Estudos Sociedade e Agricultura

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Sérgio Pereira Leite

Agricultura familiar e experiências inovadoras no semi-árido nordestino


Sérgio Pereira Leite é professor do UFRRJ/CPDA.

Estudos Sociedade e Agricultura, 18, abril 2002: 180-184.


Coroando um conjunto de estudos e trabalhos desenvolvidos, entre 1987 e 1997, por diversos participantes das equipes do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (Cirad) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agronômica (Embrapa), o livro organizado por Patrick Caron e Eric Sabourin (Paysans du sertão: mutations des agricultures familiales dans le Nordeste du Brésil) oferece ao leitor uma rica descrição e análise das experiências de pesquisa e de projetos de intervenção realizados no semi-árido nordestino recortadas pelo universo da agricultura familiar. Quatro regiões, em particular, são destacadas ao longo do texto: aquelas  envolvendo comunidades rurais dos municípios de Juazeiro e Pintadas, na Bahia; de Tauá, no Ceará, e Nossa Senhora da Glória, em Sergipe, além de referências a outros casos localizados nos estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte.

A coletânea está dividida em três grandes partes, cada uma delas contendo vários capítulos de autoria dos diferentes membros das duas equipes, além de uma introdução e da conclusão da obra. A primeira parte (“Contexto e diversidade dos agricultores familiares no Nordeste semi-árido”) aborda o processo de transformação experimentado pela agricultura familiar na região, bem como pontua as questões teórico-metodológicas que sustentaram os trabalhos de campo. O segundo bloco, intitulado “Sínteses temáticas”, volta-se à reflexão e problematização de temas que tratam das trajetórias e dinâmicas dos processos produtivos locais, bem como das mudanças socio-econômicas e organizativas correlatas. Finalmente, o terceiro segmento do livro, “Questões postas à pesquisa e dispositivos de pesquisa-ação”, toca num ponto central ao próprio envolvimento dos pesquisadores no projeto que originou a seqüência de trabalhos (Projeto de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura Familiar no Nordeste semi-árido – Padaf), ou seja, na capacidade de reverter o conhecimento acumulado nas investigações para o processo de transformação regional, socializando as informações com os atores locais e fortalecendo espaços comuns de diálogo, que serviram de base às inovações tecnológicas e institucionais experimentadas. A relação bibliográfica, ao final, evidencia, através de uma série de artigos e relatórios publicados, a ampla participação e capacidade dos autores na formulação de um retrato das condições sociais, econômicas e técnicas que pautam a realidade desse segmento específico. Vale acrescentar, ainda, que essa aproximação do objeto estudado deu-se a partir de uma perspectiva multidisciplinar, envolvendo profissionais de formações em distintos campos acadêmicos: engenheiros agrônomos, economistas, veterinários, sociólogos, geógrafos, entre outros.

Uma primeira observação geral que podemos adiantar refere-se ao resultado extremamente satisfatório do trabalho de organização e edição desse conjunto variado de iniciativas anteriores. O “balanço” do percurso traçado pelas equipes de pesquisadores e dos produtos alcançados em cada um desses momentos é harmoniosamente concatenado pelos coordenadores do livro, demonstrando uma feliz habilidade em transpor para o volume em consideração uma “retrospectiva” de casos diferenciados, guardando os elementos comuns importantes nessa revisita comparativa a posteriori. Apenas assinalamos que o primeiro capítulo da terceira parte (assinado por Patrick Caron, Eric Sabourin, Jean-Philippe Tonneau, Pedro Carlos Gama da Silva e Clóvis Guimarães Filho) poderia ter sido alocado no bloco inicial de capítulos, visto que apresenta, de forma interessante, os passos que informaram a construção desse itinerário de pesquisa-ação, válido para todo o conjunto da obra.

