Estudos Sociedade e Agricultura

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Elisa Guaraná de Castro

A escolarização nos assentamentos rurais: uma caracterização comparada


Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999: 80-103.

Resumo: Este artigo trata da questão da escolarização nos assentamentos rurais e busca uma reflexão (a partir da discussão sobre as dificuldades estruturais, econômicas e sociais no campo) que contribua para o aprofundamento do debate sobre a educação no meio rural, mais especificamente nos assentamentos rurais, a cuja análise não podemos nos furtar se quisermos compreender a questão agrária brasileira na década de 90.

Palavras-chave: Assentamentos rurais; reforma agrária; escolarização; analfabetismo; questão agrária.

Abstract: Schooling in the Rural Settlements: a Comparative Characterization. This paper addresses the question of schooling in the rural settlements and aims to initiate a reflection (on the basis of a discussion of the structural, economic and social difficulties in the countryside) that contributes to deepening the debate on education in the rural areas and, more specifically, in the rural settlements, whose analysis cannot be avoided if we are to understand the Brazilian Agrarian Question of the 90’s.

Key words: Rural Settlements; Agrarian Reform; Schooling; Illiteracy; Agrarian Question.

Elisa Guaraná de Castro é professora da UFRRJ/ICHS.


Introdução

Os assentamentos rurais fazem parte da realidade do campo brasileiro, não podendo ser compreendidos apenas como resultado dos processos políticos que os conformaram a partir de ocupações e resistências, dentre outras formas de luta. A sua configuração interna, assim como as relações que estabelecem com a sociedade como um todo e as diversas instâncias que intervêm nessas localidades estão em constante processo de construção e reconstrução. Daí a importância da análise dos assentamentos para a compreensão da questão agrária brasileira na década de 90.

Os assentamentos conquistaram um espaço fundamental no cenário de disputa pela terra. De acordo com dados recentes do primeiro “Censo dos Assentamentos Rurais” (1996-Incra/Crub), estima-se que existam 1.647 assentamentos de Reforma Agrária, legalmente reconhecidos até o ano de 1996, com um total de 200.000 famílias de agricultores assentados em todo o território nacional. No entanto, ainda são poucas as mudanças no interior dos órgãos responsáveis pela questão fundiária, marcados pela lentidão e entraves políticos e burocráticos (Palmeira, 1994). Após quase duas décadas da adoção da política de assentamento por parte do Estado, diversos foram os balanços e as análises feitas sobre os seus “resultados” (Guanziroli, 1994; Esterci, 1994).

No que se refere ao assentamento, os estudos mostram os limites impostos por essas estruturas, nas quais o tamanho reduzido dos lotes, a baixa qualidade da terra, a falta de incentivos financeiros e a escassez de tecnologia desenvolvida nas áreas tendem a reproduzir a unidade mais perversa da estrutura agrária brasileira: o minifúndio. De fato, embora as condições de vida de parte dos assentados tenham melhorado em relação ao seu passado e eles estejam inseridos no mercado, sua capacidade de capitalização e desenvolvimento se mantém muito incipiente.[1]

Os assentados devem ser vistos, portanto, como identidades em construção a partir dos elementos aqui apontados e da realidade de convivência nos próprios assentamentos, onde redes de relações se formam, surgem novas relações de vizinhança, de manifestações culturais, religiosas etc. Passaremos a discutir alguns elementos que nos permitam refletir sobre uma das questões centrais desses espaços sociais: a relação escolarização e assentamentos rurais. Para tal recorremos a fontes estatísticas e a pesquisas qualitativas.

Utilizaremos o material coletado em duas pesquisas qualitativas. A primeira trata-se de uma pesquisa comparativa entre dois assentamentos rurais no estado do Rio de Janeiro: São José da Boa Morte (município de Cachoeiras de Macacu, na micro-região Bacias de S. João e Macacu) e Mutirão Sol da Manhã (município de Itaguaí, na Baixada Fluminense): A Origem dos Assentados: um problema ou uma questão? A segunda pesquisa está sob o título Agricultura Familiar nos Assentamentos Rurais: as relações entre as mulheres e os homens - o Caso do Pontal de Paranapanema. Realizada em novembro de 1996 no assentamento Gleba XV localizado no Pontal do Paranapanema/SP.[2] Com estas duas pesquisas pretendemos debater a idéia de que a escolarização nos assentamentos rurais representa um elemento de tensão. Por um lado, todos os assentados entrevistados, em ambas as pesquisas, apresentaram a escolarização como uma preocupação importante. No entanto, como veremos, são muitos os empecilhos para criar condições de acesso à escola para os filhos dos assentados. Por outro lado, a escolarização pode representar novas perspectivas quanto à futura inserção e, portanto, quanto ao processo de continuação do projeto da família no interior do assentamento.

O objetivo principal deste trabalho é contribuir para pensarmos a educação nos assentamentos rurais, enfocando principalmente a escolarização, como algo que carrega múltiplas representações sociais dentro do assentamento e que depende de negociações junto a órgãos dos estados e municípios.

Para contribuir na investigação deste problema optamos por um trabalho comparativo entre diferentes tipos de fontes, o material fruto de pesquisas qualitativas, apontadas anteriormente e dados quantitativos. Neste sentido, faremos, primeiramente, um panorama sobre a situação do analfabetismo e escolarização comparando dados da PNAD[3] nacionais e relativos aos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, referentes aos anos de 1986/87 e 1995. Trataremos então a escolarização, também, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostragem da Situação Educacional em Assentamentos e Acampamentos Rurais de Reforma Agrária - SE/MST - AKGHU/DG/FCT/Unesp-1995.[4]

Embora os dados nos convidem a tomar certas cautelas quanto às suas diferentes origens, nos instigam a levantar questões. Como uma primeira incursão nestes materiais a partir deste enfoque, consideramos que apesar das limitações subjacentes nestes tipos de comparação, esta pode ser uma iniciativa que contribua para aprofundar o debate. Assim, em um segundo momento trataremos o material qualitativamente buscando traçar alguns paralelos com o que foi encontrado nos dados quantitativos.

