Estudos Sociedade e Agricultura

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Sergio Schneider

A pluriatividade como estratégia de reprodução social da agricultura familiar no Sul do Brasil


Estudos Sociedade e Agricultura, 16, abril 2001: 164-184.

Resumo: (A pluriatividade como estratégia de reprodução social da agricultura familiar no Sul do Brasil). Este trabalho examina a emergência e a consolidação de atividades não agrícolas no espaço rural e a formação de unidades produtivas agrícolas crescentemente identificadas com a pluriatividade de seus membros. Situa-se no âmbito das pesquisas que buscam demonstrar os mecanismos e as estratégias que vêm viabilizando formas familiares de produção no campo. A combinação permanente de atividades agrícolas e não agrícolas, em uma mesma família, caracteriza e define a pluriatividade, que tanto pode ser um recurso ao qual a família faz uso como representar uma estratégia individual dos membros que constituem a unidade doméstica. O estudo focaliza as unidades familiares localizadas na região da Colônia Velha alemã, no Rio Grande do Sul, e na região do Médio Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Nessas regiões, parte significativa das unidades familiares não depende mais exclusivamente do trabalho agrícola, pois seus membros ampliam o orçamento doméstico através do recurso por meio de atividades realizadas fora da propriedade, em tempo integral ou parcial. As atividades não agrícolas desenvolvidas são variadas, dependendo do contexto na qual as unidades familiares se inserem. A adesão à pluriatividade algumas vezes provoca modificações na organização da unidade produtiva agrícola, estimulando o uso da terra para cultivos permanentes, como o reflorestamento, ou a agricultura de subsistência. Outras vezes, a pluriatividade de membros da família não afeta a produção agrícola, caracterizando-se basicamente como estratégia de emprego de mão-de-obra excedente na agricultura. Esta delimitação da problemática social investigada fornece a moldura e o escopo da discussão teórica desenvolvida na tese, sobre o significado da pluriatividade numa sociedade capitalista, com base principalmente na contribuição marxista e neomarxista ao estudo da questão agrária.

Palavras-chave: pluriatividade, agricultura familiar, reprodução social, atividades não agrícolas.

Abstract: (Pluriactivity as a Strategy of Social Reproduction for Family Farming in the South of Brazil). This paper examines the emergence and consolidation of non-agricultural activities in rural areas and the formation of productive units increasingly identified with the pluriactivity of rural families. The permanent combination of agricultural and non-agricultural activities within a single family characterizes and defines pluriactivity, either as a familiar strategy or as the result of individual decisions by household members. The study focusses on family  units located in the region of the Old German Colony in the state of Rio Grande do Sul and in the region of the Itajaí Valley in state of Santa Catarina. In these regions, many family farms do not depend anymore exclusively on agriculture activities, and increase their domestic budget through off farm activities, either part or full-time. The non agricultural activities undertaken are varied and depend mostly on the context in which those family farms are inserted. The adoption of pluriactivity some times promotes changes in the family farm’s organization, such as the use of a large part of the land for forestry or the practice of agriculture exclusively for self-subsistence. At other times, the pluriactivity of some of the family members does not affect agricultural production, since it basically represents a strategy of employment for family labour not needed in the agricultural activity. This definition of the social issue involved in the research offers a framework and delimits the scope of the theoretical discussion on the meaning of pluriactivity in a capitalist society, based principally on marxist and neo-marxist contributions to the agrarian question.

Key words: pluriactivity, family farming, social reproduction, non-agricultural activities.

Sergio Schneider é professor da UFRGS.


Introdução

Este trabalho examina as relações da agricultura familiar com a emergência e consolidação das atividades não agrícolas no espaço rural e a formação de unidades produtivas crescentemente identificadas com a pluriatividade das famílias rurais. Agrega-se, portanto, às pesquisas que vêm sendo realizadas para aprofundar os conhecimentos sobre a agricultura familiar e suas possibilidades de desenvolvimento social e econômico. O objetivo deste trabalho é o de contribuir com as pesquisas que vêm tentando demonstrar os mecanismos e as estratégias que viabilizam, e em certos casos até estimulam, as formas familiares no campo. O estudo analisa as unidades familiares localizadas na região da Colônia Velha alemã, no Rio Grande do Sul (especialmente a microrregião da Encosta Inferior da Serra), e na região do Vale do Itajaí (sobretudo a microrregião do Médio Vale), em Santa Catarina, no Sul do Brasil. Nessas regiões, parte significativa das unidades familiares não desempenha mais exclusivamente atividades agrícolas, pois as famílias ampliam o orçamento doméstico por meio de atividades realizadas fora da propriedade. Na maioria das vezes, são unidades que diversificaram suas fontes de renda e, além da agricultura, os membros que integram a família exercem várias outras atividades, algumas inclusive em tempo parcial. Se em outras épocas os agricultores recorriam esporadicamente aos trabalhos não agrícolas, visando complementar as receitas da propriedade, atualmente este fenômeno é permanente e representa muito mais do que uma mera suplementação de rendas.

