Estudos Sociedade e Agricultura

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José Eugenio Guimarães

Western e história: a nostalgia de um mundo findo


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 41-49.

Originalmente publicado como Western, História e Amargura: O Testamento de John Ford em Cadernos da Democracia (n. 2, abril de 1994), editado por Adriana de Arezzo para o Núcleo de Estudos Antonio Gramsci, Niterói, RJ.

José Eugênio Guimarães é mestre pela UFRRJ/CPDA.


Há pouco mais de 20 anos, num 31 de agosto de 1973, o cinema perdia John Ford, diretor radicado nos Estados Unidos que conferiu status de arte ao western. Fixou as diretrizes básicas do gênero no paradigmático No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939) e cantou a lenda de Wyatt Earp e o duelo de Ok Corral em Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, 1946). Foi o primeiro a elevar o índio à condição de membro da humanidade e a criticar, ainda que veladamente, o mito de herói do General Custer em Sangue de Heróis (Fort Apache, 1948). Até então o índio aparecia no cinema como parte da natureza, um acidente geográfico que, como o rio e os vales, precisava ser vencido. Crepúsculo de uma Raça (Cheyenne Autumn, 1964), seu derradeiro western, é praticamente uma expiação, um mea culpa, um pedido de desculpas honesto e sincero que o velho diretor - em ação no cinema de 1914 a 1966 - pedia ao índio, recapitulando os derradeiros momentos da nação Cheyenne através da reconstituição da longa e penosa marcha desenvolvida pelos últimos remanescentes da tribo, desde a fuga da reserva árida na qual foram acantonados, até reencontrarem a terra natal de Yellowstone. Foram 1000 quilômetros que jovens, velhos, mulheres e crianças venceram a pé, fustigados pelo exército, carentes de água e alimentos. Na época Ford declarou dever esse filme aos peles vermelhas, pois em toda a sua vida de cineasta matara mais índios que todos os generais da união juntos. Por essas e outras razões o diretor tornou-se o único autorizado pelos Navajos a filmar em seus territórios sagrados.

Mas Ford também cantou a Irlanda, terra de seus ancestrais, revelando-a nas paradisíacas imagens de Depois do Vendaval (The Quiet Man, 1952) ou através da efervescência revolucionária do IRA em O Delator (The Informer, 1935). Incursionou pelo realismo social, enfocando a epopéia dos deserdados da América durante a Grande Depressão em As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1940) e as conseqüências deletérias da revolução industrial numa comunidade mineira do País de Gales em Como Era Verde o Meu Vale (How Green Was My Valley, 1941).

Porém, o nome de John Ford estará, sem dúvida alguma, ligado ao western. Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), para muitos a sua melhor realização, é um filme cuja importância cresce com o tempo. Figura nas recentes listagens das melhores obras do cinema de todos os tempos entre os dez mais e, para quem ainda duvidava, comprovou definitivamente a vocação do cineasta como o Homero dos tempos modernos. Mas se Ford enobreceu o western, por outro lado também previu o seu “desaparecimento”, bem como da mitologia que o informava. Nesse ponto O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962) é seu testamento e súmula de todo o gênero. É esse filme que será enfocado nesse ensaio que rende homenagens ao diretor no vigésimo ano de sua morte.

The Man Who Shot Liberty Valance (exibido vez ou outra nas sessões de fim de noite da TV Globo) é uma das mais belas e amargas obras de Ford, logo, de todo o cinema. Nela, o cineasta - na plenitude de sua maturidade artística - e a paisagem rude do Oeste - cujas imagens ele mais que qualquer outro evocou e consolidou - experimentam o avanço do processo civilizador que tira o homem do convívio com a natureza e, em meio a essa, instala as cidades e o artificialismo do repertório das leis, do direito e da justiça. Talvez, por isso mesmo, a força dos horizontes, de tão marcante presença em westerns anteriores do mestre, esteja agora ausente. O Homem Que Matou o Facínora é narrado em ambiente fechado. Diante de suas imagens despojadas o espectador é quase forçado a se esquecer, por exemplo, do impacto visual do deserto do Arizona em O Céu Mandou Alguém (Three Godfathers, 1948) e da onipresença dos majestosos rochedos de Monument Valley acompanhando a trilha da diligência em Stagecoach ou a odisséia de Ethan e Martin em Rastros de Ódio. A cidade limita a visão, apequena o espaço. A civilização chegou, dominando a paisagem inóspita. Vai domar o deserto e enquadrar selvagens e refratários às suas normas universalizadoras. Cindirá com seus prédios, suas cercas e sua estrada de ferro os horizontes que se perdiam de vista. A civilização vence a planície, a pradaria. Anuncia novos tempos. John Ford fala de um período de transição, quando o novo questiona o velho antes de se afirmar. O Homem que Matou o Facínora traz a necessidade da adaptação, da conformação e da acomodação. Quem não conseguir se enquadrar deverá sair de cena.