 

Analfabetismo e escolarização: a distância entre o mundo rural e o urbano

O mundo rural e o mundo urbano estão cada vez mais próximos, diversos são os núcleos urbanos no país que se expandiram em torno de áreas antes de população predominantemente rural. Portanto, para além da questão da migração rural/urbana, podemos perceber a integração destes modos de vida como um processo em andamento e que parece cada vez mais próximo, sem que, no entanto, se perca a diversidade de identidades existentes nesses mundos. Na fala de alguns assentados de origem rural podemos perceber como estes reafirmam que a grande diferença entre o rural e o urbano deve ser o tipo de produto final de seu trabalho e não as condições socioeconômicas em que vivem.

No entanto, as condições das áreas rurais, principalmente as dos assentamentos, continuam extremamente precárias. Não pretendemos neste momento nos alongar nos diversos indicadores que demonstram esta desigualdade, fixaremos a análise nos dados da PNAD que tratam do analfabetismo e da escolarização. O analfabetismo em 1987 no Brasil para a população de 10 anos ou mais era de 21%, em 1995 o índice caiu para 14,8%. É bastante visível a diferença entre a porcentagem da população não alfabetizada urbana (10,5%) e rural (31%) em 1995. O fato de 30% da população rural permanecer não alfabetizada representa um índice desolador, em uma era em que o principal tema é o processo acelerado de mudanças rumo ao próximo milênio.

Os estados do Rio de Janeiro e São Paulo seguem as tendências nacionais. Em 1986, no estado do Rio de Janeiro, 9,2% da população com 10 anos ou mais não era alfabetizada, em 1995 este índice cai para 6,5%. Da mesma maneira que nos dados nacionais, a diferença entre os anos 1986 e 1995 dos dados da população não alfabetizada rural (23%-20,7% respectivamente) e urbano (8%-5% respectivamente) é enorme. Apesar da diferença entre as taxas da população rural e urbana, o índice de analfabetismo está abaixo da média nacional.

No estado de São Paulo as taxas são ainda menores, em 1986 a população total com 10 anos ou mais sem alfabetização era de 9% e em 95 de 6%. Mais uma vez a diferença entre as taxas de analfabetismo entre os anos de 1986-1995, referentes à população rural (18%-12,9% respectivamente) e urbana (8%-6,4% respectivamente), é substantiva. Mesmo em se tratando de taxas bem abaixo das nacionais, é preocupante uma taxa de 12% da população rural sem alfabetização, no estado de maior desenvolvimento econômico do país.

Para termos um quadro mais detalhado da situação de escolarização da população rural, temos que associar estes dados com a freqüência por série e grau dos estudantes. A PNAD indica que em 1987, 28,2% da população nacional com cinco anos ou mais freqüentava instituições de ensino, em 1995 era 31%. Mais uma vez podemos apontar a diferença entre as taxas do total dos estudantes, dos anos citados, para a população rural (22%-18,5%, respectivamente) e urbana (78%-81,4%, respectivamente). Não só existe uma grande diferença entre a participação da população rural e urbana no total do universo de estudantes, como o índice de participação rural caiu em 4% no período citado e se encontra abaixo da média do país. Não podemos deixar de mencionar que houve um decréscimo populacional nas áreas rurais de 14% no período analisado, o que pode ser um dos fatores responsáveis pelo decréscimo da freqüência escolar, principalmente no que tange ao universo jovem. Mas como veremos adiante, outros fatores contribuem para dificultar a permanência nas escolas.

A freqüência escolar nacional, segundo a PNAD, está concentrada no ensino fundamental, como pode ser observado no gráfico 1, sobre o total de alunos.[5] O que deve ser ressaltado é um pequeno aumento na freqüência do ensino médio, o que pode significar uma busca de uma maior valorização da continuidade da formação, por parte das políticas públicas; no entanto, quanto ao ensino superior a freqüência é bem reduzida.

Assim como nos índices sobre o analfabetismo, as diferenças entre os índices da população rural e urbana, quanto à freqüência escolar, também são marcantes. A tendência da concentração da freqüência no ensino fundamental é ainda maior entre os estudantes rurais, como pode ser observado no Gráfico 2. O dado mais preocupante é a grande diferença quanto à freqüência no ensino médio e ensino superior, onde os estudantes rurais cursando o ensino médio representavam apenas 5%, sobre o total de estudantes, no ano de 1995, quase três vezes menos que a participação dos estudantes urbanos. No que se refere ao ensino superior a situação é ainda pior, a participação é incipiente e se reduz a 0,6%, oito vezes menor que o mesmo indicador dos estudantes urbanos. Sendo que os índices urbanos estão acima da média nacional, ao contrário, os índices rurais, principalmente no que concerne à freqüência no ensino médio e ensino superior, estão bem abaixo dos nacionais.

Gráfico 1: Freqüência dos estudantes com cinco anos ou mais por grau (BR): 1987/95.

Fonte: PNAD 1987 e 1995.

Gráfico 2: Freqüência dos estudantes com cinco anos ou mais, segundo situação do domicílio por grau (BR): 1987/95

Fonte: PNAD 1987 e 1995.

Este quadro se complexifica quando observamos os dados referentes à freqüência por série, em que a maior concentração se encontra até a quarta série primária, como pode ser observado no Gráfico 3. Apesar da taxa ser de apenas 7% de freqüência na oitava série sobre o total dos estudantes cursando o primeiro grau, pode-se notar uma sensível melhora da participação nas séries de quinta à oitava (1995).

