Estudos Sociedade e Agricultura

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Roberto José Moreira & Margarita Rosa Gaviria

Territorialidades, ruralidades e assimetrias de poder na Comunidade de Taquari


Estudos Sociedade e Agricultura, 18, abril, 2002: 47-72.

Resumo: (Territorialidades, ruralidades e assimetrias de poder na Comunidade de Taquari). Este artigo é um estudo das identidades sociais na Comunidade de Taquari, município de Paraty, em suas expressões no rural e no território. A postura analítica articula o tripé território-assentamento-natureza em suas relações contemporâneas e dá importância à compreensão socio-histórica da ambiência social mais ampla na qual se dão os processos de territorialização analisados. O Incra, o Ibama e a Prefeitura representam as forças hegemônicas da sociedade abrangente e do Estado, poderes assimétricos quando confrontados com os da comunidade. O dinamismo à lógica da vivência coti­diana da comunidade estão longe de uma sociabilidade tradicional com valores rígidos. As aberturas ao outro, à cidade, resultam em vivências abertas aos novos possíveis e a hibridações de valores diversos. A territorialidade e a identidade rural da Comunidade de Taquari são construídas pelas tensões de uma dada ambiência hegemônica de preservação do patrimônio cultural e do ecossistema. Apesar desta hegemonia, as forças locais não se mostraram submissas, expressando seus interesses e carregando possibilidades de mudança.

Palavras-chave: identidade, ruralidade, territorialidade, comunidade rural, Paraty.

Abstract: (Territories, ruralities and assymmetry of power in the Taquari Community). This article reports on a study of social identities in the community of Taquari in the municipality of Paraty and their reflection of the rural environment and surrounding territory. The analytical approach adopted links “territory-settlement-nature” to their contemporary relations and attributes key importance to the socio-historic understanding of the wider social surrounding in which the territorialization processes analyzed occurs. Incra, Ibama and the municipal government represent the State and the hegemony of the broader society,  establishing a relation of assymmetrical power when compared to the community´s  own resources. The logic and dynamism of the community´s day-to-day life is far removed from the rigid values of a traditional society. The exposure to the other, to the city, produces outward looking life-styles which open up new possibilities and create hybrid values. The Taquari Community’s territoriality and rural identity are constructed under the given tensions of the surrounding hegemonic cultural inheritance and preservationist ecossystem. Despite this hegemony, local strengths are not totally neutralised, and the community is able to express its own interests and engage in mobilisations.

Key words: identity, rurality, territoriality, rural community, Paraty.

Este artigo é um dos resultados do projeto de pesquisa Desenvolvimento Rural Sustentável: Registros de Novas Ruralidades, que desenvolvemos no CPDA/UFRRJ, com o apoio da Faperj, CNPq e Pronex.

Roberto José Moreira é professor da UFRRJ/CPDA; Margarita Rosa Gaviria é doutoranda do CPDA/UFRRJ.


Introdução

A Comunidade de Taquari, no município de Paraty, Rio de Janeiro, tem sua sociabilidade associada ao Assentamento Taquari, criado pelo Incra em 1983.

Na primeira ida à região de Taquari e ao assentamento, [1] observou-se que o território aparecia ocupado por um processo de territorialização distinto daquele tradicionalmente esperado pelas políticas de assentamento do governo federal. [2] Percorrendo a principal via de acesso ao Assentamento, a pesquisadora observou, já na entrada, uma placa indicando uma pousada e, a seguir, casas de veraneio, sítios com plantações agrícolas diversificadas e gado, anúncios de vendas de terra e de passeios turísticos, bares etc., que ocupavam uma faixa de 1 km em ambos os lados da estrada de terra. A existência da pousada, casas de veraneio, anúncios de vendas de terra e de atividades turísticas dava origem a um certo estranhamento. Este estranhamento inicial nos levou a reconhecer no assentamento um panorama alheio aos moldes em que foi concebido e gestado pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra), há anos:

uma área destinada ao aproveitamento racional do solo agrícola com vistas a solucionar a situação econômica e social dos colonos, devido aos problemas sofridos com a especulação imobiliária. [3]

Esse trecho do relatório aponta que o Incra buscava implantar uma racionalidade do solo agrícola, ou seja, agropecuário, que objetivava a solução dos problemas socio-econômicos dos colonos, considerados conseqüência da especulação fundiária. Como entender essa fraqueza relativa das ações do Incra na organização interna do assentamento?

As três instâncias governamentais, o Incra, o Ibama e a Prefeitura de Paraty, que aqui serão identificadas, são representações diversas do poder do Estado. As diferenças destas representações, mesmo que entendidas como emergentes dos interesses sociais e políticos do campo hegemônico, abrem campos de tensões entre eles e desses com a comunidade e os diferentes interesses de grupos, setores, vizinhança etc. A ação desses entes governamentais carrega projetos diferenciados para o território-assentamento-natureza, tensionando assim a identidade e a ruralidade da Comunidade. A dinâmica social vivenciada por esses atores carrega diferentes projetos de organização do território e de condições de possibilidades das relações sociais, das identidades e das ruralidades locais. Carrega assim as possibilidades de cooperação e disputas no interior da comunidade, na medida em que estes projetos acionam e institucionalizam interesses e internalizam valores nos atores locais.

Nos contatos face a face com membros da comunidade, empreendidos pela pesquisadora, ampliou-se o estranhamento inicialmente refletido na paisagem. Expressões de negatividade eram veiculadas na fala dos interlocutores, principalmente quando se referiam à presença do Incra, do Ibama e da Prefeitura na localidade, e de ambigüidade quando relacionadas às atividades de turismo. Nas palavras de um morador: “O Incra desapropria, o Ibama multa e a Prefeitura embarga”.

Quais os significados da negatividade geral que a comunidade inicialmente verbaliza contra aqueles entes governamentais? Como a comunidade vê, interpreta, vivencia e apropria a ação daqueles que pretendiam governar, controlar e regular suas vidas? As teorias sociais contemporâneas vão localizar o poder na capacidade de internalizar o controle e a regulação no próprio indivíduo, o biopoder de que nos falam Hardt e Negri (2001: 41-60). Em tal condição, os processos democráticos de convencimentos e de legitimações democráticos tornam-se fundamentais. Os valores culturais hegemônicos são de fato aqueles que tendem a nos controlar por dentro, como nossos próprios valores. Esses processos tendem a ser mais poderosos na medida em que cremos que eles foram criados e construídos por nós mesmos, uma espécie de valor particular de nossa própria natureza individual, ou mais ainda valores próprios da natureza humana. Tanto em sua forma individual (natureza do indivíduo), quanto coletiva (natureza da espécie), esses processos podem ser identificados como processos de fetichização, reificação e naturalização dos valores hegemônicos nos quais as identidades individuais se reconhecem, se vêem e se identificam com valores, tomando-os como próprios. Os processos sociais que produzem sujeitos e individualidades capazes de reconhecer as diferenças, os valores dos outros, as relatividades de suas autonomias, enfim, em algum sentido sujeitos pós-modernos, produzem identidades críticas. Neste sentido, quando registramos que as ruralidades da Comunidade de Taquari reconhecem que as ações do Incra, do Ibama e da Prefeitura não carregam os seus interesses e os seus valores, estamos falando de vivências de sujeitos socais críticos, capazes de avaliar e resistir às pretensões dos controles governamentais sobre suas próprias vidas e valores.

