Estudos Sociedade e Agricultura

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Paulo Eduardo Moruzzi Marques

A ensaística sobre os tempos neoliberais


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 9598.

Paulo Eduardo Moruzzi Marques é mestre pela UFRRJ/CPDA.


Em um espaço de tempo muito curto o México deixa de ser um país atrasado, ingressando, com o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), no chamado “mundo moderno”, e daí volta para o Terceiro Mundo, com os acontecimentos de Chiapas.

A rebelião de índios e camponeses do Exército Zapatista de Libertação Nacional[1], ao denunciar a pobreza, a fome, o desemprego e a farsa eleitoral, atesta o fracasso do modelo neoliberal no México. O cientista político mexicano Jorge Castañeda[2] observa que a rebelião de agora é um símbolo das contradições das políticas governamentais que só aumentaram as desigualdades e desmantelaram as redes de proteção social; ele prevê ainda que novas explosões de violência e movimentos radicais podem ocorrer em outros pontos do México, pela ausência de meios de expressão democrática no sistema político do país, dominado desde 1929 pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI).

A situação mexicana parece muito interessante para a reflexão sobre o tema da relação entre a democracia e a modernização na América Latina e traz bastante atualidade à ensaística latino-americana sobre o neoliberalismo, especialmente a de Norbert Lechner, Sérgio Zermeño, Francisco Weffort e, mais recentemente, José Nun.

Em seu último ensaio, José Nun[3] mostra que o período recente de hegemonia neoliberal apresenta uma peculiaridade que atinge a muitos dos que se dedicam à ciência política: “enquanto na segunda metade do século XIX as transições européias para o liberalismo democrático estiveram marcadas por intenso debate sobre princípios, hoje assistimos a uma naturalização crescente tanto deste tipo de regime como da chamada economia de mercado, que aparece como sua contraface”.[4]

Contra esta perspectiva, o autor sugere uma valorização das tradições mais ricas da política comparada, ou seja, onde predomina a análise qualitativa e histórica, baseando-se no estudo de caso. Assim se evitariam os dois riscos que a fase de redemocratização política recente no continente e a queda do Leste europeu podem induzir: de um lado, a falácia da agregação, assimilando situações que pouco têm em comum, desembocando em becos sem saída, como o apregoado “fim da história”; e, de outro, o reducionismo político, transportando experiências de um contexto para outro de maneira apriorística e acrítica. Nun lembra que o mercado não é privativo do capitalismo, bem como as eleições periódicas, ou partidos políticos operantes, não são exclusivos do liberalismo democrático.

O autor lembra que a literatura dominante no segundo pós-guerra operava com o modelo dicotômico “tradicional/moderno”, que seqüenciava: 1) a modernização da sociedade, decorrente do crescimento econômico que, por sua vez, era função da incorporação das economias nacionais ao mercado mundial; urbanização; desenvolvimento da educação e dos meios de comunicação de massa; mobilidade geográfica, etc.; 2) a difusão dos valores modernos: universalismo, desempenho, orientação para o futuro, confiança social, etc.; e 3) a instalação de um regime político de democracia representativa.

No entanto, o processo de modernização levado a cabo na América Latina, 30 anos depois, mostra que se criou um novo dualismo. O setor tradicional não é mais obstáculo ao desenvolvimento, mas sim a própria modernização é que produz exclusão social. A integração transnacional produz um processo de desintegração nacional. Rediscutindo esta dialética tradicional/moderno, Lechner[5] diferencia modernização e modernidade, identificando a primeira com as categorias de eficácia, produtividade e competitividade e a segunda, com os valores da cidadania, soberania popular e direitos humanos, considerando-os requisitos universais. Aplicando a conceituação à experiência latino-americana, o resultado é que, enquanto a modernização desenvolveu mecanismos típicos de integração transnacional (mercado, avanço científico-tecnológico), do lado da modernidade tem-se um déficit institucional bastante acentuado.

Enquanto a modernização aparecia no discurso de 30 anos atrás como meio para o estabelecimento de um regime liberal-democrático, hoje muitos autores chamam a atenção para o fato de que a democratização política dos anos 80 coloca-se como passo prévio para a modernização econômica e social. Toda a preocupação de Weffort[6] sustenta que, na América Latina, a modernização estancou em termos socioeconômicos e provoca um bloqueio de perspectivas, caminhando em muitos países para um processo de desintegração social.