No meio rural essa freqüência é ainda mais concentrada nas séries de primeira à quarta primária, como aparece no Gráfico 4. Um momento que chama a atenção é a passagem da quarta para a quinta série, onde a queda de freqüência chegava a quase 50% (1986) e 40% (1995). Uma das causas dessa possível evasão pode ser a necessidade de contribuir para o aumento da renda familiar, através de um trabalho remunerado, a fim de minimizar a situação de precariedade econômica em que vivem as famílias, o que tornaria impossível a continuação nas escolas. O processo, ainda que lento, de equilíbrio entre o ensino fundamental e médio, quanto à freqüência em âmbito nacional, acompanhado pelos dados de estudantes urbanos, não aparece nos dados dos estudantes rurais. Mesmo tendo ocorrido uma significativa redução da diferença entre a freqüência na primeira série do ensino fundamental em relação às demais, a queda de freqüência ainda é vertiginosa, principalmente entre a quinta e oitava séries, o que contribui para compreendermos a baixa adesão ao ensino médio e a quase insignificante entrada em cursos superiores.

Gráfico 3: Freqüência dos estudantes com cinco anos ou mais por série (BR): 1987/95

Fonte: PNAD 1987 e 1995.

Gráfico 4: Freqüência dos estudantes de áreas rurais com cinco anos ou mais por série(BR): 1987/95.

Fonte: PNAD 1987 e 1995.

No estado do Rio de Janeiro em 1995 essa diferença aumentou, já que 95% dos estudantes residiam na área urbana e apenas 5% na área rural, maior do que em 1986 em que 6,7% dos estudantes moravam em áreas rurais. A freqüência escolar dos estudantes que residem em áreas rurais é igualmente concentrada no ensino fundamental, 89% (1986) e 77% (1995), para 4,5% e 5,7% no ensino médio. O caso do ensino superior chama a atenção por ter chegado a 1% (1986) e caído para 0,4% (1995). Se a população de estudantes rurais é pequena, a distribuição por séries tende a acompanhar as taxas nacionais. Nesse sentido, ocorreu uma melhor distribuição principalmente em 1995, onde a primeira série que tinha 40% (1986) da freqüência passou a concentrar 23,4% (1995) do total de estudantes do ensino fundamental, e a quinta série, que antes representava apenas 5% dos estudantes, passou a 10,6% (1995).

Os estudantes residentes em áreas rurais do estado de São Paulo representam apenas 7% do total de estudantes do estado. A freqüência do ensino médio em relação ao ensino fundamental aumentou significativamente no período analisado, representando em 1995 quase o triplo das taxas de 1986, como pode ser observado no Gráfico 5. Da mesma forma, a distribuição por séries aparece muito mais equilibrada em 1995, onde a passagem da quarta para a quinta série ocorre de forma mais contínua e, excetuando a oitava série, as demais apresentam taxas equânimes, como pode ser observado no Gráfico 6. A diferença entre este quadro e os dados de 1986 é bastante representativa e pode significar investimentos diretos na permanência e continuidade dos estudantes no ensino fundamental. Podemos associar essa mudança à relevância dada ao ensino nos assentamentos rurais, como veremos adiante.

Gráfico 5: Freqüência dos estudantes de cinco anos ou mais por grau (SP): 1986/95

Fonte: PNAD 1987 e 1995

 

Gráfico 6: Freqüência dos estudantes de 5 anos ou mais por série (SP): 1986/95

Fonte: PNAD 1987 e 1995.

A escolarização nos assentamentos e acampamentos rurais

De acordo com os dados levantados pela pesquisa MST/Unesp, a taxa de analfabetismo nos assentamentos rurais em todo o país ainda é muito alta, 30% em 1995, acompanhando as taxas nacionais da população rural. Esta alta taxa estaria mais relacionada aos adultos do que às crianças e jovens.[6] Em São Paulo (1995),[7] 11,7% de homens e 14% de mulheres do universo adulto não são alfabetizados. O que pode ser observado é que nos assentamentos e acampamentos do estado de São Paulo as taxas de analfabetismo estão abaixo daquelas encontradas para a população rural nacional (31% - PNAD). No entanto devemos reforçar que ainda são muito altas.

De modo geral, a escolarização tem sido uma das principais preocupações dos assentados. O MST tem por predeterminação a implantação de escolas nos assentamentos. Ainda nos acampamentos formam-se núcleos com as crianças e professoras voluntárias no sentido de tentar manter um certo nível de normalidade no cotidiano do processo de ocupação. Quando os assentamentos são legalizados, constroem-se escolas e busca-se uma regulamentação no município mais próximo. Este processo tende a se repetir mesmo em áreas que não estão sobre a influência do MST.

A situação das taxas sobre freqüência escolar nos assentamentos e acampamentos rurais é semelhante às taxas nacionais da população rural (PNAD), sendo que aparece ainda uma grande concentração na primeira série, como se vê no Gráfico 7. A média das taxas nacionais dos assentamentos rurais em todo o país, de crianças entre sete e 12 anos que não estão freqüentando a escola, é de 5% sobre o total de crianças desta faixa etária, enquanto a taxa de jovens entre 13 e 17 anos é de 20%. Os dados referentes aos jovens mostram que a taxa dos que não freqüentam aumenta conforme vão ficando mais velhos, os jovens de 13 anos (10%) e os de 17 anos (31,5%). Este dado reforça a idéia de que a busca de um trabalho remunerado pode ser uma das razões da interrupção nos estudos.