Nossa análise procurará visualizar as identidades sociais em suas expressões no rural e no território, suas ruralidades e territorialidades, buscando entendê-las como construções sociais sujeitas às assimetrias de poderes. Essas assimetrias favorecem as forças que expressam as hegemonias nacionais e municipais quando em disputas com as forças identitárias da comunidade. A articulação compreensiva desta postura analítica é apresentada a seguir.

 

Identidade, ruralidade e territorialidade

Estamos articulando o tripé território-assentamento-natureza, buscando nele alguns dos elementos conformadores da ruralidade da comunidade. As diferentes noções de rural e de ruralidade, pensadas pelos pesquisadores sociais da atualidade [4] nos remetem à proximidade com a natureza: o solo, a terra e o ecossistema. A especificidade do rural na produção material da vida e na vivência do social com suas subjetividades e sensibilidades rurais – e como representações sociais destes espaços – não poderia ser entendida se não levarmos em conta essa proximidade.

A respeito, no contexto do pensamento ecológico contemporâneo, pesquisadores consideram que “o meio ambiente é a linguagem potencial de uma reconceitualização sociopolítica do rural”. Essa definição de meio ambiente de Mormont é adotada por Wanderley (2000: 131) para qualificar a situação do meio rural contemporâneo. Para esta postura teórica, a associação e/ou assimilação do meio rural com o meio ambiente tem uma transcendência política, pois coloca o diálogo do campo com a cidade num novo patamar, o qual se sustenta na importância que tem adquirido a natureza para as populações urbanas. Nesse quadro, as representações sobre o rural deixam de ser elaboradas a partir de categorias opositivas em relação ao urbano (atrasado/moderno) apoiadas em aspectos econômicos, para se firmarem em valores de cunho ambiental e cultural.

A noção de ruralidade que estará subjacente nesta análise procura tematizar o mundo rural nas sociedades contemporânea, reconhecendo um processo de ressignificação (ou, como diriam outros, de desconstrução-construção) dos “rurais” construídos pelas antigas oposições sociedades tradicionais-modernas, rural-urbano, campo-cidade e agricultura-indústria, próprias da modernidade. Nesse contexto, há ainda um “rural” de que podemos falar e que gera identidades e atores rurais?

As noções de ruralidades das quais aqui falamos estão associadas aos processos recentes da globalização e do exercício da hegemonia das políticas neoliberais no pós-Consenso de Washington (Santos: 2002; 25-102) que promovem a abertura dos mercados, o redimensionamento do papel do Estado, as descentralizações políticas e a desformalização das relações de trabalho herdadas. Seus processos de construção estão, portanto, conformados e conformam os processos socio-culturais contemporâneos da pós-moder­ni­dade e da era da informação, gerando novas possibilidades de postulações contra-hegemônicas. [5]

Tendo em mente a possibilidade de existência de processos de ressignificação do “rural como agrícola” para um “rural como natureza”, será necessário reconhecer que estes processos impõem tensões nos diversos âmbitos societários, tais como na estética, nas ciências, na sociedade civil, no Estado, no mercado e na espiritualização. [6]

Com enfoques, abordagens e mesmo temáticas diferentes, diversos autores tendem a ressaltar o “rural” como um modo particular de utilização do espaço e da vida social, o que implica a compreensão dos contornos (o espaço ecossistêmico), das especificidades (o lugar onde se vive) e das representações (o lugar de onde se vê e se vive). Em favor do reconhecimento do “rural” na contemporaneidade e apoiando-se no debate travado nas sociedades avançadas, Wanderley (2000) se posiciona numa leitura do “rural” como espaço singular e ator coletivo e ressalta alguns aspectos deste debate (a ruralidade como construção histórica, o rural como um espaço diversificado, o desenvolvimento rural como um novo compromisso institucional e a emergência de uma nova ruralidade); aspectos que nos permitem identificar várias ressignificações do “rural”, novos atores e novas disputas discursivas. Carneiro (1998) problematiza a ruralidade como novas identidades em construção, postulando-a como expressão de novas relações campo-cidade. Apoiados nesses estudos podemos interpretar a ruralidade contemporânea como uma pós-modernização da agricultura (no caso francês) e uma modernização incompleta, interrompida ou segmentada (nos casos fluminenses da região serrana), ambas, no entanto, conformadas por uma revalorização da natureza que, por vários e complexos processos, configura uma “urbanidade” contemporânea que revaloriza a vida no campo e a produção de alimentos saudáveis.

Em geral, a ruralidade refere-se, portanto, às relações específicas dos habitantes do campo com a natureza e às relações próprias de interconhecimento dessas relações, densificadas pelo conhecimento e pela comunicação direta, face a face. A articulação entre as noções de rural e de identidade social é que nos permitirá falar em ruralidade. A articulação entre ruralidade e natureza nos permitirá falar de territorialidade quando estivermos analisando as assimetrias das territorialidades e ruralidades da Comunidade de Taquari. Como hipótese, entendemos que as forças sociais hegemônicas associadas às ações do Incra, do Ibama e da Prefeitura (políticas, recursos, pessoal, valores culturais etc) são assimétricas às forças da comunidade. Mais poderosas do que as forças da comunidade, nela se internalizam, ganham aliados e opositores, constroem ou ampliam as diferenciações internas já existentes.

Mesmo que as disputas pela utilização do espaço possam ser observadas entre as entidades governamentais e entre os diversos grupos sociais da comunidade, em alguns contextos, as diferenças, disputas e oposições se reduzem a duas instâncias: a dos órgãos governamentais e a da comunidade. Em tais contextos, ou a comunidade – como ator coletivo – opõe-se às autoridades governamentais ou estas juntam-se – como uma única instância de poder governamental –, procurando impor sua organização do território. Nessas disputas, ambos os lados, suportados em suas concepções de espaço rural, procuram impor representações e formas de organizar suas ações sobre o espaço rural.

A ruralidade, como processo dinâmico de interação entre grupos sociais diferentes, de mudança e de deslocamento, não é vivenciada de maneira uniforme pelas esferas sociais envolvidas nele, como também não é adscrita a uma espacialidade e/ou uma temporalidade concreta. Observamos esse processo recorrendo às noções de ruralidade, territorialidade e identidade, visto que cada uma delas aborda uma questão determinada. A ruralidade responde aos elementos que sustentam o processo; o território responde a qual é o contexto físico e social no qual acontece o processo; e a identidade responde a como é vivenciado o processo pelos agentes sociais.

