Estudos Sociedade e Agricultura

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Isabel Cristina Martins Guillen

A luta pela terra nos sertões de Mato Grosso


Estudos Sociedade e Agricultura 12, abril 1999: 148-168.

Resumo: O artigo estuda a luta pela terra no sul de Mato Grosso contra o domínio da Companhia Matte Larangeira, que detinha o controle sobre as terras ervateiras através de contratos de arrendamento com o governo estadual. Tal movimento social imprimiu feições próprias à história da região. Discutimos a trama miúda da vida política da fronteira e de alguns posseiros que lutaram judicialmente contra a Companhia, visando desfazer a classificação desses movimentos como atos de banditismo social.

Palavras-chave: Sertões; posseiros; Erva Mate; História Regional.

Abstract: The Struggle for Land in the “Sertões” of Mato Grosso. The article analyses the struggle for land in the south of Mato Grosso state (Brazil) against the domination of the Matte Larangeira Company which controlled the land and the ervais, based on rent contracts with the state government. This struggle was the origin of a social movement that was responsible for the specific profile of the region’s history. The paper also discusses particular features of political life on the frontier and the case of squatters who used the law as a tool in their struggle against the Company, demonstrating the errors of the historical conception which characterised these movements as social banditry.

Key words: “Sertões”; Squatters; "Erva Mate"; Regional History

Isabel Cristina Martins Guillen é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco.


Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar (Guimarães Rosa).

Sertão foi uma categoria usada recorrentemente para designar as terras do interior do Brasil, partindo-se do pressuposto de que se tratava de paragens ignotas e desocupadas. Desintegradas do restante do país, eram tidas como terras que ainda precisavam ser colonizadas. Enquanto categoria homogeneizadora, sertão esconde uma multiplicidade de formas de ocupação, que vão desde as fazendas de criação de gado pelo sertão nordestino, passando pelas regiões de garimpo em Mato Grosso até o extrativismo de drogas do sertão pelo interior da Amazônia.

Num certo sentido, o imaginário do sertão, quando privilegia a idéia de vazio, sinaliza para uma ausência de autonomia, de história, posto que direciona o pensamento para uma marginalidade ao processo histórico dominante nas cidades às quais os sertões estariam subordinados (Amado, 1995; Velloso, 1988). Alheios à política dominante, os sertanejos foram qualificados pejorativamente como violentos, preguiçosos, indolentes, incapazes de se constituírem em sujeitos de sua própria história. Visão esta que não se circunscreve apenas a uma ultrapassada concepção positivista de história, haja vista a pequena produção historiográfica contemporânea dedicada ao estudo da luta pela terra, das formas de vida do trabalhador rural e de sua cultura. Sua inserção, tradicionalmente, dava-se nos estudos de banditismo ou fanatismo religioso. No entanto, Martins (1983: 9, 18) apontou para a “história de um campesinato brasileiro progressivamente insubmisso – primeiramente contra a dominação pessoal de fazendeiros e coronéis; depois contra a expropriação territorial efetuada por grandes proprietários, grileiros e empresários (...).” O trabalho de Martins foi deveras importante no sentido de desconstruir o que ele próprio chamou de “vazio de representação propriamente política dos camponeses”, representação essa que sinalizava para a exclusão política do camponês da história (e historiografia) contemporânea do Brasil.

 O presente artigo objetiva discutir a dimensão política da luta pela terra no sul de Mato Grosso no início do século, quando se desenvolveu uma campanha pela fragmentação da região sul do Estado em pequenas propriedades. Buscamos fazê-lo partindo da premissa posta por E. P. Thompson, em Senhores e Caçadores, de que não podemos ficar presos a categorias desclassificadoras, como bandido, e também, num certo sentido, camponês, e passarmos a enfocar a ação desses sujeitos com um olhar menos condescendente.[1]

O movimento que buscava legalizar a pequena propriedade da terra no sul de Mato Grosso é aqui, portanto, entendido como de índole social, de forte cunho político, e que está na raiz de movimentos posteriores, como o que cria a Colônia Agrícola Federal de Dourados, em 1946. Nesse sentido, a reconstituição quase que factual da trama miúda da luta política de uma pequena cidade da fronteira com o Paraguai permitiu que fizéssemos uma mudança no foco histórico, deslocando a atenção do macro, ou seja, o sertão de uma forma genérica, para o micro, isto é, as ações individuais daqueles que lutaram pela fragmentação da propriedade e, com isso, não mais subsumi-las a categorias desclassificadoras, como banditismo ou mesmo a tão questionada história regional. Nesse movimento, foi importante termos presente que, no campo da micro-história, era preciso ficarmos atentos à “natureza socialmente diferenciada dos significados simbólicos.” (Levi, 1992: 149).