Essa combinação permanente de atividades agrícolas e não agrícolas, em uma mesma família, é que caracteriza e define a pluriatividade, que tanto pode ser um recurso ao qual a família faz uso, para garantir a reprodução social do grupo ou do coletivo que lhe corresponde, como também pode representar uma estratégia individual, dos membros que constituem a unidade doméstica. A pluriatividade pode ainda adquirir significados diversos e servir para satisfazer projetos coletivos ou como resposta às decisões individuais. Além disso, as características da pluriatividade variam de acordo com o indivíduo-membro que a exerce, pois o exercício de atividades não agrícolas acarreta efeitos distintos sobre o grupo doméstico e sobre a unidade produtiva, de acordo com variáveis como o sexo ou posição na hierarquia da família de quem a pratica. O mesmo pode-se dizer das condições sociais e econômicas locais, do ambiente ou do contexto, em que ocorre a pluriatividade. Nesse caso, variáveis exógenas à unidade familiar, como o mercado de trabalho e a infra-estrutura disponível, entre outros, são fatores determinantes da evolução e das tendências de tais fenômenos.

Neste trabalho não serão discutidos os efeitos que o ambiente social e econômico exerce sobre as unidades familiares pluriativas em duas situações concretas, localizadas na região meridional brasileira. Desta forma, este artigo pretende contribuir para cobrir uma lacuna, existente até o momento, na literatura que discute o crescimento das atividades não agrícolas e da pluriatividade no espaço rural brasileiro. Os esforços que vimos realizando no âmbito do Projeto Rurbano, cujos resultados a esta altura já são de domínio público, indicam a necessidade de avançar na direção de análises empíricas que possam melhor evidenciar os aspectos que os dados secundários já indicaram. [1]

A pluriatividade é aqui entendida como uma estratégia de reprodução social, da qual se utilizam as unidades agrícolas que operam fundamentalmente com base no trabalho da família, em contextos onde sua integração à divisão social do trabalho não decorre exclusivamente dos resultados da produção agrícola mas, sobretudo, mediante o recurso às atividades não agrícolas e a articulação com o mercado de trabalho. Nesse sentido, assim argumenta-se, embora integradas ao ordenamento social e econômico, estas unidades familiares encontram espaços e mecanismos não apenas para subsistir, mas para se afirmar como uma forma social de organização do trabalho e da produção de características multivariadas.

Com base nessa orientação teórica, a agricultura familiar e a pluriatividade são analisadas comparativamente, apoiando-se em dois estudos de caso, um deles focalizando a localidade de Padre Eterno Ilges (município de Santa Maria do Herval), no Rio Grande do Sul, e o outro a localidade de Braço do Sul, situada no distrito de Vila Itoupava (município de Blumenau), em Santa Catarina. O método comparativo é utilizado de duas maneiras: uma delas, comparando-se os dois casos estudados diretamente, um em cada estado, e a outra, comparando-se famílias de agricultores com famílias pluriativas, o que permitiu comparar não apenas as famílias entre os dois estados, mas também em uma mesma localidade, entre famílias de agricultores e famílias pluriativas.

A pesquisa de campo realizada nessas duas localidades contou com a utilização de várias técnicas de investigação social. Antes da definição e da escolha dos locais da pesquisa de campo, foram realizadas viagens e visitas às re-giões, com o intuito de contatar informantes apropriados e obter evidências empíricas sobre a situação social e econômica das coletividades locais. A partir daí, elaborou-se um questionário estruturado para entrevistar famílias de agricultores e pluriativas, com pequenas modificações nas questões relacionadas à origem das rendas e sua forma de alocação, além de informações específicas sobre os processos produtivos dos agricultores e dos pluriativos. A utilização do questionário estruturado (ou diretivo), tipo survey, constituiu-se na principal técnica de pesquisa. Em ambas as localidades mencionadas foi estabelecida uma amostra aproximada de 30% do total das famílias de agricultores e famílias pluriativas, residentes nessas localidades. A amostra final foi constituída de 60 famílias, sendo um total de 37 famílias pluriativas e 23 de agricultores (23 do Rio Grande do Sul e 37 de Santa Catarina). Além destes dois questionários, aplicados às famílias, foi organizado um terceiro, que se destinou exclusivamente aos indivíduos das famílias pluriativas que efetivamente exerciam a combinação de atividades agrícolas e não agrícolas, cujos resultados não serão apresentados neste trabalho. Também foram realizadas entrevistas semi-estruturadas (ou não diretivas), com roteiro previamente elaborado com lideranças comunitárias e pessoas de referência da comunidade, com o objetivo de se inteirar melhor da situação social e econômica local.

 

1. Agricultura familiar e pluriatividade: para um referencial analítico

Uma revisão da extensa literatura internacional que analisa a agricultura familiar e a pluriatividade permite afirmar que os avanços teóricos e metodológicos mais significativos sobre tais temas localizam-se em torno de uma corrente do pensamento social denominada “Sociologia da Agricultura” (Buttel e Newby, 1980; Buttel, Larson e Gillespie Jr., 1990). Os autores que mais se aproximam das convicções teóricas analíticas perseguidas nesse trabalho são Marsden e Fuller. O esforço de Marsden para interpretar o processo de reestruturação capitalista e o papel da agricultura familiar e da pluratividade distingue-se, em alguma medida, dos outros autores da Sociologia da Agricultura e da Economia Política pelo seu empenho em compatibilizar a análise das transformações estruturais (encapsulada na utilização recorrente da idéia de “reestruturação capitalista”) com as mutações da agricultura familiar.