Em outras palavras, postulamos que o caráter heterogêneo, móbil e dinâmico que conforma o processo próprio da ruralidade se estabelece em ambiências que não têm, necessariamente, uma base física. Daí a importância de incluir o conceito de território na análise, pois este aponta para a reflexão das situações de mobilidade de fronteiras físicas e sociais, próprias do universo social estudado.

Igualmente, a mobilidade e o dinamismo se traduzem num processo de descomposição e recomposição de espaços, que dá lugar à construção de identidades. Trata-se de identidades sociais descentradas, abertas, que se constroem e se reconstroem no processo de interação dos agentes sociais com novos componentes econômicos, sociais e culturais. Quer dizer, no processo social considerado, se desarticulam umas identidades e se abre a possibilidade de articular outras.

As ruralidades e as territorialidades serão vistas por nós como identidades abertas às tensões dinâmicas de seus espaços sociais de inserção. Para refletir sobre estas tensões, propomo-nos visualizá-las como processos de construção de objetividades e subjetividades abertas, [7] com autonomias relativas, [8] levando em conta suas incompletudes, alteridades e seus novos possíveis, em uma perspectiva contemporânea da análise dos processos de construção e desconstrução da realidade. [9]

A postura analítica de tensões identitárias que aqui propomos parte do pressuposto que a dinâmica dos processos vividos (relações internas e externas) constrói identidades que, na origem, não estavam delineadas nas aspirações de nenhum de seus atores e postuladores. Olhar tais tensões nos permitirá compreender o campo de cooperação e disputa construtor das identidades. Este campo carrega o fermento de seus novos possíveis.

A interpretação desse emaranhado de relações fortalece-se na compreensão do que alguns autores têm chamado de culturas híbridas [10] , ao se referirem às relações entre o global e o local, o glocalismo da globalização e da pós-modernidade. Neste artigo visualizamos aspectos das relações cidade-campo, procurando ressaltar as tensões identitárias, substrato social para a produção de sincretismos e hibridismos rurbanos na Comunidade de Taquari.

Estamos diante de um universo social no qual o rural e o urbano estão interconetados. Nele, o esvaziamento de fronteiras provocado pela mobilidade física e social entre ambos os espaços leva a que o urbano e o rural não correspondam mais a realidades distintas. Vivencia-se a incorporação de populações urbanas no espaço rural, de maneira que a dimensão territorial é destacada, já que, o território se constitui na incorporação de elementos simbólicos e materiais urbanos no espaço rural. O território refere-se aos contextos sociais, culturais e espaciais em que acontece a interconexão entre o urbano e o rural, isto é, quando não é possível considerar o urbano sem o rural e vice-versa.

Por outro lado, a indiferenciação espacial, social e cultural do rural e do urbano se reflete na construção de novas identidades. Quer dizer, nesse contexto em que convivem pessoas de origem urbana e rural, elas se unem em torno de práticas e valores; as diferenças são expressas nas identidades. Dessa maneira, a identidade torna-se importante na análise – e na prática social –, pois nos remete – e aos atores sociais – aos elementos que sustentam o pertencimento e as relações de alteridade, assim como situações em que eles são acionados, permitindo-nos falar em ambiências das identidades.

Cumpre ainda apontar que a visualização dessas tensões nos permitirá pensar novas formas de ações políticas, reconhecendo novos lugares da política na sociabilidade contemporânea, mesmo não associando, nesta análise, esses lugares com a mídia e o global como, corretamente, fazem outros autores. [11] Isso nos levaria, no mínimo, a problematizar a telessociabilidade do uso da televisão no imaginário e nos valores da comunidade como uma possível presença hegemônica, no local, de uma cultura de massa nacional ou globalizada.

Nesse sentido, a territorialidade da Comunidade de Taquari não se construiu em um passado remoto ou recente, se faz no processo e carrega possibilidades de mudanças. A comunidade que emerge no pós-1983 recebe o nome da antiga fazenda. No passado, a identidade do lugar e de seus habitantes certamente aglutinava um sentido de identidade diferente para o território: a de fazenda. Recuperar a constituição da fazenda e do seu entorno significará reler a socio-história da região e da própria Fazenda Taquari, procurando desvendar a territorialização herdada, as tensões que levaram ao processo de desapropriação que fundou o assentamento, bem como a regulação que a própria comunidade instituiu em seu cotidiano e que, hoje, se apresenta como direitos costumeiros. A releitura desse processo histórico de territorialização requer entender a dinâmica socioterritorial do próprio município de Paraty desde a sua fundação, a criação do Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB) e a presença do Ibama, outro ente governamental que carrega a vontade da sociedade e expressa as políticas governamentais em relação ao meio ambiente. Essas forças projetam regulações sobre o território e sobre as relações sociais e as sociabilidades cotidianas.

A análise do pós-1983 implicará também reconhecer a presença das forças hegemônicas dos diversos governos municipais e suas ações e projetos para a região na qual se localiza a Comunidade de Taquari. A territorialização de que aqui falamos se expressa nas ações e políticas municipais de infra-estrutura de estradas, transporte e de serviços diversos de saneamento, saúde, educação, eletrificação etc.

 

Assimetrias de poder na Comunidade de Taquari

Uma das primeiras intervenções governamentais na regularização fundiária do município, décadas de 1950 e 1960, [12] esteve associada ao Plano de Coloni­zação das Terras Devolutas do governo estadual, que visava, ini­cialmente, colonizar as terras devolutas da região – dentre as quais se incluía a área da Fazenda Taquari –, abandonadas depois da abolição da escravatura.

Registre-se que a herança desse processo é vista, no Plano, como a produção de terras devolutas. Registros analisados apontam que, no final do século XIX, o senhor Honório Lima, se dizia proprietário das Fazendas Barra Grande, São Roque e Taquari, com uma área de 20.000 hectares. O Plano de Colonização orientava o uso dessas terras por pequenos produtores que, oriundos de outras regiões, ocupavam áreas inferiores a 50 hectares, nelas cultivando banana, mandioca, milho e feijão.

Podemos aqui intuir que a hegemonia sobre o território, representada pela “propriedade” das terras das fazendas, era questionada pelo governo estadual do período que declarava aquele território como de “terras devolutas”. A orientação do Plano reconhecia um processo de colonização autônomo de “pequenos produtores” provenientes de “outras regiões” que já ocupavam e cultivavam as terras. O Plano carregava a possibilidade de constituição de uma comunidade de pequenos produtores, uma comunidade de iguais, sem hierarquias constituídas.

A região continuou habitada por lavradores, sobretudo posseiros e pequenos proprietários, havendo ainda parceiros e arrendatários. Anos depois, tais pequenos agricultores foram surpreendidos com o súbito aparecimento de inúmeros “proprietários” daquelas terras de Taquari, conhecidas como devolutas e do Estado. A disputa acerca dos direitos sobre o território provocou tensões, já nos anos de 1970 e 1980, entre os “lavradores” [13] oriundos daquela colonização das décadas de 50 e 60 e as empresas que se identificavam como as “proprietárias” das terras.