 

A ocupação do sertão: a migração gaúcha e a formação da Companhia Matte Larangeira

Contrastando com a imagem propagada de vazio populacional, as terras na região sul de Mato Grosso, ao finalizar o século XIX, não se encontravam livres ou desocupadas. Região rica em extensos ervais nativos, foi objeto de uma série de contratos de arrendamento entre o governo estadual e a Companhia Matte Larangeira,[2] colocando sob domínio particular as terras ao sul do planalto de Amambai, uma área de cerca de dois milhões de hectares, constituída não só de matas, mas também de extensos campos propícios à criação de gado, em um momento em que, a partir da década de 90 do século XIX, uma forte corrente migratória gaúcha para lá se dirigia. E o fazia em busca de terras livres. (Barbosa, 1963; Sodré, 1941; Whitaker, 1948; Abreu, 1976).

Ao deter o controle sobre as terras ervateiras através dos contratos de arrendamento assinados com o governo de Mato Grosso, a Matte Larangeira procurou implantar uma política de “espaços vazios”, ou seja, impedir de qualquer forma que houvesse a ocupação das terras sob seu domínio por pequenos proprietários ou posseiros. Tal política possibilitava não só uma melhor organização da produção da erva-mate, mas também visava impedir que os trabalhadores dos ervais se tornassem produtores independentes.[3] Contratualmente, tinha a Companhia a prerrogativa de determinar as formas de ocupação da região, sendo-lhe facultado o direito de expulsar quem se estabelecesse na zona dos ervais sem sua autorização. A manutenção de uma política de “espaços vazios” tornou-se uma estratégia vital para a Companhia, facilitando o controle e a vigilância sobre os ervais e as formas de trabalho, baseadas na escravidão por dívida. Como dispositivo disciplinar, possuía a Companhia uma polícia própria, os comitiveiros, que se encarregavam de expulsar quem se instalasse em seus domínios, bem como recapturavam trabalhadores fugidos dos ervais. Nessas tarefas, a Companhia contava também com o auxílio de autoridades locais e de coronéis, que dispunham de bandos armados ou de facilidade para arregimentá-los. É relevante salientar que, no imaginário social do sertão, a Companhia Matte Larangeira atuava como um importante componente progressista e modernizador, na medida em que implantava na região da fronteira as condições almejadas para o desenvolvimento que o Estado merecia alcançar, segundo as aspirações dos segmentos sociais dominantes. A Companhia construíra duas pequenas cidades, Campanário e Guaíra, com todos os confortos da vida moderna; abrira nas matas uma série de estradas, fizera pontes, propiciara o incremento da navegação fluvial, modernizara, enfim, o sertão de Mato Grosso.

A corrente migratória oriunda do Rio Grande do Sul, impulsionada para Mato Grosso não só pela concentração das terras nos pampas, mas também pelo imaginário do sertão, com sua fartura de terras férteis, representava uma fissura no poder disciplinar da Companhia. Renitentes quanto ao objetivo de conseguir terras na região, os gaúchos instalavam-se nos domínios mais recônditos da Companhia e os confrontos com a Matte Larangeira remontam ao início do século. Nas lutas políticas envolvendo o mando dos coronéis, a presença dos gaúchos foi uma constante, pregando a divisão do Estado de Mato Grosso como solução para o desenvolvimento da região sul e conseqüente libertação política dos coronéis de Cuiabá.[4] Isso implicava, na prática, redefinir os contratos de arrendamento dos ervais. Importa destacarmos que a corrente migratória gaúcha constituía um ponto de forte tensão na política da Companhia, pois os gaúchos desejavam, acima de tudo, a propriedade da terra. Dessa forma, a política de manutenção dos “espaços vazios” levada a efeito pela Companhia começava a ser confrontada na prática pelos migrantes que se estabeleciam na área do arrendamento.

Mas não só os gaúchos afrontaram a Matte Larangeira. Nas fímbrias do poder da Companhia situava-se uma multidão dispersa de posseiros e elaboradores clandestinos de erva-mate (changa-y)[5] que cotidianamente enfrentavam o monopólio legal das terras ervateiras. Essas pequenas lutas marcaram a história da região, ora travestidas na formação de grupos de bandidos que se dedicavam ao contrabando de mate elaborado clandestinamente em território da companhia, ora assumindo aspectos mais legais, em que antigos posseiros tentavam obter o reconhecimento legal das posses.

