Estudos Sociedade e Agricultura

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Anita Brumer

Olhares cruzados sobre o rural brasileiro


Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999: 46-55.


Numa época em que o rural e as pesquisas sobre a população rural, para muitos não agraristas das ciências sociais, parecem estar em extinção, é bastante oportuna a publicação de uma coletânea (Mundo rural e política – ensaios interdisciplinares) que reúne artigos que evidenciam não apenas a importância mas também a vitalidade das pesquisas sobre o rural brasileiro. Esses artigos resultam de pesquisas desenvolvidas por professores da UFRRJ e UFRJ e refletem o dinamismo de suas atividades e sua perspicácia na detecção de novos problemas relevantes, assim como de aspectos originais de problemáticas conhecidas.

 A primeira parte do livro reúne três textos abordando, sob perspectivas distintas, a “cultura política”. No primeiro texto, o historiador Francisco Carlos Teixeira Da Silva trata da temática do conflito e do conservadorismo na sociedade agrária nordestina, mais especificamente no sertão do São Francisco, durante a República Velha. Ele mostra o confronto entre criadores de gado e camponeses, os primeiros apoiados pelos representantes do poder local –prefeitos, vereadores, juízes de paz, juízes de direito–, aos quais estão ligados por vínculos familiares. As fazendas de criação de gado se espalham e “açambarcam as melhores terras”, enquanto “a maioria da população desses lugares é cada vez mais ‘empurrada’ para as regiões mais duras do sertão”. Aos conflitos em torno da posse e do uso da terra, soma-se o problema da seca. Como forma de diminuir o infortúnio dos flagelados da seca, os poderosos locais inventam as frentes de trabalho, que arregimentam camponeses miseráveis para construir açudes dentro de fazendas e estradas que, antes de mais nada, viabilizam o escoamento da produção dos criadores. Como diz o autor, “o Estado passa a gerir a seca, não só porque os grupos locais querem que ele pague, quase que todo ano, por um trabalho que lhes sai praticamente gratuito, como também porque as multidões de flagelados vagando pelas ruas das pequenas vilas e pelos campos constituem-se em massas perigosas que precisam ser controladas” (p. 13). Os poderosos locais inventam ainda o código de posturas, “visando limitar e impedir a reprodução das formas familiares de produção ou colocá-las a serviço dos grandes proprietários” (p. 19). O autor mostra, assim, como se dá o confronto de classes no sertão nordestino e como, com a expansão do latifúndio, acelera-se a expropriação camponesa.

O segundo texto, da também historiadora Angela Mendes de Almeida, trata da “sociedade patriarcal rural, feminismo e educação no século XIX”. Partindo das marcas de desigualdade presentes numa sociedade escravocrata que, após a liberação dos escravos, manteve nítidas distinções entre, de um lado, proprietários de terras e seus familiares e, de outro, escravos e homens livres pobres, a autora examina as possibilidades de formulação da questão da igualdade entre o homem e a mulher. Já influenciadas pela sociedade patriarcal rural e pelas profundas desigualdades sociais existentes no país, as relações homem-mulher, no século XIX, foram afetadas pela ideologia desenvolvida pela burguesia européia, caracterizada por “uma nova mentalidade ligada à família, agora uma entidade intimista e sentimental, [que] veio colocar toda a ênfase dos deveres da esposa no seu papel de mãe” (p. 25). A subalternidade da mulher ao homem era atribuída à natureza e, na época, defendia-se que “todos os homens nasciam livres e iguais; quis no entanto a natureza que as mulheres, pelas suas qualidades (maior sensibilidade) e deficiências (menor capacidade de raciocínio e menor força física), fossem destinadas à maternidade” (p. 26). As tímidas tentativas de feminismo, no período, acabavam se entrecruzando com a mentalidade que enaltecia a função materna das mulheres. Examinando a imprensa feminina da segunda metade do século XIX, a autora mostra “o constante ressurgimento da contradição entre o exercício de direitos, entre eles o da educação, e a ‘natureza feminina’, ou seja, ‘o instinto materno’” (p. 28). Deste modo, a vocação “natural” das mulheres à maternidade servia de empecilho às suas reivindicações de direito à educação, à formação profissional e ao voto. Quando seus direitos eram defendidos, com poucas exceções, tanto homens como mulheres afirmavam que eles não perturbariam a vocação “natural” da mulher para a família e a maternidade. 