É em tal ambiência conflituosa que, em 1983, ocorre à intervenção governamental do Incra que dá origem ao Assentamento de Taquari. O assentamento constituiu-se posteriormente como a socialização nucleadora da Comunidade de Taquari, hoje mais ampla que o espaço do assentamento. Aquela intervensão almejava encaminhar a solução dos conflitos.

Cumpre recuperar as mudanças da ambiência regional que separam os dois períodos. No contexto dos anos 70, a construção da estrada Rio-Santos, a rodovia BR 101, e sua abertura ao tráfego em 1975 viabilizaram a atividade turística, permitiram o escoamento de produtos locais, como a banana e o peixe, [14] modificando substantivamente as conexões do território com a sociedade abrangente. De um lado, esta intervenção contribuiu para a degradação ambiental e, de outro, possibilitou a valorização das terras. A crescente especulação imobiliária, “principalmente no litoral e em locais dotados de belezas naturais” (Almeida, 1997: 28), indica a emergência de novos interesses sobre a apropriação e uso do território. Empreendimentos turísticos foram construídos ao longo da rodovia ocasionando deslocamentos abruptos das populações. [15]

Em outro registro das mudanças da ambiência regional, e tendo em vista a especulação imobiliária e a devastação florestal das quais já anteriormente fora vítima Paraty, o governo interveio, em 1966, com o objetivo de garantir a integridade do acervo paisagístico e incrementar o turismo, transformando o município em monumento nacional (Almeida, 1997: 24). Neste registro podemos visualizar uma sincronia histórica entre o primeiro Plano de Colonização dos anos 60 e 70 e a transformação de Paraty em monumento nacional. Nessa confluência podemos levantar a hipótese que a ação dos entes governamentais de então já articulavam a defesa do patrimônio histórico de Paraty com a preservação do meio ambiente e concebiam a legitimação da comunidade de pequenos produtores como adequada à preservação. Uma sincronia de interesses que potencializava os interesses dos pequenos agricultores associando-os aos da preservação do patrimônio cultural e ambiental, unindo-os contra os interesses daqueles que se declaravam “proprietá­­rios” das terras.

Com o mesmo objetivo de sustar os desmatamentos e recuperar áreas de vegetação sacrificadas, foi criado, em Paraty, em 1971, o Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB). O PNSB abrangia também parte dos municípios de Cunha e São José de Barreiro (São Paulo) e Angra dos Reis (Rio de Janeiro). O surgimento do Parque reduziu 50% da área agricultável e em seu perímetro seriam permitidas apenas atividades de pesquisa e de turismo. O posterior tombamento do município de Paraty, realizado pelo governo do estado do Rio de Janeiro em 1991, incluía a área urbana e rural do trecho fluminense da Serra do Mar/Mata Atlântica e justificava-se ao considerar Paraty uma relíquia a ser preservada por seu conjunto arquitetônico e sua mata circundante (Souza, 1994 e Almeida, 1997). A associação entre o “conjunto arquitetônico” e sua “mata circundante”, em 1991, demonstra que essas parecem ter sido as forças que se hegemonizaram e que legitimaram um projeto abrangente para a região que incluiu o território da comunidade que aqui analisamos.

Interessa-nos destacar a parte da Fazenda Taquari que estava dentro do perímetro do PNSB. Para resolver a situação dos lavradores de Taquari, que continuavam a residir e trabalhar na área do Parque, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra), em ação conveniada, compraram parte da Fazenda Taquari e procederam à desapropriação de outra parte. [16] No processo desapropriatório, o Incra ficou responsável pela área localizada fora dos limites do PNSB. As áreas remanescentes, incluídas no perímetro do Parque, foram entregues ao IBDF, atual Ibama. [17]

Cumpre ressaltar que a criação do Parque conforma um espaço social da Comunidade, semelhante aos de comunidades fronteiriças a reservas florestais, ecossistemas e mesmo parques. [18]

Essa releitura do período nos mostra que a criação do Parque tensiona os interesses dos colonos que anteriormente haviam sido legitimados pelo Plano de Colonização dos anos 50 e 60. A redução da área agricultável e a regulação do uso das áreas do Parque determinam a ação do Incra que, articulado ao Ibama, teria a função de assentar as populações que se encontravam no interior do Parque, regulando uma nova sociabilidade adequada à territorialidade que a sociedade abrangente, ou seja, os interesses hegemônicos, projetavam no Parque.

 

O processo de desapropriação da Fazenda Taquari foi temporariamente interrompido

A empresa (Empresas Reunidas Agro Industrial Mickael S/A), proprietária do imóvel rural Fazenda Taquari, entrou com mandado de segurança junto ao Superior Tribunal Federal contra as medidas expropriatórias do Incra, autorizadas pelo Presidente da República. [19] O recurso jurídico motivou a paralisação do trabalho iniciado pelo Incra, quando este já tinha delimitado o perímetro do assentamento, em 1983. Os lotes das famílias só foram demarcados em 2001. O processo judicial impossibilitou, até 1995, a presença efetiva do Incra na área e abriu um vazio institucional no direcionamento da territorialização do assentamento. Ou seja, durante 12 anos o assentamento existiu sem o Incra. Nesse período, a organização esteve sob controle da dinâmica da Comunidade que instituiu regras próprias de uso do espaço.

Em 1983, no momento da desapropriação, já havia sido delimitado o perímetro do assentamento, bem como definidos os beneficiários: 60 famílias, das quais 33 tinham direito a crédito por terem mais de três hectares. [20] Ocupando esse vazio institucional, os “lavradores” (posseiros, moradores e trabalhadores da fazenda) gestaram uma territorialização particular segundo regras e valores internos já existentes ou aí instituídos e legitimados pelo costume. Certamente as 60 famílias cumpriram um papel nucleador hegemônico. Note-se que apenas cerca de metade delas tinha mais de três hectares. Forma-se assim uma territorialidade relativamente homogênea. Esse núcleo de 60 famílias tinha sua legitimação fundada na ação anterior do Incra.

Em 1995, o Incra retomou suas atividades no assentamento de Taquari e deparou-se com as vendas de lotes, empreendimentos comerciais particulares e diversas práticas econômicas não agrícolas. Após 12 anos, o Incra retomou sua autoridade institucional sobre o assentamento e reage ao uso costumeiro com ameaças e cobranças à população, querendo reverter o quadro. Só em 2001 ele consegue delimitar os lotes. Como veremos adiante o assentamento conta hoje com 270 famílias.

Estudar esse processo de delimitação significa entender como a territorialização autônoma da comunidade foi legitimada ou negada pela territorialização do loteamento do Incra. É provável que parte das representações negativas tenha sido associado pela comunidade à imagem do Incra. Após 1995, o Incra tende a negar a territorialização construída pela própria comunidade.

A população ainda reclama do Incra, referindo-se ao abandono da Comunidade por vários anos. Reprova a sua maneira de agir, já que ele impõe regras e estabelece proibições, mas não presta assistência nem oferece recursos e soluções para resolver as dificuldades atuais da “roça”. Sua principal demanda é que o Incra “os deixe em paz” para que “a comunidade escolha seu caminho”.

