Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Risorgimento e agrarismo


Raimundo Santos é professor da UFRRJ / CPDA.

Estudos Sociedade e Agricultura, 17 outubro 2001: 154-159.


Agora, com a tradução de O Risorgimento – Notas sobre a história da Itália, recém-lançado pela Civilização Brasileira, o público brasileiro tem acesso ao estudo gramsciano do capitalismo tardio. Do valor dele já se tinha notícia, desde meados dos anos 70, através de alguns intérpretes do nosso industrialismo que apreciavam a historiografia do comunista italiano por ela retratar uma modernização marcada pela falta de jacobinismo para interpelar a questão agrária e pelo pânico que se apoderara das classes altas após 1789, rebaixando a força transformadora das revoluções burguesas. Houve quem aqui também se interessasse pelos alcances propriamente políticos desse emblema gramsciano, inclusive filiando-o à vertente do último Engels atento às “revoluções econômicas” que, após os fracassos da onda revolucionária de 1848, modernizaram “pelo alto” países como a França e a Alemanha (as expressões são dele). Era uma circunstância não-prevista em O Manifesto Comunista e que levou Engels a repensar o modelo revolucionário de 1848, como se pode ver em seus textos Crítica ao Programa de Erfurt (1891) e “Introdução” a As Lutas de Classes na França (1895).

Essa conexão Engels-Gramsci viria instigada pelo sentido das coisas brasileiras do ocaso do regime de 1964. Ela apareceu entre marxistas que atentavam para a concepção engelsiana da “revolução da maioria”, particularmente interessados na ligação que Engels fazia entre democratização política e socialismo. Valorizando o avanço da social-democracia em vastas camadas sociais muito além da classe operária sindicalizada e as eleições favoráveis à esquerda alemã nas duas últimas décadas do século XIX, Engels sugeria o novo “método revolucionário democrático” para contextos em que o capitalismo se desenvolvera sem uma robusta institucionalidade liberal, como na experiência prussiana de modernização.

Tema que Gramsci retomaria em outra chave – ele leria 1917 e a tenacidade dos bolcheviques como uma revolução contra O Capital de Marx e 1929 como o advento do capitalismo organizado, ao qual, aliás, muito tempo depois, Habermas se referirá como um capitalismo de comprometimento entre economia e sociedade. Gramsci converteu a colocação engelsiana do problema propriamente em uma busca de uma estratégia socialista para o “Ocidente”. Ele a chamaria de “guerra de posições” em alternativa à “guerra de movimentos”, vitoriosa na Rússia, em 1917, mas fracassada, pouco depois, quando foi tentada novamente na Europa. Como se sabe, para chegar a essa sua fórmula, Gramsci teve de revisar dois conceitos-chave do marxismo: o de Estado (que 1929 revelara já ser um Estado ampliado, segundo a equação sociedade política + sociedade civil) e o de partido revolucionário, nesse novo contexto, chamado de “intelectual coletivo”, convocado a se desempenhar na “reforma intelectual e moral” (a revolução do nosso tempo).

A tradução brasileira de O Risorgimento traz ao público leitor o “terreno na-cional” do constructo gramsciano: a dissertação sobre o processo da formação do Estado nacional italiano da segunda metade do século XIX. Gramsci compara o  modelo clássico, no qual os acontecimentos revolucionários operam tempestivamente para aprofundar um movimento “já iniciado nas ‘coisas’” (p. 22), com eventos contemporâneos e tardios, característicos da época posterior à Grande Revolução, que ele chama de “revoluções passivas”; processos marcados – este é ponto preciso – pela dispersão de forças humanas que demoram a “se concentrarem” “e a se entenderem entre si” (id.). Referindo-se à diversidade dos processos e à necessidade de o analista ter presente, além das “combinações internas da vida das nações”, as diferentes relações internacionais, Gramsci fazia esta observação marcante: “O espírito jacobino, audaz, temerário, está certamente ligado à hegemonia exercida tão longamente pela França na Europa, bem como à existência de um centro urbano como Paris e à centralização conseguida na França por obra da monarquia absoluta. As guerras de Napoleão, ao contrário, com a enorme destruição de homens, entre os mais audazes e empreendedores, enfraqueceram não só a energia política militante francesa, mas também das outras nações, embora intelectualmente tenham sido tão fecundas para a renovação da Europa” (p. 85).

