Estudos Sociedade e Agricultura

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Pascal Byé e Wilson Schmidt

Agricultura familiar no Sul do Brasil – de uma exclusão produtivista a uma exclusão certificada?


Estudos Sociedade e Agricultura, 17, outubro 2001: 104-118.

Resumo: (Agricultura familiar no Sul do Brasil - de uma exclusão produtivista a uma exclusão certificada?). Esse artigo procura reconstituir, com base em textos e análises que lhe foram consagrados, a história da agricultura orgânica (AO) no Sul do Brasil. Ele sublinha que a abordagem macroeconômica e política que marca, desde o início, a AO brasileira se diferencia daquela registrada na Europa do Oeste, onde a agricultura orgânica tem um percurso mais linear e impulsionado pelos consumidores. Assim, a construção e a transferência mimética dos sistemas de reconhecimento institucional e jurídico europeus podem induzir no Brasil efeitos perversos, com a exclusão de importantes setores da agricultura familiar, para os quais a AO aparecia como alternativa de sobrevivência.

Palavras-chave: agricultura familiar; agricultura orgânica; certificação; Sul do Brasil.

Abstract: (Family Farming in Southern Brazil: from productivist to “certified” patterns of exclusion?). This paper intends to recover the history of organic agriculture in Southern Brazil based on a review of available texts and studies. It emphasises the gap between two phenomena: the endogenous building of organic agricultural techniques and the external public recognition of their development. There is a significant risk of industrial or trading operators, outside the local milieu, white-washing their practices as being organic agriculture. In fact, the transfer of European specifications to qualify agricultural products may lead to a real exclusion in Brazil.

Key words: family agriculture; organic agriculture; certification; Southern Brazil.

Trabalho apresentado ao workshop Les formes sociales d’exercice des activités agricoles à l’épreuve de la “modernité avancée”, do XIX Congresso da European Society for Rural Sociology, Dijon (França), 3-7, setembro de 2001. Tradução de Vanice Dolores Bazzo Schmidt.

Pascal Byé é diretor de pesquisas no Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica da França (INRA-UMR Moisa-Montpellier).

Wilson Schmidt é professor da UFSC.


Introdução

Aos olhos de um observador pouco atento, pode parecer a priori paradoxal que o Brasil dê forte ênfase aos problemas de qualidade alimentar ou a modelos alternativos de produção agrícola quando suas prioridades na agricultura estiveram, há longo tempo, centradas em outras ambições: o crescimento puxado pela agroexportação e a industrialização rápida de suas técnicas.

O paradoxo é, no entanto, apenas aparente.

A construção de um sistema de reconhecimento da qualidade e/ou de autenticidade, que vem coroar a ênfase dada pela mídia à agricultura orgânica (AO) no Brasil, não se distancia de uma parte dos objetivos das macropolíticas anteriores. Os produtos da AO podem tornar-se, na verdade, um objeto de exportação (Lohr, 2001). A AO permitiria ainda responder alguns problemas da agricultura familiar: valorização do tempo de trabalho e do savoir-faire, autonomia dos produtores, abertura de novos mercados, diversificação dos produtos.

Introduzindo dispositivos institucionais e jurídicos particulares, o policy-maker brasileiro apenas confirma essas ambições. Ao certificar os produtos da agriculura orgânica, ele encoraja a criação de segmentos e de nichos em mercados protegidos. Ele favorece, entre os agricultores familiares, práticas alternativas às técnicas e às organizações implementadas para agroexportação. Ele constrói, enfim, por esse meio, um novo instrumento de desenvolvimento rural. *

As ambições da AO no Brasil se afirmam em um período relativamente curto, ao contrário do que ocorreu na Europa, onde ela levou mais de meio século para ocupar o primeiro plano. Essas ambições são fortemente carregadas de uma ideologia que se opõe ao centralismo estatal, às grandes firmas e à mundia­lização. Essa postura coloca a AO brasileira em uma posição mais ambiciosa do que aquela construída progressivamente pelos seus promotores europeus.