A desconsideração das razões associadas às ações do Incra é também estendida, pela comunidade, à imagem de negatividade que ela associa aos projetos do Ibama e da Prefeitura.

Para a comunidade, o Ibama representa os interesses da Área de Proteção Ambiental de Taquari e age como um órgão repressivo às atividades da população na área. [21] A administração do Parque, através dos “florestais”, [22] exerce controle sobre as práticas agrícolas e a devastação que, segundo o Ibama, a população de Taquari pratica no perímetro do Parque. No interior do Parque há ainda uns 30 sítios (lotes produtivos) de moradores da localidade, segundo informaram algumas pessoas em Taquari. Neste contexto a população reage contra o controle exercido pelo Ibama no Parque.

Numa reunião da associação de moradores, a qual compareceu o diretor do PNSB, os moradores justificaram suas atividades no Parque como uma maneira de resolver suas necessidades básicas. Um dos agricultores disse que tem sítios no Parque:

“Doutor, você não gosta de estar na mata igual eu gosto não, adoro isto aqui, mas você não vai passar fome para deixar uma abelha em pé, se precisar de uma madeira para viver tira a madeira e vende para construção, agora roubar é diferente”.

Nesse discurso, o morador procurava justificar suas atividades no Parque como legítimas por estarem associadas à reprodução de sua vida e da família. Nega a qualificação dessas atividades como sendo práticas de roubo e devastação, conforme são interpretadas pelos “florestais” e ambientalistas.

O Ibama e a institucionalização do Parque, segundo a legislação ambiental brasileira, projetam o território do Parque como área desabitada. A esse projeto se opõe a população que incorporou em seu cotidiano um passado de “áreas devolutas e sem proprietários”. A comunidade procura legitimar a exploração de sítios no espaço do Parque associando-a à reprodução da vida da comunidade. Podemos visualizar claramente aqui uma disputa em torno do biopoder na comunidade. Esta última vivencia a ação do Ibama e a presença da figura do Parque como uma perda, uma apropriação que o governo faz de parte da sua reprodução social. Esse é o campo conformador das tensões e dos conflitos Ibama-comunidade ou, mais especificamente, dos conflitos desse agente público com os agricultores que vivem ou mantêm sítios produtivos no interior do Parque (Gonçalves, 2001).

A Prefeitura controla a ocupação territorial delimitando espaços – por exemplo, as margens da estrada ou do rio –, nos quais edificações de posse da população são proibidas. Embarga as casas construídas muito próximas do caminho. A quem desobedecer às regras de ocupação, a autoridade ameaça mandar um trator para derrubar o que tiver sido construído, justificando suas ações pelo risco que implica a superlotação em termos de recursos básicos para a população.

A fala de um dos moradores, já anteriormente citada e que aqui repetimos, resume as três tensões governamentais que conformam a vivência e a territorialidade da comunidade: “O Incra desapropria, o Ibama multa e a Prefeitura embarga”.

Essa verbalização revela a assimetria de poderes daqueles entes governamentais em relação aos poderes da comunidade, como procuramos evidenciar.

As tensões postas por tal assimetria de poderes se alimentam da dissociação entre os objetivos dessas entidades e os interesses da comunidade. Elas projetam territorialidades distintas das vividas pela comunidade. De outro lado, os projetos referidos não são elaborados de forma participativa, não reconhecendo assim a complexidade do universo social em questão e não se preocupando com as questões do convencimento democrático. Nossa narrativa procurou demonstrar que as instituições expressam projetos que a sociedade, representada naqueles entes governamentais, elabora para aquele território em questão. A Constituição municipal e a eleição do Prefeito, a legislação de reforma agrária e a ação do Incra, a questão ambiental nas leis e sua expressão prática nas ações do Ibama refletem a hegemonia da sociedade abrangente sobre o espaço local. Tais projetos não reconhecem a territorialidade social construída pela vivência do local, nem a diversidade dos vários grupos sociais da Comunidade, suas diferentes formas de inserção social, redes de relações sociais e concepções do uso da terra. A comunidade, de outro lado, não vê por detrás daqueles entes públicos a sociedade abrangente, reifica o Incra, o Ibama e a Prefeitura, neles reconhecendo uma vontade institucional que lhe é estranha e cuja lógica não compreende.

Vale destacar que o território se constitui em um campo de forças de diversas instâncias sociais. Ou seja, na área do assentamento o Incra detém o poder, mas na prática social observa-se que esse poder é disputado com os “nascidos e criados”. Os nascidos e criados exercem um domínio relativo sobre a área do assentamento pela posição social de serem descendentes de famílias que estão no lugar há várias gerações. Quer dizer, os nativos sustentam seu poder relativo sobre a área recorrendo ao tempo de permanência na localidade. Esse domínio é expresso pela venda e desenvolvimento de atividades proibidas pela legislação do Incra. Suportados por direitos costumeiros, os assentados agem como que legitimados por direitos privados instituídos pela sociedade, apesar de não possuírem os títulos de propriedade por ela reconhecidos.

 

Territorialidades e tensões culturais

Nucleador da identidade comunitária, o Assentamento Taquari ocupa uma área de 958,7462 hectares, habitada por 270 famílias [23] relativamente homogêneas, como já revelamos. Com uma lente analítica mais potente, porém, podemos visualizar um universo social heterogêneo.

De um modo geral, observa-se na comunidade uma divisão social entre o grupo de residentes instalados na localidade há duas ou três gerações, os “nascidos e criados”, e os “de fora”. Tal constatação nos remete à divisão social proposta por Norbert Elias (2000) entre os “estabelecidos” e os “outsiders” ao estudar um bairro de trabalhadores, também aparentemente homogêneo. Em nosso caso, dentre os “de fora” distinguem-se os moradores procedentes de outras zonas rurais, os moradores oriundos de áreas urbanas, os que têm residência secundária e os turistas. Em suma, o universo social de Taquari tem uma pluralidade de categorias sociais.

As fronteiras simbólicas de cada uma dessas categorias são construídas historicamente nas relações e nos embates cotidianos entre os “nascidos e criados” e os “de fora” que definem formas identitárias destas diversas categorias com os espaços físico e social, permitindo-nos falar em expressões multi-identitárias da ruralidade e territorialidade da comunidade. Trata-se de identidades construídas pelas representações dos atores de acordo com a origem, o passado comum, o tipo de atividade econômica ou o estilo de vida e/ou as formas de lazer. O fato de cada categoria social utilizar um ou outro elemento para definir sua identidade depende de sua situação na localidade e da conjuntura relacional que vivencia. No contexto das relações com os entes governamentais, também vistos como “de fora”, tende a prevalecer a identidade da comunidade como um todo social uno. Nesse sentido, esta comunidade é representada pela associação de moradores de Taquari.