A visão arguta de Gramsci sobre aquela circunstância não passou desapercebida a A. R. Buzzi que, em 1969, chamou a atenção para o fato de a monografia sobre o Risorgimento ser uma historiografia que combinava o exame das forças econômicas, sociais, políticas e culturais, de modo inteiramente novo no marxismo. Aquele intérprete sublinhava que Gramsci dissertava sobre um processo de revolução burguesa em condições de debilidade da sociedade civil e do Estado, buscando dar inteligibilidade ao processo modernizador a partir da consideração de um contexto histórico-cultural “vasto e complexo”: à luz da cultura italiana inteira, remontando-se inclusive ao Renascimento. Era para onde o levara a aventura do seu marxismo mobilizado para entender eventos como o Risorgimento, um processo histórico “pouco claro e justificado em seu desenvolvimento devido à insuficiência das forças ‘interiores’ que parecem tê-lo produzido, à escassez dos elementos objetivos ‘nacionais’” (p. 28). Gramsci chegava a falar do Risorgimento como um organismo “inconsistente e gelatinoso” (“muitas vezes se ouviu mencionar o ‘milagre’ do Risorgimento”) (id.); “organismo” cuja trajetória, na verdade, dera lugar a “algo bastardo”, como escrevia ele, que não suscitara uma classe dirigente “difusa e enérgica”, nem conseguira inserir o povo no quadro estatal, fazendo dele apenas um instrumento e objeto (p. 105).

Gramsci deslocava a ênfase da economia para o terreno da cultura e da política, estruturando a sua dissertação a partir do tema das relações entre as classes, os partidos e o Estado. A sua extensa nota sobre o Risorgimento (“O problema da direção político-militar na formação e no desenvolvimento da nação e do Estado moderno na Itália”) narra as interações entre o partido “orgânico” das classes altas italianas (o Partido Moderado) e o representante, derrotado no curso do Risorgimento, dos “de baixo” (o Partido da Ação, que não mantinha conexão com uma classe fundamental). Ali estão os pormenores mostrando o primeiro liderando o processo, conduzindo o adversário e este, ao não saber exercer um jacobinismo de novo tipo, deixando-se levar e transferindo ao outro os impulsos renovadores que podia reunir à sua volta. Para essa narrativa, Gramsci usara um critério historiográfico centrado no conceito de hegemonia. [1] Também é em função dessa postura metodológica, como se sabe, que Gramsci recria e cria novas categorias como, por exemplo, as de hegemonia (em Lênin, domínio) e de transformismo, esta sendo chave para dar conta do largo processo de secreção de uma classe dirigente que o Risorgimento tarda em processar. O próprio conceito de Estado (o Estado-Piemonte, na alusão a uma “Prússia” italiana), nesse mundo de revolução burguesa débil e fragmentação das elites, faz as vezes de “classe dirigente”, substituindo as camadas superiores na “luta renovadora”, e funciona como “partido” que faltava a estas últimas, se visto o conjunto do processo no equacionamento gramsciano da relação “entre história, filosofia e política”, como observa Buzzi.

