Estudos Sociedade e Agricultura

autores | sumário

 

Pierina German Castelli & e John Wilkinson

Conhecimento tradicional, inovação e direitos de proteção


Estudos Sociedade e Agricultura, 19, outubro, 2002: 89-112.

Resumo: (Conhecimento tradicional, inovação e direitos de proteção). Hoje é consensual dizer que a biodiversidade, os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais desempenham um papel essencial no bem-estar da atual e das futuras gerações, além de serem fundamentais para o desenvolvimento sustentável a longo prazo. Até muito recentemente estes recursos eram considerados uma herança natural e cultural de livre acesso e uso. No entanto, a chegada das novas biotecnologias colocou a possibilidade de sua exploração sem limites, convertendo-os em insumos essenciais da indústria biotecnológica, o que levou à sua incorporação em transações comerciais e à sua privatização e apropriação. Considerando o papel desempenhado pelas comunidades tradicionais – populações indígenas e comunidades locais – crucial na sua conservação e manejo sustentável, o presente texto defende a idéia de que a biodiversidade, a base dos recursos genéticos, não representa um estado da natureza, mas é o resultado de inovação coletiva inter-gerações. A partir da contribuição de autores que tentam caracterizar o conhecimento tradicional e a natureza inovadora do conhecimento tradicional, e de contribuições de teorias heterodoxas – neo-schumpeteriana e teoria das convenções – o artigo intenta aportar argumentos para defender a necessidade de adotar um quadro regulador que respeite a diversidade de tipos de inovação, não apenas na polarização entre formas tradicionais e modernas, mas dentro da própria economia moderna.

Palavras-chave: biodiversidade, conhecimento tradicional, conhecimento científico, inovação, direitos de propriedade intelectual.

Abstract: (Traditional knowledge, innovation and protection rights). Today there is broad agreement that biodiversity, genetic resources and traditional knowledge play an essential role in the well-being of humanity in this and future generations, in addition to playing a fundamental role for long term sustainable development. Until recently, these resources were considered a cultural and natural heritage involving free access and use. However, the arrival of new biotechnologies, opens up the possibility of exploring them without limits, converting them into essential inputs for the biotechnology industry, leading to their incorporation in commercial transactions, and therefore, pressuring for their privatization and appropriation. Given the role played by traditional communities – indigenous populations and local communities – in the conservation and sustainable management of biodiversity, it can be argued that biodiversity – the basis of genetics resources – does not represent a state of nature, but is the product of collective intergenerational innovation. In this paper, basing ourselves on contributions which try to characterize traditional knowledge and throw light on its innovative nature, together with contributions from heterodox economic theories – neo-schumpeterian and convention theory – we try to contribute to arguments which defend the need to adopt a regulation framework which respects the diversity of innovation types, not just in the polarization among traditional and modern forms, but within the modern economy itself.

Key words: biodiversity, traditional knowledge, scientific knowledge, innovation, intellectual property rights.

Pierina German Castelli é doutoranda do CPDA e John Wilkinson professor da mesma instituição.


Introdução

Os avanços da biotecnologia transformam a biodiversidade mundial num vasto gene pool, cujos recursos genéticos se tornam insumos estratégicos para o desenvolvimento de novos produtos e processos e permeiam grandes setores industriais (energia, fármacos, alimentos, cosméticos). Esta riqueza potencial se localiza, sobretudo, nos países em desenvolvimento, cujos centros de diversidade biológica ainda resistem aos avanços da Revolução Verde. O acesso a esses recursos, fonte de grande tensão entre países e diferentes atores sociais, coloca as grandes empresas e negociadores dos organismos internacionais diretamente em contato com comunidades tradicionais e indígenas, provocando uma discussão sobre direitos que dificilmente se enquadra nas legislações vigentes. Os interesses ligados à indústria da biotecnologia vêem a biodiversidade mundial como uma fonte pública de insumos, reivindicando a atividade inovadora para os esforços industriais. Assim, eles promovem a homogeneização e simplificação dos direitos de proteção intelectual à forma da regulação clássica de patentes.

Na comunidade científica, por outro lado, novas reflexões sobre a natureza dos processos de inovação enfatizam aspectos que vão de encontro à simplicidade dos conceitos que respalda o sistema de patentes, ressaltando o caráter coletivo da atividade inovadora, a contribuição fundamental de bens públicos, a dificuldade de estabelecer claras fronteiras entre os espaços públicos e privados e a importância de elementos tácitos na geração e avanço do conhecimento. Neste contexto exploramos, sobre tudo, a contribuição da tradição neo-schumpeteriana à elaboração dessa visão mais complexa de inovação, considerando-a uma ponte para se pensar o conhecimento tradicional, responsável pela preservação e renovação da biodiversidade biológica, como uma forma legítima de inovação, merecedora, portanto, de uma legislação apropriada de proteção.

Ao mesmo tempo, introduzimos e avançamos argumentos a partir da corrente francesa da teoria das convenções visando defender a necessidade de se adotar um quadro regulador que respeite a diversidade de tipos de inovação, não apenas na polarização entre suas formas tradicionais e modernas, mas dentro da própria economia moderna. Este enfoque identifica vários tipos de comportamento econômico que obedecem a lógicas diferentes e têm diferentes formas de validação. Os mundos artísticos, de produtos artesanais e da comunidade acadêmica se regem por critérios de avaliação distintos dos vigentes no mundo industrial, embora este último exerça crescente pressão em todas estas esferas. Cada um desses mundos tem uma dinâmica de criatividade própria que se submete a modalidades diversas de proteção apropriadas à sua forma e natureza, o mesmo devendo ocorrer com o mundo de conhecimento tradicional. Complementamos este enfoque com contribuições de outros autores que tentam caracterizar o conhecimento tradicional e sobretudo as contribuições que focalizam a sua natureza inovadora.

 

Biodiversidade, recursos genéticos e conhecimento tradicional

O papel essencial que a biodiversidade, os recursos genéticos e o conhecimento tradicional desempenham no bem-estar da nossa e das futuras gerações é hoje amplamente reconhecido: “A biodiversidade é importante porque é o repositório de informação genética obtida ao longo dos processos de evolução biológica. A diversidade biológica é valorizada tanto por seus potenciais usos, como por sua contribuição estética. O valor derivado da biodiversidade supera amplamente o investimento mundial para sua conservação. Da mesma forma que a biodiversidade, a diversidade cultural e lingüística possui um valor incalculável para a atual e futuras gerações, já que elas constituem um repositório de informação obtida ao longo do tempo. O conhecimento tradicional sobre as plantas das florestas tropicais e as diferentes variedades dos cultivos é importante tanto para os esforços dirigidos à sua conservação, como para identificar componentes ou genes úteis” (Brush, 1996). O empobrecimento do conjunto desses fatores, por outro lado, é um dos aspectos mais preocupantes da crise ecológica mundial.