Produto da sociedade do welfare, a AO é valorizada na Europa por operadores cuja motivação principal é mais individualista que global. A saúde e as precauções alimentares necessárias à sua conservação são um dos fundamentos da construção, pelos defensores da AO, das primeiras “redes”. Privilégio daqueles que sabem que existe uma relação estreita entre agricultura e saúde, essas redes são protegidas por modos de funcionamento em que se alternam a adesão, a convicção e os preços. Os produtos da AO são mais caros, não somente porque têm custos de produção, transformação ou distribuição maiores, mas também porque eles já são considerados como “nutracêuticos”. Cons­truídas em torno dessa dualidade, as organizações da AO, controladas por consumidores, são deliberadamente seletivas e fechadas. Nelas entram apenas aqueles que comungam convicções profundas ou até mesmo ideologias às vezes ambíguas. A confidencialidade das redes de distribuição criadas assegurou, por longo tempo, uma proteção suficiente. Os dispositivos de certificação formal são construídos posteriormente, em contraponto à agricultura industrial, suspeita de ser pouco respeitosa das exigências “saudáveis” dos con­sumidores e de ocultar sistematicamente a forma como são produzidos e transformados os produtos alimentares. As crises recentes (vaca-louca, listéria, febre aftosa...) vão conferir aos dispositivos de certificação da AO, construídos há aproximadamente 30 anos, uma seriedade inquestionável (Bio contact, 2000; Inra, 2000).

O percurso seguido pela AO brasileira é sensivelmente diferente. Nascida nos anos 70 e 80, particularmente em reação ao desenvolvimento das técnicas vinculadas à agroexportação, ela propala ambições que vão além da proteção do consumidor. A crítica a respeito das derivas do produtivismo e da mundialização fundamenta ambições globais (Da Costa, 1984): a AO contribui para a defesa do meio ambiente e da biodiversidade; a AO se insere em objetivos de crescimento endógeno. Ela se inscreve, portanto, desde a origem, no debate público. A realização da conferência internacional do Rio (Eco 92), o apoio da­do à agricultura familiar (AF) e a influência exercida pelos contestadores da mundialização são fatores favoráveis para apresentar a AO mais como uma alternativa social global do que como uma simples alternativa técnica (Dias, 1986). Seu nascimento é marcado por estratégias políticas que colocam em primeiro plano a autonomia do país e do produtor, o desenvolvimento de no­vas solidariedades, a defesa da agricultura familiar (Almeida, 2001; Pelaez; Schmidt, 2001). O desenvolvimento da AO brasileira, menos ligado aos movimentos de consumidores, parece não depender, na origem, de proteção formal. Ela só vai descobrir sua utilidade no momento em que os efeitos das crises ligadas aos alimentos ocorridas nos países do Norte a exigem (rastreabilidade dos produtos, resistência aos transgênicos etc.). As resistências expressas por certos atores da AO brasileira com respeito a esses dispositivos regulamentares impostos do exterior (Schmidt, 2001) confirmam a importância de um processo que se quer endógeno e ao serviço da reconquista da autonomia nacional.

Nos anos 90, entretanto, as possibilidades abertas graças às exportações para os países do Norte, as pressões das primeiras instituições brasileiras posicionadas no campo da certificação e o fato de a Argentina ter adotado, desde 1992, uma regulamentação conforme às exigências européias (Del Pino, 1994) [1] conduzem o Ministério da Agricultura brasileiro a adotar um processo destinado a normatizar a AO (Agricultura Biodinâmica, 1994; Saldanha, 1999; Arl e Magnanti, 2000). Ele cria, em 1994, o Comitê Nacional de Produtos Orgânicos, paritário, composto por representantes de instituições públicas e ONGs. Em maio de 1999, depois de um longo período de negociações e de uma consulta pública (Saldanha, 1999), o Ministério da Agricultura publica uma norma que regulamenta a produção orgânica, sua transformação e distribuição: a Instrução Normativa 007. A adoção desse sistema é fonte, no entanto, de um certo número de dificuldades que se manifestam no mercado interno. Elas ilustram bem a diferença dos percursos seguidos na Europa e no Brasil. Dois pontos marcam essas diferenças:

n No Brasil, as opções feitas pela AO se inscrevem, desde o início, nas macropolíticas e nos modelos de desenvolvimento. Essa abordagem global a diferencia da via “prudente” adotada na Europa. Ela explica também porque a amplitude das ambições conduzem a AO a estar freqüentemente defasada na dimensão produtiva (I. A construção da AO: análise dos discursos e das realidades);