A comunidade de Taquari possui ainda uma escola municipal, onde as crianças estudam até a quarta série, e quatro igrejas (Assembléia de Deus, Adventista, Batista e Católica). A festa tradicional do catolicismo é a de Nossa Senhora de Aparecida que se celebra no feriado de 12 de outubro. No que concerne à infra-estrutura, Taquari conta com recursos básicos: água, energia e saneamento básico. O transporte público para fora da comunidade-assen­tamento (de segunda a sábado, três vezes por dia) é representado pelo ônibus municipal que faz o trajeto Taquari-Paraty.

As relações entre os grupos sociais que interagem em Taquari se manifestam em diversos níveis. Os indivíduos e as coletividades em alguns contextos se cruzam, fazem parte da mesma rede, e em outros não. Essas relações são expressas sob a forma de alianças, conflitos, encontros ou desencontros que se transformam de acordo com a situação vivida. Tais transformações são acompanhadas por atualizações dos códigos de conduta e das regras de vida social que orientam a vida das pessoas e que não são reconhecidos pelas entidades públicas.

A complexidade das relações pode ser visualizada nas vivências religiosas. Em torno de cada uma das igrejas, constroem-se redes de sociabilidade que se estendem para além da localidade, possibilitando inclusive a manifestação de um turismo religioso. As igrejas têm grande representatividade na localidade, o mesmo não se podendo dizer da associação de moradores de Taquari. Esta representa a localidade perante os órgãos oficiais. Ao mediar as relações da comunidade com tais órgãos, a associação não tem conseguido o engajamento da população. Na busca de defesa e representação dos interesses da comunidade, como por exemplo, nas demandas de infra-estrutura, a estratégia da associação é a de se apropriar dos projetos governamentais e acioná-los a favor da comunidade. Nesse processo, a associação acaba sendo vista como expressão dos interesses da diretoria ou dos interesses do Incra, do Ibama ou da Prefeitura. Tanto em um caso como no outro, a legitimidade da Associação é posta em dúvida, seja por outros interesses da Comunidade seja pelo conjunto da mesma. Como resultado de tais vivências, a Associação vem sendo vista como defensora dos interesses que norteiam os projetos implementados pelo Incra, Ibama e Prefeitura que, do ponto de vista da população de Taquari, não correspondem a seus próprios interesses. Nessa situação, a representação da Associação é desvalorizada e a infra-estrutura obtida por meio de sua ação enfrenta um descaso generalizado da comunidade.

No caso do Ibama, a associação é quem assume a função de advogar por seus projetos e entra em conflito com os interesses do setor da população que utiliza o Parque Nacional da Serra da Bocaina para atividades agrícolas ou pecuária ou outras formas de exploração de recursos do Parque. [24] A legitimação do loteamento do Incra ou o ordenamento territorial da Prefeitura coloca na comunidade uma tensão entre os que defendem essas territorializações e os que lucram com a venda de lotes ou constroem fora da área permitida.

Ao refletir sobre as tensões que o turismo impõe à sociabilidade cotidiana é necessário ter em conta que o turismo envolve atividades face a face com estranhos à comunidade, diferente das relações com os entes governamentaisacima referidas. A interação face a face com os turistas tensiona não apenas os interesses, mas os valores, os afetos e o estilo de vida.

Atualmente, o turismo é uma das fontes de renda de um setor da população de Taquari. Essa prática social é um complemento econômico, já que é uma atividade que acontece na época do calor que dura seis meses – de outubro até depois do carnaval. Visto como um fluxo no tempo, o envolvimento da comunidade com as atividades de turismo e com os turistas depende da demanda. O incremento da atividade turística ocorre gradualmente, de acordo com a intensificação do calor. O caráter sazonal do turismo gera instabilidade financeira para aqueles que se dedicarem apenas a tais atividades. A importância da combinação das atividades turísticas com outras (pedreiros, carpinteiros, motoristas, prestadores de serviços, agricultores etc) interliga o fluxo do turismo com a diversidade da comunidade, provocando tensões diferenciadas. Como aponta Gonçalves (2001) estudando outra comunidade, as atividades turísticas não necessariamente significam o abandono da atividade agrícola.

Os personagens sociais que atuam hoje no ramo turístico de Taquari são os “nativos”, valorizados como os “nascidos e criados”. Antigamente os “nativos” dedicavam-se integralmente à agricultura, sobretudo às plantações de banana, dentre eles o dono da única pousada referida anteriormente. Ao descrever a história do turismo no local, um dos moradores comenta referindo-se ao dono da pousada: “ele tinha um sítio de banana grande que vendeu e aplicou no turismo para ter uma fonte melhor”. Alguns “nativos” que ainda não fizeram investimentos em atividades turísticas pensam em fazê-lo futuramente.

A colocação dos sujeitos sociais que convivem com a atividade turística (Urry, 1999) se dá em dois sentidos: de tirarem vantagens das oportunidades que o turismo apresenta para um investimento lucrativo e de se protegerem das invasões do espaço, criando uma vivência ambígua entre os valores turísticos e os valores próprios da comunidade. Por um lado, o turismo é valorizado, pois através dele “entra dinheiro” na localidade. Beneficia quem se dedica à atividade e também os agricultores e artesãos que vendem seus produtos aos turistas. De outro lado, a população reage estabelecendo limites sociais com o objetivo de se protegerem dos efeitos indesejáveis da superlotação que caracteriza o turismo desenvolvido em Taquari e dos efeitos sobre os valores morais e as afetividades vividas como próprias da comunidade. Para a população, os espaços físico e social da localidade são afetados pelos turistas, considerados culpados de implicações sociais e ambientais indesejáveis.

A prática turística e os interesses na atividade turística da população de Taquari não são reconhecidos durante a elaboração de projetos institucionais. Isto fica evidente no projeto municipal de agroecoturismo. [25] As ações desse projeto foram desenhadas sem consultar a multiplicidade de interesses em jogo, nem as diversas formas de participação e graus de envolvimento na atividade turística no âmbito da população atingida.

Mesmo que o turismo em Taquari seja apenas uma das diversas estratégias de reprodução social coexistentes na comunidade, constitui-se numa atividade sintetizadora de tensões entre diferentes formas de utilização do espaço (agricultura, turística e preservação ambiental), assim como das tensões derivadas das oposições sociais resultantes do encontro de espaços urbanos e rurais. A presença dos “turistas” representa a presença dos “de fora” e dos “da cidade”, tensionando assim os valores e os afetos vividos no cotidiano do lugar.

Da mesma maneira que o turismo, a venda de terras é uma atividade geradora de ambigüidade social, pois representa, ao mesmo tempo, um caminho para a entrada de dinheiro e elevação de renda da comunidade e uma prática ameaçadora dos atributos físico-ambientais e sociais do espaço rural. Pela legislação do Incra, a venda de lotes no assentamento é ilegal, mesmo assim é uma das estratégias de reprodução social adotada por grande parte das pessoas em Taquari. A venda de terras para pessoas de fora em algumas situações revela-se a saída para enfrentar as dificuldades financeiras.

