns pedacinhos” (Sr. Durval).

A irmandade era grande. Cada um ficou com 33 alqueires. Aliás, não só aqui (nas proximidades do povoado). Depois que ele (o marido) morreu, vendemos seis alqueires e mais um pouquinho prá fazer essa casa” (Dona Genésia).

“Nós casamos, nós não tinha nada. Eu não tinha e ele não tinha. Então papai deu um pedacinho de terra, lá uma ponta (...) É assim que nós começamos”.

Dentre as três explorações referidas é essa última – a de d. Maria Fernanda e de Seu Calisto – que dispõe de um patrimônio mais significativo em terras, máquinas e implementos. A organização do processo produtivo nessa fazenda é a que provavelmente mais se aproximava da que era praticada até recentemente em médias unidades de exploração agrícola com terras de cultura e de cerrado. Assim, num momento anterior à realização da entrevista, praticava-se ali uma combinação de policultura e criação de gado de corte e leiteiro, com base no trabalho do proprietário e sua família, de agregados meeiros e de parceiros residentes fora da fazenda.

No momento da entrevista (1985), o sistema de produção havia passado por várias mudanças, dentre as quais a substituição, ainda parcial, dos agregados meeiros por “diaristas”; a introdução de novos meios de trabalho (equipamentos mecânicos e processos químicos); a agregação do conhecimento agronômico ao saber empírico, através da assistência técnica da Emater e da Nestlé.

Foi durante a longa entrevista com essa família que ouvi, pela primeira vez, a expressão “ir desagregando”, para designar a dissolução do trato de morada. Foi também d. Maria Fernanda que me transmitiu a imagem mais viva do que terá sido o “velho empreendimento agropastoril” com dezenas de agregados-meeiros, relações de compadrio, comemorações religiosas com “festeiros”, fazendeiros que se representavam (e esperavam ser percebidos) como benfeitores, assim como a emergência da nova época dos “direitos” que leva de roldão toda aquela organização social. Ou, como concluiu d. Maria Fernanda: “Então, não tem jeito”.

Ao contrário do caso de desagregação tratado anteriormente, no qual se reproduziu o ponto de vista do morador em vias de ser expulso, registra-se aqui o discurso de uma família de fazendeiros que está promovendo inúmeras expulsões de agregados e limitando as superfícies disponíveis para parceria.

 

A trajetória de enriquecimento graças à solidariedade familiar e ao esforço próprio

Para chegar à desagregação, processo cuja existência ignorávamos, era necessário que houvesse, pelo menos, alguma menção a trabalhadores. Ora, ao pedir que a família contasse a história da fazenda, nos foram dadas informações acerca do aspecto físico do processo de acumulação real e sobre as relações de ajuda intrafamiliar, mas não se fez referências a trabalhadores ou mão-de-obra, exceto a da própria família.

Segundo d. Maria Fernanda, nada predizia que ela, seu marido e os filhos chegariam a alcançar a boa situação econômica que passaram a desfrutar:

“Tem trinta e tantas atividades de plantio aqui, de coisas plantadas aqui. Mas, lá na Fortuna (nome da Fazenda onde ficava situada a “ponta” dada pelo pai) não prometia isso prá nós. Lá nós sofria porque lá é um lugar de pedreira. Lá é bom só prá gado e aquelas glebas de lavoura onde ele tocava mais. Muito longe...”

A trajetória de enriquecimento foi explicada pela combinação de dois fatores: a solidariedade da família de d. Maria Fernanda e o árduo trabalho do casal.

O pai de d. Maria Fernanda arrendou a fazenda, sua própria exploração, à filha e ao genro:

(Maria Fernanda) “...E depois de cinco anos de casados, o papai ofereceu para alugar a fazenda prá nós. Calisto... ele viu que trabalhava muito e eu, graças a Deus, toda vida tive muita prática (...) O papai foi para a cidade com a mamãe e alugou a fazenda para nós e deu o gado para parte de lucro... porque a gente não podia comprar gado (...) e deu um engenho para nós trabalhar (...). Alugou três anos. Em três anos, o Calisto pôde comprar uma parte do gado dele (...). Comprou o engenho, picadeira, arado, tudo que papai tinha de maquinário o Calisto comprou por cem mil... réis?”

(Calisto): “Cem cruzeiros”.

(Maria Fernanda): “Cem cruzeiros! (...) Está com vinte e nove anos isso. Ele alugou mais três anos, essa metade do gado sendo nossa. E... antes de inteirar esses três anos, com dois anos, ele comprou tudo”.

Em 1956, Seu Calisto já era, assim, um produtor razoavelmente capitalizado. E, ainda, através das ligações familiares de sua mulher, tornou-se, enfim, proprietário de uma superfície de terra de cuja fertilidade natural não há queixa:

(Maria Fernanda) : “Aí ele vendeu a nossa parte de gado e comprou aqui por Cr$ 2.500,00. A terra era do meu tio (...) que era herdeiro. Então, meu tio fez aí umas travessuras, uns negócios maus e foi preciso ele vender meio corrido. E ele (Calisto) comprou (...). Ele pagava uma parcela, outra, outra, até que pagou tudo. Quando inteirou três anos de aluguel lá, nós mudamos para aqui (...) Arrancamos lá da sede (...). Fez aquela casinha ali e morei lá sete anos, trabalhando. A gente trouxe maquinaria tudo – já tinha tudo comprado do meu pai...”