Na opinião de Marsden, em razão do recuo do padrão fordista de produção (também chamado de “pós-produtivismo”) na agricultura, revitalizam-se formas de produção e reprodução da força de trabalho no meio rural, sendo a pluriatividade a expressão mais eloqüente desse redirecionamento (Marsden, 1995, p.291) [2] . Assim, o espaço rural, que durante o fordismo se limitara a cumprir suas funções produtivas agrícolas, vai ganhando novas atribuições e aparece como ambiente onde se desenvolvem múltiplas atividades produtivas. Entre as novas funções do espaço rural, o autor destaca o papel do consumo de bens materiais e simbólicos (propriedades, festas, folclore, gastronomia, por exemplo) e serviços (ecoturismo, atividades ligadas à preservação ambiental etc), tentando mostrar que na fase pós-fordista o espaço rural não pode mais ser associado apenas à produção agrícola e ao uso da terra para cultivos de produtos alimentares e matérias-primas. Portanto, para se compreender o rural, é preciso ir além da perspectiva do agri-food system e recolocar a análise nos termos das relações de produção e consumo e da relação do espaço local com as mutações globais, a partir de uma perspectiva espacial e temporal apoiada na noção de desenvolvimento desigual. Nesse sentido, Marsden propõe que o conceito-chave para explicar a nova configuração socioeconômica e espacial do rural é a commoditization que:

“...representa um amplo processo social e político pelo qual os valores mercantis são construídos e atribuídos – neste caso – a objetos rurais e agrícolas e também ao artesanato e às pessoas. Ela não representa um processo único e universal o qual transforma, por exemplo, o processo de trabalho na agricultura (tal como sugerido na literatura marxista sobre o desenvolvimento agrário). Trata-se, pelo contrário, de um fenômeno diver-samente construído, em torno do qual os processos de desenvolvimento coalescem e se generalizam” (Marsden, 1995, p. 293, grifado no original). [3]

Com base nessas formulações, Marsden considera que a pluriatividade tende a se generalizar tanto em áreas de produção agrícola, onde o avanço tecnológico diminuiria a demanda de trabalho nas propriedades, como nas demais zonas rurais, onde o próprio Estado vêm estimulando o desenvolvimento de outras atividades econômicas, como o turismo e o artesanato (Marsden e Flynn, 1993). O autor acredita que esse processo conduzirá à revalorização do espaço rural, especialmente em razão do rápido crescimento do movimento ambientalista e dos processos de descentralização industrial, que tendem a ampliar o mercado de trabalho e, conseqüentemente, o exercício da pluriatividade pelas famílias rurais.

Nesse sentido, Marsden vê a pluriatividade como uma configuração par excellence das relações de trabalho contemporâneas, decorrente dos processos de relocalização econômica. Mesmo assim, embora Marsden insista no fato de que a pluriatividade seja uma decorrência da reconfiguração social, econômica e espacial da reestruturação capitalista, também chamada de fase pós-fordista, o autor reconhece que esses elementos “exógenos” (sobretudo o mercado de trabalho de atividades não agrícolas) não são suficientes para explicar inteiramente o fenômeno da pluriatividade. Para se compreender que tipo de impactos diferenciados essas transformações provocam nas decisões das famílias rurais, especialmente no que se refere ao recurso à pluriatividade como estratégia de reprodução social, Marsden sugere que sejam analisadas as relações sociais internas das propriedades e seus processos produtivos (1990, p. 378). Nestes termos, Marsden propõe que se “abra conceitualmente” a farmhouse door a partir do estudo das relações sociais engendradas pela dinâmica do processo de trabalho.

Outro autor que se constitui em importante referência para este trabalho é Anthony Fuller. Ainda que não afirme explicitamente sua adesão à Sociologia da Agricultura, seu referencial analítico é notoriamente ligado à “perspectiva crítica”, embora integre uma corrente teórica difusa e eclética que, de modo geral, está de acordo com a interpretação da pluriatividade baseada nos mecanismos que as famílias estabelecem com o mercado (no caso o mercado de trabalho), enfatizando que a natureza da divisão interna do trabalho exerce uma influência decisiva sobre as estratégias de reprodução adotadas por essas unidades. De forma mais ou menos explícita, Fuller concorda com a idéia de que se pode explicar a pluriatividade a partir da dinâmica interna das unidades familiares e de sua relação com o ambiente social e econômico externo, sendo, portanto, sua perspectiva analítica complementar à abordagem proposta por Marsden.

Em seus trabalhos mais recentes, especialmente atuando como consultor principal no projeto sobre “Estruturas Agrárias e Pluriatividade das Famílias Agrícolas (1987-1990)”, patrocinado pelo Arkleton Trust, Fuller tem defendido a idéia de que se deve estudar a pluriatividade com base na dinâmica interna da família, além de perceber suas reações ao jogo das instituições e dos condicionantes do mercado no sistema local (Fuller, 1987 e 1990; Fuller e Mackinnon, 1989). Para Fuller, a pluriatividade é um elemento de diversificação que pode se produzir no interior da família ou a partir do exterior, pois ela funciona como uma estratégia que se modifica de acordo com a dinâmica das famílias e de sua relação com a estrutura agrária existente (Brun e Fuller, 1991, p.25).