Culturas e línguas tradicionais estão diminuindo rapidamente e a sua perda é tão grave quanto a da biodiversidade porque exaure a riqueza de informação em igual magnitude que se esgota a diversidade biológica. Krauss (1992, apud Brush, 1996) estima que 90% das línguas hoje existentes desaparecerão ou estarão em vias de extinção no próximo século. Nesse ritmo, a perda em línguas é maior que a da diversidade biológica

Até muito recentemente esses recursos foram considerados como uma herança natural e cultural de livre acesso. A chegada das novas biotecnologias gerou pressões para a sua incorporação em transações de mercado e a privatização dos recursos genéticos. Essa mudança de paradigma tecnológico implica novos regimes de apropriação e, portanto, a adaptação dos sistemas de Direitos de Propriedade Intelectual (DPI), com vistas a criar mecanismos de proteção relativos às biotecnologias, aos organismos vivos e à informação genética que estes contêm, bem como ao conjunto das aplicações permitidas. O Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIP’s [1] ) impôs esse modelo de DPI a escala global e os países-membros tiveram que adotar legislações específicas para estender a proteção (sob forma de patentes ou sistemas tipo UPOV) aos produtos e processos da nova biotecnologia. O pressuposto desse tipo de regulação é que o processo inovador envolve a produção de conhecimento, que pode ser dividido e codificado, e apresenta autoria facilmente atribuível.  Por detrás da complexidade da legislação de DPI a figura do “gênio inventor em seu laboratório” continua sendo facilmente localizável.

Esses novos sistemas de DPI criaram controvérsias e polarizações entre países, blocos e regiões. De um lado, os países desenvolvidos e as companhias biotecnológicas argumentam que os DPI são um pré-requisito essencial para o investimento em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), ao passo que os países em desenvolvimento - onde a maior parte da biodiversidade do planeta é encontrada - sustentam que a riqueza dos recursos genéticos que interessa as firmas ocidentais geralmente é o fruto de centenas de anos de conhecimento tradicional (CT) e cuidados por parte das comunidades tradicionais. [2] Nessas disputas sobre a apropriação dos frutos da revolução biotecnológica, é consensual que a herança genética mundial é fundamentalmente uma commodity; o que é radicalmente contrária à Convenção de Diversidade Biológica (CDB) sobre a conservação e o uso sustentável do conjunto da diversidade biológica.

Embora vários países em desenvolvimento tenham solicitado à Organização Mundial do Comércio (OMC) para que ela comissione estudos com vistas a identificar mecanismos de propriedade intelectual que promovam a proteção do conhecimento tradicional em nível global. Um dos maiores riscos nas negociações ora em curso entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento na questão da exploração da biodiversidade é o de que não sejam respeitadas as comunidades tradicionais

Um problema fundamental nessas negociações é que as comunidades tradicionais, responsáveis por sua preservação e/ou conservação, não consideram que a biodiversidade pertence a um indivíduo particular, mas constitui uma herança coletiva. Tais comunidades também são responsáveis pela descoberta, desenvolvimento e preservação de uma enorme quantidade de plantas medicinais, formulações de ervas para tratamentos em saúde e produtos agrícolas e da floresta. Além disso, o conhecimento tradicional interessa muito às companhias ocidentais e instituições de pesquisa, como pode ser observado nos seus programas de bioprospecção nas florestas tropicais, e ainda constitui um importante insumo na indústria moderna de farmacêuticos, medicina botânica, cosméticos, de pesticidas agrícolas e biológicos, e serviços médicos.

Os resultados do projeto Biodiversidade e Comunidades Tradicionais no Brasil, realizado pelo Nupaub-USP em 1999, com o objetivo de inventariar os trabalhos que tratam dos conhecimentos tradicionais relativos ao meio natural, indicam que as populações tradicionais da Amazônia construíram, ao longo das gerações, um conjunto considerável de conhecimentos e práticas sobre os ecossistemas e a biodiversidade, fundamental para sua sobrevivência na floresta e nas margens dos rios e lagos (Ministério do Meio Ambiente, 2002).

Segundo a mesma fonte, vários estudos analisados ao longo do referido projeto (Balée, 1993; Balick e Cox, 1996; Anderson, May e Balick, 1991; Descolla, 1997) sugerem que a diversidade de espécies, de ecossistemas e de genética não é apenas um fenômeno natural, mas também cultural, e o resultado da ação humana. De acordo com esses estudos, as populações humanas não somente convivem com a floresta e conhecem os seres que ali habitam, como a manejam, ou seja, manipulam seus componentes orgânicos e inorgânicos. Portanto, como salienta Ribeiro (1990 apud Ministério do Meio Ambiente, 2002), o manejo das espécies naturais por populações amazônicas resulta no aumento de comunidades vegetais e na sua integração com espécies animais e com o próprio homem. Desse modo, aquilo que os cientistas (botânicos, biólogos, ictiólogos) chamam de biodiversidade, traduzida em longas listas de plantas e animais, descontextualizadas do domínio cultural, é diferente do conceito de biodiversidade, em grande parte construída e apropriada, material e simbolicamente, pelas populações tradicionais.      

O papel desempenhado pelas comunidades tradicionais na conservação e no manejo sustentável da biodiversidade mostra que ela, a base dos recursos genéticos, não representa um estado da natureza, mas é o resultado de inovação coletiva intergerações conduzida por populações indígenas e comunidades locais (German Castelli e Wilkinson, 2001). 

 

Caracterização do conhecimento tradicional

Existem muitas propostas de definição do conhecimento tradicional (CT), mas todas são incompletas, porque o conceito é relativamente novo e ainda está sendo construído (Johnson, 1992; Wavey, 1993; Berkes, 1993; McCorkle, 1994; Quiroz, 1996; Berkes e Henley, 1997 apud Rahman, 2000). 