Ao instalar-se na fazenda da qual se tornou proprietário, Seu Calisto tinha dois filhos menores, de 10 e 6 anos. As duas crianças e d. Maria Fernanda não poderiam ter constituído a única força-de-trabalho com que até então contara Seu Calisto nas duas unidades que passara a explorar. Foram freqüentes as referências de d. Maria Fernanda à prática de tarefas que lhe proporcionavam o consumo familiar e a sua participação direta no processo produtivo. Assim, quando ainda exploravam a “beira” da fortuna doada pelo pai:

(Maria Fernanda): “(...)Eu tinha que andar muito, sofria muito prá (...) carregar comida. Eu carregava comida, ajudava. A cavalo. Nunca fui de andar muito tempo de a pé. Então eu ajudava na roça, carregava comida e tudo, mas (...) longe, longe mesmo(...)”

Ao chamar de ponta à terra que recebeu como dote, d. Maria Fernanda recorre à mesma palavra utilizada pelos agregados para nomear a superfície que ocupam numa fazenda. Na verdade, desde a constituição da nova família e de sua unidade produtiva, Seu Calisto não trabalhou seu “pedacinho de terra” sozinho. Mas, antes de descobrir com que força de trabalho extrafamiliar pôde contar, vale a pena observar o conjunto de transações enumeradas por d. Maria Fernanda – arrendamento da Fazenda, compra de equipamento mecânico e, finalmente, compra da fazenda do tio – e como elas se inscrevem entre as transações entre parentes, ou transações “preferenciais”, nas quais se fixa um preço abaixo daquele do mercado regional (Moura, 1978: 40-41). [10]

 

A força de trabalho oculta: agregados e filhos de criação

Através da atividade produtiva de d. Maria Fernanda, Seu Calisto pôde “pagar” outros trabalhadores, embora ainda não dispusesse de meios financeiros:

(Maria Fernanda): “Enquanto ele ganhava dois dias (...), ele na enxada trabalhando, eu costurava. Eu fazia três calças de homem, que eu aprendi a costurar em casa. Então quando ele ganhava um dia ou dois na enxada, eu ganhava três dias em casa. Eu trocava uma calça de homem por um dia de serviço”.

“Lá tinha vinte e quatro moradores, todos agregados, todos tocando roça de meia”.

Além desses trabalhadores, o casal sempre teve outras pessoas, sob suas ordens, para executarem diferentes tarefas. Não se trata aqui de participação eventual, sazonal, no processo produtivo na roça ou em atividades dentro de casa. Através da criação, dos filhos de criação, d. Maria Fernanda e o marido sempre tiveram criados:

(Maria Fernanda): “Com dezoito dias de casada, eu já peguei uma menina para criar, que morou comigo dezenove anos e saiu casada. Quando ela saiu, outra menina que eu já tinha pegado (...)”

“Eu tenho duzentos e setenta afilhados. Uma mãe morria, uma comadre morria, um deles vinha. Teve uma hora que eu tinha cinco: só mulher (...) dentro de casa. E aí foi indo. Nós foi lutando, foi levando, essas meninas ajudava a gente quando chegava da escola. E outra hora atrapalhava”.

“Eu fui casando as mais velhas e pegava outras mais novas (...) Fui casando, fui casando e está com dois anos que eu casei uma e ficou só essa. Mas o que morava mais um pouco tempo na minha casa foi sete anos. E assim, ainda tem um rapaz, que é peão da fazenda lá do papai, onde nós morava de aluguel, e tem esse que mora na nossa proteção até hoje nunca tive problema com nenhum desses que nós criamos. Nós criamos três homens e cinco mulheres. Nunca teve problemas, graças a Deus”.

Se, no momento da instalação, o casal – d. Maria Fernanda e Seu Calisto – não dispunha de meios financeiros para contratar trabalhadores, tal já não era a situação alguns anos mais tarde: puderam comprar gado, máquinas agrícolas e uma ampla propriedade. Ainda que tenha havido transações comerciais “preferenciais”, a prática de utilizar “filhos de criação” como força-de-trabalho certamente apresentou vantagens do ponto de vista da constituição do patrimônio e da acumulação real de capital.

Até uma certa idade, enquanto as crianças não puderam trabalhar, o casal teve de fornecer meios de vida sem nenhuma contrapartida dos “filhos de criação”. Mas, desde que começaram a trabalhar, aqueles filhos de criação continuaram a ter acesso apenas a meios de vida necessários para sua reprodução e não à totalidade do valor gerado por eles. Os pais adotivos guardavam para si e para os seus filhos biológicos o excedente acumulável que lhes permitiu não só reproduzir-se como produtores, mas também capitalizar sua exploração.

Certas distinções entre criada e empregada, entre filhos de criação e parentes educados pelo casal, feitas por d. Maria Fernanda, revelam que o padrão de consumo para os criados foi calculado para que se reproduzissem como trabalhadores sob a continuada dominação da família que os acolheu. Assim, por exemplo, um sobrinho do Seu Calisto, que foi educado pelo casal, mereceu ter acesso a uma escolaridade de segundo grau completo:

“Rapaz de trinta anos. Veio aqui de shortinho, você não viu? A gente já se esforçou mais um pouquinho. Estudou em Uberlândia. Fez o 1º e 2º graus”.

Dos quatro filhos consangüíneos de d. Maria Fernanda e Seu Calisto, só um deles teve escolaridade mais longa que a do sobrinho: foi Antônio, que cursou até o 3º ano de Contabilidade e, em 1985, com 29 anos, era “professor de ginásio” e vereador. Único filho também a viver em meio urbano, na sede do município, e que é profissional liberal. José, o primogênito, então com 33 anos, estudara até o 1º colegial e, depois de casado, instalou-se com a mulher em terras da própria fazenda paterna. O novo casal e seus dois filhos moravam em outra casa, a 500 metros daquela dos pais. Nos relatos de d. Maria Fernanda e do filho mais jovem, Luís, o primogênito ora aparece como um agricultor com atividade autônoma, ora integra as atividades do pai:

“Aquele casado já fez a roça irrigada”.