Nesse sentido, para Fuller (1990, p. 368), a pluriatividade apresenta variações muito expressivas de situações de espaço e tempo, ainda que se possa afirmar que sua característica fundamental seja a interação entre a agricultura, a unidade familiar e o mercado de trabalho. Do ponto de vista teórico e conceitual, isso implica na definição de três níveis de análise do fenômeno, que também foram utilizados no estudo realizado pelo Arkleton Trust. O primeiro toma a pluriatividade como uma expressão de determinados tipos de economias regionais ou locais. Ou seja, trata-se da sua projeção espacial no contexto regional ou local, bem como de suas interações com a estrutura econômica e as condições socioculturais e políticas ali instauradas. Neste caso, trata-se de saber quais os fatores regionais ou locais exercem poder de atração e estímulo ou de limitação ao desenvolvimento da pluriatividade. O segundo nível de análise refere-se à abordagem da família como o núcleo das decisões para compreender as relações entre a agricultura e a pluriatividade. As decisões de alocação dos recursos disponíveis (capital, trabalho etc.), bem como a opção por uma determinada estratégia de investimento em atividades agrícolas ou não agrícolas, são tomadas pelas famílias e tornam-se cruciais para a compreensão das diversas formas possíveis que assume a pluriatividade. O último nível de análise, por sua vez, refere-se à interpretação da pluriatividade como uma expressão da dinâmica das transformações socioeconômicas estruturais dos espaços rurais. Ou seja, trata-se do enfoque histórico e comparativo entre regiões, comunidades e até países para averiguar os fatores que podem contribuir para explicar as distintas funções da pluriatividade como, por exemplo, o tamanho e a composição das famílias e a disponibilidade de um mercado de trabalho de atividades não agrícolas (Brun e Fuller, 1991, p. 26 a 28).

 

2. A família pluriativa: uma unidade de análise

Com base nos elementos teóricos delineados, torna-se necessário fixar uma unidade de observação pertinente ao estudo da pluriatividade e da agricultura familiar. Nesse sentido, a abordagem aqui empreendida considera as famílias rurais como unidades onde a presença da pluriatividade deve ser entendida como um ponto de partida para reflexão sobre o próprio funcionamento e as características da agricultura familiar. A unidade de análise que servirá de referência a este trabalho, e que deverá se constituir em locus privilegiado da observação sociológica, será a família rural, entendida como um grupo social que compartilha um mesmo espaço (não necessariamente uma mesma habitação) e possui em comum a propriedade de um pedaço de terra. Esse coletivo está ligado por laços de parentesco e consangüinidade (filiação) entre si, podendo a ele pertencer, eventualmente, outros membros não consangüíneos (adoção). É no âmbito da família que se discute e se organiza a inserção produtiva, laboral e moral dos seus diferentes membros integrantes e é em função deste referencial que se estabelecem as estratégias individuais e coletivas que visam garantir a reprodução social do grupo. Embora seu objetivo seja a reprodução material, cultural e moral do grupo, não há caminho predeterminado ou estratégias definidas ex ante, mesmo que nos casos empíricos estudados a inserção no mercado de trabalho de atividades não agrícolas seja uma alternativa freqüentemente trilhada pelos membros da família, o que poderá não se repetir se esta mesma definição for utilizada para investigar outros contextos sociais e econômicos.

Para operacionalizar a utilização da família como unidade analítica, sugere-se, também, a separação heurística das unidades familiares em unidades de produção e grupos domésticos (Neves, 1995; 1997; Carneiro, 1998). Esta separação é particularmente operacional ao estudo de situações nas quais as famílias ou os indivíduos recorrem às atividades não agrícolas e à pluriatividade como estratégias ou mecanismos para viabilizar seus interesses pessoais ou coletivos, em geral traduzidos na busca de rendas mais altas ou trabalhos menos penosos que a atividade agrícola (Schneider, 1999, p. 125).

Conforme também haviam sugerido Fuller (1984) e Barthez (1982; 1987), a separação da unidade familiar em unidade de produção e grupo doméstico funciona como recurso metodológico que permite ir além das necessárias, mas insuficientes, medidas da quantidade de tempo de trabalho e do valor das rendas obtidas fora da propriedade como critérios definidores de uma unidade pluriativa. Assim, será possível, ainda, evidenciar as diferentes formas de alocação do trabalho no interior da propriedade que, provavelmente, variam entre unidades exclusivamente agrícolas e aquelas que combinam a agricultura com outros tipos de atividades. Isto permitirá compreender as variações da pluriatividade em situações onde as propriedades, seus sistemas produtivos e o contexto social e econômico são muito semelhantes, como acontece nos dois casos estudados. Além disso, essa separação entre unidade de produção e grupo doméstico também permitirá ativar a variável da composição demográfica da família como elemento importante à compreensão das distintas formas que assume a pluriatividade, bem como os efeitos diferenciados que decorrem da inserção do homem ou da mulher em atividades não agrícolas.

Além dessa “manobra heurística”, que pretende dar um enfoque multidimensional à unidade de análise sugerida – a família rural –, considera-se necessário tecer um último comentário sobre a utilização do conceito de estratégia (que muitas vezes aparece adjetivado como estratégia de reprodução), que não é apenas o elo entre as unidades familiares investigadas e o ambiente ex-terno, mas também a ligação que parece superar a dicotomia sociológica em torno do problema da relação estrutura-agente ou processos micro versus macro.

