Estudos Sociedade e Agricultura

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Maria José Carneiro

Mulheres no campo: notas sobre sua participação política e a condição social do gênero


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 11-22.

Maria José Carneiro é professora da UFRRJ/CPDA


A participação de mulheres em movimentos sociais no campo toma uma característica singular na década de 80 quando são realizados os primeiros encontros voltados para problemas que lhes são específicos.[1] Tal fato não implica, porém, que a mulher estivesse ausente das lutas travadas por camponeses e trabalhadores rurais em momentos anteriores. No entanto, observa-se, nessa época, uma mudança na qualidade desta participação. Até então, a inserção feminina nos movimentos sociais no campo realizava-se, normalmente, através da participação dos respectivos maridos ou de outros familiares.[2] É o caso de Elizabeth Teixeira, Margarida Alves e Maria Oneide, entre outras. Nesses casos, a liderança se firma com a morte do marido, fato que a conduz a substituí-lo, assumindo, então, o compromisso com a luta, numa demonstração de capacidade de liderança e de coragem desproporcionais à imagem que a sociedade lhe atribuía: aquela que deve ficar em casa, cuidar dos filhos e obedecer às ordens (do marido ou do pai). Talvez a força dessa liderança estivesse justamente na quebra dos valores tradicionais da identidade feminina e na inversão radical de papéis.

Para essas mulheres, a participação no movimento dos trabalha-dores não era motivada por reivindicações específicas de sua condição de mulher, mas integrava o conjunto de lutas de sua categoria social contra a exploração ou contra a expropriação. Nesse momento, as distinções de gênero[3] não importavam. O que mobilizava era o re-conhecimento de pertencer a determinada categoria social e política, que atribuía indistintamente a homens e mulheres uma única identidade coletiva. As palavras de Margarida Alves ilustram esse momento:

“Eu sentia que os direitos da gente são iguais, ninguém é mais do que ninguém. E se eu estava aqui era porque certamente tinha vontade de trabalhar. Porque tinha coragem de lutar. Não tinha medo e achava que este negócio de homem e mulher é besteira. A mulher pode ser até presidente de sindicato, pode ser”.[4]

Mais tarde, o discurso de Maria Oneide nos chama a atenção para o início do processo de construção de uma identidade política feminina que integra reivindicações específicas à organização sindical:

“Na minha região (Conceição do Araguaia) não tem nenhuma luta específica a serviço da mulher. Logo após a morte de Gringo (seu marido, em 1980), a luta era para dar mais apoio aos lavradores. Também porque, na época, a gente tinha que se deslocar para Conceição e não tinha nenhum tipo de transporte. Foi difícil. A partir daí a gente formou um grupo de mulheres para acabar com todas essas coisas. Devido à repressão o grupo foi desativado. Agora, a gente participa na organização de um sindicato, luta por escola para os filhos e ajuda o marido na luta”.

O discurso e a prática política dessas líderes revelam que anteriormente à construção das distinções sociais entre os gêneros forma-se uma consciência da igualdade entre homens e mulheres, alimentada pela luta contra a desigualdade social.

A violência praticada contra Margarida Alves soma-se a outras impunemente exercidas contra líderes de movimentos sindicais, advogados e padres comprometidos com o interesse dos trabalhadores rurais. A sua morte e as condições em que ocorreram remetem, sem dúvida, a muitos outros assassinatos de líderes camponeses. No entanto, ao falarmos de Margarida, Elizabeth ou Maria Oneide, estamos falando também, por contraste, de milhares de outras que vivem o silêncio e a invisibilidade da situação de subordinação.

O espanto com que a imprensa tratou, na época, o assassinato de Margarida não se deve, com certeza, exclusivamente à violência co-metida - comum nas lutas sociais no campo - mas, sobretudo, ao fato de se tratar de uma mulher que ocupava uma posição destinada socialmente aos homens. Não podemos responder o que seria a causa maior de tal espanto: se a violência praticada contra uma mulher ou se o fato de ser uma líder feminina. Sem dúvida, a sua eleição para a presidência do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, Paraíba, em 1973, e as consecutivas reeleições (1976, 79 e 82) contrastam com a forte resistência à sindicalização que milhares de mulheres vêm enfrentando.[5]

Apesar de não haver impeditivo legal para a filiação feminina aos sindicatos rurais, diversas diretorias se colocavam contra e impediam, de muitas maneiras, a associação de mulheres. Uma conseqüência dessa luta foi a aprovação pelo IV Congresso da Contag de um documento qualificando a mulher como trabalhadora rural e estabelecendo formas de pagamento de mensalidade que não prejudicassem a renda familiar - um dos argumentos utilizados por aqueles que se colocavam contra a filiação feminina.