“Porque o cerrado, onde meu filho ganhou o prêmio (de produtividade da EMATER), era um lugar que ninguém dava nada e o milho foi bom”.

Mas, quando Luís respondeu à pergunta acerca de quem trabalhava na fazenda, referiu-se a “três homens”: o pai, o irmão, a ele próprio. Além da “mão-de-obra de terceiros”. [11]

Luís, finalmente, aos 23 anos, cursou a 8ª série, como também a irmã, de 14 anos. Luís, solteiro, mora e trabalha com o pai. Pretende continuar no campo, tendo manifestado desinteresse e estranheza em relação ao modo de vida nas cidades grandes que conhece – São Paulo e Uberlândia – assim como pela cidade de interior mais próxima à fazenda. Só não via solução para um problema: achar uma noiva que quisesse vir morar no campo e assumir todas as tarefas próprias de uma mulher de fazendeiro. [12]

 Quanto aos “filhos de criação”, só cursaram até o 4º ano da escola primária ou, como diz d. Maria Fernanda, “todos têm o primário”. Foram à escola pública do “povoado” que, em 1985, tinha duas séries, distribuídas por dois turnos, uma sala de aula e duas professoras: “uma bacharel e outra formada em normal”. Vinte e oito crianças freqüentavam então essa escola.

O sobrinho, já adulto, trabalhava em “terra alugada”. “Agora tem umas trinta cabeças. Faz queijo. É trabalhador; você precisa ver”. Entre os filhos de criação, um tornou-se “peão da fazenda” do pai de d. Maria Fernanda, outro “mora sob nossa proteção e tem mais uns três que depende de mim e eu ajudo”. O significado da dependência e da ajuda tornou-se mais preciso em outro momento da entrevista, quando d. Maria Fernanda falou dos filhos de moradores herdados do tio, ex-proprietário da fazenda:

“Quando nós mudamos prá aqui tinha seis moradores nessa fazenda, porque meu tio deixou. Inclusive eu fui casando esses meninos, que nós criamos, e fomos localizando eles aqui. Ficou três localizados aqui”.

Do ponto de vista dos que cedem terras em parceria a agregados, há consideráveis vantagens em se ter meeiros que foram filhos de criação. No sistema de obrigações e direitos, que regem tradicionalmente as relações de dominação pessoal da morada, as obrigações devidas ao proprietário não se apóiam, neste caso, apenas na retribuição pelo acesso à terra. O filho de criação deve mais: sua própria sobrevivência inicial; a comida, a roupa, a escolaridade etc. ao longo de muitos anos. Quantas vezes não terão escutado o relato aparentemente pitoresco da criancinha alimentada com leite de cabra? [13]

Educados por d. Maria Fernanda e Seu Calisto, os filhos de criação foram mais precocemente socializados para o trabalho do que os filhos consangüíneos. E, quer durante os anos anteriores ao casamento, quer depois de casados e “localizados” na fazenda, o trabalho dos filhos de criação e dos protegidos deve ter apresentado ainda maiores vantagens do que o trabalho familiar em relação ao de assalariados sazonais. [14]

 

A caça dos direitos e a desagregação

Os meeiros que trabalhavam em terras cedidas por Seu Calisto não eram apenas filhos de criação. Alguns moravam dentro da fazenda há muitos anos:

“(...)Tem uma família aqui, que é dessa menina, que tá trabalhando comigo. O pai dela tem trinta anos que trabalha com meu marido. E o irmão dela tem quatorze anos que trabalha”. [15]

Outros moravam fora da fazenda:

“Arrendava, morava aqui na Chapada dos B., no povoado mesmo, nessas casinhas. [16] Eles compraram as casinhas lá, morava lá nas casinhas de lá. Então, uns tocavam de meia. Calisto prepara a terra e dá o adubo e eles tocam a custa dele e tiram o mantimento”.

Foi só ao final da entrevista que surgiram referências a esses meeiros, quando já se falava da situação geral da região e não mais da fazenda.

E isso porque, ao enumerar quem trabalhava naquela exploração, Luís menciona apenas três homens: “Calisto, José e Luís. Mais mão-de-obra de terceiros, durante a safra. Na faixa de cinco pessoas durante seis meses. Sempre muda. Tem muita saída de jovem. Eles vêm daqui mesmo. Com salário diário. Sempre muda, durante seis meses”.

E, na verdade, os meeiros praticamente já não fazem mais parte da força-de-trabalho da fazenda. E só surgiram quando d. Maria Fernanda falou sobre aqueles que haviam deixado o município:

“Nossa! Aqui todo mundo (...) Olha, vou te contar. Esses dias saíram três famílias que não podia ter saído. Duas saíram da comunidade C., uma saiu daqui, da comunidade de cá. De D. (sede do município) sai todo dia. Por exemplo, acha um emprego em (...) acha um emprego melhor na cidade, carregar obra prá fazer reforço de casa e tudo (...) Quer dizer, a maioria das nossas comunidades que mudaram é porque não têm ajuda nenhuma. Outros não têm emprego, outros plantam roça: não dá conta de pagar adubo, então pagam e vai para a cidade. Como agora: mudou um compadre nosso, bom, você precisa de ver, com três filhos homens, uns homem trabalhador também, toca roça (...) Foram embora para Monte Carmelo (...) ali, que não tem muito emprego, nem nada. Mas eles acham emprego em cerâmica, apanhar café lá no Iraí de Minas, levando para os caminhões de café (...). Porque aqui, a não ser nós nas fazendas dar um servicinho, não tem quase servicinho. É porque quase ninguém toca roça. Só quase é o Calisto e os irmão dele, os parentes (...). É família M. que toca mais. O Calisto são dez irmãos, seis homem e todos mora na roça”.

Entre os que “saem”, “ninguém tinha terra”. São os que “arrendavam” e “tocavam de meia”.