Nesse sentido, a utilização do conceito de estratégia levará em consideração os marcos teóricos e conceituais sobre as unidades familiares e sua relação com o contexto socioeconômico específico. Do ponto de vista substantivo, as estratégias são interpretadas como o resultado das escolhas, opções e decisões dos indivíduos em relação à família e da família em relação aos indivíduos (Marini e Pieroni, 1987). É preciso ponderar, contudo, que essas estratégias ocorrem nos limites de determinados condicionantes sociais, culturais, econômicos e até mesmo espaciais, que exercem pressões sobre as unidades familiares. Portanto, a tomada de decisões e as opções, sejam quais forem, de indivíduos e famílias, possuem um referencial que na prática se materializa segundo as relações sociais, econômicas e culturais em que vivem. Assim, embora se tratem de estratégias conscientes e racionais, essa consciência é mediatizada por uma racionalidade informada pela realidade, que tanto é a expressão das relações materiais presentes, como daquelas herdadas de seu passado e transmitidas culturalmente. Desse modo, as estratégias não são causais ou teleológicas, mas resultado da ação humana frente às contingências e situações objetivas.

 

3. A pluriatividade nas unidades familiares do Sul do Brasil

A distinção entre famílias pluriativas e famílias de agricultores (portanto, não pluriativas) está assentada sobre o tipo de atividade que exercem os indivíduos membros das famílias rurais. Assim, será considerada pluriativa aquela família em que pelo menos um de seus membros estiver ocupado em atividade estranha à agricultura. Em razão da grande variedade de atividades existentes no meio rural, a distinção entre o que é agrícola e não agrícola muitas vezes é tênue e/ou controvertida. No entanto, para efeito deste trabalho, considera-se atividades não agrícolas aquelas tarefas que não implicam o envolvimento direto nos processos de cultivo da terra e manejo de animais.

A escolha de duas comunidades nos dois Estados do Sul permitiu realizar um duplo processo de comparação. Por um lado, a comparação entre as famílias de agricultores e as famílias pluriativas, cujas diferenças sociais, econômicas e culturais, como se verá, são de grande significação, contribuindo para esclarecer sobre as possibilidades sociais da pluriatividade como uma tendência nas regiões agrárias meridionais do Brasil. Por outro lado, permitiu também um tipo de comparação de caráter espacial e histórico, centrado em um alcance macrossociológico potencial, mediante o cotejo de ambos os grupos investigados nos dois Estados, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

O trabalho de campo foi realizado a partir de uma pesquisa por amostragem nas localidades de Padre Eterno Ilges, município de Santa Maria do Herval, região da Encosta Inferior da Serra do Nordeste, no Rio Grande do Sul, e de Braço do Sul, administrativamente ligada ao distrito de Vila Itoupava, pertencente ao município de Blumenau, localizado na região do Médio Vale do Itajaí, em Santa Catarina. A pesquisa de campo operou com uma amostragem por estabelecimentos e famílias. Na primeira localidade, havia um total de 78 estabelecimentos, nos quais residiam 36 pessoas que pertenciam a famílias de agricultores e 69, a famílias pluriativas. Desses 78 estabelecimentos, foram selecionadas 10 famílias de agricultores e 13 famílias pluriativas para compor a amostra do Rio Grande do Sul. Na localidade de Braço do Sul, havia 185 estabelecimentos, sendo também 36 pessoas pertencentes a famílias de agricultores e 115, a famílias pluriativas. Desses 185, selecionaram-se 13 famílias de agricultores e 24 famílias pluriativas que formaram a amostra de Santa Catarina. A amostra final, portanto, foi constituída de 60 estabelecimentos e/ou famílias, em que habitavam 256 pessoas, sendo 72 pertencentes a famílias de agricultores e 184, a famílias de pluriativos.

A distribuição etária dessas 256 pessoas, pertencentes às famílias de agricultores e pluriativas, é apresentada na Tabela 1. A principal diferença entre as duas categorias situa-se na faixa etária de pessoas acima de 60 anos de idade, pois entre os agricultores há 23,6% nesta faixa e entre os pluriativos somente 9,7%. Nas demais faixas etárias, apesar da diferença da proporção dos que foram selecionados para a amostra, ao se verificar os valores relativos, as diferenças não são tão significativas, embora as famílias pluriativas apresentem idade média geral menor, indicando maior proporção de pessoas na faixa de 11 a 59 anos. As famílias de agricultores, por sua vez, parecem seguir uma tendência geral das regiões coloniais do Sul, isto é, maior presença de idosos e de crianças (estas, normalmente, os netos que permanecem algum tempo morando na propriedade com os avós).

Tabela 1: Faixas de idade e distribuição dos membros das famílias de agricultores e pluriativos da amostra.

Idade (anos)

Agricultores

(RS e SC)

Pluriativos

(RS e SC)

Total da Amostra

n

%

n

%

n

Até 10

17

23,6

30

16,3

47

11 a 18

9

12,5

42

22,8

51

19 a 34

14

19,5

36

19,5

50

35 a 59

15

20,8

58

31,5

73

60 ou mais

17

23,6

18

9,7

35

Total de pessoas da amostra

72

100,0

184

100,0

256

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

 

3.1. Caracterização das unidades familiares pluriativas e agrícolas

Em virtude de as localidades investigadas situarem-se em regiões relativamente homogêneas no que diz respeito ao tamanho das propriedades, pode-se afirmar que a estratificação de área encontrada nas localidades de Padre Eterno Ilges e Braço do Sul reproduz uma situação que se verifica em praticamente toda a região circunvizinha, tanto em um Estado como em outro. A Tabela 2 demonstra que 45,9% das famílias pluriativas e 40,3% das de agricultores, independente do Estado, possuem áreas não superiores a 15 hectares. [4] Em Braço do Sul, as propriedades são ligeiramente maiores que as gaúchas mas, no geral, não se verifica distinções significativas entre famílias de agricultores e pluriativas.