Gráfico 7: Freqüência das crianças por série em assentamentos e acampamentos (BR)

Fonte: SE/MST - LAGHU/dg/fct/Unesp-1995

É importante ressaltar que o percentual de jovens e adultos que freqüentam o curso supletivo de ensino fundamental é bastante significativo, principalmente na primeira e quinta séries (20% na primeira, 18% na quinta e a oitava tem 10% do total das freqüências). Este dado é relevante se somado ao fato de 43% dos adultos terem cursado até a quarta série primária, 10% até a oitava série do primeiro grau e apenas 1% ter completado o ensino médio. Assim, percebe-se um esforço real da população jovem e adulta em dar continuidade à sua escolarização, da mesma forma que existe uma preocupação por parte dos que estão diretamente envolvidos com a escolarização de investir nestes segmentos.

Em relação aos assentamentos e acampamentos de São Paulo, a média da freqüência das crianças e jovens reproduz a situação das médias nacionais para os assentamentos rurais (1995), em que apenas 6,5% das crianças entre sete e 12 anos não estão freqüentando a escola, mas 22% dos jovens entre 14 e 17 anos estão fora das escolas. No entanto, a freqüência por séries aparece mais bem distribuída, como pode ser observado no Gráfico 8.

Gráfico 8: Escolaridade das crianças do estado de São Paulo.

Fonte: SE/MST - LAGHU/dg/fct/Unesp-1995

Assim, como observamos em relação aos dados nacionais dos assentamentos, no estado de São Paulo também é forte a participação em cursos supletivos do ensino fundamental e novamente a concentração aparece na primeira e quinta séries (18% na primeira, 13% na quinta e 3,4% na oitava série do total de freqüências). As taxas de escolaridade dos adultos são maiores do que as taxas nacionais para os assentamentos rurais, 48% completou a quarta série primária, 19% a oitava série e 1,5% o ensino médio.

A baixa escolaridade dos adultos aparece como um desafio que parece estar sendo enfrentado através de iniciativas próprias como os cursos supletivos. A alta freqüência das crianças nas escolas é um elemento importante e que certamente tem sido levado em conta na avaliação das atuais experiências de escolarização rural. No entanto, a baixa freqüência dos jovens representa um problema e mesmo as iniciativas dos cursos supletivos ainda parecem estar tendo uma resposta lenta e que precisam de investimentos diretos. Seria fundamental encontrarem-se estratégias que evitem a saída do jovem das escolas. Veremos, a seguir, como os assentados têm se preocupado diretamente com a questão da escolarização.

 

Escolarização e a possibilidade da escolha: três estudos de caso

Os dados apresentados, por si, não explicam as possíveis razões das diferenças encontradas entre a escolarização da população rural e da população urbana. Em um primeiro momento poder-se-ia imaginar que estas diferenças poderiam ter origem nas formas específicas de socialização das famílias das áreas rurais, em especial no interior da produção familiar. Sem dúvida, a organização da produção familiar pressupõe a participação dos filhos no processo produtivo (Lamarche, 1993; Carneiro, 1998; Champange, 1979). Apesar das características dessa forma de socialização, diversos autores apontaram que a preocupação com a escolarização vem se mostrando como uma constante. Champange (1979) demonstra como a escolarização aparece associada à melhoria de vida e representa prestígio para as famílias. Os pais têm como preocupação garantir um nível de escolarização maior em termos de anos de permanência na escola e de melhor qualidade do que o que tiveram. Isso é visto como uma demonstração de status para toda a família.

No entanto, essa perspectiva aponta para novas possibilidades de inserção dos filhos, o que tensiona a própria reprodução da produção familiar (Champange: ibid). A pluriatividade pode ser uma das possibilidades de conciliação destas novas perspectivas com a continuidade desse tipo de produção. Segundo Maria José Carneiro (1998), a prática da pluriatividade é tradicional nos “villagois” franceses, onde os filhos migravam para núcleos urbanos em busca de trabalho nos períodos de entressafra, e retornavam para as propriedades familiares nos períodos de trabalho agrícola mais intenso. Esse recurso sempre foi percebido como parte da lógica da produção familiar. No Brasil, o debate sobre a reprodução da produção familiar sempre foi intenso (Lamarche, 1993, Garcia, 1983) no entanto, no que se refere aos assentamentos rurais, esse tema ainda é pouco explorado.

Podemos pensar os assentamentos a partir do conceito de localidade onde o espaço rural atende às necessidades básicas de bens e serviços da sua população e a integração com os municípios passa a ser uma relação de troca comercial e de lazer. Atualmente, a situação mais encontrada é a do espaço rural dependente dos núcleos urbanos ou mesmo precários com um acesso reduzido a bens e serviços. Essa integração e a viabilização de espaços rurais que tenham à disposição esses serviços representam uma ampliação dos seus direitos de cidadão, que já começaram a ser conquistados com a luta pela terra (Wanderley, 1994; Lamarche, 1993).

Os assentamentos têm sido lugares de reestruturação da vida rural. Neles, a busca de integração e intercâmbio com os núcleos urbanos mais próximos tem resultado em experiências frutíferas. Aglomerando um grande número de famílias, eles são uma fonte de troca de produtos comerciais, contribuindo para a diversificação de ofertas de produtos, formando um mercado consumidor e influenciando a vida política local. Os municípios do Pontal do Paranapanema no estado de São Paulo são exemplos claros dessa troca. Atualmente, os prefeitos de alguns desses municípios, juntamente com vereadores, comerciantes e empresários, estão se reunindo com o Instituto da Terra de São Paulo (que atua na área, através da assistência técnica e legalização dos lotes), o MST e os assentados, no sentido de ampliar e potencializar essas trocas. Nas últimas eleições (1996), os assentados influenciaram também na escolha direta de prefeitos de municípios da região.

 A escola pode ser repensada dentro desse conceito de localidade, como um espaço de universalização, respeitando as especificidades locais. Ou seja, a escola pode representar um catalisador, onde as crianças, jovens e mesmo os adultos possam, por um lado, contribuir para o processo de melhorias da sua realidade local. Isso pode ser realizado a partir de cursos voltados para a melhor formação dos membros das famílias assentadas (formação básica e cursos de especialização). Por outro lado, a escola também deve representar o espaço de socialização e contato com o universo que está para além do local, abrindo perspectivas de escolha quanto ao futuro individual das crianças e jovens. Essa escolha pode se converter no fortalecimento de serviços necessários para a melhoria das condições de vida dos assentados.