A ida para a cidade, segundo d. Maria Fernanda, corresponde a várias motivações: achar “um emprego melhor”, fugir ao desemprego e escapar ao abandono de não ter “nenhuma ajuda”. E é partida irreversível:

“Agora, quem abandonou e vai, depois nunca volta. Prá voltar é duro. Porque chega lá, começa a andar mais (...) mais limpinho, vê dinheiro mais na mão, vê umas coisa. E não volta mesmo”.

Ir embora do campo seria fugir das dificuldades. De certa forma, seria uma espécie de amolecimento de entrega ao prazer de ver mais. O campo, o “tocar roça de meia”, o ser “agregado”, com seus sacrifícios, permitiam a um homem e a sua família viverem bem: “Cada um engordava seu porco, criava galinha, tinha uma hortinha, uma coisa”. Mas, “o povo foi deixando, foi mudando, foi saindo”.

O êxodo rural: d. Maria Fernanda parecia lamentar enormemente a desertificação do campo e se insurgiu contra o fascínio pela cidade. À pergunta “Atualmente aqui tem pouco morador?”, d. Maria Fernanda responde: “Aqui dentro de nossa fazenda? Aqui tem pouco. Aqui tem pouco e pros outros lados também tem pouco. Tem muitas casas vazias. Mesmo na nossa fazenda tem uma. Ali, na fazenda do vizinho, tem outra. Tem muitas casas vazias e pergunta prá onde foi? Foi prá cidade”.

Até esse ponto da sua entrevista, d. Maria Fernanda reproduziu aproximadamente o discurso de proprietário de terra de outra região do país – a Zona da Mata, de Pernambuco – onde, a partir do final dos anos cinqüenta, os moradores começaram a deixar em massa os engenhos para instalarem-se nas cidades:

“Segundo eles, os trabalhadores estavam abandonando os engenhos porque preferiam viver na cidade, onde gozavam de maior liberdade. Se em nenhum momento resumirem a posição daqueles que, segundo moradores e líderes sindicais, expulsavam trabalhadores, os proprietários se ressentiam do esvaziamento das propriedades nos contextos em que o que estava em jogo era a necessidade de trabalhadores, para fazer face às exigências da produção (...)” (Sigaud, 1979: 13).

Depois, em meio à tensão provocada por uma frase de Luís, o filho mais moço, ele e sua mãe iniciariam uma nervosa diatribe, em duo, contra os moradores que “caçavam direito com” os proprietários e rompiam as relações tradicionais da morada, às quais os proprietários, até então, teriam guardado a mais estrita obediência. Ao proprietário, o “patrão”, não restaria assim outras alternativas além de defender-se, praticando uma espécie de legítima defesa, e tomar a dianteira, rompendo ele próprio as relações tradicionais, ou seja, “desagregando”:

(Luís) – “Olha, depois que surgiu esse direito de (...) agregado (...)”

(d. Maria Fernanda) – “De agregado ter direito (...)”

(Luís) – “Ter direito a um certo tipo (...) depois de determinado tempo de trabalho, então os fazendeiros (...)”

(d. Maria Fernanda) – “Cismaram”.

(Luís) – “Agregado teve então que (...)”

(d. Maria Fernanda) – “A única solução era ir para a cidade”.

Pergunta: – “Houve alguém que pediu direito aqui?”

(d. Maria Fernanda) – “Ih, já teve muito rolo aqui, minha filha. Já teve begulho à revalia de peão com patrão”.

(Luís) – “Os proprietários de terra que tinham meeiro foram desagregando... Logo que surgisse, viesse essa lei (...) Os proprietários de terra não tinha condição. Andava de seca em meca. Já andava pobre e tudo e ainda tinha que pagar direito (...) às vezes prá quem nem trabalhasse prá ele. Então eles foram desagregando (...)”

(d. Maria Fernanda) – “Inclusive eu tenho um tio que ficou quase sem as terras dele por causa de um menino que ele criou (...) casou, morou dividido na fazenda cinco anos, e depois caçou direito com ele. Caçou direito com ele e achou. E ele contestou e o rapaz deu nele uma cacetada, queria matar ele. Foi uma coisa (...). Meu tio ficou desorientado, com medo do rapaz e vendeu a fazenda baratinho. Hoje estava valendo uma nota lascada”.

(Luís) – “E era um grande produtor”.

(d. Maria Fernanda) – “E era um grande produtor. Ele produziu quase que igual com a gente”.

(Luís) – “Quem tem terra hoje aqui não tem condições de dar meação prá ninguém, porque se der ele fica sem dono”.

(d. Maria Fernanda) – “Você paga o salário, você dá o leite (...) Por exemplo: aqui tem uma menina casada com o meu filho de criação. Ela morava na fazenda lá em cima. Ele (o proprietário) dava todo dia dois litros de leite. Dava casa para morar, o quintal prá eles tocar, os cocos que produziu na fazenda prá mulher quebrar babaçú. E o marido dela morreu, fez um ano em julho e cê acredita que ela foi prá Monte Carmelo e está fazendo os direitos do marido (...) na justiça. Quando o marido dela morreu, o patrão correu, fez a pensão dela, aposentou ela (...). Ficou vinte e sete dias de derrame. O patrão fez tudo, levou e trouxe muitas vezes de Uberlândia e em Monte Carmelo. Não teve aperto desde que ele morreu. E depois ela mudou com vinte dias que ele morreu. Mudou e caçou direito com ele. E ele fez a aposentadoria dela e tudo e ela ainda está pelejando, está lutando para cobrar dele os direitos dela. Criam os filhos e tudo a custa da gente e caça os direitos. Então, não tem jeito”.

 

Pequenos produtores autônomos: até quando?