n Os dispositivos de reconhecimento institucional que começam a ser implementados ao longo dos anos 90 – ou seja aproximadamente 20 anos depois da Europa – introduzem, por um outro viés, as normas impostas pelos mercados importadores. Dispositivos esses que nem sempre são coerentes com os interesses dos produtores nacionais e, principalmente, dos locais. De forma mais geral, os desajustes entre as políticas globais de crescimento endógeno no Brasil e os dispositivos de reconhecimento construídos por consumidores ca­da vez mais distanciados dos mercados locais (Plassard, 1993) revelam os efeitos perversos veiculados pela adoção mimética das normas e dos códigos importados (II. Controvérsias a propósito dos dispositivos de reconhecimento).

I. A construção da AO: análise dos discursos e das realidades

No Brasil, o discurso político sobre a AO se dá em um contexto mais amplo do que aquele em que é construído, ao longo do tempo, o europeu. A grande difusão, inclusive pela mídia, das ambições sociais e estratégicas da AO torna ainda mais surpreendente a modéstia de seu desenvolvimento real nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná ou nas proximidades dos grandes centros urbanos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nessas regiões, o desenvolvimento da AO encontra suas origens na presença conjugada de uma agricultura familiar expressiva e de uma vontade de construir técnicas respeitosas do meio ambiente.

Nos anos 80, com os primeiros sinais da crise que fragiliza o modelo de desenvolvimento agrícola sustentado, na sua origem, pelo regime militar, a AO inicia uma trajetória em que se fortalece cada vez mais. Intelectuais, estudantes e políticos progressistas questionam, então, a abordagem e as estratégias fundadas na industrialização das técnicas agrícolas (Ehlers, 1996). Iniciativas concretas mas isoladas são tomadas para encorajar o desenvolvimento de agriculturas alternativas em várias regiões do país (Fonseca; Feliconio, 2000). O apoio dado à AO se manifesta, contudo, principalmente no plano ideológico e, depois, político. Ele ocorre em particular no Sul do país, pela denúncia sistemática dos problemas gerados pela utilização dos agrotóxicos, que repercute na emergência da produção e do consumo de alimentos “naturais” (Fiorit, 2000).

I. 1. AO: um instrumento de defesa do meio ambiente

As ONGs ambientalistas e a imprensa são as primeiras a denunciar a presença de resíduos químicos nos alimentos, a poluição dos rios e os riscos de mutação da fauna piscícola, a intoxicação de agricultores e trabalhadores rurais. Agrônomos à frente, o movimento ganha amplitude e pede a adoção, pelos legislativos municipais, estaduais e federal, de “leis dos agrotóxicos” limitando o uso desses produtos. Eles consideram que a lei nacional em vigor é laxista. Consideram ainda que a utilização massiva de agrotóxicos testemunha as conivências implícitas entre as indústrias agroquímicas e o Ministério da Agricultura (Pinheiro et alli, 1993). O uso crescente de pesticidas estaria, segundo eles, diretamente relacionado ao crédito rural subsidiado e aos projetos de financiamento elaborados no seu quadro. Os responsáveis locais dos ban­cos favoreceriam a compra desses produtos, enquanto as instituições públicas de extensão rural e assistência técnica e os serviços de venda das indústrias químicas estimulariam a monocultura, em detrimento da diversificação de culturas.

Esse movimento de contestação das práticas “modernistas” questiona de forma mais geral o modelo de desenvolvimento agrícola amplamente sustentado, até então, pelos poderes públicos. Nesse momento é que se constituem as primeiras redes de produtores e de consumidores de alimentos biológicos. Como destaca Fiorit (2000), mais do que uma visão ideológica ligada à contracultura, é uma opção política baseada nas idéias ecológicas de autogestão e de cooperação que se afirma. A AO aparece, neste contexto, como uma saída possível para pequenos agricultores em dificuldade ou em via de exclusão. Além dos efeitos benéficos sobre os produtores, a AO participa de fato na reprodução e na conservação dos recursos naturais, melhora a dieta alimentar, reduz a utilização de insumos e melhora a renda e a qualidade de vida dos agricultores familiares (Cetap,1997). Trunfos que aproximam, incontestavelmente, a agricultura orgânica e a agricultura familiar.