A debilidade da sociedade civil punha para o Partido da Ação tarefas complicadas que lhe exigiam um jacobinismo programático (e não apenas retórico ou “temperamental”), afinal, não desenvolvido pelos líderes populares Garibaldi e Manzini. O Partido da Ação devia opor ao espontaneísmo dos movimentos profundos do processo histórico (lentos e entregues a si mesmos, eles seguiam a atração mais forte das classes possuidoras) um “programa”, dizia Gramsci,  certamente lembrando o sentido geral do texto leniniano Que Fazer? Ou seja, para compensar a fraqueza geral daquele tipo de revolução burguesa, os “jacobinos” italianos teriam de interpelar os grupos subalternos agrários, incorporando-lhes as demandas ao modo de pensar o seu próprio governo. Há também a perda de outra “oportunidade histórica” para o envolvimento dos camponeses no State-Building. Gramsci se refere ao modo elitista como os Moderados lideravam a libertação do país (no Risorgimento, a Áustria ocupava partes do território italiano). As elites do Piemonte conduziram a guerra nacional sob a bandeira da L’Itália farà da sé, significando que os grupos conservadores procurariam vencer – mas não conseguiram êxito à altura de uma revolução nacional –, movimentando exclusivamente o exército profissional, “sem aliados incômodos”, isto é, não arrolando, de modo estratégico, as massas componesas naquela resistência militar, com isso evitando alargar, em sentido progressista, o processo de formação do Estado nacional.

A esse respeito, há uma nota interessantíssima em O Risorgimento. É uma passagem acerca do que seria uma noção de “partido agrário”, ou seja, o modo como Gramsci pensava a mobilização das “grandes massas camponesas” daquele tempo e num país como a Itália da questão meridional e sede do Papado. Ele observava que, para chegar a um melhor resultado do Risorgimento, o Partido da Ação poderia ter aplicado força máxima em duas direções-chave: sobre os “camponeses de base”, aceitando suas reivindicações elementares, e sobre os  “intelectuais dos estratos médios e inferiores” (“se um grupo de intelectuais se coloca na nova base de uma política filocamponesa concreta, ele termina por arrastar consigo frações de massas cada vez mais importantes”). Cite-se dessa passagem este trecho: “Mas se pode dizer que, dada a dispersão e o isolamento da população rural e a dificuldade de concentrá-la em sólidas organizações, convém iniciar o movimento a partir dos grupos intelectuais; em geral, porém, é a relação dialética entre as duas ações que se deve ter presente. Pode-se também dizer que é quase impossível criar partidos camponeses no sentido estrito da palavra: o partido camponês só se realiza, em geral, como forte corrente de opinião, não sob forma esquemática de enquadramento burocrático; contudo, até mesmo a existência apenas de um esqueleto organizativo é de imensa utilidade, seja para uma certa seleção dos homens, seja para controlar os grupos intelectuais e impedir que os interesses de casta os transportem imperceptivelmente para outro terreno” (p. 76).

Num exercício für ewig, Gramsci pensa em dar inteligibilidade ao momento histórico do pós-1789, em decifrar um novo tempo. Ensejado pelo caso italiano, ele chega a se referir à “era do Risorgimento e qualquer época complexa de transformações históricas”, na qual os “fatos” dão a impressão de que são eles, “por assim dizer, e não os ‘homens individuais’”, os protagonistas do evento histórico. A este traço, Gramsci juntava outro, formando uma imagem desta revolução “pelo alto” cujos contornos ele apresentava ao dissertar sobre a formação do Estado nacional do seu país: “Como, sob um determinado invólucro político, necessariamente se modificam as relações sociais fundamentais e novas forças políticas surgem e se desenvolvem, as quais influenciam indiretamente, com pressão lenta mais incoercível as forças oficiais, que, elas próprias, se modificam sem se dar conta, ou quase” (idem: 328). Com a tematização de um processo histórico como esse, Gramsci realiza um outro movimento: atualiza o marxismo teórico. Como ele próprio diz quase ao final de O Risorgimento, trata-se de buscar um novo cânone que, por certo, pertence ao mesmo domínio do “Prefácio” marxiano à Contribuição da Economia Política, [2] do qual a “teoria da revolução passiva” seria o “corolário crítico” (caderno 15, § 62: “Passado e Presente. Primeiro Epílogo”, p. 332).