É indiscutível que a explosão de diversas formas de luta das mulheres no campo na década de 80 está associada ao movimento de resistência dos trabalhadores rurais à intensificação da exploração e da expropriação a que estão submetidos. Resistência essa que se traduz tanto por conflitos diretos quanto pela busca de novas estratégias e caminhos para reprodução social. A ênfase em diferentes reivindicações e a diversidade de formas de luta e de organização estão relacionadas a situações específicas vividas por diferentes categorias de trabalhadores rurais no processo de integração e exclusão a que foram submetidos.[6] No entanto, a posição do grupo social diante das formas de dominação capitalista não nos parece suficiente para explicar a mobilização das mulheres no campo nem a direção que este movimento pode tomar. Torna-se necessário indagar também sobre a influência desse movimento na construção social da identidade feminina: que valores são questionados ou reafirmados na sua autopercepção? Como se dá a combinação de fatores econômicos, que orientam a mulher para além dos limites da esfera doméstica, levando-a a conquistar posições na esfera pública (não apenas via mercado de trabalho mas também na participação em sindicatos e associações) e os valores culturais que definem as identidades de gênero e as relações sociais entre os sexos? Que projeto ideológico está em construção nesse processo de transformação da mulher em ator político? Que valores sustentam a formulação de trajetórias unitárias que neutralizam as diversidades e antagonismos entre os gêneros e esboçam as bases para a construção de uma identidade coletiva?

É importante considerar que essa identidade coletiva, no caso, ainda se encontra fundada na definição tradicional das relações entre os gêneros e, no entanto, apresenta-se como sua crítica ao exigir o reconhecimento público do status social da trabalhadora. Contraditoriamente aos valores que sustentam as relações sociais entre gêneros, é a referência à identidade feminina que caracteriza o processo político pela conquista dos direitos da mulher rural como trabalhadora. O que distingue essa participação feminina nas lutas do conjunto dos trabalhadores rurais é o fato de se estar tornando pública a situação da trabalhadora-mulher que engloba outras identidades, o da trabalhadora-mãe e o da trabalhadora-esposa.

É do produto desses dois fatores - o de pertencer ao gênero feminino e o de ocupar uma posição determinada na estrutura socioeconômica - que resulta a identidade, ou melhor, as identidades múltiplas da mulher rural. É nesse sentido que concordamos que para se entender o movimento das mulheres trabalhadoras rurais é necessário levar em consideração não apenas os fatores objetivos decorrentes das condições materiais de vida mas também valores ideológicos estruturantes das relações entre os sexos e conformadores das identidades sociais dos gêneros.[7]

É com a intenção de desvendar essas imagens múltiplas da mulher na construção de uma identidade coletiva no meio rural que analisaremos o material produzido por alguns movimentos de mulheres no Nordeste e no Sul do País.[8]

Dados sobre a participação feminina no mercado de trabalho agrícola para o início da década de 80 apontavam uma mudança expressiva: entre 1970 e 1982 houve um aumento da ordem de 132,7% da mão-de-obra feminina no campo, enquanto a masculina sofreu um crescimento negativo de 5,4%.[9] Acrescente-se a esse dado o fato de que a participação da mulher na produção familiar não é vista como trabalho, o que a exclui das estatísticas sobre a constituição da força de trabalho ocupada na produção de alimentos destinados ao mercado interno. Tal crescimento da incorporação feminina à produção agrícola refere-se basicamente às formas assalariadas (em geral eventuais) na grande lavoura para exportação (de café, soja e laranja) ou de cana-de-açúcar. Este quadro, como é sabido, é fruto das transformações nas relações de produção na agricultura provocadas pela modernização (mecanização e intensificação da exploração) que, ao expulsar a família de moradores das terras das fazendas, cria as condições para a incorporação da mão-de-obra feminina e da infantil. Não apenas amplia-se o mercado de trabalho volante, onde a mulher tem um lugar de destaque, como também é cada vez mais necessário o assalariamento de maior número de membros da família de trabalhadores rurais para garantir o nível de reprodução física e social.

