Estudos Sociedade e Agricultura

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Angélica Massuquetti

A trajetória de um agitador camponês


Angélica Massuquetti é doutoranda do CPDA/UFRRJ.

Estudos Sociedade e Agricultura, 17, outubro 2001: 150-153.


Falecido no México, em julho de 1999, aos 84 anos, Francisco Julião Arruda de Paula foi, sem dúvida, um dos responsáveis pela primeira grande discussão da reforma agrária neste país. O maior líder camponês do Brasil morreu numa situação de esquecimento e, segundo notícias da imprensa, em condições de penúria.

Julião volta agora trazido por um livro pernambucano. É oportuna a iniciativa da Assembléia Legislativa de Pernambuco, ao publicar a série Perfil Parlamentar Século XX, motivando o resgate da memória deste estado a partir da apresentação de parlamentares que foram importantes no cenário político estadual e, inclusive, nacional. Entre os nomes escolhidos para essa homenagem está o do líder das Ligas Camponesas, num volume que o seu autor, Vandeck Santiago, chamou de Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador.

O livro surge num momento de outro debate nacional sobre a questão agrária, muito em razão das ações do MST, quando, inclusive, o tema está consolidado na agenda de pesquisa das ciências sociais brasileiras. Essas pesquisas têm se ocupado das diferentes formas de organização camponesa, dos sindicatos de trabalhadores, dos movimentos sociais rurais após 1964, com destaque para a violência no campo; do papel da Igreja; das organizações da classe patronal e da emergência das novas identidades. Mais recentemente, têm sido estudados os assentamentos e outras questões da reforma agrária como reforma agrária camponesa e o tema do chamado novo mundo rural.

O livro de Vandeck Santiago relata a trajetória de um defensor apaixonado dos camponeses e da reforma agrária no Brasil – de um homem proveniente de uma classe distinta daquela que ele assumiria como sua na luta agrária que vai liderar. De advogado dos desvalidos em suas mais imediatas necessidades, Julião terminaria acreditando no potencial propriamente revolucionário dos camponeses. O ponto alto dessa trajetória aparece no seu discurso – e na sua prática que vai do simples advogado ao agitador agrarista –, bem expresso na famosa palavra-de-ordem “reforma agrária na lei ou na marra”, uma expressão que, a posteriori, em 1994, Julião explicaria como uma radicalidade que significava “ir à raiz do problema”. O seu envolvimento não estava apenas restrito ao ato de dirigir um movimento agrário em busca de direitos civis, mas na luta para consolidar o papel de um grupo naquilo que à época as esquerdas brasileiras chamavam de revolução.

De qualquer modo, como ilustra o livro de Vandeck Santiago, a dedicação de Julião às Ligas era total. Sua relação com os camponeses era bem antiga e começou logo depois de formado, quando os defendia da exploração – num primeiro instante, pela eliminação do cambão e contra o aumento do foro. Já o envolvimento de Julião com a mobilização agrária que se tornaria famosa nos anos 50 foi marcado pelo seu envolvimento na criação, em 1955, da Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP), uma entidade de caráter assistencialista que buscava auxiliar os foreiros do Engenho Galiléia, na cidade pernambucana de Vitória de Santo Antão. A partir daí, as Ligas de Julião iriam assumir a feição de um movimento social propriamente dito.

As Ligas tornaram-se a forma de emergência da luta do campesinato e contribuíram para a sua politização. Elas o colocaram no cenário político daquele tempo. A estratégia usada foi a de buscar ressonância. Estabelecer a sua sede nos centros urbanos também passou a ser um meio importante para solidificar as Ligas. Segundo dizia o próprio Julião, o recurso à lei e à fé – o Código Civil e a Bíblia – tinha o intuito de obter a confiança e o comprometimento, duas qualidades que uniriam os camponeses num movimento maior – numa luta política e ideológica. Uma luta que começara no campo da linguagem relançando os termos “camponês” e “Ligas Camponesas” (as primeiras Ligas Camponesas haviam sido criadas pelo PCB na década de 40 com a finalidade de mobilizar as massas agrárias contra o latifúndio e o imperialismo. O termo “camponês” foi introduzido pelo PCB e outros grupos da esquerda na discussão política no meio rural dessa época, passando a representar uma forte identidade para os grupos mobilizados).

Ao contrário das Ligas Camponesas dos anos 40, as novas organizações iriam adquirir uma orientação mais abrangente, o que lhes possibilitava visibilidade política e logo uma expansão considerável por meio de ações judiciais, passeatas, marchas, encontros e congressos. Por quase 10 anos, da segunda metade dos anos 50 até o golpe militar, as Ligas expressaram uma fase de transformações provocadas, principalmente, pela intensificação do processo de industrialização e pela redefinição das atribuições da agricultura na economia. Do simples direito de existir como movimento social, as Ligas passaram a ocupar espaços políticos, primeiro estadual e depois nacional, tendo inclusive obtido importante reconhecimento no exterior.