A expansão do comércio de terras no território é visualizada nas diversas placas que anunciam “venda de lotes” e na emergência do negócio imobiliário observado nas inúmeras casas que estão sendo construídas. A demanda pela aquisição de lotes em Taquari deu lugar a um novo tipo de serviço: de intermediário ou corretor.

A procura permanente por terra em Taquari se insere no que Moreira (1995), em sua conceitualização de “renda da natureza”, analisa como processos de territorialização do capital. Este processo pode apresentar também uma procura da imobilização do capital em terras não relacionadas necessariamente a processos agrícolas. Ou seja, não é apenas um processo de valorização das terras em produção, mas também um “processo de valorização das terras improdutivas” como na sua condição de ambiente natural.

No âmbito da comunidade, a venda de lotes e terrenos é uma atividade legitimada, já que acontece em casos de “necessidade”, por falta de liquidez financeira. Em termos gerais, ela ocorre para satisfazer a necessidades de diversas índoles: (moradia, saúde, enterros e outras) e justifica-se socialmente quando destinam-se a suprir necessidades básicas. Porém, em algumas situa­ções, a escassez de recursos monetários que motiva a venda deve-se à impossibilidade de empreender atividades agrícolas por carência de condições econômicas, técnicas e familiares para trabalhar a terra. [26] Exemplar é o caso de uma viúva que disse ter vendido a terra porque, em seus 70 anos, não tinha “mais filhos em quem mandar” nem saúde e dinheiro para pagar uma pessoa. Ela decidiu vender “pois do contrário ia ficar para criar mato”.

Contudo, socialmente, a venda de lotes é considerada uma questão problemática por colocar em risco as vantagens de se morar na “roça”. É considerada uma ameaça à “liberdade” e ao “sossego” do espaço, já que os lotes tanto podem ser ocupados por “pessoas boas”, quanto por “pessoas ruins”. Os de “fora” são qualificados de “pessoas ruins” quando praticam roubos e consomem drogas na localidade. Então, para contornar essa ameaça e evitar a chegada de “pessoas ruins” que afetem o lugar, os “nativos” procuram vender para pessoas “conhecidas” ou conhecidas de um conhecido, formando-se redes nas quais “as pessoas que compraram primeiro vão trazendo outras”.

Outros dois riscos, assinalados pela comunidade, relativos à proliferação das vendas são a mudança do ambiente social e a tendência para a favelização. “Quando vai ver, o pessoal está que nem formiga”, disse um entrevistado, referindo-se às possíveis conseqüências da venda continuada de terras. Em suma, a venda de lotes coloca-nos também diante da mesma ambigüidade observada na prática turística: resolve dificuldades financeiras, mas acarreta problemas sociais.

A antinomia campo-cidade, ruralidade-urbanidade, nos ajudará a visualizar, na comunidade, a representação do rural e, nos turistas, a representação do urbano. Os turistas carregam valores distintos dos da comunidade. Valores que tensionam afetos e subjetividades abrindo novas possibilidades de vivências do território socioambiental expressam-se em novas possibilidades de renda monetária, a serem positivadas ou negativizadas, bem como atualizam as oposições cidade e campo, já por nós captadas na análise das categorias roça e cidade presentes no discurso cotidiano (Gaviria e Moreira, 2002).

 

Finalizando

O desvelamento das tensões entre diferentes territorialidades nos levou para além do reconhecimento da heterogeneidade do espaço “rural” e suas significações. Revelou-nos a complexidade das relações entre ruralidades, nas quais o Incra, o Ibama e a Prefeitura representam as forças hegemônicas da sociedade abrangente e do Estado que, como demonstramos, carregam assimetria de poder quando se confrontam com as forças da comunidade. Deixou visível ainda a precariedade do controle e da regulação pretendidos pelos projetos governamentais. O campo de tensões é aberto tanto objetivamente quanto subjetivamente. Carrega diversos possíveis que os atores locais podem acionar e tornar reais. A presença local dessas forças, na medida em que atuam sem a construção de espaços decisórios decididamente participativos, é deslegitimada e vista como representação dos interesses dos “outros” – interesses poderosos por suas capacidades de desapropriar, multar e embargar, associados às imagens que a comunidade tem do Incra, do Ibama e da Prefeitura.

Esses diversos espaços decisórios levam-nos a ressaltar a presença plural de espaços da ação política, fora dos tradicionais espaços da política. A presença e abertura dessas diferentes ruralidades impõem um dinamismo à lógica da vivência cotidiana da comunidade, que estaria longe de uma visão de uma sociedade tradicional com valores rígidos. As aberturas ao outro, à cidade, acabam resultando em vivências abertas a novos possíveis e a hibridações de valores diversos.

Cumpre ressaltar nestas considerações finais a importância que demos à compreensão socio-histórica da ambiência social mais ampla na qual se dão os processos de territorialização aqui analisados. Somente essa ambiência foi capaz de revelar as autonomias relativas dos atores locais e da comunidade nas formas de uso e ocupação do território. As assimetrias de poderes puderam ser visualizadas pelas ações dos governos estaduais, municipais e federais nas conjunturas dos anos 50 e 60, quando as terras foram tratadas como devolutas, em um processo de deslegitimação do sistema de propriedade herdada e de promoção de uma nova territorialidade. Para tanto, elaborou-se um Plano de Colonização que objetivava fixar pequenos produtores agrícolas e estimulava o povoamento oriundo de migrações intra-regionais. Foi também quando o município de Paraty foi reconhecido como patrimônio cultural da nação. Naquele momento não se revelavam divergências entre a colonização das matas devolutas, a preservação do patrimônio cultural de Paraty e as garantias dos negócios do turismo de então.

Os processos posteriores da construção da Rio-Santos e da criação do Parque Nacional da Serra da Bocaina revalorizaram as atividades de turismo relacionado ao patrimônio cultural de Paraty associando-o ao turismo ecológico, que agora passa a requerer a preservação das matas, ou seja, do ecossistema do Parque. Agora, o projeto hegemônico de territorialidade da região passa a opor a exploração agropecuária à preservação cultural e ambiental da região. Como demonstramos, nesse momento há a redução de cerca de 50% nas áreas agricultáveis e toma-se providência para o esvaziamento da região do Parque, em especial dos pequenos produtores agrícolas. Em 1983, o Incra é acionado pelo Ibama e cria o Assentamento de Taquari. Esse processo redefine a territorialização da região e dispõe as condições de possibilidades da Comunidade de Taquari, dando sentido às três grandes negatividades que a comunidade articula contra o Incra, o Ibama e a Prefeitura.

Procuramos também demonstrar que esses dois momentos fundacionais da comunidade de Taquari - a colonização e o assentamento - lançam as bases de uma comunidade relativamente homogênea de agricultores familiares em região de floresta.

Destacamos ainda que aquelas negatividades são relativizadas no interior da comunidade, uma vez que a complexa diferenciação interna, sem profundas hierarquias socio-econômicas, aproxima alguns setores da comunidade às ações desses entes governamentais e tensionam as representações na associa­ção de moradores.