Os assentamentos analisados nas duas pesquisas, no estado do Rio de Janeiro: Sol da Manhã e São José da Boa Morte, e no estado de São Paulo: Gleba XV, são muito interessantes para refletir sobre a questão da escolarização, principalmente por se tratarem de casos em regiões muito diferentes. O esforço de compararmos esses materiais se justifica pela importância de mostrarmos a complexidade dessas realidades e pelo fato de existirem poucos trabalhos que tratam da questão da escolarização nos assentamentos rurais. A partir das duas pesquisas, que vamos apresentar, rapidamente, a seguir, pode-se demonstrar que existe uma proximidade quanto às preocupações. Isto é, apesar das diferenças entre a realidade dos assentamentos rurais e dos espaços pesquisados pelos autores acima citados, assim como entre os próprios assentamentos analisados, os anseios dos assentados, no que concerne à educação, são parecidos com os apontados acerca das outras experiências de produção familiar.

A primeira diferença básica que marca as três experiências tratadas é a localização. Os dois assentamentos do estado do Rio de Janeiro carregam a marca de estarem situados em um dos estados mais urbanos do país e de pouco peso na produção agrícola nacional. Já o assentamento Gleba XV do Pontal do Paranapanema no estado de São Paulo encontra-se em uma área de forte vocação agropecuária, marcada pela construção de barragens, pelo plantio da cana e do algodão e reconhecida como uma das áreas de maior disputa por terra.

Os processos de formação desses assentamentos também foram muito diferentes. Todos tiveram como ponto de partida uma ocupação. O assentamento Gleba XV foi formado em 1981 a partir de uma invasão. A maioria dos entrevistados está no local desde o primeiro acampamento na beira da estrada, o passado de bóia-fria e barrageiros é o mais freqüente. Todos passaram pelo processo de seleção após permanecerem seis meses na beira da estrada, sendo levados para uma área “emergencial”[8] por um período de um ano e só então receberam o lote. A população do assentamento é de origem rural, mas muitos trabalhavam como bóias-frias e moravam nos núcleos urbanos próximos. A maioria dos filhos dos entrevistados está na faixa etária acima de 14 anos.

São José da Boa Morte está localizada no município de Cachoeiras de Macacu no Rio de Janeiro. Por estar próximo à região Serrana, principal produtora de hortifrutigranjeiros no estado, é muito marcado por esse tipo de produção. A área onde hoje se encontra o assentamento foi palco de inúmeros conflitos, mas a ocupação em 1979, que culminou com a expulsão e prisão de 120 lavradores que participaram do acampamento, gerou o processo definitivo de desapropriação. Este teve início em 1981, mas o assentamento definitivo das famílias ocorreu em 1985. A população é predominantemente rural, sendo que alguns tiveram a trajetória rural/urbano/rural. A maioria dos filhos atualmente já está numa faixa etária acima dos 14 anos. Mas desta segunda geração muitos permaneceram no assentamento, constituindo família, e hoje já existe uma terceira geração que está em uma faixa etária de até 10 anos.

O Sol da Manhã está localizado na Baixada Fluminense, região do estado do Rio de Janeiro marcada por conflitos de terra e pela violência. O processo de ocupação da área ocorreu em função da exploração de um areal clandestino que fazia fronteira com um bairro: Jardim Maracanã (local de origem das primeiras famílias que formaram o acampamento). Montaram o primeiro acampamento em 1986 e após um ano de luta na justiça conseguiram a legalização de parte das terras. A população tem origem variada: alguns vieram de outras áreas rurais, outros tiveram a trajetória rural/urbano/rural (em que a última etapa foi o assentamento) e alguns ainda vieram de áreas urbanas. Os filhos, em sua maioria, ainda são crianças ou adolescentes. A produção agropecuária do assentamento é variada, mas muito prejudicada pela péssima qualidade da terra.

Apesar das diferenças de formação, localização, população, assim como do ciclo de vida das famílias, encontramos uma preocupação comum. Nos três assentamentos houve por parte dos assentados e/ou associações o cuidado com a construção de escolas ou de facilidades de acesso à escola mais próxima. Na Gleba XV (SP) e em São José (RJ) a escola veio como parte de um pacote reivindicado junto ao Incra, que foi o responsável pela infra-estrutura do assentamento. No Sol da Manhã (RJ) a escola foi o primeiro edifício construído pelos assentados, assim que legalizaram o assentamento. Os assentados também lutaram pela sua encampação pela prefeitura.

Atualmente, na Gleba XV (SP) existe uma escola de ensino fundamental, em São José (SP) a escola foi ampliada e hoje comporta todo o ensino fundamental. No Sol da Manhã (RJ) as condições ainda são precárias, a pequena escola de primeira à quarta série não dá vazão para atender a todos os alunos do acampamento, segundo a diretora: “A gente dá um jeito, mas tá longe do ideal”. Já para freqüentarem as séries de quinta à oitava, as crianças precisam caminhar ou pagar um ônibus para o núcleo urbano mais próximo. Apesar das dificuldades os assentados persistem na luta pela melhoria da escola, sua ampliação e expansão para o ensino de quinta à oitava séries.

Todas essas escolas são ligadas às redes municipais, mas sofrem influência direta dos assentados, que participam ocupando desde cargos de merendeiras a professoras. Quando a escola está localizada dentro do assentamento existe uma maior participação nas decisões e na busca de soluções para suprir as deficiências (falta de merenda, material escolar etc.).