I. 2. AO e defesa da agricultura familiar

O movimento pela agricultura familiar defende, há longo tempo, a construção de um “paradigma” fundado na valorização das condições ecológicas e socioeconômicas da agricultura brasileira (Brandenburg, 1999). O peso da produção familiar no número total de estabelecimentos agropecuários no Brasil [2] dá a esta reivindicação uma importância particular. O apoio dado à AF tende a reforçar a sua capacidade de resistência diante da agricultura patronal e das pressões do mercado. Ele favorece a sua organização e seu reconhecimento institucional e político. A imperiosidade de reorientar a produção da AF e de melhorar suas técnicas implica, no entanto, além da ampliação do seu acesso a recursos, o reforço de sua identificação e da diferenciação de seus produtos. A necessidade dessa melhoria técnica – ou de desenvolver técnicas alternativas ao modelo produtivista – já era colocada no quadro de uma reforma agrária balbuciante e da busca da viabilização dos “assentamentos”, vista como uma forma de fortalecer o processo de mudança da sociedade brasileira. Essa demanda tinha repercussões claras sobre a AO. Durante o III Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa (EBAA), em 1987, a polêmica consistia em saber se a agricultura alternativa conduzia “à perda da dimensão política no combate travado contra o capitalismo” ou se, pelo contrário, ela era “capaz de dar consistência à discussão política da transformação da sociedade” brasileira (III EBAA, 1987). No debate contemporâneo, as técnicas implementadas na agricultura orgânica aparecem sempre como um meio de reconquistar o savoir-faire, de desenvolver a autonomia dos agricultores e de renovar as relações urbano-rurais.

I. 3. AO: um instrumento de desenvolvimento rural e local

No quadro do movimento de contestação e de crítica da agricultura industrial do início dos anos 80, as associações e as organizações não governamentais agroambientalistas do Sul do Brasil (Rede TA-Sul, 1997) [3] anunciam uma outra ambição: fazer da AO não apenas uma simples denúncia do “modelo de modernização da agricultura brasileira baseado na exclusão”, mas um instrumento “de intervenção no âmbito da prática” (Brandenburg, 1999) e, por extensão, do desenvolvimento sustentável e do desenvolvimento local (Dias e Diesel, 2000).

A agricultura familiar – modelo de organização social e cultural associado às técnicas de baixa utilização de insumos de origem industrial, promovidas pela AO – aparece, então, como “ponta de lança” da dinamização do desenvolvimento rural. Esses “sistemas mistos, baseados na racionalidade do agricultor” (Brandenburg, 1999), desembocam na produção e na comercialização de produtos diferenciados. Situados sobre novos segmentos de mercado ou “nichos” comerciais, eles favorecem a integração econômica dos agricultores mais pobres em novos “territórios” e em novas redes. A agricultura familiar, rica em mão-de-obra e em savoir-faire, favorece o desenvolvimento de uma agricultura autônoma e respeitosa do meio ambiente (Do Carmo, 2001), revitaliza o meio rural e dá, novamente, sentido à construção das trocas entre os consumidores preocupados com a qualidade, com a ética e com a autenticidade e os produtores marginalizados pela agricultura “industrialista”.

Fonseca e Feliconio (2000) indicam, no entanto, a existência de duas “concepções ideológicas conflitivas” entre os partidários da agricultura orgânica. De um lado, os que querem desenvolver a AO “ligada aos organismos de desenvolvimento e às firmas”. De outro, os que afirmam sua independência em relação a estes atores, “pela recusa a toda atividade que comportasse características do sistema capitalista”. Os primeiros agrupam as associações situadas em São Paulo e no Rio de Janeiro e as associações de produtores criadas nas diversas regiões do país a partir da segunda metade dos anos 90. [4] Os segundos estão ligados sobretudo às opções defendidas pelas ONGs particularmente ativas na “agricultura alternativa” do Sul. Para estas últimas, o papel dos seus técnicos é mais “político e ideológico” do que “técnico” (Almeida, 1999), as dificuldades técnicas parecem sempre menores e as questões econômicas mais concretas são minimizadas. Das informações e análises sobre comercialização e suas tendências, por exemplo, elas se detêm apenas sobre aquelas mais gerais, que indicam que os sistemas de produção sustentável têm um futuro garantido.