A narrativa, em tom de balada e sob o ritmo da melancolia, se inicia com a chegada à progressista cidade de Shinbone, encravada em algum lugar do Oeste, do Senador Ramson Sttodart (James Stewart) e de sua esposa Hallie (Vera Miles). Vieram para os funerais de um velho amigo, de quem se separaram pela força do tempo e das circunstâncias, o atualmente obscuro Tom Doniphon (John Wayne). Os jornalistas do Shinbone Star demonstram incontida curiosidade: porque um Senador da República abandonara seus afazeres de político para comparecer às exéquias de um desconhecido que será enterrado como indigente? Quem é Tom Doniphon? Que interesses ele tem para o Senador, perguntam.

Sttodart lhes contará a história que as imagens traduzirão em flashback. Ele, um jovem bacharel em Direito, recentemente formado, com a cabeça cheia de sonhos e a mala repleta de livros jurídicos, resolvera aceitar ao pé da letra o conselho de Horace Greeley: “Vá para o Oeste jovem, e cresça com o país”. Ramson é o agente civilizador. De imediato será vítima da brutalidade do Oeste bravio representado em sua face perversa por Liberty Valance (Lee Marvin). Para se impor contará com a ajuda e proteção desse mesmo Oeste, agora personificado pela nobreza de caráter, ou seja, Tom Doniphon, que lhe propõe o uso das armas e dos punhos para a resolução dos problemas, métodos que rejeita.

Mas o império da lei, ou o mundo novo desejado pelo advogado, não consegue se implantar sem a prévia existência de um solo, de uma base de apoio para se consolidar. Tom Doniphon, leal, generoso, abnegado e justo fornecerá, pois, com suas armas, o ponto de sustentação para Sttodart sair-se vitorioso em seu projeto. Do rifle de Tom, oculto nas sombras da noite, parte o tiro certeiro que fulmina Liberty Valance salvando Ramson da morte certa. Mas a este é creditada a morte do marginal e graças a essa fama ele consolidará seu projeto político. Mesmo a contragosto Sttodart construiu sua vida graças a um ato que não foi seu. Com seu gesto mantido na surdina Tom abriu o mundo para Ramson e fechou as portas do seu. Com a morte de Liberty Valance, de quem era a contra-face, ele, Tom, também não terá mais razões de existir. Sua vida perde sentido e ele sabe que seu tempo histórico terminou. Não poderá constituir um lar como planejara. Hallie, sua amada não declarada, termina enamorando-se de Ransom, com quem parte. Tom ficará no esquecimento de um mundo que se esvai nas chamas que devoram o teto que ele edificara para consolidar sua existência.

Ao terminar de contar para os jornalistas do Shinbone Star a verdadeira história d'O Homem que Matou o Facínora, revelando-lhes por detrás da lenda que o projetara uma verdade despida de heroísmos, feitos gloriosos e façanhas gradiloqüentes, Sttodart vê o diretor do jornal rasgar as anotações que o repórter fizera. Quando inquirido pelas razões do gesto praticado, responde ao Senador: “Não senhor, como nosso finado e grande editor Duton Peabody costumava dizer, isso não é notícia. Estamos no Oeste. Aqui, quando a realidade se transforma em lenda, imprima a lenda”. Esses dizeres representam o essencial do western e de grande parte da filmografia de Ford. Ele próprio, em sua vasta obra, fez-se autor de um cinema que, como lembra Paulo Perdigão, transcendia os limites da realidade “em vez de simplesmente recriá-la”, convertendo o material simples com que lidava -“as baladas ásperas do western - em fonte permanente (de inspiração) e legenda” (Perdigão, 1975, p. 93). Arrancava da simplicidade o extraordinário, conferindo aos momentos mais singelos e insignificantes da existência uma patética noção de grandeza.

A morte de Valance e, por conseguinte, o esquecimento de Doniphon, prestes a ser sepultado pela caridade do poder público, testemunham o fim dos amplos espaços onde o maior dos cineastas narrara seus épicos do western. O mundo edificado pelos comentários impressos à bala deve, agora, dar lugar a novos valores. Chegou o tempo da lei e o fim do império das armas, não importando quem as maneje, o truculento Valance ou sua nobre alma gêmea, Tom Doniphon. Doravante, as verdades serão pronunciadas pela imprensa preservada em sua liberdade, soberbamente representada na atuação de Edmond O'Brien como o editor Peabody, e pela letra fria da lei dos livros de direito de Sttodart.