Se a questão do ensino fundamental parece parte das preocupações e debates das políticas públicas para o meio rural, o ensino médio é mais problemático. A maioria dos adolescentes precisa enfrentar longas caminhadas ou pegar uma condução, já que os estabelecimentos se encontram bem distantes do seus locais de moradia. Mesmo assim, observamos entre os entrevistados dos três assentamentos que a tendência tem sido a de enfrentar as dificuldades e terminar o ensino fundamental. Alguns conseguem terminar o ensino médio ou alguma especialização técnica e uma minoria chega ao ensino superior. Esse último é ainda mais complexo por exigir um deslocamento grande e, muitas vezes, que os estudantes se estabeleçam em uma cidade maior. Portanto, a primeira observação a ser feita é que há uma forte demanda por escolarização nos assentamentos rurais pesquisados e que, tendo como base os dados da pesquisa do convênio MST/Unesp, pode ser vista como uma tendência geral.

Podemos perceber essa tendência a partir das entrevistas, nas quais uma das questões aprofundadas foi as relações entre pais e filhos, no que tange ao trabalho rural, a outras atividades econômicas, à escolarização e às perspectivas futuras. A participação dos filhos nas atividades agropecuárias apareceu em todos os assentamentos, a contribuição destes é vista pelos pais como essencial, dado o caráter familiar da produção. Mesmo onde a mão-de-obra temporária é mais utilizada (São José-RJ e na Gleba XV- SP), o trabalho dos membros da família é muito importante. Em São José (RJ) as mulheres trabalham mais em atividades remuneradas fora dos lotes ou em artesanato e os homens e os filhos se ocupam da produção interna ao lote. Já nos outros dois assentamentos a participação das mulheres é similar à dos homens em todas as tarefas economicamente reconhecidas como produtivas, com exceção da comercialização. As mulheres dos três assentamentos acumulam todas as atividades domésticas, recebendo auxílio dos filhos.[9]

Apesar de a organização do trabalho ser familiar, com forte dependência dos filhos, todos os entrevistados foram unânimes em afirmar que a escolarização é mais importante que o trabalho na roça. O incentivo para que os filhos ingressem e permaneçam na escola parte, portanto, em primeiro lugar, dos pais, mas os filhos demonstram forte determinação quanto à busca de um futuro que possibilite uma melhoria de vida. Isso porque percebem que, apesar do desejo de permanecer no lote, as limitações são muitas. Todos querem para os filhos um futuro menos duro e com mais chances. Entre as razões apontadas pelos pais, destaca-se a frustração em face das dificuldades após tanta luta para conquistar a terra, a forte insegurança quanto aos rendimentos, a dificuldade de capitalização, as crises da agricultura que os afetam de forma aguda e a incerteza quanto ao processo definitivo de regulamentação dos lotes.

No que tange às escolhas de profissões e atividades, encontramos uma enorme variedade nos assentamentos. Na Gleba XV (SP) alguns filhos se formaram no ensino médio e outros concluíram o ensino superior, e buscaram muitas vezes profissões como agrônomo, técnico em agricultura etc. Muitos filhos homens buscam atividades relacionadas ao lote, como tratorista, ser dono de um caminhão, ser responsável pela comercialização do produto do lote dos pais.[10] No entanto, devido ao passado de bóias-frias, o trabalho temporário sazonal tende a ser uma das saídas mais procuradas pelos filhos (principalmente homens). Após os 16 anos, muitos abandonam os estudos e decidem trabalhar fora do lote devido à vida precária e à dificuldade de sobrevivência das famílias.

As filhas mulheres tendem a buscar serviços fora do assentamento, e na maioria são trabalhos informais (manicure, faxina,...), mesmo assim continuam os estudos.[11] Embora algumas assentadas tenham ingressado na carreira de professora, esta não parece muito valorizada. Entrevistamos uma assentada que é professora, que afirmou não lecionar porque ganha mais plantando. Considera ainda que o ensino no campo deveria incorporar elementos da realidade em que vivem. Algumas iniciativas da Associação de mulheres têm sido no sentido de manter os filhos (principalmente as moças) nos lotes realizando serviços coletivos, como a criação de galinhas.

Em São José (RJ) muitos filhos saíram para procurar trabalho fora; os filhos homens ajudam os pais, mas também realizam atividades de carpintaria, pedreiro etc., assim como trabalham por empreitada para outros assentados. Alguns buscam formação na área de ciências da terra com o intuito de assumirem o lote mais tarde.[12] As filhas tendem a seguir as mães e trabalham muitas vezes em atividades fora do assentamento. Assim, buscam profissões que na maioria das vezes não têm relação com a terra.[13]

No Sol da Manhã muitas crianças ainda estão no ensino básico e ingressando no ginásio e segundo graus. No entanto, a preocupação de que os filhos concluam os estudos é recorrente. Todos os entrevistados afirmaram o esforço conjunto no sentido de garantir a escolarização dos filhos, o que tem representado um motivo de forte união e solidariedade interna ao assentamento.

Existe um desejo por parte dos pais de que os filhos assumam os lotes como herança. Observamos vários casos nos três assentamentos em que um dos filhos está sendo preparado para assumir o lote e já ajuda diretamente na administração da produção. A questão levantada é a falta de perspectiva para os lotes e a impossibilidade de que todos os filhos tenham acesso ao pedaço de terra que já foi conquistado, já que estes possuem tamanhos reduzidos.[14] Embora este problema não seja novo no que tange à reprodução da produção familiar, o fato de a regulamentação dos lotes ser ainda fruto de uma longo processo traz um complicador a mais para a questão da sucessão no interior da família assentada. Outro ponto muito ressaltado é a possibilidade de escolha da profissão. A maioria afirmou que deseja fazer o possível para que os filhos tenham como optar pelo seu futuro.