A AO aparece como um meio de afirmar uma nova ética. A autonomia técnica dos produtores se impõe também no âmbito da nação. O desenvolvimento de uma agricultura sustentável, agroecológica, respeitosa da natureza, capaz de garantir a segurança alimentar e a qualidade dos produtos é destacado pelos que denunciam os efeitos de dependência induzidos pela adoção das técnicas industriais.

Mesmo que as perspectivas abertas pelos defensores da AO tenham convergido com interesses de policy-makers, em particular aqueles preocupados com o desenvolvimento rural e a agricultura familiar, o debate continua aberto sobre as condições do seu desenvolvimento real. Afrontam-se, de um lado, partidários de um regime de proteção institucional supostamente favorável ao reconhecimento econômico da AO e, de outro, seus adversários, que denunciam os efeitos perversos de uma “mercantilização” precoce demais de uma forma de produção.

Se nos últimos anos o crescimento do mercado de produtos orgânicos, as mudanças de comportamento do consumidor em busca de novos valores e novas garantias e a irrupção nos circuitos comerciais da AO da grande distribuição (super e hipermercados) são fatores favoráveis a um verdadeiro take-off, a abertura desses mercados se faz, no entanto, sem que a AO brasileira seja realmente identificada e protegida.

II. Controvérsias a propósito dos dispositivos de reconhecimento

A amplitude da diferença entre as pressões do mercado e a organização da AO é tal, que aviva as controvérsias sobre os dispositivos de reconhecimento. O debate atual, nutrido de militância e de pragmatismo, desenvolve-se em torno das três seguintes questões:

n A proteção se justifica? Uma vez que a AO pode se impor simplesmente por suas qualidades intrínsecas (a qualidade dos produtos e seus baixos custos de produção).

n Os regimes de certificação implementados não conduziriam a novas formas de integração da agricultura, beneficiando unicamente as firmas da grande distribuição nacional ou os operadores internacionais?

n A construção de redes de parcerias entre os produtores e os consumidores urbanos não se constituiria em uma condição prévia a todo regime de proteção formalizado por normas ou contratos?

II. 1. A AO precisa de um selo de reconhecimento formal?

Enquanto na agricultura européia os debates em andamento sobre os selos de qualidade e de autenticidade provam que a atribuição desses selos – dos quais, aliás, deplora-se a complexidade e a multiplicidade – é um fator indispensável ao desenvolvimento de uma outra agricultura, os autores brasileiros, fortemente inspirados pelos debates anteriores, destacam imediatamente os efeitos perversos dos reconhecimentos institucionais e jurídicos.

Para alguns adversários da certificação, a AO – ancorada, segundo eles, de forma resoluta na AF – não tem necessidade de um selo de reconhecimento formal, podendo impor seus produtos simplesmente pelas suas particularidades. Ela não precisaria de proteção particular porque pode produzir os melhores produtos aos mais baixos custos. E o acesso direto a mercados locais, diferenciados e de proximidade conferir-lhe-ia uma vantagem em relação à agricultura industrial. Seus custos de produção, inferiores aos da agricultura industrial devido ao seu forte componente trabalho e à baixa remuneração da mão-de-obra familiar, tornariam os produtos da AO muito competitivos mesmo nos mercados mais distantes. Os dispositivos de certificação serviriam apenas para distanciar produtor e consumidor, privando os agricultores orgânicos das vantagens construídas por eles, a partir de sua própria dinâmica (Arl; Magnanti, 2000). Uma boa parte dos “técnicos militantes” das ONGs considera, além disso, que a certificação conduz a uma “burocratização” ou a uma “estatização” da relação entre produtores e consumidores, que deve permanecer baseada na confiança e na proximidade (Schmidt, 2001; Da Silveira & Almeida, 2000).

Frente às pressões exercidas pelos mercados e as redes de distribuição (Lohr, 2001), alguns entre eles são, no entanto, favoráveis à construção de um sistema híbrido de “certificação participativa”; confiada a uma rede de associações de agricultores e respeitando a regulamentação em vigor (Dos Santos, 1999). [5] No seu conjunto, porém, essas ONGs se opõem às posições dos agricultores mais integrados, que tomam iniciativas qualificadas de “oportunistas e mercadológicas”(Arl, 1999).