De acordo com Rahamn, a literatura vale-se de vários termos intercambiáveis para designar o conceito, entre os quais encontram-se “Conhecimento Ecológico Tradicional” - CET (ou TEK, Traditional Ecological Knowledge), “Conhecimento Ecológico e Sistemas de Manejo Tradicionais” - CETSM (ou TEKMS Traditional Ecological Knowledge and Management Systems), “Conhecimento Local” - CL (ou LK, Local Knowledge), “Conhecimento Indígena” - CI (ou IK, Indigenous Knowledge), “Conhecimento Comunitário” (Community Knowledge), “Conhecimento dos Habitantes Rurais” (Rural Peoples’ Knowledge) e “Conhecimento dos Produtores” - CP (ou FK, Farmers’ knowledge). Embora possam existir certas distinções, tais termos freqüentemente se referem à mesma coisa (por exemplo, Howes e Chambers, 1979, Reijntijes et alli 1992; Warren, 1992; Mathias, 1994; Roach, 1994; Agrawal, 1995; Lawas e Luning, 1997 apud Rahman, 2000).

Por sua parte, Dutfield (2000a) mostra que nos acordos internacionais que fazem referência ao CT, tampouco se encontram definições precisas. Tanto a Convenção de Diversidade Biológica (CDB), de 1992, como a UNCTAD [3] de 2000, evitam definir o termo, referindo-se de modo geral ao CT como “conhecimento, inovações e práticas das populações indígenas e comunidades locais contidos em estilos de vida tradicional” ou como “tecnologias pertencentes a estas comunidades”. Uma vez que a CDB é a referência para os países que trabalham para a proteção do CT, é importante analisar, em primeiro lugar, a terminologia que se utiliza, para posteriormente discutir alguns conceitos encontrados na literatura. 

De acordo com Dutfield (2000), a utilização da palavra “inovações” na CDB indica a aceitação entre os Estados-membros de que o CT pode ser tão inovador e inventivo como qualquer outro tipo de conhecimento “não-tradicional”. A palavra “prática”, por outro lado, sugere que técnicas e práticas rotineiras, estabelecidas há muito tempo, podem continuar dinâmicas e adaptadas, e merecedoras de proteção. Na mesma acepção de “inovações”, a palavra “tecnologia” sugere que patentes poderiam ser a forma apropriada de proteção (porém, é improvável que seja este o caso). Uma outra implicação é que as modalidades da sua transferência deveriam basear-se em um acordo mútuo, igual a qualquer outra tecnologia de ampla aplicação.

Mugabe (1999 apud Dutfield, 2000a) tentou esclarecer esses tópicos, ao estabelecer uma distinção entre CT e Conhecimento Indígena (CI) de acordo com a identidade de seus proprietários. Os proprietários do CT têm “um acervo não-escrito e respeitável no tempo de costumes, crenças, rituais e práticas que foi legado pelas gerações prévias”. Diferentemente dos proprietários do CI, eles não têm “necessariamente uma reivindicação de ocupação territorial anterior ao habitat atual”. Em outras palavras, o CI é um subconjunto do CT, com a única diferença de que os possuidores são populações indígenas em lugar de comunidades “não-indígenas” que incorporam estilos de vida tradicionais. Assim, a distinção não implica que o CI e o CT são diferentes em si, mas aponta para o fato de que os proprietários do CI têm reivindicações políticas mais amplas que os proprietários do CT. Embora seja importante reconhecer as demandas das populações indígenas, como na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), isto não contribui para a compreensão do significado atual de CT.            

Para Sillitoe (1999), o CT ou CI seria aquele que, no presente e apesar das tendências globais, podemos encontrar em pessoas de diferentes regiões que têm histórias e tradições culturais únicas que continuam a condicionar suas visões do ambiente e suas vidas de maneira significativa. O CT trata de diversos assuntos e prioridades que refletem experiências e interesses distintos e são classificados por meio de linguagens e estilos diferentes. Ele é instruído por repertórios culturais desenvolvidos ao longo das gerações e, mesmo que estes sejam influenciados por outras práticas e caracterizados por certos pontos de similitude e justaposição, o importante é que o CT mantém a sua especificidade.

Por sua parte, Emadi (1998) argumenta que a caracterização do CT ou CI deve incluir não apenas as práticas técnicas dos produtores tradicionais, mas também os aspectos culturais. O CT é adquirido através da experiência e passado para a geração seguinte. O contexto desse conhecimento é o ambiente local, em todos os seus aspectos culturais, sociais, econômicos e físicos. Para responder aos desafios das condições locais e da natureza em permanente mudança, as pessoas tiveram que ser criativas e desenvolver grande capacidade adaptiva. E é isso que torna o CI dinâmico, sendo constantemente modificado para satisfazer as necessidades, condições e prioridades do momento, e ao mesmo tempo permanecendo prático e efetivo. Segundo aquele autor, um dos aspectos do CT que o faz estranho para os profissionais é a sua natureza oral.

Johnson (1992 apud Dutfield, 2000b) define o Conhecimento Tradicional Ecológico (CTE) como um corpo de conhecimento construído por um grupo de pessoas vivendo ao longo das gerações em contato íntimo com a natureza. Isto inclui um sistema de classificação e um conjunto de observações empíricas sobre o ambiente local e um sistema de autogerenciamento que regula o uso dos recursos. O autor identifica várias características do CTE, mostrando como este é gerado, registrado e transmitido. Assim, o CTE pode ser caracterizado como: (a) registrado e mantido por meio da tradição oral; (b) apreendido por meio da observação e da experiência prática; (c) baseado no entendimento de que todos os elementos da matéria têm força viva; (d) incorporando uma visão da vida humana que não a considera superior a outros elementos animados ou inanimados, mas aceita que todas as formas de vida são interdependentes; (e) holístico; (f) intuitivo em seu modo de pensar; (g) principalmente qualitativo; (h) baseado em dados gerados pelos usuários dos recursos; (i) baseado em datas diacrônicas; (j) altamente enraizado no contexto social, vendo o mundo em termos de relações sociais e espirituais entre todas as formas de vida; (k) baseado em explicações de fenômenos ambientais, provenientes de experiências cumulativas, coletivas e freqüentemente espirituais. As explicações são avaliadas e revisadas diária e sazonalmente por intermédio dos ciclos anuais das atividades.

Nijar (1996) caracteriza o CT como um conhecimento criado de modo coletivo e continuamente modificado, adaptado e construído com base nos saberes já existentes, ou seja, tanto os conhecimentos como as inovações são cumulativos. As inovações são recriadas em função do passado, presente e futuro dos proprietários e beneficiários de tais conhecimentos. Elas não pertencem a um indivíduo em particular, mas ao conjunto dos integrantes da comunidade.