Por outro lado, é importante lembrar que não se tratava, para a história de Mato Grosso, de um fenômeno isolado. Ao contrário, a luta pela terra vinha pontuando as políticas públicas estaduais que visavam incrementar o desenvolvimento econômico do Estado através de grandes propriedades capitalistas. Ao mesmo tempo em que se admitia a necessidade de adensar a população através de uma política de colonização da terra, na prática faziam-se valer os direitos dos grandes proprietários. Como exemplo, para além do caso que discutiremos a seguir, vale lembrar o processo de expulsão de posseiros que ocupavam terras marginais ao traçado da estrada de ferro Noroeste do Brasil, em favor da formação de imensas fazendas de criação de gado (Corrêa Filho, 1923).

Analisaremos a seguir alguns casos pontuais, sobre os quais dispomos de uma documentação básica, o que é bastante raro em se tratando de questões legais envolvendo a propriedade da terra. No entanto, sinalizam para um problema cuja amplitude, em termos histórico-sociais, ainda está para ser avaliada.

Resistências ao domínio da Companhia Matte Larangeira:
a história de Nazario de León

O conflito entre a Matte Larangeira e os posseiros que pretendiam a terra já se encontrava instaurado no início do século, e movimentava a opinião pública estadual sobre a possibilidade de anulação dos arrendamentos e conseqüente fragmentação dos ervais em pequenos lotes, como muitos opositores ao poder da Companhia apregoavam. A disputa pela terra na região sul teve como conseqüências políticas uma série de escaramuças e levantes armados que marcaram toda a história de Mato Grosso, chegando-se em muitos momentos a se propor a divisão do Estado.[6]

A discussão em torno do arrendamento dos ervais perpassava a vida política da região, culminando com o que ficou conhecido como Questão Matte,[7] e as tensões daí advindas tiveram um desfecho durante o governo de Caetano de Albuquerque (1915-1917). Uma resolução, que buscava apaziguar os ânimos, estabeleceu que o arrendamento dos ervais se daria mediante concorrência pública, e a área arrendada não ultrapassaria 400 léguas (1.400.000 ha). O restante seria, então, vendido, assegurando-se o direito de compra a quem pudesse comprovar moradia habitual e cultura efetiva, anteriores a 1914, dentro da área arrendada, desde que fossem terras pastais e lavradias ou que tivessem apenas pequenos ervais.

Assegurava, por outro lado, o direito de compra de dois lotes de 3.600 ha cada um, fora da área de arrendamento, a quem pudesse pagá-los nos termos da legislação vigente.[8] Cumpre observar que as terras ervateiras eram as mais caras do Estado, excluindo-se, desse modo, grande número de posseiros que não possuíam pecúlio suficiente para comprar terras, e que continuariam na ilegalidade, elaborando erva-mate clandestinamente. Em nenhum momento discutiu-se a possibilidade de o Estado subsidiar uma colonização da região através da venda facilitada de terras.

Um novo contrato com a Companhia, respeitando os termos da lei, foi assinado em 1916. Nesse contrato estabeleceu-se o prazo de dois anos para serem feitas as justificações de posse anteriores a 1914, devendo-se, findo esse prazo, mandar o governo proceder à mediação das terras que compreendessem os grandes e pequenos ervais disputados pela empresa e pelos posseiros. Contudo, até 1919, a área arrendada não tinha sido demarcada.

Traçar a história da luta pela terra nessa região tornou-se uma tarefa difícil, principalmente devido à falta de documentação mínima que nos permitisse delinear os meandros por onde a contenda circulava, desde o campo pessoal às causas jurídicas. Optamos, assim, por mostrar ao leitor um caso particular, onde conseguimos matizar alguns desses meandros, na medida em que vestígios desse caso permaneceram na documentação já indiciária da história de Mato Grosso.

Trata-se da história de Nazario de León, paraguaio, que em 1918 justificou legalmente uma posse de terras pastais e lavradias, e requereu a compra de uma área de 1.800 ha. Seu pedido foi deferido em 1923, ou seja, dentro dos parâmetros legais estabelecidos pelo contrato de arrendamento das terras ervateiras de 1916, que garantia a antigos posseiros o direito de compra de até dois lotes de 3.600 ha, e cancelado em 1924, alegando-se que ele não teria providenciado a extração do título provisório dentro do prazo estabelecido.[9] Quando teve um novo pedido de compra atendido, a Matte protestou entrando com uma ação de manutenção de posse contra Nazario, em 1926, alegando que o lote fazia parte do contrato de arrendamento.[10] Nas alegações da Companhia, Nazario teria abusado de um contrato de habilitação[11] e requerido a compra das terras, argumento que visava a desautorizá-lo em sua afirmativa de posse antiga.[12] O que podemos depreender da documentação, no entanto, é que Nazario desenvolvia em seu lote a elaboração de erva-mate fora do controle da Companhia, bem como prometia fracionar seu lote para outros pequenos produtores.