Os autores valem-se da noção de agricultura familiar como elemento estruturante da análise que desfiam ao longo da publicação. O propósito é demonstrar a capacidade desse setor específico de agricultores em promover arranjos locais que permitam aos mesmos viabilizar o comércio de produtos agropecuários e de primeiro processamento, bem como possibilitem o de-senvolvimento de inovações tecnológicas (por exemplo, a produção, pelos produtores de Nossa Senhora da Glória, de novas variedades de queijo para atingir outros mercados consumidores) e institucionais (como a criação da Unidade de Planejamento Agropecuário do Município de Juazeiro – Upagro, que tornou-se uma arena mista vital ao processo decisório local) importantes. Na realidade, os textos compilados procuram colocar em xeque a interpretação freqüente que confere à “agricultura de subsistência”, “camponesa” ou “pequena agricultura” do Nordeste o atributo do isolamento, da incapacidade de articulação e da “propensão” à miséria. Ao longo do primeiro capítulo assinado pelos coordenadores do estudo (“Origem e evolução da agricultura familiar no Nordeste semi-árido”), vemos que, de fato, é a “subsistência” desse tipo de agricultura – certamente bastante diferenciada entre si – que marca, juntamente com outros fatores, a caracterização do processo agrário regional. Embora algumas afirmações ali contidas possam ser questionadas, como a identificação dos primeiros conflitos da colonização do sertão à “natureza feu­dal” do processo, o termo agricultura familiar é empregado para designar um “conjunto de formas de produção que se opõem aos latifúndios e empresas rurais, alvos preferenciais da política de modernização. A agricultura familiar, assim identificada, reagrupa expressões sociais e modos de produção bastante diversificados, mas apresenta certas características comuns, como a valorização da mão-de-obra familiar e a autonomia da gestão dos meios de produção” (p. 22).

Dessa forma, a contribuição dos pesquisadores do Cirad e da Embrapa associa-se a um enorme volume de trabalhos e estudos desenvolvidos nos últimos anos que têm buscado a valorização desse segmento particular. Alguns desses trabalhos chegam mesmo a proclamar a “redescoberta” desse Brasil rural. Talvez o que esteja em jogo aqui não seja necessariamente a revelação de uma nova realidade agrária, correndo-se o risco de tentar agrupar numa categoria recente um universo complexo e diferenciado (como já fora ensaiado num outro debate e num outro momento, com a noção de complexo agroindustrial), mas a propriedade de uma forma específica de “olhar” essa realidade, legitimando mecanismos de intervenção local e validando políticas públicas diferenciadas. Essa combinação de múltiplas escalas (micro, meso e macro) para resgatar a dinâmica desse processo é um recurso fértil utilizado adequadamente pelos autores. Primeiro, é fértil tratar de questões atinentes à organização do espaço local e regional (e, portanto, territorial) aliado à idéia de trajetórias de desenvolvimento (cf. os capítulos dois, assinado por J. P. Tonneau, Yves Clouet e Patrick Caron, e três, de autoria de Eric Sabourin, Pedro C. G. da Silva e Bernard Hubert, além do próprio Caron, que igualmente subscreve o quarto capítulo). Também ela é útil à combinação chayanoviana entre processo trabalho e estruturas de consumo ao longo do ciclo de vida familiar, caracterizando as trajetórias de evolução das explorações (quarto capítulo) e as mudanças socioorga­niza­cionais dos produtores (capítulo cinco, escrito por Sabourin). E ainda é fértil às estruturas e intermediações que perpassam os canais de comercialização acionados pelos camponeses, objeto de um oportuno texto (sexto capítulo) de Claire Cerdan e Denis Sautier.

Se, em algumas passagens, o trabalho soa algo esquemático (como nos capítulos voltados à análise do sistema de criação de gado, de autoria de Caron e Bernard Hubert, e da gestão da água, de Sabourin e Rémi Trier), valendo-se da construção de “tipos” os mais variados para a caracterização dos agricultores e/ou dos espaços onde os mesmos atuam, não passa desapercebido – nesses e noutros pontos da obra (especialmente na bem intitulada conclusão redigida pelos coordenadores: “Os agricultores familiares do sertão em movimento”) – que tais arranjos locais são passíveis de estratégias flexíveis, moldadas pelas possibilidades oferecidas pelos contextos microespaciais e pela dinâmica imprimida pelos diferentes atores e instituições.