As entrevistas com pequenos proprietários, sejam eles cumulativamente parceiros ou não, revelaram que, num período determinado, provavelmente entre os anos 50 e 70, ainda houve a possibilidade de acesso à propriedade da terra, por parte de trabalhadores antes submetidos a relações de subordinação nas fazendas. Eis como dois pequenos produtores do município de São Gotardo retraçaram o processo de constituição de suas explorações:

“Eu fui nascido e criado aqui. Fazenda São João. Uma parte (da terra) foi herança; outra, fui eu que comprei. Herdei quarenta e poucos litros. Troquei por uma criazinha maior. Depois eu comprei outro terreninho. Fiquei trabalhando a meia na fazenda dos outros. Meu terreninho aqui é muito petitito (...)” (Seu João).

“Fui nascido no município de Tiros. Foi tocando roça a meia para comprar essa terra. Eu trabalhei na fazenda de Manuel do O. Era muito custoso para fazer. Vendendo 1.600 réis o carro de milho. Se fosse dois carros de milho, um era meu, outro era dele. Ele dava o arame prá gente espichar. Plantava 120 milhos e feijão; amontoava 60 (...). Já tinha 16, 17 anos (que se tornara proprie­tário de 50 ha) quando anunciaram o PAD-AP. Vieram (...) daí até me deu um tito (título). Tinha só escritura antiga”. Além dessa exploração, Seu Olavo é proprietário de outra parcela: “Já está com doze anos (em 1983). Fica vindo de São Gotardo a 2 km”.

Para os pequenos proprietários, como Seu João, que até recentemente tinham em superfícies “tocadas a meia”, a forma de assegurar a subsistência de sua família, achar terras cedidas para parceria em condições “compensadoras”, tornou-se uma situação rara, senão inexistente.

“Aqui tem muitas terras abandonadas. Chego lá num caboclo: ‘Eu te alugo aquele pedaço por Cr$ 200.000 (...)’ A terra tá tudo na mão dos fazendeiros. O pobre chega lá: arrenda ali (por) 50%. O sujeito que não tem terra não pode ir 50%. A lavoura fica muito cara”. (Seu João).

“Eu penso trabalhar mas não tem. Tem a meia, mas não tá dando. Não dá. O custeio está muito caro. E lá onde o senhor quer ele não arrenda”. (Filho adulto, casado, de Seu João).

Os grupos domésticos (em sua versão mais simples, pais e filhos), que experimentam essa nova forma de escassez de terra, também sabem que está ameaçada a reprodução da sua condição de pequenos produtores autônomos. Quando do casamento de um dos membros da família, ele invariavelmente torna-se assalariado. Há, no entanto, uma diferença considerável entre os filhos de pequenos proprietários, e cumulativamente ex-parceiros, e os filhos de proprietários das maiores superfícies aqui contempladas (50 ha). Esses últimos cedem terra de sua propriedade para que os filhos edifiquem suas casas ou cedem casas já construídas e constroem-se novas casas. Os filhos de proprietários de superfícies menores – a exploração de Seu João em cerca de 7 ha – devem residir fora da terra da família ao casar-se. Dois dos filhos de Seu João moram no núcleo urbanizado do distrito, onde compraram lotes. [17] O pai participou ativamente da nova instalação dos filhos: “Eu em riba. Eles davam o dinheiro e eu arranjava pedreiro”. Foi entre os nove filhos de Seu João que encontramos dois casos de migração para fora do município e da região, assim como mudança do setor de atividade. Ambos foram trabalhar como assalariados em empresas industriais, mas um deles voltou ao município e ao distrito: “Não existe isso mais de emprego. Agora acabou. Existe, mas muito pouco. Vim prá roça prá trabalhar. Os japoneses pagam mixaria. Lá eu tirava 3,4 sacos (de café) por dia. O preço é pouco. Dá menos que o salário mínimo. Já trabalhei como tratorista. Tive carteira assinada como tratorista, mas nunca por japonês”.

Os filhos solteiros e menores dos pequenos produtores detêm as superfícies mais exíguas, também trabalham como assalariados durante certas épocas do ano, por exemplo, no tempo da colheita do café nas novas explorações do PAD-AP:

“Aqui tem um vizinho que tem onze filhos. É tudo camarada para o japonês”, segundo Seu João, que, em seguida, acrescenta: “Daqui uns dias tá sobrando caboclo”.

As enumerações dos cultivos e, como veremos, as que concernem à pecuária, foram sempre acompanhadas de referências às atividades que foram interrompidas. Assim, no caso de Seu João, cuja propriedade é vizinha do PAD-AP, não se cultiva mais feijão:

“Antes dos japoneses aqui no lugar, arranjava 150 sacas de feijão. Hoje a gente não colhe mais”.

“Foi depois que o japonês plantou soja. O povo é que fala que é por conta da soja”.

“Os japoneses colhe aqui o feijão e leva prá fora. Eles tem os remédio”.

A criação de suínos e bovinos conheceu trajetória diferente. Enquanto os suínos parecem ter sido abandonados, e com justificação ambígua, a criação de bovinos foi interrompida e retomada:

“Antes a gente tinha porco. Deixou de comprar milho e porco. Resolveu comprar óleo”. Ou ainda: “Quando eu tinha porco, não comprava óleo. O óleo é mais sadio que porco”.

A decisão de interromper a criação de suínos teria, assim, resultado de uma escolha deliberada visando a melhoria do padrão alimentar. Mas, em outro momento da entrevista, tal motivação desaparece e a ausência dos suínos é identificada, exclusivamente, a um empobrecimento da alimentação do grupo familiar:

“Aqui passa um mês sem comer carne. Antes alimentava bem. Antes achava dois, três capados no chiqueiro”.