A relação entre a utilização da mão-de-obra feminina na grande lavoura e a deterioração das condições de vida da categoria social de origem já foi apontada em diversos estudos.[10]

No entanto, ainda que esta nova realidade traga conseqüências para a organização familiar, principalmente no que se refere ao desempenho dos papéis femininos e à autoridade masculina, ela não é o único fator determinante da mobilização da mulher, como também não leva, por si só, à participação política. Observou-se que a mudança da situação de trabalhadora não remunerada, na unidade de produção familiar, para a de assalariada não é acompanhada pela transformação da posição de subordinação da mulher na hierarquia da família. Da mesma maneira não podemos concluir que a permanência do caráter familiar da produção camponesa, responsável pela simbiose entre mulher, terra e família, implique necessariamente na exclusão da mulher dos processos políticos.

A pesquisa de Verena Stolcke, sobre os bóias-frias na lavoura cafeeira, conclui que o acesso ao trabalho assalariado não modificou a identidade social da mulher, que permanece centrada nos papéis de mãe e esposa, nem engendrou qualquer mudança nas relações sociais do gênero. Essas mulheres não sustentam novos valores no tocante à relação com os maridos, nem no que se refere às representações sobre seus próprios papéis. Apesar da perda da autoridade dos homens em decorrência da situação de desempregados e sustentados pelas esposas, elas continuam a desejar “alguém que as sustente e trate delas e, por essa razão, apóiam ativamente a forma de família que está na raiz de sua subordinação”.[11] Observação semelhante é a de Noronha, através de estudo sobre as trabalhadoras da grande lavoura de cana na zona da mata mineira. Ela conclui que as mulheres não se definem como “trabalhadoras” mas como “donas-de-casa”, considerando a condição de trabalhadora como provisória. Seus projetos individuais são pautados nas representações sociais sobre o gênero baseadas no exercício dos papéis de mãe e esposa.[12] Paradoxalmente a essas informações, a pesquisa que realizamos em material impresso produzido por movimentos de trabalhadoras rurais indicou-nos que as duas categorias sociais mais mobilizadas são as assalariadas eventuais do Nordeste, principalmente as da cana-de-açúcar do Brejo Paraibano, e as camponesas da região Noroeste do Rio Grande do Sul.

No Nordeste, a maioria das mulheres que participa desse movimento pertence à categoria de trabalhadores que já se encontram em fase avançada no processo de expropriação (os “sem terra”, “assalariados eventuais” e alguns “agregados” ou “moradores”). Por outro lado, no Sul, a organização que tem alcançado maior êxito na mobilização feminina é o “Movimento Estadual das Mulheres Trabalhadoras Rurais”, também conhecido como “As Margaridas”, que assenta a sua base social na pequena produção familiar mecanizada (média de 12 ha), proprietária, ocupada pela policultura em que a soja, o porco e o leite destacam-se como produtos comercializados via pequenas cooperativas.

No entanto, apesar de distintas em sua base social, as organizações femininas de ambas as regiões concordam, basicamente, com as mesmas reivindicações gerais: reconhecimento do status de “trabalhadora” em contraposição à designação socialmente consagrada  - “doméstica”; direito aos benefícios sociais decorrentes deste reconhecimento; aposentadoria aos 45 anos, auxílio natalidade, seguro para acidente de trabalho e direito à sindicalização. Reivindicações específicas voltadas para a realidade de cada uma das duas regiões distinguem as pautas das reuniões. No Nordeste, destacam-se: salário mais justo (tanto em termos absolutos quanto em relação aos homens), creche, terra para plantar, não superposição dos “serviços de casa” e o “trabalho fora”, educação e assistência médica para elas e filhos, repúdio à dominação do homem na família e à ideologia machista. As nordestinas, em geral, não vêem o trabalho na lavoura como um “trabalho” feminino. Elas se utilizam da categoria “ajuda” para designar essas atividades e reconhecem como seu espaço próprio a casa e suas atividades “naturais”, aquelas voltadas para a reprodução dos membros do grupo doméstico.