No terceiro texto do livro, intitulado “Camponeses e democratização no segundo debate agrarista”, o cientista político Raimundo Santos examina dois tipos de abordagens sobre o rural: de um lado, um enfoque de influência marxista-leninista do Partido Comunista Brasileiro, típica do período pré-64, que concebia a política como locus de encaminhamento das “contradições” do mundo agrário; de outro, novos enfoques que se diversificavam no decorrer dos anos 70 e 80, abrangendo desde novas perspectivas dentro do marxismo (como a substituição da ênfase na “burguesia nacional” pela abordagem do “capital” como responsável pela transformação do rural), até a introdução da ótica dos valores e da nova postura da Igreja, que propunha uma nova espécie de ação social, a partir de uma “nova compreensão dos questionamentos do povo humilde” e de “uma nova análise da realidade acompanhada de uma nova leitura do evangelho, uma nova linguagem e uma nova prática pastoral” (p. 39). Assim como a obra de Caio Prado Jr. é utilizada pelo autor para caracterizar as análises e as propostas de mudança para o rural no período pré-64, os escritos de José de Souza Martins são usados como referência tanto para a interpelação da tradição leninista brasileira como para fundamentar a nova práxis pastoral da Igreja. Como indica o autor, “invocando um marxismo de ‘desenvolvimento desigual’, Martins teoriza o processo de territorialização do capital no Brasil, contra o materialismo racionalista e a teoria do entrave da terra ao industrialismo” (p. 50). A tradição “pecebista”, adaptada aos anos 70 e 80, é examinada pelo autor através dos escritos de Ivan Ribeiro, que “procura deslocar a problemática da reforma agrária do ‘estrutural’ para o âmbito do ‘institucional’ – evitando o enfoque classista da associação da política à imediata aderência a grupos sociais – para chegar a uma outra maneira de pensá-la politicamente” (p. 55), prevendo a possibilidade de incorporação dos camponeses e trabalhadores rurais no jogo político, de forma autônoma.

A segunda parte do livro engloba cinco trabalhos que traçam “Imagens do Mundo Rural”, com especial ênfase às relações entre o rural e o urbano. Primeiramente, a historiadora Eli Napoleão de Lima examina “O exótico nas narrativas sobre a Amazônia”, através dos olhares de escritores que tiveram a região como cenário. Nessas narrativas, fortemente influenciadas pelo ideário ocidental e de homens brancos, predominava a visão da terra amazônica como diferente, “má” ou ameaçadora. A autora destaca a obra de Euclides da Cunha e seu “poder de (...) influência na produção do imaginário social sobre a região, cuja repercussão incidirá sobre os destinos da região: será através desse imaginário que se construirão os mecanismos integracionistas do poder na busca de uma identidade para a Amazônia”, em que o progresso – sem que sejam examinadas suas contradições – é proposto como solução para a miséria e a exploração do seringueiro.

A seguir, o historiador Luiz Flávio de Carvalho Costa examina o tecido social de Araraquara, uma cidade do interior do estado de São Paulo, no século XIX, através da “leitura” de fotografias da época. A análise das fotografias torna-se vívida, à medida que se mostra que, de forte característica rural, no início do século, quando o fazendeiro do café e sua família ampliada ainda residiam no campo, a cidade se transformou pouco a pouco, tendo seu crescimento e diversificação se intensificado durante as últimas três décadas do século XIX, graças à consolidação da economia cafeeira e à construção da estrada de ferro.