II.2. Os efeitos perversos da certificação

A maior oposição à certificação não está nos argumentos dos mais liberais, que denunciam toda proteção como um obstáculo maior à realização dos equilíbrios de mercado, mas entre os defensores de uma agricultura familiar e sustentável no Brasil. Eles denunciam os efeitos perversos da certificação, ao mesmo tempo em que exaltam os efeitos virtuosos de uma agricultura sustentável e local, única capaz de implantar e conservar os princípios fundadores da AO.

O fundamento das críticas que eles dirigem à certificação decorre de enquetes consagradas ao desenvolvimento de novos circuitos impulsionados pelos grandes da distribuição nas zonas urbanas ou nos mercados internacionais. Eles constatam que a reabilitação dos produtos “coloniais” ou locais abre novas possibilidades de escoamento, mas argumentam que no mercado interior a certificação é apenas uma forma nova de integração contratual, particularmente perigosa para os pequenos agricultores familiares. Assim, para Meirelles (s.d.), “a certificação poderá ser um freio decisivo no processo de resgate do agricultor como sujeito de seu próprio desenvolvimento”. No curto prazo, a certificação conduziria, pouco a pouco, a agricultura familiar a ser eliminada de um mercado que ela, no entanto, criou. As exigências mercantis (estabilidade ou baixa de preços, regularidade no fornecimento e na entrega, reorientação periódica das produções, seleção e concorrência de produtores, concentração de zonas de produção etc.) e técnicas (normas sanitárias, orientação de investimentos, uniformização de savoir-faire), impostas através dos cahiers de charges (protocolos de normas), excluiriam, por exemplo, definitivamente os agricultores tradicionais ou lhes conduziriam a uma extrema dependência. Esses fenômenos seriam amplificados se operadores internacionais, preocupados em responder às demandas específicas de certos países importadores e para certos produtos, introduzissem, em nome da identificação e da segurança alimentar, exigências particulares de técnicas ou organização do trabalho. Essas exigências poderiam conduzir à exclusão de certos produtores da AO nacional. Esses argumentos, já desenvolvidos para certos produtos de qualidade na Europa, [6] juntam-se àqueles desenvolvidos por uma agricultura que se quer mais militante do que técnica.

II. 3. Sistemas de reconhecimento a reconstruir

O debate sobre os efeitos de exclusão induzidos pelas normas uniformizantes impostas pelos operadores exteriores – e não construídas por aqueles que, produtores ou consumidores, desejam delas se beneficiar – dirige, no contexto brasileiro, às questões seguintes.

A primeira concerne ao impacto das normas sobre a liberdade de escolha dos produtores e as suas capacidades de fazer evoluir, por eles mesmos, no interior dos estabelecimentos familiares, seu savoir-faire, sua organização e suas referências. Em outros termos, a AO, que é colocada a priori como a melhor forma de impor e de defender a agricultura familiar, pode ser, em si, um instrumento de desenvolvimento? Isso quer dizer que ela seria um meio, por si só, de reforçar uma agricultura baseada em recursos internos à unidade produtiva e capaz de reabilitar práticas e um saber tradicional abandonados com a adoção das técnicas de origem industrial.

A segunda questão se refere às relações que a AO pode manter com produtores de normas que doravante a regem. A AO dispõe de meios para influenciar e dialogar com aqueles que, exteriores à agricultura familiar, lhe impõem sistemas de reconhecimentos exigidos pelos industriais e pelos consumidores? Ela não abandona essa capacidade que só a proximidade e a confiança permitiriam manter? As normas da AO não são um meio moderno de integrar aqueles que na agricultura familiar ainda podem “entrar” nos circuitos comerciais e eliminar definitivamente os outros? Em outros termos, o reconhecimento oficial da AO não é um meio de acelerar uma evolução para uma situação à qual o Estado (suspeito de comprometimento com a grande agricultura e com os lobbies das firmas agro-alimentares) só poderia chegar valendo-se de uma grande quantidade de leis e decretos?