Assim, a relação entre pais e filhos aponta para situações de diálogo e ajuda mútua, onde a escolarização ao lado da manutenção do lote aparece como um objetivo central. No entanto, cabe destacar que a escolarização representa um elemento tensionador nas relações e projetos familiares, na medida em que os próprios pais têm posições ambíguas quanto ao que consideram melhor em termos de futuro para seus filhos. Assim, se por um lado admitem que é importante que alguém dê continuidade ao que já conseguiram construir e conquistar, por outro levantam problemas que dificulta a escolha dos filhos por este projeto. Apesar disso, a escolarização é tida como um capital acumulado que vale o investimento e que é percebido como uma das principais conquistas do processo de assentamento.

 

Algumas considerações finais

A partir dos dados trabalhados anteriormente, algumas conclusões podem ser apresentadas. Se a baixa freqüência dos alunos no ensino médio e cursos superiores é uma tendência nacional, ela tende a se agravar nas áreas rurais, o que também aparece nos dados sobre os acampamentos e assentamentos rurais. No entanto, a diferença entre a situação dos estudantes no meio urbano e rural é visível. A concentração nas séries de primeira a quarta é mais acentuada entre os estudantes rurais do que no meio urbano. A situação nos estados tende a acompanhar os dados nacionais, apesar de a taxa de estudantes residentes no meio rural ser bem abaixo da taxa nacional. Apesar disso, o estado do Rio de Janeiro apresenta uma sensível melhora no equilíbrio entre a concentração por séries no ensino fundamental, o que não ocorre na freqüência entre os ensinos fundamental, médio e superior, onde se verificou um decréscimo quanto à participação no ensino superior. No estado de São Paulo, os dados apontam para uma situação de maior equilíbrio, em que as taxas de freqüência escolar por série e entre os ensinos fundamental e médio são mais equânimes. No entanto, devemos relativizar estes dados à luz das altas taxas de analfabetismo, o que aponta ainda para uma situação precária de escolarização no meio rural.

Esses dados apontam um problema a ser enfrentado: a dificuldade de continuidade do processo de escolarização a partir da segunda etapa do ensino fundamental, ou seja, da quinta à oitava séries. Após a quarta série, a distância dos estabelecimentos de ensino de quinta à oitava e de ensino médio, verificada nos assentamentos, aliada à necessidade de complementação de renda, como apontado nos casos analisados, é forte elemento limitador da escolarização nos assentamentos rurais.

Observamos que o esforço dos pais para garantir a escolarização dos filhos tem representado uma maior continuidade na formação do ensino fundamental nos assentamentos. No entanto, talvez a situação econômica precária ainda seja uma das principais razões para a diminuição da freqüência nas escolas dos jovens entre 13 e 17 anos, como apontado na pesquisa MST/ Unesp. O trabalho familiar no lote é tido pelos pais como uma tarefa a ser conciliada com os estudos. Já o trabalho externo parece impor aos jovens a necessidade da escolha entre trabalho e estudos. Essa tendência parece mais forte no caso dos filhos homens que buscam trabalhos, muitas vezes no meio rural, que inviabilizam a continuidade de sua formação escolar.

A escolha da formação técnica e superior reflete a diversidade dos assentamentos. Entre os filhos homens encontramos a preocupação com formações voltadas para o campo. Quando conseguem manter a relação trabalho/estu-dos tendem (como observamos nos três estudos de caso) a voltar sua formação para especializações na área de ciências da terra – como a de técnico agrícola e de engenheiro agrônomo – apontando, assim, para um interesse em manter o lote no futuro. Em relação às jovens, a busca de formações pode representar contribuições para a localidade, como psicologia e enfermagem. Assim, o interesse no setor de serviços e em áreas de conhecimento, que não estariam ligados diretamente ao lote, mas que estariam intimamente vinculados à idéia de localidade, pode garantir uma maior autonomia dos assentamentos em relação aos núcleos urbanos. O curso Normal tem sido menos procurado, mas ainda é percebido como uma opção. Assim, os filhos tendem a pensar em continuidade dentro do lote, já as filhas buscam opções alternativas e/ou complementares ao lote.

Apesar dos esforços dos assentados e de instituições de apoio para garantir o ensino fundamental, a infra-estrutura ainda é precária. As escolas de ensino fundamental, que contemplam da primeira à quarta séries, muitas vezes são construídas pelos próprios assentados. No entanto, como afirmamos, nem todos os assentamentos têm escolas de quinta à oitava. O acesso ao ensino médio e ensino superior é ainda mais difícil. Apesar dos problemas, é marcante a busca por parte dos assentados em dar continuidade aos estudos dos filhos. Da mesma forma que os próprios jovens têm se esforçado para transpor os obstáculos e concluir seus estudos. Portanto, a precariedade é antes de tudo, infra-estrutural, demandando uma atuação de maior envergadura por parte do poder público. Quanto à necessidade de complementação de renda e que aparece de forma clara como um limitador da continuidade da formação, uma política de bolsa de estudos poderia contribuir para a permanência desses jovens nas instituições de ensino.

É importante destacarmos que os assentamentos são vistos pelos próprios assentados como realidades ainda muito precárias. No entanto, enquanto espaços sociais que conformam redes sociais, de solidariedade e apoio mútuo, criam condições para que se transcenda os problemas físicos/geográficos/ econômicos, permitindo que os jovens tenham uma formação muito superior à que os pais tiveram. Observamos, ainda, segundo os dados MST/Unesp, que os jovens e adultos que haviam interrompido os estudos, com o auxílio de instituições de apoio, têm retomado a sua formação através de supletivos.