Tabela 2: Estratificação de área das propriedades rurais de pluriativos e agricultores, nas comunidades selecionadas

Estratos de área
em hectares

Pluriativos

Agricultores

RS

SC

Total

RS

SC

Total

 ---| 3

15,4

8,3

10,8

10,0

23,1

14,3

3 |--- 5

 

8,3

5,4

10,0

4,3

5 |--- 10

15,4

12,5

13,5

10,0

7,7

8,7

10 |--- 15

30,8

8,3

16,2

20,0

7,7

13,0

15 |--- 20

23,1

12,5

16,2

50,0

15,4

30,4

20 |--- 30

15,4

12,5

13,5

23,1

13,0

30 |--- 50

25,0

16,2

50 |---

15,4

8,7

Não proprietários

12,5

8,1

7,7

4,3

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

No que se refere ao modo de utilização da superfície agrícola das terras, os dados da pesquisa de campo revelaram que há um amplo predomínio de coberturas vegetais (nas propriedades dos agricultores e pluriativos), na forma de matas nativas, secundárias e áreas reflorestadas. A Tabela 3 apresenta proporções médias relativas à utilização das propriedades com os respectivos cultivos, devendo-se lembrar que essas proporções são uma média da quantidade de área que as propriedades entrevistadas usam com determinado cultivo. [5] As áreas com matas naturais ou reflorestadas cobrem, em média, mais de 50% da superfície agrícola das terras das famílias de agricultores e pluriativas, gaúchas e catarinenses. Especificamente em Braço do Sul, essa proporção sobe para 62% entre os pluriativos e 64,7% entre os agricultores. Tais porcentagens tornam-se ainda mais significativas quando comparadas as proporções médias das matas e áreas reflorestadas com as outras formas de uso da propriedade, como as lavouras e as áreas inaproveitáveis. Como exemplo, com base nos dados obtidos da pesquisa de campo, pode-se dizer que, em média, 46,8% da superfície das propriedades pluriativas gaúchas é ocupada com cobertura vegetal, 12,4% é área imprópria para uso, 15% destina-se às pastagens, 11,8% é usada para horta, pomar e/ou hortifrutigranjeiros e apenas 19,7% é ocupada com lavouras temporárias. Na região do Vale do Itajaí, onde situa-se a localidade de Braço do Sul, a proporção média de área que tanto as famílias de pluriativos como as de agricultores utilizam com lavouras temporárias não chega a 10% da superfície da propriedade. Ou seja, existem poucas áreas de terra sendo cultivadas com produtos destinados à venda, razão pela qual, como será visto mais adiante, as rendas agrícolas tendem a ser baixas.

Tabela 3: Uso da terra entre pluriativos e agricultores, nas comunidades selecionadas (proporções médias – em %).

Uso da terra

Pluriativos

Agricultores

RS

SC

Total

RS

SC

Total

Lavouras temporárias

19,7

8,2

12,6

18,0

9,5

13,5

Área em matas naturais ou reflorestadas

46,8

62,0

56,5

39,8

64,7

52,9

Terra inaproveitável

12,4

8,7

10,1

12,0

11,3

11,6

Área em pastagens temporárias e perenes

temporárias e perenes

15,0

15,0

16,9

16,9

16,2

16,2

15,5

15,5

23,4

23,4

19,8

19,8

Pomar, horta e benfeitorias

11,8

14,1

13,4

21,4

11,1

15,6

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

 

3.2. A inserção das famílias nas atividades agrícolas e não agrícolas

A caracterização do processo produtivo, da propriedade e dos indivíduos que nela habitam permite analisar as relações que as unidades familiares, quer seja de agricultores ou de pluriativos, estabelecem com o ambiente social e econômico em que estão inseridas. Quanto à ocupação da força de trabalho das famílias investigadas neste estudo, pode-se afirmar que há uma significativa parcela de famílias de agricultores que, embora estivessem residindo e vivendo em uma propriedade rural, não estavam ocupadas em atividades agrícolas. Os dados da Tabela 4 indicam que nas duas comunidades investigadas apenas pouco mais da metade (55,6%) dos agricultores declarou que sua ocupação principal era a atividade agrícola. Os demais membros das famílias de agricultores nos dois Estados ou eram aposentados (13,9%) ou exerciam serviços auxiliares na propriedade (19,4% dos membros no caso gaúcho e 8,3% no catarinense), como cuidar de pequenos animais, fazer limpeza etc. Na localidade de Braço do Sul, no Estado de Santa Catarina 13,9%, dos membros das famílias de agricultores ocupavam-se em serviços domésticos, como cozinhar, limpar e cuidar de crianças e idosos.

Tabela 4: Ocupação principal dos membros das famílias de agricultores e pluriativos, nas comunidades selecionadas

Atividades

Agricultores

Pluriativos

RS

SC

RS

SC

Agrícolas

55,6

55,6

23,2

30,4

Não agrícolas

36,2

33,9

Serviços domésticos

13,9

15,9

13,9

Ajuda em ativ. não agrícola que geram rendas

2,8

Aposentado

13,9

13,9

5,8

4,3

Não trabalha*

8,3

5,6

1,4

5,2

Desempregado

0,9

Serviços de auxílio na propriedade**

19,4

8,3

15,9

11,3

Outros

2,8

1,4

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

* Considera-se os que não trabalham as crianças menores de 5 anos de idade, os inválidos, os deficientes e os idosos impossibilitados de exercer qualquer tipo de atividade física.