A política fundiária levada a efeito pela Companhia, e aplicada ao caso de Nazario, visava impedir o estabelecimento de pequenos ervateiros na região e a manutenção de seu monopólio na extração da erva-mate nativa. Apesar de ter afirmado que se tratava de terras lavradias e de pastagem, a área requerida por Nazario de León continha ervais, ainda que pequenos e não economicamente lucrativos para a Companhia, e foi sua extração que provocou a ação da Matte Larangeira. Ao que tudo indica, era bastante comum as pessoas alegarem que as terras não continham ervais, quando iam requerê-las para compra ao Estado, mesmo porque as terras ervateiras eram muito mais caras. Segundo o jornal de Ponta Porã, O Progresso, “constitui uma das mais rendosas empresas, a compra e venda de terras contendo ervais, e essa indústria tem tomado tal incremento que as pessoas que dela se ocupam (...) não vacila(m) em afirmar, para obterem por menor preço, que as terras requeridas por elas são lavradias ou pastais!”[13]

Para impedir o estabelecimento de pequenos ervateiros, a Companhia utilizava diversas estratégias, agindo como se fosse a autoridade pública, de tal modo que as pessoas preferiam pedir sua autorização para requerer terras.[14] Aqueles que se instalavam na região, sem sua autorização, eram expulsos, alegando-se que os posseiros destruíam os ervais com podas indiscriminadas.[15]

A erva preparada clandestinamente nos pequenos ervais, desprezados pela Companhia devido à baixa produtividade, era contrabandeada pela fronteira com o Paraguai. O contrabando era uma prática reconhecida pelo próprio governo estadual que, em vários momentos, tentou tomar medidas visando coibi-lo. Evidencia-se, dessa forma, que a elaboração clandestina da erva-mate constituía-se numa das únicas formas de trabalho rentável que a região oferecia. Poucas opções tinha um trabalhador na região: ou se engajava num dos ervais da Matte, sujeitando-se às condições que resultavam na sua escravização ao barracão da empresa por dívidas impagáveis, ou se tornava um changa-y, e entrava na teia do contrabando de erva-mate.[16]

A Companhia Matte Larangeira não fazia distinção entre um changa-y e um pequeno proprietário, mesmo que este último tivesse um título provisório, e tratava de expulsar todos. Ao propor a ação de manutenção de posse contra Nazario de León, a Companhia requereu uma vistoria nas terras, na qual o promotor “verificou a existência de um depósito de erva elaborada pelo referido réu em terras do Estado”, conforme noticiou o jornal O Progresso, em agosto de 1926. Requereu-se o seqüestro da erva elaborada mas, “chegados que foram os oficiais ao local, verificaram que parte dos bens já haviam sido desviados, isto é, cinco carretas haviam sido carregadas e estavam de marcha para o Paraguai.” O promotor pediu o seqüestro da erva preparada clandestinamente e os oficiais de justiça foram ao encalço das carretas e as apreenderam. Uma medida que, justa ou não, visava enfraquecer os posseiros que brigavam com a Companhia pela posse da terra. Nazario de León não continuou nessa briga, vendeu seus direitos ao lote a um terceiro, e não mais ficamos sabendo dele.

O caso relatado demonstra a resistência de um changador em reconhecer que a Companhia tivesse exclusividade na elaboração de erva-mate, e ao que tudo indica, alguns changadores eram bastante conhecidos na região, demonstrando uma prática social em que se questionava o arrendamento das terras a uma única Companhia.

 Não é possível determinar o volume da erva contrabandeada, mas é de se supor que não tenha sido pequeno. Em 1915, o governador Costa Marques avaliou em mais de 140.000 arrobas castelhanas, ou seja, 1.400.000 kg.[17] Dessa atividade deduz-se que havia na região toda uma rede de clandestinidade que se opunha ao monopólio da extração da erva-mate pela Companhia Matte Larangeira, rede essa que pode ser entendida, enfatizamos, como uma forma de resistência ao seu domínio. O caso de Nazario de León parece, portanto, não ter sido nada excepcional.[18]

No início da década de 20, as evidências documentais demonstram que a Companhia enfrentava dificuldades em controlar o estabelecimento de agricultores e criadores de gado, e durante toda a década de 30 os conflitos pela terra dão a tônica da vida social na região. Para a Companhia, importava dificultar ao máximo o reconhecimento dos direitos de compra de antigos posseiros, objetivando expulsá-los das terras, e as práticas de resistências foram tratadas como atos de banditismo.