As identidades sociais que se mostraram abertas às tensões dinâmicas de seus espaços sociais de inserção nos permitem visualizar a comunidade como expressando-se de forma multiidentitária, revelando, no plural, ruralidades e territorialidades também em seu interior. Entendemos que nesses processos tais relações foram se objetivando e se internalizando nas psiquês individuais e da comunidade, construindo relação de pertencimento e afeto ao território, ao lugar e às pessoas do lugar.

A força de ciração dos campos de possibilidade de construção desses elementos da sociabilidade, no entanto, foi dada pelos projetos dos outros, da sociedade abrangente representada no Incra, no Ibama e na Prefeitura, revelando a assimetria de poderes dessas forças hegemônicas – econômica, cultural e politicamente – e das forças da Comunidade de Taquari.

A territorialidade e a identidade rural da Comunidade de Taquari não se construiram de uma vez por todas em um passado remoto ou recente. A Comunidade de Taquari tem sua identidade posta pelas tensões de uma dada ambiência hegemônica: uma ambiência regional de preservação do patrimônio cultural e do ecossistema. Apesar dessa hegemonia, as forças locais não se mostraram submissas, expressam seus interesses e carregando possibilidades de mudança.

 

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Notas

[1] O assentamento dista cerca de 20 km da cidade de Paraty, localizando-se entre a Serra da Bocaina e a Rodovia Rio-Santos e entre as cidades de Angra do Reis e Paraty do estado do Rio de Janeiro.

[2] Pesquisa de campo, outubro de 2001.

[3] Relatórios do Incra sobre o processo de expropriação da Fazenda Taquari, 1983. Posteriormente estaremos examinando este momento fundador do assentamento com o objetivo de identificar a historicidade da categoria colono e a identidade a ela associada, as tensões envolvidas no processo de expropriação e os significados atribuídos à especulação imobiliária do período.

[4] Para uma aproximação ao debate, ver Carneiro (1998), De Paula (1999) e Wanderley (2000).

[5] Liderado por R. J. Moreira, o grupo registrado no CNPq (Cf.: http://www.cnpq.br/. Grupos de Pesquisa) assim descreve o campo de pesquisa Ruralidades, Cultura e Desenvolvimento Sustentável: “Este campo investigativo está informado pelos processos econômicos, culturais e políticos contemporâneos da pós-modernidade e da era da informação. Tais processos impõem tensões às culturas científicas, tecnológicas, artísticas e cotidianas herdadas, tensionando a formação de identidades sociais e políticas. Neste contexto, a ideologia do desenvolvimento se reconforta como desenvolvimento sustentável. As tensões econômicas, culturais e políticas, amal­gamadas e sincretizadas, impõem redução às autonomias relativas herdadas da modernidade. Fala-se do desaparecimento do rural, do agrícola e também da emergência de um novo mundo rural e de novas ruralidades que, em processos de desterritorializações e reterritorializações de espaços e tradições, mesclam sincretismos multiidentitários na cidade e no campo. No campo, sob amparo dos discursos do desenvolvimento rural sustentável, esta conjuntura impulsiona processos de compreensão dos espaços e dos sujeitos deste novo mundo rural. Contribuindo à compreensão desta problemática as linhas de pesquisa – ruralidades no campo e na cidade; ruralidades na história e nas culturas; ciência, técnica e formações agrárias; educação ambiental e ecologia – objetivam a construção de conhecimentos e a reflexão sobre as práticas contemporâneas dos novos localismos e tradicionalismos rurais globalizados, como são as expressões dos assentamentos rurais, da agricultura familiar, da agroecologia, de tecnologias alternativas e de alimentos naturais, do desen­volvimento local e rural sustentáveis, turismos rurais, ambiental e ecológico, reservas e parques ecológicos, esportes rurais, festas religiosas e folclóricas e de outras expressões artísticas.”

[6] Cf. Leis (1999). Moreira (1999b) procurou demonstrar que tais processos impõem novas concepções do ser humano e de natureza, questionando a crença da separação do ser humano da natureza, um dos pressupostos fundadores da modernidade e da legitimação do domínio humano do planeta.

[7] Essa é uma tentativa de visualizarmos, como abertas, as histórias “reificada” e “incorporada” de que fala Bourdieu (1989).

[8] Das quais nos fala Castoriadis (1982: 122-137), em Autonomia e Alienação.

[9] Tem-se em mente aqui Berger e Luckmann (1985) e Castoriadis (1982), para a construção social e imaginária da sociedade e, Elias (1994), para as tensões do indivíduo na sociedade.

[10] Cf., Canclini (1998) e Canevacci (1996).

[11] Para a relação entre democracia e globalização, ver a coletânea organizada por Prado e Sovik (2001).

[12] Não podemos esquecer o clima político da democratização do período, da forte presença do desenvolvimentismo, das “reformas” postuladas no período, do Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 e, depois, do Estatuto da Terra e do próprio Golpe de Estado, ambos de 1964.

[13] Naquele momento, “lavrador” era uma categoria local usada para se referir aos pequenos agricultores associáveis ao sindicato de trabalhadores, segundo consta nos documentos da Fetag (Federação de Trabalhadores Agrícolas).

[14] Cf. Almeida (1997: 28).

[15] Documento do Incra, de 28 de janeiro de 1983.

[16] Houve desapropriação de algumas áreas, onde estavam os assentados, e compra de outras, que estavam dentro do Parque. Nos processos do Incra fala-se, num primeiro momento, da desapropriação e depois da liberação de recursos para compra.

[17] Relatório do Incra, 30/6/1983 e Almeida (1997).

[18] Para um estudo destas situações fronteiriças, ver Souza (2001) e Gonçalves (2001).

[19] Decreto 88.788 de 4/10/1983.

[20] Dados fornecidos pelo Incra.

[21] Um dos agricultores que tem lotes no Parque disse que a polícia o prendeu por ter feito um desmatamento, libertando-o quando explicou que era um bananal velho que ele tinha plantado ali em outros tempos.

[22] Guardas florestais, no cotidiano da comunidade.

[23] Não há dados sobre o censo populacional do município, por ser uma área federal sob jurisdição do Incra. No cadastro do Incra, em 2001, aparecem 270 famílias, entendendo-se que cada casa representa uma família.

[24] As formas de exploração dos recursos do Parque identificadas na pesquisa (ainda que em sigilo por serem proibidas) foram a caça, extração de madeira e palmito, criação de abelhas, orquídeas e bromélias.

[25] Do projeto participaram diversas secretarias municipais, a associação de moradores e o Grupo de Agroecologia (GAE) da UFRRJ, conforme registrado no jornal das Associações de Moradores da Região de Paraty, a Folha do Litoral, de 18 de setembro de 2001.

[26] Analisando o espaço econômico e social das agriculturas familiares no capitalismo, Moreira (1999a) argumenta que essa impossibilidade tende a ser comum para o conjunto das formas sociais da agricultura familiar devido às dificuldades de realização de lucro e renda da terra acima de zero.