Antes da instalação do PAD-AP, a família de Seu João “tinha vaca”. Isto foi no tempo em que “aquele menino” (um dos filhos) “vendeu saca de feijão roxo”. Passados alguns anos, Seu João pôde novamente comprar “sete bezerros prá criar e tirar leite. Comprou os bezerros – cruzamento de raça gir e holandesa – em município vizinho: “Eu truxe de camionete. Tive de alugar uma camionete”.

Essas unidades familiares não produzem apenas para autoconsumo. A referência anterior à compra do gado e ao pagamento do transporte já revelou. Aliás, indica que a família de Seu João dispõe de meios financeiros para determinadas trocas mercantis.

O produto da roça pode ser autoconsumido ou vendido. Ao ser vendido, permite a obtenção de meios monetários para a compra de alimentos não-produzidos pelo grupo doméstico: “Eu compro macarrão, farinha de trigo, querosene, sal, extrato de tomate”, disse-nos d. Rosa. E óleo, como vimos anteriormente.

Através da entrevista, soubemos que Seu João vende parte da sua produção de banana: “O caso das bananas é este. Eu tenho uns cachinhos de banana. Eu vendia a banana na porta: Cr$ 220,00 o cento. Achei que não tava bão e levei elas por conta nas cidades e vendo fiado a Cr$ 600,00. Aí eu melhorei o meu negócio. Passei por cima do intermediário”. [18]

D. Rosa, esposa de Seu João, já esteve também integrada em trocas comerciais: “Eu fazia doce até prá vender. Eu faço atualmente pra despesa”.

Os produtos da roça e do quintal, autoconsumidos ou vendidos, mais o pagamento obtido com os “dias” trabalhados em outras explorações, devem prover “o suficiente para pôr e repor os instrumentos e objetos de trabalho e propiciar o necessário ao consumo doméstico” (ver Garcia Jr. 1983: 136). Se o “consumo doméstico necessário varia segundo o tamanho e a composição da unidade doméstica”, as variações “de modo algum anulam a existência de padrões socialmente definidos de consumo necessário(...). A manifestação da existência desses padrões é a oposição consumo normal-privação, onde a privação aparece cada vez que não há suprimento de certos bens na quantidade desejável e/ou sem a regularidade necessária” (idem: 137-38).

Ao enunciar esses supostos da sua abordagem do “nível de subsistência” ou “nível de consumo socialmente necessário”, Afrânio R. Garcia Jr. Observa, também, como não se expressa em categorias verbais únicas. As formulações relativas à situação de privação de determinados grupos domésticos revelam-se, assim, via de acesso, por contraposição, ao padrão de consumo que se julga aceitável.

As formulações que recolhi na entrevista com a família de Seu João são exclusivamente referentes aos padrões de alimentação do próprio grupo doméstico:

“Aqui passa um mês sem comer carne. Antes alimentava bem. Antes achava dois, três capados no chiqueiro”.

Quanto a formulações referentes a um conjunto indiferenciados de padrões (habitação, vestuário, alimentação), eles se referiam ao povo da comunidade e do distrito, indistintamente:

“Tem gente passando dificuldade”.

“O povo tá coagido. O pior é a carestia”.

A família de Seu João sente-se em condições de amparar os que se encontram em situações de privação extrema:

“Se chegar trinta pessoas e se disser: ‘Nós tá com fome’, a gente tem meios de fazer para comer”.

Segundo Seu João, houve um momento decisivo em que mudaram as condições para obter meios e objeto de trabalho no lugar. E é da época daquelas mudanças que data a situação de carência que então viviam:

“Entrou reforma agrária, o lugar entrou na miséria. Todo mundo fazia rocinha, tinha sua fartura...”

A “reforma agrária” a que referia-se Seu João corresponde ao decreto de desapropriação das terras nas quais se instalou o PAD-AP:

“A reforma agrária que atingiu aqui foi só as terras do Totoca Luciano, mas não foi para o lugar”. [19]

Seu João, inclusive, não conhecia a sigla do Plano de Assentamento Dirigido e perguntou: “O PAD-AP que a senhora fala é a terra dos japoneses?”

Embora não conhecesse a sigla, Seu João enunciou várias observações sobre transformações ocorridas após a instalação do PAD-AP e sobre a natureza do plano:

“Entrou japonês, tem dinheiro, corre dinheiro(...)”

“Aqui, quem faz o trabalho para os japoneses é os mineiro. E o japonês tudo em São Gotardo tranquilão”. [20]

“Do jeito que os japoneses tocou os lotes, eu também tocava. As condições... as mesmas: o que o governo fez por eles”.

“O santo de longe faz mais milagre do que o de perto”.

Como, para Seu João, poderia se alterar a situação de privação que subentendem as referências a atividades interrompidas (cultura do feijão, criação de suínos)? Dispor de uma superfície maior para aumentar o volume de seus cultivos e a quantidade das cabeças de gado parecia ser sua maior aspiração:

“É o que sinto na vida. Eu só tenho 6 a 8 ha. Precisava ter um pedacinho para mexer nas criação, nas lavoura. Ver minha pilha de arroz, umas oito vaquinhas, a esteira carregada de queijo”.

Sua aspiração não era, portanto, de adotar um outro sistema de produção, através, por exemplo, da especialização de sua produção ou da substituição da força de trabalho familiar. A mudança de seu sistema de produção exigiria, aliás, modificações de valores e comportamentos para as quais Seu João não demonstra nenhuma predisposição. Para ele, a assistência técnica da Emater está indissoluvelmente ligada a financiamento bancário, endividamento e grandes riscos:

“Não tenho assistência técnica. F. (um técnico agrícola da Emater) já pelejou comigo para fazer financiamento, mas(...) Se eu quero uma coisa, eu espero. Mas se prolongar muito tempo(...) Quando vieram em riba de mim com a finança, eu não quis. Nunca tive uma ajuda de banco. Nunca tive coragem”.