Os elementos comuns que se extraem dessas definições do CT tomadas em sua forma genérica, independentemente das denominações particulares dadas pelos diferentes autores, seriam os seguintes: i) via de regra é construído socialmente, embora certos tipos de CT possam ser da competência de indivíduos específicos ou subgrupos dentro de uma comunidade; ii) tende a ser transmitido oralmente de geração a geração, não sendo, portanto, documentado; iii) muitos aspectos tendem a ser de natureza tácita; iii) não é estático e evolui ao longo do tempo à medida que as comunidades respondem a novos desafios e necessidades; iv) o que faz o CT “tradicional”, como bem assinala a UNCTAD, não é a sua antigüidade, mas “a forma em que é adquirido e usado”. Em outras palavras, é o processo social de aprendizagem e de compartilhamento do conhecimento, que é próprio e único a cada cultura (tradicional) e que se encontra no centro das suas tradições (Four Directions Council, 1996 apud UNCTAD).

Para sintetizar, Rahman (2000) propõe que o termo CT deve ser designado essencialmente como um conhecimento oral com forte conteúdo tácito que tem evoluído dentro da comunidade local (povo comum) e tem sido passado de uma geração a outra, incluindo não só o saber local ou indígena, mas também o conhecimento científico e outros conhecimentos adquiridos de estranhos.

 

A importância do enfoque de CT

Atualmente os sistemas de CT constituem o eixo de todas as discussões em torno do desenvolvimento socioeconômico sustentável e da mitigação da pobreza nos países em desenvolvimento (Brokensha et al., 1980; Compton, 1989; Niamir, 1990; Warren, 1990; Gupta, 1992 apud Rahman, 2000). Cada vez mais, tanto no Norte como no Sul, o CT está sendo visto como um recurso valioso e seu enfoque inicia uma nova orientação que deveria ter ocorrido há muito tempo. Ele representa uma mudança em relação às propostas de melhorias para os pequenos produtores e camponeses centradas em orientações tecnicistas e que claramente falharam em seus objetivos.

A literatura sobre CT ou CI, desenvolvimento agrícola e manejo ambiental oferece abundantes evidências sobre atividades humanas que utilizam princípios científicos implícitos e complexos (por exemplo, Atte 1992; Warren, 1992b; McCorkle, 1994; Lansing e Kremer, 1995 apud Rahman, 2000). Ao mesmo tempo, tem sido demonstrado que a exclusão desses conhecimentos no processo de desenvolvimento trouxe conseqüências desastrosas para muitas regiões do mundo, onde o conhecimento externo foi imposto sem ter em conta o CT (Cashman, 1989; Lasing e Kremer, 1995 apud Rahman, 2000).

Por outro lado, diversos autores apontam para as limitações do CT (Leach e Mearns, 1988; Reijntjes et al., 1992; Bebbington, 1993; Howard e Widdowson, 1996), argumentando que esse tipo de conhecimento não é capaz por si mesmo de tratar todos os temas relacionados ao desenvolvimento socioeconômico e diminuir a pobreza (Murdoch e Clark, 1994 apud Rahman, 2000). Alguns pesquisadores até defendem a necessidade da sua formalização, dada sua natureza fragmentária e provisória. Em contraste com o Conhecimento Científico, que se caracteriza pela objetividade ao possuir uma linguagem universal e estar codificado, o CT permanece pouco conhecido e é geralmente visto como o seu oposto.

Diferenças e semelhanças entre o Conhecimento Tradicional (CT) e o  Conhecimento Científico (CC)

Diversos autores argumentam que os sistemas do CT e do CC deveriam ser diferenciados nos seguintes campos: (1) no campo substantivo, dadas as diferenças entre o CT e o CC no que diz respeito aos seus elementos importantes e às suas características; (2) nos campos metodológicos e epistemológicos, dado que as duas formas de conhecimento utilizam métodos diferentes para investigar a realidade; e (3) nos campos contextuais, porque o CT é mais profundamente enraizado em seu meio (Chambers, 1980; Howes in Chambers, 1980; Warren, 1990; Banuri e Apffer-Marglin, 1993 apud Rahman, 2000).

A seguir o quadro apresenta algumas distinções entre os sistemas de CT e CC.

 

Conhecimento tradicional

Conhecimento científico

Conhecimento tácito (subjetivo)

Conhecimento explícito (objetivo)

Conhecimento de experiência (corpo)

Conhecimento de racionalidade (mente)

Conhecimento simultâneo (aqui e agora)

Conhecimento seqüencial (naquele lugar, naquele tempo)

Conhecimento analógico (prático)

Conhecimento digital (teoria)

FONTE: Rahman, 2000.

Vários autores identificam as principais diferenças entre ambos os sistemas de conhecimento na sua caracterização em termos do grau de codificação. O sistema de Conhecimento Científico é reconhecido como conhecimento explícito e codificado. Lundvall e Borrás (1997: 31) assinalam que a codificação do conhecimento implica que este é transformado em informação facilmente transmitida através da infra-estrutura de informação. Em outras palavras, a codificação dos conhecimentos é o processo de conversão de um conhecimento em uma mensagem, que posteriormente pode ser manipulado como informação (Foray, 2000: 48). A codificação é o que permite explorar “esta propriedade única no homem, que é poder colocar sua memória além de si mesmo” (Leroi-Gourhan apud Favereau, 1998). Ela consiste em colocar o conhecimento em um meio de comunicação, sendo liberada a partir daí a sua ligação a uma pessoa (Foray, 2000). Trata-se, portanto, de um processo de redução e conversão que faz a transformação, a verificação, o armazenamento e a reprodução do conhecimento especialmente fáceis (Lundvall e Borrás, 1997). O conhecimento codificado é tipicamente expresso num formato compactado e padronizado que permite aos agentes realizar um certo número de operações, reduzindo, desse modo, seus custos e melhorando a confiabilidade das operações de armazenamento e memorização. À medida que o milieu permanece legível e o código não é esquecido, o conhecimento codificado pode, em princípio, estar armazenado e ser encontrado indefinidamente. A codificação também reduz drasticamente outros custos como os processos de transmissão (transporte e transferência), reprodução, acesso e busca. Conhecimento codificado é facilmente reproduzível, o que permite a sua “multiplicação” e melhora as suas condições de procura e transportabilidade (Simon, 1982 apud Foray, 2000). Normalmente esse conhecimento pode ser transferido para grandes distâncias e além de limites organizacionais (Foray e Lundvall, 1996 apud Lundvall e Borrás, 1997. O conhecimento codificado tem ainda a vantagem de se aproximar das características de uma mercadoria, podendo o seu conteúdo e propriedade intelectual ser especificados e descritos de forma precisa. O conhecimento se torna transferível, independentemente da transferência de outros recursos, como as pessoas que incorporam conhecimento tácito (Foray, 2000).