** Define-se como serviços de auxílio na propriedade as atividades que desfrutam do status de ajuda ou apoio como o cuidado de pequenos animais, limpezas etc. realizadas por crianças entre 5 e 14 anos de idade.

 

No que se refere aos principais ramos de atividades que empregam a mão-de-obra das famílias pluriativas, em Padre Eterno Ilges e em Braço do Sul, não resta dúvida de que a indústria, especialmente os setores têxtil e calçadista, é o ramo que mais recruta esse tipo de força de trabalho. No caso gaúcho, o ramo industrial absorve 84% dos pluriativos que trabalham em atividades não agrícolas e, no caso catarinense, essa proporção diminui para 59%. Nesse último caso, vale a pena registrar que a alocação da mão-de-obra dos pluriativos é um pouco mais diversificada do que no caso gaúcho, estendendo-se para outros ramos como a construção civil e a transformação artesanal.

Tabela 5: Principais ramos de atividades não agrícolas das famílias pluriativas, nas comunidade selecionadas.

Ramos

Pluriativos

RS

SC

Indústria

84,0

59,0

Comércio

4,0

5,1

Construção civil

12,8

Transformação artesanal

7,7

Transporte

2,6

Serviço público

8,0

5,1

Serviços pessoais

2,6

Sem resposta

4,0

5,1

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

 

3.3. O significado da pluriatividade para as famílias

Entre os pluriativos gaúchos existem dúvidas sobre as vantagens financeiras do emprego em atividades não agrícolas. A Tabela 6 mostra que apenas 46,2% dos pluriativos gaúchos consideraram que o trabalho não agrícola representa a melhor forma de ganhar dinheiro. Para uma proporção expressiva de 23,1%, o trabalho em atividades não agrícolas constitui-se em uma alternativa ao trabalho penoso e pouco rentável da agricultura. Mas há também 15,4% de pluriativos gaúchos que são indiferentes ao seu significado, pois consideraram que o trabalho em atividades não agrícolas é apenas um tipo de emprego ou trabalho como outro qualquer. Já os membros das famílias pluriativas catarinenses mostraram-se mais convencidos em relação ao significado monetário dos trabalhos não agrícolas, pois quase 80% destacaram que é a melhor forma de ganhar dinheiro, seguidos por uma minoria de 12,5% que o consideraram uma alternativa ao trabalho agrícola.

Tabela 6: Significados atribuídos ao trabalho em atividades não agrícolas, segundo as famílias pluriativas, nas comunidades selecionadas.

Opiniões dos pluriativos

RS

SC

Melhor forma de ganhar dinheiro

46,2

79,2

Alternativa ao trabalho na agricultura

23,1

12,5

Atividade complementar à agricultura

4,2

Alternativa temporária em face das dificuldades na agricultura

 

4,2

Possibilidade de arranjar trabalho para os jovens

7,7

Opção de emprego como outra qualquer

15,4

Possibilidade dos filhos continuarem os estudos

7,7

Total

100,0

100,0

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

 

Para conhecer melhor os significados da pluriatividade para o conjunto das unidades familiares, é preciso indagar a respeito de suas relações com a atividade agrícola e a dinâmica econômica e produtiva que a propriedade apresenta. Nesse sentido, a combinação de atividades agrícolas e não agrícolas por uma mesma unidade pode estar relacionada a variáveis como a forma de uso da terra e o ciclo demográfico familiar. Cada um desses aspectos pode provocar mudanças internas diferenciadas na propriedade e na forma como os membros da família, especialmente o chefe (mas não somente ele), organizam e gestionam o processo produtivo.

A relação agricultura e pluriatividade assume características específicas em cada unidade familiar, cujos detalhes demandam o estudo aprofundado, em cada caso. No entanto, pode-se conhecer em que medida os pluriativos que possuem ocupações não agrícolas auxiliam nos trabalhos da propriedade mediante a aferição da freqüência com que se envolvem em tais tarefas. A Tabela 7, a seguir, apresenta as informações das respostas dos pluriativos gaúchos e catarinenses sobre a alocação de trabalho em atividades agrícolas. Nos dois casos, verificou-se que, em média, 78,4% dos membros pluriativos das famí-lias fornecem algum tipo de ajuda nos trabalhos dentro da propriedade, o que demonstra, conforme já enfatizado, que a busca de um trabalho não agrícola não implica necessariamente um rompimento com as atividades propriamente agrícolas ou, pelo menos, com determinadas tarefas da propriedade. Essa elevada proporção ocorre tanto em Padre Eterno Ilges, onde chega a 76,9% o número de pluriativos que fornecem ajuda nos trabalhos da propriedade, como em Braço do Sul, onde esta proporção se eleva para 79,2%.

Tabela 7: Pluriativos que fornecem algum tipo de ajuda nos trabalhos dentro da propriedade, nas comunidades selecionadas.

Pluriativos

RS

SC

Total

Sim

76,9

79,2

78,4

Não

15,4

20,8

18,9

Sem resposta

7,7

2,7

Total

100,0

100,0

100,0

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

 

Em complementaridade às informações sobre a alocação de trabalho dos pluriativos nas atividades da propriedade (não necessariamente as tarefas agrícolas), buscou-se conhecer a freqüência com que ocorriam essas ajudas e auxílios declarados. Nesse caso, verificou-se um comportamento bastante distinto entre os pluriativos gaúchos e catarinenses. No primeiro caso, 70% dos pluriativos que auxiliam nas atividades da propriedade declararam fazê-lo de modo “regular” (ou seja, cotidianamente), 20% disseram que as ajudas ocorriam “às vezes” e 10% responderam que auxiliavam quando lhes “sobrava algum tempo”. Em Braço do Sul, esse comportamento é distinto, pois 47,4% declararam ajudar apenas “quando sobrava tempo”, 42,1% auxiliavam de modo “regular” e 10,5% afirmaram que as ajudas ocorriam “às vezes”. Como se percebe, o auxílio dos pluriativos nos trabalhos da propriedade não pode ser desprezado, pois ele ocorre regularmente e, portanto, se reveste de grande importância para a gestão da unidade produtiva.