Como já se verificou com outros pequenos produtores no Brasil, o temor ao endividamento está diretamente ligado à ameaça latente de ser expropriado, uma vez que a garantia do crédito é a propriedade da terra (Garcia Jr., 1983: 119).

Mas, para além deste temor, Seu João demonstrava disposição de conservar valores e comportamentos que lhe pareciam divergir daqueles que portam e praticam os novos ricos do Alto Paranaíba. Contrapunha, por exemplo, um certo tipo de riqueza moral e a ativa inserção em redes de solidariedade local à acumulação de bens materiais:

“Todo mundo gosta de mim. Isso é que é riqueza”.

“Eu poderia estar melhor. Da boca eu nunca segurei e não seguro. Quando nós ir lá pro céu, o que é que leva? Leva um par de meia no pé(...) se a mulher pedir”.

“Quando é no Natal, às vezes vem um pobre. Um mendigo(...) está mais próximo do céu do que nós”.

“Japonês não dá nem camisa rasgada”.

Enfim, para Seu João, caberia ao Estado reorientar sua política fundiária e permitir que voltasse o tempo da fartura e que, de novo, ele e sua família tivessem terra suficiente para trabalhar e viver.

“Haverá(...) que o governo traçasse uma reforma agrária prá riba de 50 ha uma reforma agrária nos fazendeiros(...) se a reforma agrária atinge a nossa terra, eu vou pôr prá produzir”.

 

Referências bibliográficas

Carvalho Franco, Maria S. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairos, 1983.

França, Múcio. O cerrado e a evolução recente da agricultura capilatista: a experiência de Minas Gerais. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1984.

Galano, Ana Maria. Estratificação social e intensificação agrícola no cerrado. Águas de São Pedro, mimeo., 1984.

Garcia Jr., Afrânio R. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

Moura, Margarida M. Os herdeiros da terra: parentesco e herança numa área rural. São Paulo: Hucitec, 1978.

_____. Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Berthand, 1988.

Nabuco, Maria R. e Lemos, Mauro B. “A rota do capital agrícola em Minas Gerais na década de oitenta”. In: Minas em questão. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1988.

Prados, Júlio. Causos. In: Paca Tatu Cutia-não. n. 6, fev./mar., São Gotardo, 1977.

Reboul, Claude. Mode de production et systèmes de culture et d’élévage. In: Economie  Rurale, n. 112, mar./abr., Versailles: 1976.

Secretaria do Planejamento/Fundação João Pinheiro – Programa de desenvolvimento regional integrado do alto Paranaíba. Belo Horizonte, 1982.

Sigaud, Lygia. Os clandestinos e os direitos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.

Suárez, Mireya. Agregados, parceiros e posseiros: a transformação do campesinato no centro-oeste. In: Anuário antropológico 80. Fortaleza: edições UFC/Tempo brasileiro, 1982.

 

Notas

[1] “Um sistema de produção agrícola é um modo de combinação de terra, forças e meios de trabalho, com o objetivo de realizar produção vegetal e/ou animal, comum a um conjunto de explorações” (Reboul, 1976).

[2] Refiro-me à minha pesquisa “Grupos sociais rurais, Estado e estratégias do desenvolvimento: efeitos socioeconômicos dos planos de assentamento dirigido, no Oeste de Minas Gerais”.

[3] “Na década de 1970/80 pode-se comprovar as alterações que vêm ocorrendo na área. A população rural caiu em todos os municípios – com exceção do Alto Paraíba – anuais de 0,53% a 9,6%, perfazendo uma taxa média de 3,2, bem superior àquela observada no Estado, de 2,08. (...) Outro efeito marcante na região é a mudança das formas de trabalho, com a presença cada vez mais acentuada e repercute no surgimento de novos fluxos cidade-campo.” (SEP, 1982: 24)

[4] Pude constatar, em 1985, que alguns lotes do PROCEDER já começaram a ampliar sua superfície. Em Iraí de Minas, por exemplo, uma família que, naquele ano, detinha 500 ha, em dois anos acrescentara mais 500 ha à sua exploração.

[5] “Chama-se agregado ou agregação a relação de morada de uma família na fazenda, implicando o desempenho de tarefas para o fazendeiro e a produção direta dos meios de vida para o agregado. A agregação é uma relação familiar que envolve um grupo de trabalhadores – o agregado, sua mulher, seus filhos, eventualmente irmãos, a mãe de um dos cônjuges –, no qual o próprio agregado é a personagem principal. A condição do agregado é masculina e intransferível. O acesso às terras da fazenda se dá por um pedido de morada – fato que implica aceitar costumeiramente o desempenho do trabalho e de atos culturais correspondentes. (...) Trata-se de um conjunto de regras interiorizado por ambos, agregados e fazendeiros. (...) Nesse sentido, não é o trabalho contínuo que caracteriza sua subordinação e de sua família às solicitações do proprietário. (...) O nexo fundamental que liga o agregado à teia da dominação é estar à disposição do fazendeiro” (Moura, 1988: 81-82).

[6] Não pude saber o que recobre a afirmação “... e já era trabalhador para ele. Eu já tocava roça para ele”. Margarida M. Moura insiste no fato de que “a agregação é uma relação pedida quando a propriedade já está nas mãos de um fazendeiro; é uma relação imposta, quando recobre a condição de camponeses livres com o domínio de determinada área, transmudando-lhes a condição original (Moura, 1988: 86).

[7] “Introjetamos a relação social como favor que é saldado periodicamente pelo correto desempenho das tarefas solicitadas e confere-lhe direitos que impedem apossamento de bens essenciais à sua própria condição de lavrador. Torna-se claro por que o despejo do agregado se caracteriza pela triação do fazendeiro e pela vergonha do agregado (grifos meus, Moura, 1988: 91).