Nesse sentido, destaque-se o pertinente tópico, no contexto das sínteses temáticas, de autoria de Sabourin, intitulado “Mudanças sociais, organização dos produtores e intervenção externa”. Nele, são apresentadas as diferentes organizações – formais ou informais – predominantes nesse universo agrário e as redes de relações que articulam as mesmas [1] . Tal empreitada é necessária para compreendermos a estruturação de ações coletivas desencadeadas pelos protagonistas do livro, produto de uma aprendizagem, nem sempre tranqüila, que marca experiências como a negociação estabelecida entre os agricultores familiares e o poder público em Massaroca, comunidade rural de Juazeiro, e a formação de grupos comuns de irrigação em Pintadas, como forma de contornar os efeitos próprios à seca, um elemento constante nessas regiões. Sabourin tece, ao longo do capítulo, um arcabouço que permite dar conta, simultaneamente, das trajetórias e estratégias definidas no interior dessas redes e organizações de agricultores familiares, mas também dos laços externos que tais instituições estabelecem, permitindo a abertura de um espaço para a discussão (e implantação) de um padrão de desenvolvimento que atenda às expectativas desses sujeitos locais.

Poderíamos agregar a esse arcabouço a exploração de novas formas de comercialização relatadas no capítulo seguinte, ao qual já fizemos referência aqui, e também o acesso a determinadas políticas (não necessariamente governamentais, ainda que públicas), como aquela relacionada ao crédito (no item assinado por Pedro Silva) ou ao diagnóstico e planejamento municipal (tratados nos dois últimos capítulos do livro, um deles de autoria de Sabourin, Caron, Jussara Oliveira e Rogério Alves, e outro subscrito por Sabourin, Caron e Gama da Silva). Ainda sobre esse ponto, é interessante observar, adicionalmente, que tal flexibilidade de estratégias locais adotadas pode, inclusive, presumir aquilo que Hirschman denominou, em diversas oportunidades e, em especial no livro resultante da sua análise das experiências de base na América Latina financiadas pela Interamerican Foundation, de seqüências invertidas. Ou seja, a capacidade (inovadora) de pensar os processos de desenvolvimento não necessariamente através das etapas “clássicas” dos modelos de planejamento, mas sobretudo a partir dos recursos manejados por atores empenhados na superação de condições precárias de vida. Entre esses últimos, podemos localizar nas experiências relatadas, e de maneira especial, os agentes que promovem a mediação entre as organizações dos trabalhadores e as instituições de pesquisa e desenvolvimento.

A última parte da coletânea versa justamente sobre esse dilema, qual seja, o estabelecimento de uma ponte entre esses dois pólos, assim como a elabo-ração de fóruns e arenas adequados para a promoção dessas ações. O último capítulo da obra, denominado “Três experiências de planificação municipal”, oferece uma boa análise comparativa entre situações examinadas em Juazeiro, Pintadas e Tauá.

Em suma, estamos diante de um trabalho exaustivo e bem construído, fruto de um longo e contínuo processo de pesquisa e interação com os agricultores familiares e suas organizações. Acreditamos que o mesmo é fundamental para aqueles que procuram aprofundar seus conhecimentos sobre a realidade agrária do semi-árido nordestino, como também para os leitores interessados no exame das estratégias familiares adotadas no meio rural e na dinâmica que tal processo pode resultar.

Caron, Patrick; Sabourin, Eric (orgs.). Paysans du sertão: mutations des agricultures familiales dans le Nordeste du Brésil. Montpellier: Cirad/ Embrapa, 2001, 243 p.

Notas

[1] Aqui um pequeno reparo na referência ao emprego do termo comunidade que, na realidade, antecede à utilização do mesmo pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) durante os anos 60 e 70, como é informado no texto.