Entre as “Margaridas do Sul” destacam-se as lutas pelo preço justo do produto, pelo direito a se associarem às cooperativas com o respectivo controle sobre a comercialização das mercadorias por elas produzidas (o leite, principalmente) pela divisão mais equilibrada das tarefas domésticas através de uma mudança qualitativa na educação dos filhos tanto em casa quanto na escola, por uma política agrícola voltada aos interesses dos pequenos produtores e reivindicação mais puramente feminista, o repúdio à utilização do corpo da mulher em propagandas.[13]

Sem querer entrar, no momento, na análise das agências mediadoras desses movimentos (Pastoral da Terra, CUT e Sindicatos), nos limitaremos, inicialmente, a desvendar o significado dos diferentes tipos de reivindicações para os grupos que as sustentam.

Para fins analíticos, podemos distinguir duas espécies de reivindicações presentes nas organizações de ambas as regiões, ainda que recebendo ênfases e pesos políticos variáveis.

 

a. Reivindicações relacionadas à condição socioeconômica

Reivindicações voltadas para a realidade da mulher como membro de uma unidade de produção familiar ou como trabalhadora assalariada são, principalmente, as demandas por terra para plantar e/ou por melhores salários, por uma política agrícola mais adequada e por preços justos. A assimilação dessas reivindicações, comuns à categoria de pequenos produtores como um todo, pelo movimento de mulheres, tem a importância de tornar público e visível o seu papel na condição de produtora, justificando, assim, que lhes seja reconhecida a profissão de agricultora, o que é pré-condição para uma série de outras reivindicações que diz respeito à cidadania da mulher. Cabe aqui indagarmos até que ponto lutar lado a lado do homem pelas melhores condições de trabalho é também lutar para garantir melhores condições para o exercício de seus papéis fundamentais: mãe e esposa. É interessante registrar como mulheres de grupos sociais distintos vivenciam diferentemente os problemas remetidos a esse conjunto de reivindicações. Para tal, é necessário observar que apesar de as “Margaridas” serem, em sua maioria, membros de peque-nas unidades de produção, a situação pela qual atravessam hoje não lhes assegura as condições de reprodução social da família. As ameaças à proletarização ou à integração total às grandes ou médias cooperativas - o que traria problemas para a autonomia da forma de organização social camponesa - estão cada vez mais presentes. O crescente endividamento, conseqüência da mudança no sistema de crédito e da política de fixação de preços, somado à impossibilidade de incorporar mais terra à propriedade para expandir a produção, é uma ameaça real à reprodução camponesa nessa região. Por esse aspecto, a organização do movimento de mulheres pode ser entendida também como uma das estratégias traçadas para garantir um mínimo de segurança através do direito aos benefícios sociais (aposentadoria), como também é uma maneira de reforçar a luta do campesinato travada pelos sindicatos. Aqui, a proletarização é ainda apenas uma ameaça, sendo a garantia da reprodução camponesa a principal preocupação. Já no Nordeste, a expropriação das condições de produção é muito mais acentuada, sendo a proletarização uma realidade para grande número de famílias de trabalhadores. No entanto, observa-se que a reivindicação por melhores salários e/ou pela igualdade de salários (em relação ao homem) convive com a luta pelo direito à terra para plantar. Essa ambigüidade tem seu sentido se considerarmos que a identidade da mulher está centrada nos seus papéis de mãe e esposa que, no campo, representam também a vinculação com a terra. Pois é da terra que se extraem os produtos para alimentar os filhos e suprir a casa, sendo, portanto, condição para o exercício dos papéis de mãe e esposa.

O fato de tornar público o seu comprometimento com a produção, e, principalmente, com a reprodução da família, ao abraçar as reivindicações pela melhoria das condições de vida, esses movimentos remetem a uma outra ordem de demandas.

 

b. As reivindicações pela cidadania

Sem dúvida, a cidadania não se limita à conquista de direitos sociais do indivíduo como trabalhador. No entanto, numa sociedade extremamente desigualitária, quer seja nas relações entre as classes, quer seja nas relações entre os sexos, a construção da cidadania começa pelo direito ao trabalho e os conseqüentes direitos sociais a ele relacionados. No caso da mulher rural, não se trata de reclamar por trabalho (ao contrário, ela não quer trabalhar “fora de casa”), mas de torná-lo visível, considerado socialmente como obrigação no exercício de seus papéis femininos. O desejo de ter uma profissão socialmente reconhecida é, principalmente entre as mulheres do Nordeste, uma pré-condição para que mudanças ocorram ao nível das relações homem-mulher, já que o seu trabalho, tanto dentro de casa como fora, não é valorizado. A revolta contra essa discriminação está presente na maioria dos discursos femininos dessas mulheres:

“A mulher (quando trabalha fora) passa a ser empregada do marido e da mulher 'particular'.”