O Conhecimento Tradicional, por sua vez, é reconhecido como conhecimento tácito, entendido como todo conhecimento que não pode ser facilmente transferido por não ter sido exposto em forma explícita (Lundvall e Borrás, 1997). Esses autores enfatizam que  todos os conhecimentos e saberes têm uma dimensão tácita importante, o que significa que a sua pesquisa (em termos de procura), acesso, transporte, armazenamento, intercâmbio e operacionalização tornam-se difíceis e às vezes impossíveis de serem realizados. Polanyi (apud Foray, 1997) introduziu o conceito de conhecimento tácito, notando que “todos nós sempre sabemos mais do que podemos dizer”. Os conhecimentos tácitos não são expressos na hora da ação por aqueles que os detêm e são, inclusive, muitas vezes, desconhecidos ou não valorizados por seus detentores (Foray, 1997). Um tipo de conhecimento tácito muito importante é a habilidade. Uma pessoa hábil segue códigos não reconhecidos como tal, mesmo pela pessoa que os segue (Polanyi, 1958 apud Lundvall e Borrás, 1997). As crenças implícitas mais compartilhadas e seus modos de interpretação que possibilitam uma comunicação inteligente constituem um outro importante tipo de conhecimento tácito (Lundvall e Borrás, 1997).

Pelas suas próprias características, o conhecimento tácito é um bem que se presta mal para numerosas operações: (a) o intercâmbio, difusão e aprendizagem dos conhecimentos tácitos supõem a mobilização e demonstração voluntária das pessoas que os possuem e são, portanto, custosos e difíceis de utilizar; (b) o armazenamento e a memorização dos conhecimentos tácitos dependem da renovação, de geração em geração, das pessoas que detêm este conhecimento. Em muitos domínios dos conhecimentos, e mesmo naqueles que parecem mais racionais e sistemáticos, o risco de désinvention é muito grande. Por exemplo, MacKenkie e Spinardi 1995 (apud Foray, 1997) mostraram que, ao contrário do senso comum, é possível desinventar até uma bomba. Dentro do domínio das armas nucleares, estudado pelos pesquisadores, os conhecimentos tácitos são tão importantes que a ruptura de uma geração provocaria a perda de numerosos procedimentos e simplesmente levaria ao “esquecimento da maneira em que ela é feita”; (c) a procura de elementos de conhecimento complementares e apropriados a um projeto está em grande medida limitada por sua natureza tácita. Os conhecimentos tácitos não podem ser classificados nem inventariados sistematicamente (Foray, 1997). De acordo com Polanyi, a única maneira de transferir tal tipo de conhecimento é através de uma forma específica de interação social similar às relações de aprendizagem. Isto implica que ele não pode ser vendido nem comprado no mercado e que a sua transferência é especialmente sensitiva ao contexto social (Lundvall e Borrás, 1997).

Assim, a distinção entre o conhecimento codificado e o tácito não é apenas menos nítida do que muitas vezes se supõe, mas ambos os aspectos são quase sempre complementares, em graus variados. Essa mesma complementaridade implica limites naturais para codificar o conhecimento. O ponto principal, aqui, é que a codificação nunca é completa e algumas formas de conhecimento tácito continuarão a desempenhar um papel importante. Ao mesmo tempo, o aumento da codificação não reduz necessariamente a importância relativa do conhecimento tácito, principalmente habilidades e capacidades, nos processos de aprendizagem e acumulação de conhecimento (Lundvall e Borrás, 1997).

Na codificação do conhecimento científico, tecnológico e das inovações, a maioria dos códigos só pode ser decodificada por expertos que já investiram pesadamente no seu aprendizado. O conhecimento tácito pode ser compartilhado através da interação humana e esta pode ser o maior estímulo à formação de redes. Isto significa que os conhecimentos codificados e tácitos são complementares e coexistem no tempo.

Nesse sentido, diversas instituições e autores, tais como IUCN [4] , UNEP [5] e WWF [6] , 1991; Johnson, 1992, Labatut e Akthar, 1992 (apud Rahman, 2000) argumentam que o desenvolvimento sustentável só pode ser alcançado pelo desenvolvimento de ciência baseada nas necessidades locais das pessoas e pela criação de uma estrutura tecnológica que inclua enfoques para a solução de problemas tanto tradicionais como modernos.

A conciliação dos sistemas de CC e CT reside mais na constituição de combinações harmoniosas dos conhecimentos codificados e tácitos do que na transformação maciça do conhecimento tácito em conhecimento codificado. Nesse sentido, Sillitoe (1999) propõe que se considere os dois sistemas como um continuum. Assim, seria necessário delinear uma metodologia mediadora entre as contradições que caracterizem a promoção da pesquisa científica, por um lado, e a perspectiva de conhecimento indígena, por outro. Estas contradições podem ser vistas como pólos extremos de um continuum que vai do saber indígena ao conhecimento científico. Assim, o local do CT contrasta com o entendimento global do CC; o CT é mais cultural - e estreitamente contextualizado - , ao passo que o CC é cosmopolita e tem aspirações teóricas universais. Os métodos do CT são mais indutivos, com um modelo “fraco” do mundo que está implícito na tradição do conhecimento e altamente desconhecido, é até mesmo incompreensível, segundo dizem os pensadores pós-modernos, por parte daqueles “externos” envolvidos em “desenvolvimento”. Em contraste, os métodos do CC são mais dedutivos, com um modelo “forte” do mundo e com métodos padronizados que permitem a sua pesquisa. Não se pode esperar, portanto, que um seja congruente com o outro. Trata-se mais de contrastes e paralelos. Deve-se reconciliar o conhecimento indígena, que é holístico e amplo, com o entendimento sistemático do conhecimento científico e de especialistas altamente instruídos. Segundo o autor, esse seria o caminho para promover uma pesquisa transcultural e dessa forma atingir “o conhecimento continuum” (figura 1).