Nesse sentido, as escolhas diferenciadas dos jovens quanto à sua futura inserção, assim como o investimento na escolarização, podem vir a representar um redesenho da atual estrutura dos assentamentos, permitindo a expansão de alguns serviços que, atualmente, são demandas locais somente atendidas nas cidades próximas. Essa perspectiva poderia conjugar interesses, que hoje tendem a ser excludentes, na medida em que, ao se interessar por outra área de atuação que não seja diretamente relacionada à produção rural, o jovem muitas vezes se auto-exclui do assentamento, buscando inserções no meio urbano. Os únicos serviços que hoje aparecem como demandas incorporadas às políticas voltadas para os assentamentos, apesar de precários, são a saúde e a educação. Assim, ao se tornar professor(a) ou agente do setor de saúde, o assentado pode ter, de acordo com a realidade local, uma relação de continuidade entre o seu trabalho e o assentamento. No entanto, a pluriatividade tem se mostrado, cada vez mais, como uma forte característica dos assentamentos rurais. Embora em muitos casos sua visibilidade seja difícil, complementar renda com serviços externos ao lote e até ao próprio assentamento aparece tanto em assentamentos próximos a grandes núcleos urbanos, como nos localizados em regiões mais afastadas.

Um ensino de qualidade que inclua como prioritário não só o ensino fundamental, mas também o ensino médio, atendendo a crianças, jovens e adultos, criando facilidades para o acesso ao ensino técnico e superior, é de fundamental importância nesse processo de potencialização dos assentamentos. Estes são espaços ricos para uma transformação da realidade do ensino no meio rural, na medida em que os próprios assentados e movimentos envolvidos com a questão se esforçam no sentido de melhorar a escolarização e o acesso à escola. As experiências que estão trazendo bons resultados, como os casos analisados na pesquisa MST/Unesp e nos assentamentos aqui descritos, devem ser acompanhadas mais de perto no sentido de poderem servir como base para iniciativas do próprio poder público. Uma formação de melhor qualidade e continuidade pode reverter para a própria localidade, resultando em uma massa crítica, seja técnica ou de formação superior, capaz de garantir as bases para um processo de desenvolvimento com maior sustentabilidade e possibilidades reais de escolha.

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Notas

[1] Para um maior aprofundamento sobre as estratégias de sobrevivência e de formação de renda familiar nos assentamentos, ver Castro, Romero e Garcia in Guanziroli, 1994.

[2] A primeira pesquisa - A Origem dos Assentados: um problema ou uma questão?- foi realizada em 1994/1995, a partir de um convênio entre Idaco, NUER/IFCS/UFRJ, AMAR (Association Mayenne-RJ) e o Institut Belleville en France, coordenada por Giuliani (1995); ver ainda Castro (1995). A segunda pesquisa Agricultura familiar nos assentamentos rurais: as relações entre as mulheres e os homens - o caso do Pontal de Paranapanema foi realizada em novembro de 1996, para a FAO, sob a coordenação de Hildete Pereira (UFF). A equipe foi composta ainda por Paola Cappellin (IFCS/UFRJ) e Elisa Guaraná de Castro (IEC).

[3] Desde 1981 a abrangência geográfica da PNAD foi ampliada, passando a excluir somente a área rural da antiga Região Norte, que compreendia as seguintes Unidades da Federação: RO, AC, AM, RO, PA e Amapá, abrangendo, assim, as regiões rurais e urbanas de todo o país.

[4] A escolarização pode ser percebida a partir de diversos indicadores, optamos pelo indicador “freqüência escolar”, que é definido pela PNAD, como população regularmente matriculada nos estabelecimentos escolares. Este indicador permite percebermos o número total da população acima de cinco anos que estava freqüentando estabelecimentos escolares nos períodos levantados, tanto na PNAD quanto na pesquisa do MST/Unesp, assim como a mobilidade por série e nível escolar.

[5] A LDB, recém-aprovada, redefiniu as nomenclaturas para os diferentes níveis escolares: segundo o art. 21 a educação escolar compõe-se de : I - educação básica , formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II- educação superior. No entanto, em algumas situações, como as tabelas e em algumas análises de tabelas, manteremos as nomenclaturas anteriores à LDB, por serem as usadas pela PNAD e pela pesquisa MST/Unesp. Assim, ensino fundamental aparecerá como primeiro grau, ensino médio como segundo grau.

[6] A pesquisa trabalha com as seguintes faixas etárias: criança (0-6 e 7-12 anos), jovens (13-17), adultos (18 em diante).

[7] A pesquisa foi realizada em 14 estados. Da região Sudeste foram pesquisados: MG, ES e SP.

[8] Nessa fase, os assentados que estavam acampados na beira da estrada já passaram por um processo de seleção. A área “emergencial” era destinada a alojar temporariamente os que esperavam por um lote. A área era dividida em lotes de 1,5 alq e deveria ser utilizada pelas famílias na primeira plantação.

[9] Para um aprofundamento da participação da mulher nesses assentamentos rurais, ver Cappellini e Castro (1998).

[10] Observamos famílias em que o homem cuida do gado, a mulher produz o queijo e o filho comercializa em cidades próximas e outros estados. O que resulta em uma grande expansão da produção.

[11] Entrevistamos a filha de um dos assentados que quer ser psicóloga.

[12] Como observamos em um caso em que o filho mais velho de um assentado ajuda no lote e pediu ao pai para sair e se formar em técnico agrícola. O pai separou um pedaço do lote para que ele “experimentasse” as técnicas que está aprendendo na escola.

[13] Uma das filhas de um assentado, à época da realização da pesquisa, era técnica na biblioteca da escola de ensino médio da cidade mais próxima e estava se preparando para prestar o vestibular.

[14] No Sol da Manhã, os lotes variam de 2 a 8 ha (alguns em área de morro chegam a 14 ha); no São José, a média é de 4 a 19 ha (algumas áreas de morro são maiores); e na Gleba XV, os lotes variam de 14 a 40 ha. Esses últimos eram previamente definidos para a criação de gado.