“A mulher da roça é também escrava da ‘mulher da rua’, da cachaça e do jogo.”

“A mulher trabalha na roça e quando tira o lucro fica com o marido. O marido bota o dinheiro no bolso, ele tem o poder do dinheiro.”

“A mulher é escrava e não rainha. Quem primeiro a escraviza é o próprio esposo. Temos que nos libertar também no lar.”

“A mulher é desvalorizada, precisa ser respeitada.”

“O trabalho da mulher é explorado pelos pais, irmãos e maridos, a exploração da mulher já começa dentro de casa.”

A consciência da posição de subordinação da mulher dentro da família está surpreendentemente formulada pela mulher nordestina. O seu discurso é expressão da sua subordinação dentro e fora de casa. O fato de “trabalhar fora” é visto como um fator que acentua essa situação. A exclusão do marido do processo produtivo pode implicar na ameaça à perda de sua autoridade como chefe-de-família, mas não corresponde a um ganho de autoridade pela mulher. Ter de ir “trabalhar fora de casa” é vivenciado pela trabalhadora rural, ao contrário do que acontece com a mulher de classe média urbana, como uma perda das condições para o exercício dos papéis que conformam a sua identidade feminina. Contraditoriamente, a mulher quer ser reconhecida como trabalhadora ao mesmo tempo em que deseja dedicar-se exclusivamente às atividades domésticas. Há aqui uma contradição entre a categoria trabalhadora, qualificando identidade construída ao longo de um processo político, e as categorias que nomeiam a identidade de gênero: mãe e esposa. Essa contradição está claramente presente na reivindicação por creche no campo. Ao mesmo tempo em que sente na própria pele o cansaço físico, a perda da saúde, o envelhecimento precoce, resultantes do esforço em exercer a dupla ou tripla jornada, a mulher vê com restrições o recurso à creche. Delegar a outros uma função que faz parte da sua identidade como mulher é admitir o seu próprio fracasso. Como expressa uma delas: “A sociedade deve dar ‘liberdade’ para a mulher criar seus filhos. Mais importante que creche é a comida produzida pelo marido”.

Se a questão da cidadania para a mulher rural passa pelo reconhecimento de sua profissão, não podemos nos esquecer de que, para elas, ser trabalhadora é também, e principalmente, exercer plenamente os papéis definidos socialmente como próprios de seu gênero.

“Nosso trabalho não termina nunca, é sempre fazendo a mesma coisa: casa, família, roça, planta, colhe, cuidar dos bichos, escola...”

No Sul encontramos uma auto-representação da mulher também baseada na especialização rígida de tarefas masculinas e femininas, e dos espaços público e privado, o que sem dúvida traz conseqüências para os caminhos do movimento das trabalhadoras rurais. Ainda que a mulher controle, por exemplo, todo o processo produtivo do leite (e do queijo), a ponto de não poder se ausentar de casa por mais de 24 horas porque “o marido não sabe ordenhar”, a comercialização e a receita resultante ficam sob a responsabilidade do homem. A proibição de associar-se à cooperativa impede a mulher de receber a remuneração de seu próprio trabalho. O direito de cooperativar-se é, portanto, uma reivindicação que está mais diretamente relacionada à mudança da posição da mulher na hierarquia familiar, pois implica na autonomia de gerência de recursos próprios.[14]

No entanto, como observamos anteriormente, a maior participação da mulher na produção agropecuária ou o reconhecimento público dessa participação não é suficiente para modificar a situação de subordinação da mulher no campo. A reivindicação unitária que contribui fortemente para a formação de uma “consciência coletiva” a do reconhecimento da mulher como agricultora revela também os limites às mudanças nas relações de poder entre homem e mulher na família camponesa. Por exemplo, a luta por um estatuto profissional não está associada à luta por um salário: essa questão sequer é levantada. Questionada sobre o seu salário, uma das líderes do movimento das “Margaridas” respondeu-me:

“A mulher ajuda em tudo na roça e esse é o nosso salário, logo nós somos agricultoras também e temos direito (à previdência social)”.

A simbiose mulher-terra-família é constitutiva da identidade feminina no campo e impõe-se como paradigma para as relações sociais de gênero e para a posição da mulher no campo. A indivisibilidade da renda familiar é sustentada pela própria lógica da organização social camponesa e com ela é afirmada a estrutura de autoridade dentro da família.