 

Figura 1: O conhecimento continuum

 

FONTE: Sillitoe, 1999.

 

Desde um outro enfoque, Correa (1999) apresenta uma reflexão ampla  sobre as diferenças entre os sistemas de conhecimentos tradicionais (indígenas e de comunidades locais), científicos e tecnológicos. Algumas similaridades e diferenças são apresentadas no seguinte quadro:

 

Sistema de conhecimento

Criadores/Inventores

Métodos

Sistema de recompensas

Validação/ avaliação

Codificação

Difusão

Indígena Tradicional

Comunidades

Teórico-Empírico

Reputação Serviço à comunidade

Uso

Tácita/codificada

Restringida

Ciência

Indivíduos/Grupos de Pesquisadores

Científicos

Reputaçãopela primeiradescoberta

Avaliaçãopelos pares

Codificada (publicações)

Livre

Tecnologia

Indivíduos/ Empregados

Empírico/ Científico

Aprovação dos benefícios

Êxito de mercado

Tácita/Codificada

Sujeita a autorização prévia

FONTE: Correa, 1999.

Segundo o autor, a comparação do sistema tradicional (“indígena/ tradicional”) com os outros sistemas indica claras diferenças a respeito de quem cria o conhecimento e dos métodos de validação, compensação e apropriação.

O conhecimento nas comunidades locais e populações indígenas é criado socialmente, ou seja, pelas comunidades, ao passo que a ciência e a tecnologia são criadas por indivíduos e equipes de investigadores, independentes ou empregados das empresas e outras instituições. Assim, mais do que distinguir entre tácito e codificado, o CT se caracteriza pela fraca separação deste conhecimento em relação ao conjunto do discurso e da sociabilidade cotidianos. O grau de especialização deste conhecimento é baixo, embora exista sob a forma de “sábios” “curandeiros” etc.

O conhecimento nas populações indígenas e nas comunidades locais é validado através do uso no seu próprio interior, ou seja, pela experiência empírica.  Por outro lado, o conhecimento científico é validado mediante a avaliação dos pares e a tecnologia é validada pela sua utilização no mercado. No sistema tradicional, a recompensa se baseia na reputação do portador do conhecimento sagrado ou especializado e no serviço que ele presta à comunidade. Na ciência, o renome concedido à primeira descoberta constitui o principal meio de recompensa, enquanto no sistema da tecnologia é a obtenção de utilidades. “A crescente dependência de avanços em conhecimento científico como a fonte principal de novas oportunidades tecnológicas promoveu a colaboração entre as firmas e centros científicos como laboratórios públicos e privados, universidades e outros centros de pesquisa públicos e privados” (Lundvall e Borrás, 1997: 30). Conseqüentemente, cada vez mais, os valores do sistema tecnológico influem na produção da ciência, inclusive na procura de compensação econômica para a investigação científica (Gibbons et al., 1994 apud Correa, 1999).

Em relação às semelhanças entre os sistemas, podemos citar o caráter fundamentalmente cumulativo da criação de conhecimento tanto no sistema tradicional como no sistema tecnológico. No sistema tradicional, ele é construído a partir de um conhecimento já existente, incorporando o aprendizado realizado pelos integrantes da comunidade na sua interação com o sistema que os rodeia como um todo. Ou seja, ele é permanentemente readaptado às novas necessidades e poderia se dizer que o conhecimento surge a partir de um learning by doing. Ele pode ser caracterizado como um conhecimento com forte carga tácita, cumulativo, empírico, construído socialmente e não-documentado e difundido oralmente entre pessoas de uma comunidade ou de uma geração a outra. A tecnologia avança tanto mediante inovações radicais como incrementais. As segundas, mais freqüentes, desempenham um papel básico na mudança tecnológica, sendo geradas a partir da integração de insumos científicos e empíricos e geralmente são produzidas através de um learning by doing. Muitas dessas inovações de caráter incremental não chegam a ser codificadas, permanecendo como conhecimento tácito num modo informal.

São características habitualmente vistas como sendo compartilhadas pelo sistema tradicional e pela ciência a falta de apropriação do conhecimento criado sob a forma de DPI e, portanto, a sua livre difusão sem restrições ao seu acesso. Em conseqüência, tanto o conhecimento tradicional como o da ciência pertenceriam ao domínio público (Correa, 1999). Hoje, porém, isto é uma questão de muita controvérsia na literatura e nas últimas décadas houve mudanças importantes em relação ao conhecimento científico.

O ritmo de mudança tecnológica acelerou enormemente, ilustrado sobretudo pela redução significativa do tempo necessário para o lançamento de novos produtos high-tech. Ao mesmo tempo, os produtos são integrados por diferentes tecnologias e estas, por sua vez, baseiam-se crescentemente em diferentes disciplinas científicas (Lundvall e Borrás, 1997: 30). O conhecimento científico crescentemente ocupa um papel central no processo de inovação tecnológica e a geração destes produtos high-tech se sustenta em conhecimento científico interdisciplinar. Dominar a fundo toda a variedade das especialidades requeridas ou levar adiante sozinho os empreendimentos necessários resulta impossível, inclusive para as grandes firmas. Conseqüentemente, existe uma crescente expansão de projetos de colaboração entre as grandes firmas e os centros de P&D públicos e/ou privados, com uma tendência à formação de redes. Observa-se também a contratação e/ou financiamento por parte de entidades privadas de determinadas linhas de pesquisa em organismos de P&D públicos. Dado o papel central que o conhecimento científico desempenha no processo de geração de inovações (produtos a serem lançados no mercado), muito dele passa a ser protegido por DPI e, portanto, deixa de pertencer ao “domínio público”. No entanto, o conhecimento tradicional, de acordo com Correa, é considerado como de “domínio público” no quadro jurídico vigente, uma vez que não se enquadra nos sistemas de propriedade intelectual existentes, apesar de não ser essa a concepção aceita nas próprias comunidades.

 

Em defesa de direitos de propriedade para o “Conhecimento Tradicional” como fonte de inovação

Os avanços mais importantes nos estudos de inovação, particularmente na literatura da economia evolucionista (neo-shumpeteriana) e na sociologia da inovação - abrangendo diversas unidades de análise, desde sistemas de inovação nacionais e locais, até clusters ou redes - têm destacado a natureza coletiva da inovação. A contrapartida da atenção dada às características dinâmicas, coletivas e indivisíveis das inovações tem sido a atribuição de um status-chave ao conhecimento tácito, não-codificável, na produção de inovações. A noção de “ativos intangíveis” (Storper, 1997) é o que capta melhor essa característica, demonstrando que tais “ativos” são igualmente importantes nos sistemas de inovação de alta e baixa tecnologia.