No terceiro texto, a antropóloga Maria José Carneiro examina “O ideal rurbano: campo e cidade no imaginário de jovens rurais”, integrando-se, oportunamente, aos estudos sobre a juventude rural desenvolvidos na América Latina a partir do início da década de 90. Baseando-se em estudos empíricos realizados numa “comunidade” do Rio Grande do Sul e noutra do Rio de Janeiro, a autora examina a perspectiva dos jovens rurais de permanecerem na agricultura, tendo em vista as transformações ocorridas no meio rural e na influência do meio urbano sobre suas expectativas. Esses jovens “cultuam laços que os prendem ainda à cultura de origem e, ao mesmo tempo, vêem sua auto-imagem refletida no espelho da cultura ‘urbana’, ‘moderna’, que lhes surge como uma referência para a construção de seus projetos para o futuro, geralmente orientados pelo desejo de inserção no mundo moderno” (p. 99). O ideal rurbano surge como uma das possibilidades para esses jovens, através da abertura de novas possibilidades de trabalho no campo, sem abrir mão de contatos com a cidade, favorecidos pelas facilidades dos meios de comunicação.

No quarto texto, o economista Roberto José Moreira examina a questão “Terra e natureza: um olhar sobre a apropriação privada da biodiversidade”, no qual retoma as discussões sobre a renda da terra “na perspectiva da competição intercapitalista pela apropriação do conhecimento sobre a natureza e sobre a diversidade” (p. 121). Em especial, ao discutir a renda diferencial I, destaca a fertilidade do solo como “apropriação do conhecimento” e não como resultado da “natureza”, implicando que “a utilização das terras, da natureza e da biodiversidade está associada ao conhecimento que se tem sobre elas”, o que faz com que “a propriedade privada sobre esses recursos garanta ao seu proprietário um lugar na disputa da apropriação deste conhecimento e da mais-valia social” (p. 121).

No quinto texto, a socióloga Silvana G. de Paula trata da “Sociabilidade country: o campo na cidade”, no qual toma “como pano de fundo a vida rotineira dos adeptos do country, um cotidiano no qual é possível definir um estilo de vida e um padrão de sociabilidade” (p. 138). Nesse universo, o rural é apenas um lugar de referência imaginária, pois o country é um fenômeno urbano, um estilo de vida de habitantes da cidade. Como indica a autora, o estilo country – caracterizado pela prática da moda, da música, da dança, do rodeio e de esportes típicos – adotado no Oeste paulista, resulta “das tradições das elites brasileiras”, de uma peculiar interpretação da experiência country norte-americana, e da aspiração por uma identidade que “sintonize [seus adeptos] com o que é por eles considerado moderno e atual” (p. 141).

Na terceira parte da coletânea estão incluídos quatro textos abordando “reforma agrária e políticas públicas”, entre os quais merecem destaque dois artigos que tratam da realidade rural atual e que, pela atualidade da temática e riqueza da análise, na visão da autora da resenha – influenciada pelos olhares da sociologia e da economia rural –, estão entre os melhores da coletânea. O primeiro artigo, intitulado “Perspectivas para a análise das relações entre assentamentos rurais e região”, é de autoria da cientista social Leonilde Sérvolo de Medeiros e do economista Sérgio Pereira Leite. Originado como um projeto de pesquisa sobre assentamentos rurais resultantes da “reforma agrária” em andamento no Brasil, realizada em diferentes regiões por seis equipes distintas, os autores fazem uma ampla revisão bibliográfica sobre os assentamentos rurais no país. O artigo desenvolve um quadro analítico muito rico, ao incluir aspectos como os impactos dos assentamentos no espaço econômico, social e político das regiões onde se inserem; poder local, participação e políticas públicas; organização social e produtiva; dimensões ambientais/territoriais; alterações demográficas e condições de vida. Embora o quadro analítico não seja abstrato, já que incorpora dados empíricos obtidos através de revisão bibliográfica, espera-se que os resultados das análises em andamento sejam tão ricos como o desenvolvimento da temática do artigo em exame sugere, uma vez que terão forte impacto no debate em torno da reforma agrária nos próximos anos.

O segundo artigo, de autoria da economista Ana Célia Castro, intitula-se “Agribusiness brasileiro e o papel do sistema de transportes intermodal”. A autora demonstra que a produção industrial de alimentos, no Brasil, encontra-se em fase de grande dinamismo tecnológico, a partir da introdução de novos produtos e novos processos. A expansão e a diversificação do agribusiness nacional, resultantes em grande parte das importantes transformações em curso no sistema agroalimentar mundial, podem ser verificadas “tanto através da introdução de produtos de alto valor agregado, quanto através da recuperação da competitividade brasileira na produção de commodities agrícolas”. Assim, o exame das alterações espaciais do sistema agroalimentar brasileiro, com base nos grandes eixos de transporte intermodal – noroeste, norte, nordeste, leste, Mercosul, bem como os corredores do Rio Grande, do Paraná/Santa Catarina, do Centro-leste, do Sul, do Nordeste e do Norte – indica a ocorrência de uma nova especialização em commodities voltadas para o mercado exportador.