Finalmente, essas reflexões nos levam a reconhecer que a luta pela cidadania da mulher do campo começa pela luta pelo reconhecimento de seu estatuto profissional, mas esbarra nos valores culturais que definem o gênero feminino. Nesse sentido o caminho traçado pelo movimento das mulheres trabalhadoras rurais é limitado pelas próprias relações sociais de gênero no campo e, desta forma, distingue-se qualitativamente dos movimentos sociais urbanos.

[1] O presente artigo foi originalmente apresentado no Grupo de Trabalho “Mulher na Força de Trabalho” na XI Reunião anual da Anpocs, realizada em Águas de São Pedro, SP, em 1987. Apesar de ter sofrido algumas alterações na versão atual, ele mantém a referência empírica do período original.

[2] Segundo P. C. Giuliani, a trajetória sindical das trabalhadoras rurais é iniciada, geralmente, pela mediação de familiares de quem obtêm as primeiras referências sobre o sindicato, ao contrário das trabalhadoras urbanas que tomam conhecimento da entidade através de companheiros de trabalho (cf. P. C. Giuliani. “Silenciosas e combativas: as contribuições das mulheres na estrutura sindical do NE”, 1976-86, In: A. O. Costa e C. Bruschini (orgs.): Rebeldia e submissão: estudos sobre condição feminina. São Paulo, F. Carlos Chagas/Vértice, 1989, p. 255-300.

[3] Gênero refere-se a uma categoria social e política que, apesar de apoiada nas diferenças biológicas entre os sexos, é definida social e culturalmente contemplando os papéis sexuais, a divisão sexual do trabalho e as construções ideológicas de masculinidade e feminilidade. (Cf. León, M. “Política agrária en Colombia y debate sobre políticas para la mujer rural”. In: M. León e C. D. Deere [orgs.] La mujer y la política agraria en America Latina. Bogotá, Siglo Veintiuno /ACEP, 1986.)

[4] Trecho de uma entrevista de Margarida Alves concedida a Regina Novaes em fevereiro de 1983.

[5] É necessário destacar o movimento pelo direito à sindicalização desencadeado por mulheres de Nova Timborena, no Pará, que apesar da forte resistência do presidente do sindicato, alcançou a vitória após a pressão exercida pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT), em 1985.

[6] Cf. Grzybowski, C. e Delgado, N. “Organização social dos produtores e trabalhadores rurais e as alternativas de desenvolvimento no setor agrícola”. Documento apresentado no Seminário Franco-Brasileiro de Cooperação Tecno-Científica para a Agricultura, Curitiba, 1985; e Grzybowski, C. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo. Petrópolis, Vozes, 1987.

[7] Para uma análise das transformações das relações de produção e a mediação dos valores ideológicos e culturais ver o excelente estudo de V. Stolcke. Cafeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo, Brasiliense, 1986.

[8] Serão enfatizados os movimentos da Paraíba e de Pernambuco, e o do Rio Grande do Sul, conhecido como “Movimento das Margaridas”.

[9] Dados da PNAD para 1982 e do Recenseamento para 1970. Citado por H. Saffioti.“Política agrícola no Brasil contemporâneo e suas conseqüências para a força de trabalho feminina” . Boletim Reforma Agrária. Ano 15, nº.3, ago/dez., 1985.

[10] Ver, entre outros: Miele, N. “A mulher e a greve: estudo sobre a participação da mulher na primeira greve dos canavieiros da Paraíba”. Anais do 11º. Encontro do PIPSA, 1985; Stocke, V., op. cit.; Noronha, O. M. De camponesa à “madame”. Trabalho feminino e relações de saber no meio Rural. São Paulo, Loyola, 1986.

[11] Stolcke, op. cit., p. 378.

[12] Cf. Noronha, op. cit.

[13] Essas são, em síntese, as principais reivindicações discutidas e aprovadas no 1. Congresso Estadual das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul, realizado em Porto Alegre, em outubro de 1986, reunindo mais de 300 mulheres como delegadas de, aproximadamente, 60 municípios.

[14] Pelos estatutos que regiam as cooperativas (sob a responsabilidade de aprovação pelo Incra) a mulher só pode associar-se à cooperativa se for viúva ou solteira.