Esses estudos (Pavitt, 1984, Dosi, 1988) exploram a pluralidade dos regimes de apropriação que não são redutíveis à atribuição de patentes, mas que envolvem a ação coletiva de explorar as vantagens de learning by doing e learning by using. Nesses sistemas, o conhecimento não-codificável, previamente visto como sendo residual ao avanço do conhecimento “científico”, é considerado essencial para o conhecimento científico envolvido na maioria das atividades de inovação. Essa literatura, portanto, torna obsoletas as polarizações anteriores nas quais o conhecimento não-codificável era identificado ao local e ao tradicional para ser defendido contra ou substituído por um conhecimento universalista, a depender do sistema de valores do pesquisador/ator em questão (Lundvall, 1988).

A literatura à qual fazemos referência também chama a atenção para a pluralidade dos processos de inovação, inclusive dentro do mundo industrial, e assim realça o caráter excepcional do modelo codificável e divisível, mais assimilável ao sistema de apropriação de patentes. A teoria francesa das convenções [7] enfatiza a necessidade de identificar distintos mundos de produção e as bases em que cada um pode ser defendido e justificado (Boltanski e Thévenot, 1991). Pensamos que essa noção pode ser estendida à análise dos distintos “mundos de inovação”. Desse modo, poderíamos distinguir: o mundo de inovação do modelo industrial com toda sua diversidade interna, o mundo de inovação dentro da comunidade científica e acadêmica, o mundo artístico e o mundo das inovações no interior das comunidades artesanais e tradicionais. Todos esses mundos sofrem a pressão de subordinação ao modelo de inovação industrial e este último é, de modo crescente, reduzido a um padrão codificável e individualizado que, na realidade, adapta-se apenas a processos muito específicos de inovação industrial. Mesmo nesses casos, a crescente tendência de construir redes interdependentes de pesquisa torna a concessão de patentes mais complexa e contenciosa (Callon, 1995).

As pressões contemporâneas para a adoção de um regime regulador único e global, baseado no fortalecimento e na universalização do sistema de patentes, se chocam com a convergência existente em grande parte da literatura de diferentes tradições disciplinares sobre o papel-chave dos aspectos coletivos e não-codificáveis da inovação. Essa tendência reproduz o paradigma “tradicional-moderno” que a literatura acima referida demonstra como inapropriado para a análise da maioria dos processos de inovação. Tais considerações são particularmente relevantes quando consideramos a questão da inovação e apropriação no campo das biotecnologias, no qual mundos nitidamente contrastantes se tornaram dependentes, como é o caso da indústria farmacêutica e das comunidades indígenas.

A indústria farmacêutica foi o principal grupo de interesse e de lobby na promulgação da universalização do sistema de direitos da propriedade intelectual. Essa indústria é um setor industrial no qual as inovações possuem a característica de ser altamente divisível e codificável (Ryan, 1998). Como resultado, o processo de inovação está sujeito aos riscos da fácil imitação e o sistema de DPI, via patentes, apresenta-se como o mecanismo mais eficiente de apropriação privada (que não necessariamente se equaciona com o ótimo do benefício social da inovação em questão). O potencial das biotecnologias levou a indústria farmacêutica a adotar uma rota de inovação que depende crucialmente de recursos genéticos, o que conduziu a indústria a fazer um forte lobby para a extensão do sistema de apropriação via DPI para tais recursos. Ao mesmo tempo, o reconhecimento de um único sistema de produção de conhecimento levou o conhecimento tradicional a ser tratado como propriedade comum, abrindo desta maneira as portas à biopirataria.

Como já foi apontado no início, ao considerar o papel desempenhado pelas comunidades tradicionais na conservação e manejo sustentável da biodiversidade, pode-se argumentar que a biodiversidade, a base dos recursos genéticos, não representa um estado da natureza, mas é o resultado de uma inovação coletiva intergerações conduzida por populações indígenas e comunidades locais. Esse tipo de produção de conhecimento, portanto, deve ser reconhecido como um dos “mundos de inovação” legítimos, do mesmo modo que são os mundos de inovação industrial, artístico, científico e artesanal.

A produção de conhecimento nas comunidades indígenas não pode mais ser vista segundo o eixo “tradicional-moderno”, mas deve ser entendida como um tipo de atividade de inovação coletiva que envolve um alto grau de conhecimento não-codificável, uma característica que a literatura de inovação mostra poder igualmente estar presente nas atividades de alta tecnologia, como no caso de Silicon Valley.

Trata-se de uma mistura específica de processos codificáveis/não-codificáveis e coletivos/individuais que exigem a elaboração de adequados regimes de apropriação com a finalidade de contemplar eqüitativamente todos os atores envolvidos no processo e que deve ser reconhecida no plano internacional em equivalência com outros regimes, sejam eles patentes, direitos autorais ou proteção de informação confidencial. Um exemplo disto poderia ser os Acordos International Cooperative Biodiversity Goups (ICBG), dos quais participam instituições de pesquisa (mundo de inovação científica), indústrias farmacêuticas (mundo de inovação industrial) e populações indígenas (mundo de inovação das comunidades tradicionais), nos quais se tem estabelecido arranjos contratuais específicos para a apropriação dos benefícios para que todos sejam eqüitativamente considerados.

Reconhecendo o “conhecimento tradicional” como um “mundo de inovação” legítimo e levando em conta o que revela a literatura antropológica sobre os conceitos e direitos de propriedade – ou seus equivalentes – que existem na maioria, se não em todas as comunidades tradicionais, deveríamos mudar os conceitos hoje predominantes nas leis sobre o que pertence ao domínio público e ao domínio privado. Assim devemos devolver muito do que é chamado CT de domínio público à esfera privada das populações indígenas e comunidades tradicionais. 