A distribuição da justiça sai das mãos do herói de sentimentos nobres, mas arbitrário, e cede lugar à objetividade legal do saber jurídico-formal do advogado. Mas este sabe muito bem, e Ford faz questão de explicitar, que não sobreviveria se não fossem as armas do primeiro. No filme, as simpatias do diretor, cultor confesso da tradição e da legenda, mesmo percebendo o avanço inexorável da história, se manifestam claramente por Doniphon. Não fossem homens como ele, Sttodart não teria como inaugurar seu mundo, o mundo do lar, da estabilidade, da família, dos filhos, da democracia, dos direitos humanos, dos movimentos políticos e do progresso, todo um conjunto de representações inacessíveis a Doniphon. Ele pode apenas pensar em começar a construir o novo tempo, talvez chegue a lhe abrir as portas, mas não poderá entrar para co-habitar nesse universo.

Estamos novamente diante do simbolismo da porta que se abria para receber Ethan Edwards (John Wayne) em Rastros de Ódio logo que começava a história mas, significativamente, fechava-se sobre ele quando sua busca chegava ao fim. Em O Homem que Matou o Facínora Tom adentra a sala da convenção e abriga-se num canto escondido do recinto, daí podendo perceber o instante em que Ranson fraqueja e retira-se do ambiente, desiludido com as manobras monopolistas dos barões de gado desferidas contra os pequenos agricultores e ele próprio. Tom segue o advogado e o convence a voltar e disputar as indicações, dando validade aos seus valores e crenças, fornecendo a Hallie algo por que se orgulhar. A porta que se abre devolvendo ao recinto dos debates um aclamado Sttodart, é a mesma que se fecha isolando Tom nos estertores de um tempo que se encerra. Nesse instante, o cowboy, qual pioneiro que colonizara as terras inóspitas e bravias da fronteira, encerra sua participação na arena histórica. Tom sai de cena para não mais ser visto. Aquela porta estabelece um corte definitivo entre os mundos, valores e concepções de ambos os personagens. Mas não é uma cisão radical e absoluta que essa passagem evoca. Ford sabe, e nos mostra, que o passado de Tom é o ponto de sustentação dos planos presentes de Sttodart e, logo, a garantia do porvir que o futuro senador auxiliará a construir.

Ethan, em Rastros de Ódio, não terá direito ao lar e à família; Doniphon também não. Inadaptados, mas conscientes disso, isolam-se no deserto e aguardam o fechamento dos seus horizontes. Mas pelo menos Tom será lembrado pela beleza rústica das flores de cactos que crescem viçosas em meio aos escombros e cinzas do quarto com varanda que ele não pode concluir. Hallie, ciente do que elas significavam no passado de ambos, colherá uma para depositá-la sobre o caixão d'O Homem que Matou o Facínora, permitindo a Ford a elaboração de um dos quadros mais evocativamente belos, ao mesmo tempo que simples do cinema, curto na duração mas rico em significados e de efeitos permanentes.

O personagem de Wayne é construído de forma tal que uma atenta visão do filme faz perceber, imediatamente, que ele está com os dias contados. Doniphon quase nunca entra pela porta da frente dos lugares onde vai. Na maioria das vezes, principalmente em tomadas que o exigem ao lado de outros personagens, não ocupa posição de destaque no enquadramento. Permanece nos cantos, como que pronto para sair de cena. Quando se encontra nos ambientes iluminados sai sempre para a sombra que eclipsa seu vulto. É assim quando mata Liberty Valance; é assim quando se despede de Hallie, anunciando que vai passar um tempo fora. Essa cena, então, é construída de forma magistral: vemos a personagem de Vera Miles na soleira iluminada, acompanhando com os olhos a silhueta de Tom que desaparece no escuro. Há algo de profético nesse olhar da mesma forma que há muito rigor na construção dramática de O Homem que Matou o Facínora, obra perfeita, autêntica peça de virtuose, repleta de passagens antológicas.

Nessa verdadeira súmula do cinema western, Ford apresenta, em dosagens equilibradas, os elementos mais caros do seu repertório de cineasta e humanista generoso: aqui são para sempre glorificados o seu amor pelos marginais sociais, a amizade, a lealdade, a tolerância, o espírito de renúncia, a nobreza e firmeza de caráter, ainda que na adversidade dos personagens. O humor e a ironia, outras marcas permanentes na filmografia do diretor, também estão presentes, ainda que ligeiramente esmaecidas pelas tonalidades invernais e cinzentas que tingem a narrativa.