Tabela 8: Freqüência com que os pluriativos fornecem ajuda nas atividades dentro da propriedade, nas comunidades selecionadas.

Freqüência da ajuda

RS

SC

Regularmente

70,0

42,1

Às vezes

20,0

10,5

Quando sobra tempo

10,0

47,4

Total

100,0

100,0

Fonte: Pesquisa de Campo (1998).

 

Considerações finais

Os resultados da pesquisa de campo aqui apresentados constituem-se em indicadores de que a pluriatividade revela-se uma estratégia das famílias rurais de ambas as microrregiões do Sul do Brasil para viabilizar sua reprodução social. A viabilização dessas estratégias depende, conforme se argumentou, de um conjunto de fatores relacionados, ao mesmo tempo, a condicionantes internos, como o ciclo demográfico, e influências do exterior, como as pressões do mercado de trabalho ou os efeitos da dinâmica econômica, entre outros aspectos.

A pesquisa comparativa entre unidades familiares de agricultores e de pluriativos permitiu evidenciar que os membros das famílias pluriativas são bem mais jovens que os das famílias de agricultores: 23,6% dos membros pertencentes a famílias de agricultores têm idade igual ou superior a 60 anos, mas apenas 9,7% dos membros das famílias de pluriativos situam-se nesta faixa. Além disso, as famílias pluriativas são mais numerosas que as de agricultores. No primeiro grupo, existe uma proporção bem mais expressiva de famílias que têm acima de cinco membros. Portanto, as famílias pluriativas são mais numerosas e seus membros são ainda jovens, em idade ativa para trabalhar.

Em ambos os tipos de famílias, as áreas de terras ocupadas com lavouras temporárias, cujos produtos seriam destinados ao comércio, são reduzidas, não chegando a 15% do total. Mais da metade da superfície das propriedades está ocupada com matas nativas ou reflorestadas, razão pela qual as rendas agrícolas tendem a ser baixas tanto entre famílias pluriativas como de agricultores. O ramo de atividade não agrícola que absorve a maior parte dos membros das famílias pluriativas é a indústria, seguido de longe pelo comércio. Segundo os pluriativos, o trabalho fora da propriedade constitui-se “na melhor forma de ganhar dinheiro”, ainda que existam outras razões e significados de menor destaque ou grau de importância.

Outra conclusão importante que pode ser extraída deste estudo é que a contribuição da pluriatividade para a manutenção da propriedade e para a reprodução do grupo doméstico é, de fato, fundamental para estas famílias, pois a grande maioria dos pluriativos (78,4%) declarou que fornecem “algum tipo de ajuda” nas atividades dentro da propriedade, sendo que a maior parte destas ajudas é realizada em caráter regular.

O último aspecto a ser ressaltado, e que está em acordo com o referencial analítico apresentado, é que cada unidade familiar reage de modo distinto a esse conjunto de atividades e as próprias estratégias adotadas podem variar ao longo do tempo e de acordo com as circunstâncias a serem enfrentadas. Nesse sentido, o recurso às atividades não agrícolas e à pluriatividade não são imutáveis ou permanentes, uma vez que nos casos pesquisados, foram encontradas unidades familiares que passaram da condição de pluriativos para a de agricultores. Os dados da pesquisa de campo indicam que a metade (50%) das famílias de agricultores gaúchas e 69,2% das de Braço do Sul declararam que algum dos membros de sua família já havia trabalhado em atividades não agrícolas.

 

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Notas

[1] O Projeto Rurbano constitui-se em uma experiência compartilhada de investigação por pesquisadores de variadas disciplinas, instituições e regiões geográficas, coor-denado pelo professor José Graziano da Silva, da UNICAMP. Para maiores infor-mações e obtenção de alguns resultados das pesquisas realizadas, consultar o site http://www.eco.unicamp.br/projetos/rurbano.

[2] O pós-produtivismo é definido por Marsden como “uma fase que é parcialmente apoiada pela habilidade inerente dos agricultores de se integrar a agentes e setores de atividades não agrícolas” (1995, p. 294).

[3] Em outro trabalho, Marsden define a mercantilização como “...o processo de commoditization, em linhas gerais, envolve a extensão da forma mercadoria a novas esferas de atividade ou, o que é mais usual nas economias avançadas, a superposição de novos tipos de relações mercantis” (Marsden, 1989, p.314).

[4] Sempre que se mencionar a palavra pluriativos está-se referindo, na verdade, às famílias onde algum dos membros trabalha em atividades não agrícolas. Quando agricultores, está-se referindo àquelas famílias que não possuem outra atividade econômica a não ser a atividade agrícola.

[5] Os valores dessa Tabela 3 referem-se a uma proporção média de uso da superfície das propriedades, que é resultante da quantidade total de área ocupada com determinada cultura dividida pelo número de unidades em que é praticada.