A terceira questão se inscreve nas perspectivas abertas pela AO na reconstrução das relações urbano-rurais. Um pouco ingenuamente, parece, a AO é apresentada como um dos fundamentos dessa reconstrução, por ser portadora de autonomia, de economia e de independência. Essas características lhe permitiriam fundar relações novas que escapariam às regras do mercado. Produtores e consumidores desenvolveriam sobre essas bases redes específicas fundamentadas em reconhecimentos recíprocos, moduláveis e não ditados por interesses particulares exteriores a essas redes. Os membros da Rede Ecovida, já mencionada, consideram, por exemplo, que na agroecologia uma nova relação produtor-consumidor se instaura e que ela se imporá por ela mesma.

Mas, o que parece desafiar, segundo eles, “a atual lógica de mercado capitalista” (Arl, 1999) é generalizável, à medida que a AO se desenvolve e, com ela, as relações com a indústria e com os mercados?

 

À guisa de conclusão

Se sobre essas três questões as opiniões são divididas entre aqueles que, realistas, defendem a certificação e aqueles que, mais ideológicos, denunciam suas derivas, o consenso reaparece sobre a necessidade de reconstruir simultaneamente e não sucessivamente sua organização produtiva, de um lado, e suas formas de reconhecimento social, de outro. A agricultura orgânica só pode, de fato, participar dos objetivos globais que lhe são atribuídos – defesa do meio ambiente, desenvolvimento sustentável e autonomia – se for capaz de dominar, por ela mesma (Byé, Schmidt et al., 2001), a construção de suas técnicas de produção e seus sistemas de reconhecimento exteriores.

 

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Notas

[1] No quadro do Mercosul deve existir, a princípio, uma harmonização das leis e normas entre os países-membros.

[2] O Censo Agropecuário de 1995/96 mostra que, dos 4.859.864 estabelecimentos rurais do Brasil, 4.139.369 (85,2%) são ainda do tipo familiar. Estes estabelecimentos familiares, com uma média de 26 hectares, ocupam 30,5% da superfície total dos estabelecimentos rurais brasileiros e são responsáveis por 37,9% do Valor Bruto da Produção (VBP). Destaque-se que, dos 17,3 milhões de pessoas ocupadas na agricultura, 13,8 milhões (76,9%) o são na agricultura familiar (Bittencourt e Di Sabbato, 2000).

Os estabelecimentos familiares da região Sul, que têm em média 21 hectares, representam 21,9% do total dos estabelecimentos familiares do Brasil, ocupam 18% da área total dos estabelecimentos deste tipo e são responsáveis por 47,3% do VBP da agricultura familiar brasileira (Bittencourt e Di Sabbato, 2000).

[3] Qualificadas por Dias e Diesel (2000) de Organizações Não Governamentais de Desenvolvimento Rural (ONGsDR), elas vão ter uma presença importante e uma certa influência nos debates sobre agricultura nos três estados do Sul. Como destaca Almeida (1999), a função delas se situa entre a assistência técnica e o militantismo político. Pode-se citar, a título de exemplo, as organizações que compõem ainda hoje a Rede de Tecnologias Alternativas do Sul: Associação dos pequenos agricultores do Oeste de Santa Catarina – Apaco; Associação de estudo, de orientação e de assistência rural – Assessoar; Centro de agricultura ecológica – CAE-Ipê; Centro de apoio ao pequeno agricultor – Capa; Centro de tecnologias alternativas populares – Cetap; Centro Vianei de educação popular; Fundação para o desenvolvimento econômico rural da região Centro-Oeste do Paraná – Rureco (Almeida, 1999; Brandenburg, 1999; Rede TA-Sul, 1997).

[4] Ver, por exemplo, Dulley et al. (2000), para o caso da Associação de agricultura orgânica de São Paulo (AAO); Schmidt et al (2001), para a Associação dos agricultores ecológicos das Encostas da Serra Geral (Agreco). Deve se destacar o caso do Instituto Biodinâmico (IBD) de São Paulo, um dos pioneiros da agricultura orgânica no Brasil, que esteve sempre distanciado dos debates sobre as questões sociais da agricultura orgânica.

[5] A Rede Ecovida reúne associações de agricultores ecológicos, ONGs ligadas à agroecologia, organizações de consumidores e sindicatos ligados à AF do Sul do Brasil (Dos Santos, 1999). Uma parte importante dessas ONGs está dentro da tradição “contestadora” antes mencionada.

[6] As normas sanitárias da União Européia estão sendo denunciadas especialmente pelos agricultores que não podem financeiramente acompanhá-las ou assegurá-las.