Essa amargura, já percebida na obra de Ford desde Rastros de Ódio (1956), retornaria em Terra Bruta (Two Rode Together, 1961), para finalmente atingir o paroxismo em O Homem que Matou o Facínora. O western chegava, com Tom Doniphon, à fase terminal de sua evolução histórica. Muitos anos-luz parecem separar o personagem do galante e invencível Ringo Kid, interpretado pelo mesmo Wayne em No Tempo das Diligências, de 1939, do herói decaído de agora que, como informa o testemunho de Lynk Appleyard (Andy Devine) -símbolo do aparelho legal que ninguém respeitava e, da mesma forma, não parecia disso fazer questão -, quando morreu já não mais usava as botas e o cinturão, símbolos de uma virilidade convertida em anacronismo.

Lynk, como o pastor/capitão Sam Clayton (Ward Bond) em Rastros de Ódio, é também testemunha silenciosa de um caso de amor não concretizado. Sam sabia do amor que o “irmão pródigo” e errante Ethan sentia por Marta (Dorothy Jordan), esposa de seu mano Aaron (Walter Coy). Ford comunica isso em passagem de extrema delicadeza, aquela na qual o capitão percebe a forma cuidadosa como Marta recolhe do baú o casaco de Ethan, e a despedida, repleta de silenciosa e contida paixão, quando ele, solenemente, a beija na testa antes de sair com a patrulha para nunca mais tornar a vê-la com vida. O ex-xerife Lynk Appleyard comunicou ao casal Sttodart sobre a morte de Tom. Aguarda-o na estação, e quando o senador se ausenta para atender à solicitação da imprensa, leva voluntariamente a abatida Hallie ao misto de jardim e escombros onde os cactos estão floridos. “Você advinhou onde eu queria vir”, ela diz, enquanto a trilha sonora deixa ouvir a inspirada música-tema de Anne Rutledge (Pauline Moore), composta por Alfred Newman para A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln), realizado por John Ford em 1939. É outro momento solene e nostálgico quando este duplo de diretor de cinema e mago irlandês deixa transparecer toda a sensibilidade que irriga sua interminável veia artística. E faz isso sem jamais cair no sentimentalismo barato que, em outras palavras, se traduz em pieguismo.

Amargo, melancólico, nostálgico, todo o filme se orquestra como que seguindo a partitura de uma balada triste. É o canto de cisne de uma mitologia que Ford, mais que qualquer outro, enalteceu. De fato, depois de O Homem que Matou o Facínora, o western, com exceção de alguns exemplares dedicados ao puro entretenimento, nunca mais recuperaria seu caráter jovial. Na década de setenta, quando desapareceram Ford, Howard Hawks (outro grande cultor do gênero, diretor de Rio Vermelho/Red River, 1948; Onde Começa o Inferno/Rio Bravo, 1959; Eldorado, 1967) e John Wayne - o ator quintessencial do Oeste -, a árvore em que frutificou a horse opera estava praticamente senescente. A noite desceu sobre o crepúsculo.

 

Fontes consultadas

Perdigão, Paulo. John Ford. Ele Ela. Rio de Janeiro, Bloch, n. 73, 1975, p. 72. Parênteses de José Eugenio Guimarães.

O Homem que Matou o Facínora
The Man Who Shot Liberty Valance

Direção:           John Ford
Produção:        Willis Goldbeck
                        Paramount, Ford Productions
                        EUA - 1962

Elenco: John Wayne, James Stewart, Lee Marvin, Vera Miles, Edmond O'Brien, Woody Strood, Andy Devine, John Carradine, Ken Murray, Jeanette Nolan, John Qualen, Willis Bouchey, Carleton Young, Denver Pyle, Strother Martin, Lee Van Cleef, Robert F. Simon, O. Z. Whitehead, Paul Birch, Joseph Hoover, Jack Pennick, Anna Lee, Charles Seel, Shug Fisher, Earle Hodgins, Stuart Holmes, Dorothy Phillips, Buddy Roosevelt, Gertrud Astor, Eva Novak, Slim Talbot, Montie Montana, Bill Henry, John B. Whiteford, Helen Gibson e Major Sam Harris.

Roteiro: James Warner Bellah e Willis Goldbeck, com base em história de Dorothy M. Johnson. Fotografia (preto e branco): William H. Clothier. Música: Cyril J. Mockridge e Alfred Newman. Direção musical: Irvin Talbot. Direção de arte: Hal Pereira, Eddie Imazu, Sam Comer e Darrell Silvera. Costumes: Edith Head. Montagem: Otho Lovering. Assistente de direção: Wingate Smith. Som: Philip Mitchell. Tempo de exibição: 122 minutos.