Estudos Sociedade e Agricultura

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Xiomara Péres Flores

Nacionalismo e agrarismo: o Triste fim de Policarpo Quaresma


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 113-116.

Xiomara Péres Flores é mestre pela UFRRJ/CPDA


Nós brasileiros, somos como Robinsons; estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou. (Transatlantismo. Careta, 8 de julho de 1922).

Lima Barreto, 1881-1922. Alguns críticos literários dizem que Lima Barreto adiantou-se aos tempos modernos. Triste Fim de Policarpo Quaresma poderia ser lido como exemplo do reflexo na literatura das angústias e preocupações de Lima Barreto sobre os fenômenos sociais de sua época.

Em Lima Barreto há, desde logo, preocupação com os fundamentos da nacionalidade brasileira, manifestando a falta deste sentido de pertencer à terra por parte dos seus habitantes. Esse alheamento percebido por Lima Barreto obedece ao sentido da colonização portuguesa e ao tipo de povoamento que se fez no Brasil, onde se destruiu uma existência anterior para se constituir um novo país de diferentes raças.[1]

Ademais, o romance abre uma considerável variedade de temas. Aqui só queremos nos referir às idéias nacionalistas e à imagem de mundo agrário que Lima Barreto verbaliza através do personagem central do Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Policarpo Quaresma, escrevente do Arsenal de Guerra, conhecido na verdade como Major Quaresma, era um homem metódico, organizado segundo uma rígida rotina em torno do desempenho de suas funções burocráticas e dos estudos sobre tudo que era brasileiro, sua flora, recursos minerais, todas as obras sobre a história e a cultura do país.

Esse amor pelo nacional leva-o a tomar aulas de violão por considerar o instrumento parte das raízes culturais brasileiras. O sentimento de que o Brasil é estranho a si mesmo fica evidente quando ele coloca o português como língua imposta, não-autóctone, incapaz de descrever as belezas da nação. Nessa procura nativista, Quaresma propõe o tupi-guarani como língua nacional, em petição dirigida à Câmara de Deputados (“Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil... Demais, senhores congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima, aglutinante, é polissintetismo de múltiplas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas.”[2]), onde é alvo de galhofa.

O tema da nacionalidade está presente em todo o texto, e aparece de forma cristalina quando ele aborda o problema agrário, como se pode ver nesta citação:

“A grande pátria do Cruzeiro só precisava de tempo para ser superior à Inglaterra. Tinha todos os climas, todos os frutos, todos os minerais e animais úteis, as melhores terras de cultura, a gente mais valente, mais hospitaleira, mais inteligente, mais doce do mundo - o que precisava mais?”[3]

Note-se que a comparação com a primeira potência da época serve a Quaresma para se perguntar porque, tendo tudo, não é o Brasil o primeiro país do mundo, e logo atribui a causa aos governos. Pela boca de Felizardo, o criado de Quaresma, o governo é responsabilizado não só pelos problemas agrários, mas também pela situação conexa dos ex-escravos.

“Terra não é nossa... E ‘frumiga’?... Nós é que não ‘tem’ ferramentas... isso é bom pra italiano ou alemão, que governo dá tudo... governo não gosta de nós...”[4] (Conversa com Olga, a afilhada do Major Quaresma).

O problema social dos ex-escravos está referido aqui ao período posterior à Abolição, quando eles, sem condições técnicas e incentivos públicos, migraram para as favelas urbanas em busca de sobrevivência; resolvendo o governo o problema da mão-de-obra com a imigração estrangeira, à qual brindava ajuda para o seu assentamento no país. É interessante observar que isso reforçava nos ex-escravos o sentimento de não pertencer à terra e sentir-se um ser estranho no seu próprio país.

O contingente da força de trabalho que permanece no campo vai formar um quase campesinato que se encarregará da agricultura de subsistência e, por sua vez, vai corporificar outras formas de relações de trabalho, como a parceria, a meação e o colonato.

Outros problemas são denunciados por Lima Barreto: os impostos cobrados das pequenas propriedades no momento da venda de suas colheitas; a voracidade dos intermediários que abocanham os lucros do agricultor, por possuírem maiores meios e conhecerem o mercado.

Policarpo Quaresma conhecia essa realidade:

“A luz se lhe fez no pensamento... Aquela rede de leis de posturas, de códigos e de preceitos nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as”.[5]

“Crianças maltrapilhas e sujas, d'olhos baixos, a esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terras abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insetos daninhos; viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de plantar um grão de milho, em casa bebendo todo o dinheiro que lhe passava pelas mãos”.[6]

Lima Barreto, ou melhor, o Major Policarpo, descreve o campo brasileiro da época como expressão do binômio latifúndio-minifúndio empobrecido. De um lado, as grandes fazendas de café e, de outro, as pequenas propriedades em abandono, improdutivas, resultado da falta de assistência por parte do governo.

A solução para o grave problema seria a elaboração de leis que levantassem o agricultor. O Major Quaresma prepara o que seria um plano agrário, e a melhor oportunidade para levá-lo à prática se lhe apresentou na revolta de 1893, quando Policarpo, o “ Patriota incondicional” encaminharia o documento ao Marechal Floriano, cujo desinteresse termina por rasgá-lo, e apenas escrever uma nota para o seu Ministro da Guerra.

Por certo Quaresma continua a dar o seu apoio a Floriano, muito embora descubra que ele não passa de um ditador, de cultura pobre e poucas energias. É esse homem, porém, que levaria o país a uma tirania doméstica e Policarpo Quaresma ao triste fim, numa cela, doente, sem nenhum amigo, terminando os seus dias fuzilado.

Notas

[1] Essa preocupação é retomada por Caio Prado Jr.: Formação do Brasil contemporâneo. Editora Brasiliense, 19a. ed., 1986, p. 10.

[2] Cf. Triste Fim de Policarpo Quaresma, ed. Ática, S. Paulo, 11a. ed., 1993, p. 52.

[3] Idem, p. 30/31.

[4] Idem, p. 103.

[5] Idem, p. 114.

[6] Idem.