Vandeck Santiago relata alguns pormenores das relações tensas entre Julião e o PCB. A fusão das Ligas com a União dos Lavradores e Trabalhadores Rurais do Brasil (ULTAB), proposta pelos comunistas, em 1961, não foi aceita por Julião, pois ele temia que o PCB passasse a controlá-las, como faziam com os sindicatos rurais. A difícil relação entre o PCB e Julião piorou, depois do I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte (MG) em 1961, quando a tese da reforma agrária radical, defendida pelas Ligas, derrotou as idéias mais moderadas da ULTAB e dos comunistas. A “reforma agrária na lei ou na marra” era a reforma agrária sustentada por Julião. O livro mostra que, até 1962, o movimento propriamente camponês estava sob orientação da Ligas. Nesse ano, a pressão do PCB se torna pública através da imprensa comunista, numa polêmica com Julião sobre o papel revolucionário do campesinato. Nessa época, a Igreja também já vinha insistindo na sindicalização dos assalariados rurais, segundo registra Vandeck Santiago, o que também enfraquecia as Ligas. Mas, além disso, deve-se ver que a posição assumida pelas Ligas, contrária ao pensamento hegemônico da esquerda brasileira, também contribuiu para o seu isolamento político às vésperas de 1964.

A esse propósito, o livro traz informações sobre a evolução ideológica das Ligas. Elas mostram que, no início da década de 60, as Ligas já tinham uma concepção da “revolução brasileira” bem distinta daquela concebida pelos comunistas (moderada e mais gradualista). Na verdade, ocorriam divergências no interior das Ligas quanto à estratégia a ser seguida após a expansão nacional do movimento, questão que trouxe o debate acerca do seu caráter e da sua conversão em organização (e não só movimento social) propriamente política e revolucionária. Vandeck Santiago relata que núcleos militantes, formados com o intuito de preparar os camponeses para a revolução, tinham muita autonomia e desenvolviam ações à margem da própria liderança de Julião.

As Ligas tiveram o seu momento de impasse interno no ano de 1963, na chamada Conferência do Recife, na qual justamente se discutiu sobre a necessidade de uma nova estrutura orgânica para que o movimento avançasse. O debate foi travado entre Julião, que defendia uma proposta de caráter socialista e a criação do Movimento Unificado da Revolução Brasileira (MURB) para lutar por reivindicações revolucionárias, e o Padre Alípio de Freitas, que apresentava a idéia de se criar um partido agrarista e radical, nos moldes marxista-leninistas, capaz de inserir o campesinato no quadro político nacional. A discussão final sobre essas transformações que precisariam as Ligas Camponesas estava marcada para um outro encontro, previsto para junho de 1964, mas o golpe militar ocorreu antes, perseguiu e extinguiu as Ligas. Julião foi preso por um tempo e terminou exilado.

O livro de Vandeck Santiago fala ainda desse último caminhar do líder camponês no exílio mexicano e de sua reinserção na vida brasileira após a anistia. Já sem densidade política, Julião dedicou-se à organização do PDT, envolvendo-se no polêmico “Pacto da Galiléia”, em 1986, quando decidiu apoiar um grande usineiro nas eleições para o governo do estado de Pernambuco, em troca de um acordo pelo qual se estabelecia a doação de 10% das terras das usinas para a reforma agrária. Julião foi derrotado como candidato a deputado federal em tais eleições. Depois disso, ele ainda participaria, esporadicamente, em algumas atividades políticas até meados dos anos 90, quando, novamente, voltou a se radicar no México.

O livro Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador aparece em boa hora, num momento em que as relações entre o MST e o Governo Federal chegam a um novo confronto. Estes atores têm conceitos distintos de reforma agrária. O Governo a vê mais como uma política social compensatória. O MST associa a reforma agrária a uma mudança total da sociedade. O livro sobre Julião é positivo porque traz do passado uma experiência sobre este tipo de impasse. Mesmo não sendo um texto propriamente acadêmico, mas apresentação de uma trajetória, com suas informações, muitos pormenores e relatos, ele proporciona, através da vida e militância daquele agitador camponês, antecedentes valiosos da discussão da reforma agrária brasileira.

Vandeck Santiago. Francisco Julião: luta, paixão e morte de um agitador. Recife: Assembléia Legislativa, 2001. (Série Perfil Parlamentar Século XX, 8), 126 p.