Dutfield (2000b) mostra como as leis ocidentais tratam o conhecimento existente no mundo, onde apenas dois tipos de conhecimento são reconhecidos: o conhecimento privado, que é protegido por DPI, e o conhecimento de domínio público, que é constituído pelos bens comuns. Sob essa ótica, o conhecimento das comunidades tradicionais estaria compreendido na segunda categoria. Porém, o autor argumenta que há outros domínios privados, como, por exemplo, segredos tácitos e informação confidencial e conhecimentos protegidos de acordo com leis e práticas consuetudinárias. O problema fundamental dentro dos sistemas de DPI reside, portanto, na falha da lei ao não respeitá-los

 

Conclusões

A partir da incorporação dos TRIPs na OMC, o quadro regulador encaminha pela globalização da adesão a um só modelo de proteção da propriedade intelectual na forma da extensão do sistema de patentes a todas as esferas de inovação e sobretudo aos novos produtos e processos de biotecnologia. Este cenário dificulta o reconhecimento e a proteção do papel inovador do conhecimento tradicional na geração e preservação da biodiversidade, origem dos recursos genéticos e decisiva para a indústria de base biotecnológica, que é tratada como bem público. Paradoxalmente, o mundo acadêmico demonstra que esse modelo, cujo “tipo ideal” é individualista e altamente codificável, representa apenas uma modalidade específica de inovação no mundo moderno. Inovação é cada vez mais vista como uma ação coletiva com forte carga de inputs tácitos que são transmitidos por aprendizagem. Tais enfoques, que incluem contribuições da tradição neo-schumpeteriana e podem ser pensados também a partir da abordagem francesa das convenções, convergem com uma série de autores que interpretam o conhecimento tradicional a partir de um enfoque de inovação. Essas contribuições oferecem uma base para reconhecer o papel estratégico da ação inovadora das comunidades tradicionais em relação aos recursos genéticos mediante os quais podem ser elaboradas propostas apropriadas de regulação que protegem os seus direitos de propriedade intelectual.

 

Referências bibliográficas

Boltanski, L. e Thévenot, L. De La Justification; Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

Brasil. Ministério do Meio Ambiente. Áreas Prioritárias para Populações Tradicionais e Povos Indígenas. In: Avaliação e identificação de ações prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade na Amazônia brasileira. Brasília: MMA/SBF, 2001.

Brush, Stephen B. Whose Knowledge, Whose Genes, Whose Rights? In: Valuing Local Knowledge: Indigenous People and Intellectual Property Rights. Edited by Stephen B. Brush e Doreen Stabinsky, 1996.

Callon, Michel. Externalités et Politiques Publiques. Paris (mimeo), 1995.

Correa, Carlos. La Conservación de Recursos Genéticos Vegetales y los Derechos de Propiedad Intelectual. In: Derechos Comunitarios Intelectuales, Rurales 5 ano 3, n. 1, 1999.

Dosi, Giovanni. Sources, Procedures and Microeconomic Effects of Innovation. Journal of Economic Literature, v. XXVI, setembro, 1988.

Dutfield, Graham. Developing and Implementing National Systems for Protecting Traditional Knowledge: A Review of Experiences in Selected Developing Countries. UNCTAD, Expert Meeting on Systems and National Experiences for Protecting Traditional Knowledge, Innovations and Practices. Genebra, out./nov., 2000a.

_________. Public and the Private Domains. Intellectual Property Rights in Traditional Knowledge. Science Communication, v. 21, n. 3, março 2000b.

Foray, Dominique. L’économie de la connaissance. Paris: Éditions La Découverte & Syros, 2000.

German Castelli, Pierina. Biodiversidade: Direitos dos Recursos Tradicionais versus Direitos de Propriedade Intelectual. Texto do Exame de Qualificação do Curso de Doutorado em Desenvolvimento e Agricultura (inédito), 2001.

German Castelli, P. e John Wilkinson. Genetic Resources and Biodiversity: Traditional Resource Rights versus Intellectual Property Rights. Paper apresentado ao Human Dimensions of Global Environmental Change Research Community, Hotel Glória, Rio de Janeiro (inédito), outubro de 2001. 

Lundvall, Bengt-Åke. Innovation as an interactive process: from user-producer interaction to the national system of innovation. In: Technical Change and Economic Theory. Edited by Giovanni Dosi, Christopher Freeman, Richard Nelson, Gerald Silverberg, Luc Soete. London and New York: Printer Publishers, 1988. 

Lundvall, Bengt-Ake e Borrás, Susana. The globalising learning economy: Implications for innovation policy. Report based on contributions form seven projects under the TSER programme. DG XII, Commission of the European Union, dezembro, 1997.

Pavitt, Keith. Sectoral Patterns of technical change: towards a taxonomy and theory. In: Research Policy, v. 13 (6), 1984.

Rahman, Ataur. Development of an Integrated Traditional and Scientific Knowledge Base: A Mechanism for Accessing, Benefit-Sharing and Documenting Traditional Knowledge for Sustainable Socio-Economic Development and Poverty Alleviation. UNCTAD Expert Meeting on Systems and National Experiences for Protecting Traditional Knowledge, Innovations and Practicies. Genebra, out./nov., 2000.

Ryan, Michael P. Knowledge Diplomacy, Global Competition and the Politics of Intellectual Property. Washington D.C.: Brookings Institutions Press, 1988.

Sillitoe, Paul. Defining indigenous knowledge: the knowledge continuum. In: Indigenous Knowledge and Development Monitor 6(3). CIRAN, 1999.

Storper, Michael. The Regional World. Territorial Development in a Global Economy. New York: The Guilford Press, 1997.

Wilkinson, John. A New Paradigm for Economic Analysis? Economy and Society, v. 25, n. 3, London, 1997.

_____________. A contribuição da teoria francesa das convenções para os estudos agroalimentares – algumas considerações iniciais. Ensaios EFE, Porto Alegre, v. 20, n. 2, 1999.

 

Notas

[1] Trade Related Intellectual Property Rights.

[2] Neste trabalho quando falamos de comunidades tradicionais nos referenciamos às populações indígenas e comunidades locais das florestas tropicais e outros centros de diversidade que têm em comum, ou pelo menos em parte, uma história de baixo impacto ambiental. Exemplos destas comunidades seriam os seringueiros e os castanheiros de caju da Amazônia, as populações dos Quilombolas, os campesinos dos Andes etc.  

[3] United Nations Conference on Trade and Development.

[4] The World Conservation Union.

[5] United Nations Environment Programme.

[6] World Wild Foundation.

[7] A abordagem da Teoria das Convenções consiste em uma teoria organizacional generalizada da atividade econômica, interpretada dentro de uma perspectiva dinâmica e intertemporal dos atores, através da noção de “aprendizado coletivo” (Faverau, 1994 citado por Wilkinson, 1999).