O terceiro artigo, de autoria do antropólogo Jorge Osvaldo Romano, trata de ”Interesses privados na formulação e implementação de políticas públicas para a agricultura”. O artigo insere-se no contexto das questões colocadas pelos processos de formulação e implementação de políticas e dos arranjos institucionais que envolvem, diferentemente, segmentos da burocracia estatal e atores econômicos e sociais; e das formas de organização, mobilização e representação dos interesses desses atores e de seu papel e influência nas políticas públicas, que recolocam o debate sobre as novas formas de corporativismo e de pluralismo. Tendo como interesse central a redefinição das relações entre o público e o privado, o texto aborda as redes de política pública (policy network), sobre as quais o autor faz uma ampla revisão bibliográfica internacional, principalmente em língua inglesa, traçando um panorama conceitual sobre elas. Além de abordar a agricultura apenas perifericamente, o artigo deixa o leitor na expectativa de uma análise empírica sobre a realidade brasileira –ou sobre qualquer outra realidade– que venha dar corpo a essa análise conceitual.

No quarto artigo, o sociólogo/cientista político Héctor Alimonda examina a relação entre o processo de integração econômica regional e a consolidação da democracia no Brasil. Em sua análise, o autor destaca o caráter não consultivo – seguindo um padrão decisório autoritário – do processo de integração regional do Mercosul, que deixou de lado a participação de setores organizados da sociedade, tais como os sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, em sua formulação e implementação, como decorrência da política brasileira – viciada por práticas oligárquicas e por um notável grau de privatização do espaço público – e da lógica da imposição do ajuste econômico. O autor destaca a ação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que apresentou uma série de reivindicações referentes às relações trabalhistas e aos direitos dos trabalhadores; das ações de organizações não-governamentais, em contato com movimentos rurais de base, que levantaram questões de interesse dos pequenos produtores rurais; e dos questionamentos das organizações ambientalistas sobre os projetos regionais de construção de hidroelétricas.

A leitura do livro requer ainda um outro tipo de reflexão, sugerida pela inclusão da expressão “interdisciplinares” em seu título. Afinal, o livro reúne “ensaios interdisciplinares” ou trata-se de “uma perspectiva multidisciplinar”, conforme avaliação de Maria Yedda Leite Linhares na Apresentação (p. vii-x)? Para esclarecer a questão, é preciso considerar que as duas expressões revelam aspectos distintos da relação “objeto de pesquisa” e “abordagem disciplinar”. Tentativamente, parte-se da idéia de que enquanto que o olhar de uma única disciplina sobre um único objeto de pesquisa resulta num estudo unidisciplinar, a incorporação de diferentes abordagens disciplinares sobre um único objeto de pesquisa, num mesmo estudo, caracteriza um estudo multidisciplinar; e olhares cruzados de diferentes disciplinas sobre um mesmo objeto de pesquisa definem uma abordagem interdisciplinar. Se esta conceituação está correta, então o livro consiste antes numa abordagem multidisciplinar do que interdisciplinar. Os olhares dos autores de todos os textos voltam-se para o rural e para seus aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais, mas cada autor enfrenta tanto uma problemática distinta como trabalha com diferentes referenciais teórico-analíticos, alguns fazendo uma abordagem teórica e outros, uma análise empírica, assim como abordando tempos e regiões variados. A possível impropriedade de uso da expressão, no entanto, não reduz a qualidade da coletânea. Na sua tentativa de reunir textos de autores com formação em diferentes disciplinas, o livro traz uma excelente contribuição à compreensão da diversidade e do dinamismo do rural.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva, Raimundo Santos e Luiz Flávio de Carvalho Costa (orgs.). Mundo rural e política - ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro: Campus, 1999, 277p.