[8] “... Os sindicatos orientam-se numa direção mais claramente trabalhista e a ação pastoral, para questões possessórias. A unificação de perspectivas nem sempre é possível. Há lavradores mais diretamente vinculados a um estilo de ação ou a outro. A mesma distinção transporta-se para os planos das ações judiciais: os sindicatos de trabalhadores rurais, através do seus departamentos jurídicos, optam sempre por uma tradução trabalhista dos processos de expulsão dos agregados. No caso de as questões trabalhistas serem vencidas, entram a seguir com a ação de indenização por benfeitorias, que indenizam o agregado pelas plantas fincadas na terra” (Moura, 1988: 106).

[9] A casa-sede e as casas em povoados também são servidas por energia elétrica.

[10] Trata-se de práticas registradas no sul de Minas.

[11] Partindo-se do modelo proposto por Margarida M. Moura (e que lhe serve para interpretar a “lógica específica da herança de terras” entre “sitiantes” do sul de Minas Gerais, enquanto aqui trata-se de uma família de fazendeiros), pode-se observar que o pai – Seu Calisto, concedeu terra para que o filho, ao casar-se, construísse casa e cultivasse sua própria parcela. Configurou-se, assim, a situação em que “numa mesma propriedade (onde o ‘dono’ é o pai) (dá-se a presença) de duas famílias nucleares de geração diversas, paternal e filial (filho homem), resultante da permissão do pai para o filho construir uma ‘casa de morada’ conjugal, dentro de sua terra, cultivando para sua família nuclear em formação uma parcela de terra no mesmo local” (Moura, 1978: 38).

 Também a questão da autonomia de José e de sua participação nas atividades como mais um dos homens trabalhando na fazenda, esclarece-se com a análise de Margarida M. Moura: Se duas unidades econômicas “passam a coexistir dentro de uma terra ‘em comum’ (a de Seu Calisto e a de José), ao filho cabe continuar cooperando em tarefas exigidas pela produção na terra do pai. Certos eventos, como uma colheita ou a velhice dos pais, fazem o filho casado obedecer a uma solicitação do pai de auxílio para determinada tarefa. O inverso é inconcebível (...) apesar da emancipação do filho, culminada no casamento (...) é ainda este último (o pai) que, na sua condição de patriarca (...) enfeixa até a morte o maior quinhão de autoridade dentro do patrimônio territorial” (idem: 39).

[12] A importância do matrimônio para o acesso à condição de proprietário independente e do casamento entre classes rurais: “O casamento tem uma importância inteiramente diversa, não erótica, mas econômica...” cf. Claude Lévi-Strauss in Moura, 1978: 35).

[13] “Um dia apareceu aqui uma mulher com uma criancinha de dez dias que a mãe deu (...) não quis a criança, enjeitou e eu não queria. Mas eu peguei assim mesmo e criei essa menina com leite de cabra, não foi? Foi na outra fazenda. Ainda não tinha leite naquela época. Ele arranjou uma cabrita e a menina criou mamando na cabrita. Eu punha ela em cima de mesa, a cabrita, e trazia a menina embrulhadinha no pano e punha debaixo da cabrita e segurava no pé da cabrita. Ela mamava. A menina chorava e a cabrita berrava. É assim que eu criei ela. E é uma menina muito sadia, graças a Deus, até hoje”.

[14] Afrânio R. Garcia Júnior discute a diferença entre trabalho dos filhos e trabalho pago, numa unidade de produção constituída por laços de parentesco (Garcia Jr., 1983: 102). Aqui sugere-se apenas uma analogia e um caminho para uma posterior análise sistemática do papel do trabalho dos filhos de criação.

[15] Resposta à pergunta: “Aqui vocês têm gente de meia?”

[16] Ainda não tenho suficientes elementos para analisar o povoado, assim como a comunidade, que aparecerão daqui por diante continuamente referidos. D. Maria Fernanda fala de ambos sem estabelecer distinção. Pude constatar a existência de alguns tipos de habitat concentrado, mas não poderia ainda afirmar se têm as mesmas características do bairro paulista em diferentes fases de sua transformação (ver Cândido, 1982: 57-63; Pereira de Queiroz, 1973: 194-201) ou quais traços permitem caracterizar uma variante da estrutura de bairro. Pretendo posteriormente expor os tipos de concentração de moradia que encontrei e fazer uma análise comparativa entre aqueles tipos e os que são consignados em estudos sobre outras regiões. No momento, gostaria de assinalar o desdobramento povoado e patrimônio, que foi repertoriado por Suárez. Nunca escutei o termo bairro no Alto Paranaíba; em compensação achei referência a patrimônio, sob a forma patrimonho: “Ô lugar bagunceiro era o tal de Perobas, gente. Nunca vi tanta bagunça, tanto tiro, tanta cachaça. Casamento ali era o trem mais perigoso que tinha (...) Nos enterros, de vez em quando sobrava um tonto (...) Beberam muita cachaça lá no Patrimonho e ele sobrô para...”

[17] O que chamo aqui de núcleo urbanizado do distrito é localmente designado como “comunidade”. Não consegui descobrir a origem dessa designação. Pode haver mais de uma comunidade por distrito. Aparentemente, comunidade é equivalente a patrimônio.

[18] Seu João vende parte da sua produção de arroz, levando-a para ser descascada na sede do município.

[19] Antônio Luciano é um grande proprietário de terras no município de São Gotardo e em outros municípios do Estado de Minas Gerais.

[20] Muitos proprietários de lotes no PAD-AP (Plano de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba) residem em São Gotardo, sede do município. Acerca da sua participação no processo de trabalho, ver o meu texto “Estratificação Social e Intensificação Agrícola no Cerrado”, mimeo, 1984.