Gramsci dizia também que esse tipo de retematização do marxismo, trazido por circunstâncias históricas em que falta força aos atores, poderia levar ao “perigo de derrotismo histórico, ou seja, ao indiferentismo, porque a formulação geral do problema pode fazer crer num fatalismo, etc.” (idem: 331); poderia também levar à confusão de tomar a “teoria da revolução passiva” como “programa”, isto é, no sentido da atitude dos liberais italianos no Risorgimento e não como um “critério de interpretação”. Tomá-la como critério de interpretação, no domínio da ciência política, seria dispor de um cânone necessário para balizar a ação nesse quadro de “ausência de outros elementos ativos de modo dominante” e operar conscientemente no aprofundamento das mudanças progressivas em curso, como diz Gramsci naquele mesmo § 62, o que implicaria levar adiante iniciativas oportunas que pusessem “intransigentemente” em ação todas as possibilidades de explicitação de uma “antítese vigorosa”. Longe daquilo que ele próprio chamava de “morfinismo político”, ou seja, da postura quietista a que induziria uma leitura “crociana” e historicista de uma situação como as de “revolução passiva”.

Visto de uma perspectiva bem geral: o ponto de chegada de Gramsci – para compreender a situação européia e americana do seu tempo de encarceramento –, por assim dizer, está na “teoria da revolução passiva” que lhe sugere sua interpretação da história da Itália. Diferentemente de Lênin em seus estudos sobre o capitalismo na Rússia, autor que realçara a política, em um sistema sem mediações complexas, como choque entre classes e momento de generalidade inteiramente voltado para a questão do poder estatal (ênfase que, inclusive, subsume a subjetividade da forma-partido), a operação gramsciana faz uma grande abertura no marxismo e focaliza a tensão entre as novas forças da cultura e a estruturação das relações sociais e políticas. Gramsci vê essa inter-relação como um processo aberto e disseminado por articulações diversificadas no conjunto da formação social (lembrar o conceito de “bloco histórico”, outra noção que distingue o marxismo gramsciano de outras apropriações do Prefácio de 1859, não se limitando Gramsci a citar a famosa passagem sobre base/superestrutura); inter-relação, ao mesmo tempo, irregular (ver as noções de “ideologia”, “catarse”, “senso comum”, “folclore”, “espírito de cisão” etc.; os próprios conceitos de hegemonia e transformismo, com todos os seus significados).

Em suma, estamos diante de um marxista que enfatiza a dimensão da cultura para entender a raiz nacional da sua circunstância e o novo mundo pós-29 caracterizado por uma economia que já não separava a política como uma manifestação meramente derivada. Gramsci vivia no mundo do capitalismo organizado, um tempo emblemático de uma dialética da história muito diferente daquela descrita em O Manifesto Comunista; nova dialética que ele também via nos EUA, onde, em lugar de processos rissorgimentistas e interações marcadas por “sedimentações passivas”, ideologias de fundamento econômico, como, por exemplo, o fordismo, tornavam-se forças de estruturação social e política altamente eficientes.

Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Volume 5: o Risorgimento – Notas sobre a história da Itália. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002, 461p.

 

Notas

[1] “O critério metodológico sobre o qual se deve basear o próprio exame é este: a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos: como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a ‘liquidar’ ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente em suas mãos, torna-se dominante mas deve continuar a ser também ‘dirigente’” (pp. 62-63).

[2] Como todos os marxistas, Gramsci também trabalhava com o famoso postulado daquele prefácio de 1859. Vale repetir a citação que dele faz o próprio Gramsci: “O conceito de ‘revolução passiva’ deve ser deduzido rigorosamente dos dois princípios fundamentais da ciência política: 1) nenhuma formação social desaparece enquanto as forças produtivas que nela se desenvolveram ainda encontrarem lugar para um movimento progressivo; e 2) a sociedade não se põe tarefas para cuja solução ainda não tenham germinado as condições necessárias, etc.” (p. 321). Ao longo dos textos gramscianos há, com freqüência, menções a este cânone primordial retirado do texto marxiano.