Nun insiste também na crítica da identidade da modernização exclusivamente com o progresso, o bom e o justo (“modernização é um processo contraditório, inseparável de uma dialética da dominação”), e que ela pode legitimar as maiores atrocidades. Na década de 60, os exércitos da América Latina foram saudados como portadores dos valores modernos e baluartes da democracia, tornando-se protagonistas das ações vindouras e que marcam o rumo do processo de modernização, ou a índole deste processo, de maneira diversificada, nos países da América Latina. Ainda é neste rumo que a maior parte da região continua envolvida, em que fenômenos de crescimento vertiginoso da massa marginalizada fazem parte do processo simultâneo da integração transnacional e da desintegração nacional.

Se a modernização atualmente é critério de desenvolvimento econômico, um valor culturalmente aceito, legitimador do processo político, isto não significa a consensualização de um modelo único de modernização.

Como se trata de processo historicamente determinado, definido por fatores específicos, suas características dependem das forças políticas atuantes. Como observa Lechner, a exclusão na América Latina não pode ser aceita como legítima, como se fosse algo “natural”, segundo sustenta o discurso neoliberal.

Os planos de modernização econômica, experimentados na América Latina segundo a receita neoliberal, têm assim evidentes conseqüências políticas. A propósito Nun indica que, esquematicamente, o que ocorre é o seguinte: 1) ascensão de políticos aos governos a partir de suas fartas promessas; 2) forte centralização no executivo (em razão da magnitude dos problemas), com debilitação do legislativo e dos partidos políticos, ampliando-se a expectativa em torno de lideranças “salvadoras da pátria”; 3) queda dessas expectativas (com o tempo) e da popularidade presidencial; 4) desencanto de amplos setores da população, estendendo-se a falta de credibilidade à maioria dos dirigentes políticos; 5) apego ao privado, apatia cívica e rápido encurtamento entre a legalidade e a legitimidade. Este processo provoca enormes desgastes, principalmente em regimes de transição democrática, em que os governos necessitam de grande poder para controlar grupos de interesse e setores autoritários. Não é improvável então que parcelas da população, desencantadas, se deixem iludir por aventureiros, demagogos e iluminados, permitindo que, no final desta história, o isolamento no poder se alie a grandes grupos e, inclusive, a setores autoritários, promovendo mais políticas impopulares e potencializando tiranos.[7]

O ensaio de Nun ainda nos lembra que a crise da modernização no Brasil tem os mesmos contornos. A fome de 32 milhões de pessoas é a sua face mais perversa. Aqui não é preciso que acontecimentos como os do México nos recordem em que parte do mundo ainda estamos.

A crise da América Latina dos anos 90 demonstra dramaticamente que o futuro não é calculável e esta imprevisibilidade nada mais é do que a negação da hegemonia do mercado.

Por sorte, há cada vez mais cientistas sociais que voltam a valorizar a responsabilidade social pelo futuro, visto como construção coletiva, e dando muito valor à demanda por democracia. A precariedade da modernidade na região torna prioritárias as reformas políticas e, concretamente, a reforma do Estado. “Somente conseguiremos processar e dirigir a dinâmica transnacional da modernização à medida que formos capazes de desenvolver uma normatividade que dê conta da nova realidade social.”[8]

 

Notas

[1] Emiliano Zapata (1883-1919) liderou os camponeses do sul do país durante a Revolução Mexicana de 1910. Sob o lema “Terra e Liberdade”, junto com Pancho Villa, lutou contra o governo e os grandes proprietários de terras.

[2] Castañeda prevê banho de sangue, Jornal do Brasil, 7/01/94.

[3] José Nun, A democracia e a modernização trinta anos depois, Revista Lua Nova, número 27, São Paulo, setembro/dezembro 1992.

[4] Id. Ibid, p. 32.

[5] Norbert Lechner, A modernidade e a modernização são compatíveis?, Revista Lua Nova, número 21, São Paulo, setembro 1990.

[6] Francisco Weffort, Qual democracia? Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1992.

[7] A democracia e a modernização trinta anos depois, op. cit.

[8] Norbert Lechner, A modernidade e a modernização são compatíveis?, op. cit.