Ao discutir o banditismo, que na região atingira proporções consideradas endêmicas devido à ação da Matte Larangeira, Bertholdo Klinger, que fora comandante da circunscrição militar de Mato Grosso, em suas memórias afirma:

Não só dos rigores que, segundo a voz pública, a poderosa empresa exercia para com seus trabalhadores, mantidos afinal de contas, apesar de disfarces, em escravidão econômica sem escapatória, mas também da sua férrea vontade de posse exclusiva dos mínimos tratos de terra, confinantes ao seu latifúndio, de qualquer forma preciosos para sua exploração, resultava grande massa de descontentes, humanamente revoltados contra a desumanidade. E que por todos os meios a empresa inquietava, enleava e acabava expulsando os pequenos proprietários encravados em seu domínio, ou próximos, ou que tentassem ali estabelecer-se, ou ainda recusassem ceder-lhe o torrão pelo preço que ela ditasse. A legalização dessas pequenas posses, ainda que antigas, consolidadas, públicas e notórias, a cargo da repartição do Estado, era tão cheia de exigências, tão tarda, que mais parecia burla, não sendo de estranhar a suspeita de serem os respectivos funcionários assalariados pela Companhia (Klinger, 1951: 119).[19]

Ao governo estadual, no entanto, foi politicamente estratégico proclamar o fim do monopólio sobre as terras ervateiras e anunciar o início de uma nova era: “Proprietário de sua glebazinha, o ervateiro transfigurou-se. Já não será o mesmo devastador de outrora, que, para colher uma centena de quilos de folhas com os seus pecíolos, cerceava criminosamente a árvore, que lhe estendera a fronte protetora. Hoje, cuida carinhosamente do erval, que lhe pertence, esforçando-se até por ampliá-lo, mediante o plantio.” (Corrêa Filho, 1924: 92).

Na prática, a Companhia costumava armar bandos que moviam acirrada perseguição e praticavam violências contra os que se postavam politicamente contra a Matte Larangeira. Tal era o estado de agitação em Ponta Porã que, em fevereiro de 1919, um abaixo-assinado pedia a criação de uma guarda municipal para patrulhar a vila e os campos.[20] Quanto aos posseiros, que tinham requerido a compra de terras ao Estado, sofriam pressões para abandoná-las ou enfrentavam a morosidade da repartição de terras, como nos informa o jornal O Matto Grosso:

Os requerimentos e justificações de posse dos particulares a que a empresa trazia sempre que invariavelmente os seus protestos vieram mostrar desde logo que não era de fácil solução o assunto, que ia exigir do governo o maior escrúpulo e perfeito conhecimento de causa para resolver caso tão intrincado. Os dois anos prescritos pela lei já se passaram; os requerimentos dos pequenos posseiros existem hoje em uma verdadeira ruína na repartição de terras sem ter tido até agora solução alguma. (O Matto Grosso, Cuiabá, 9/3/1919).

O movimento dos posseiros para legalizar suas glebas pode ser conferido no quadro abaixo, elaborado por Virgílio Corrêa Filho, então diretor da Repartição de Terras em Cuiabá, para onde eram encaminhados os pedidos dos posseiros (Corrêa Filho, 1924: 92).

 

Quadro 1. Expedição de títulos provisórios. Município de Ponta Porã.

Ano

Títulos

Área (em hectares)

1919

    19

         65.300

1920

    78

       173.050

1921

    27

         64.900

1922

      8

           4.300

1924

  129

       200.962

1925

    93

       102.109

 

Desses títulos provisórios, a área total, ao longo dos seis anos, foi de 610.621 hectares, enquanto a Matte Larangeira arrendava 1.815.905 ha e era proprietária de mais de 300.000 ha. O problema do acesso às terras na região dos ervais continuava, bem como os freqüentes litígios com a Companhia, que contestava os pedidos de compra de glebas, alegando sempre que o lote pretendido estava dentro dos limites do arrendamento. Nesse contexto, a história de Nazario de León não foi um caso único e raro, mas, ao contrário, está inserida numa acirrada luta pela terra que determinava as feições da vida social na região dos ervais sul-mato-grossenses, bem como configurava os tons da discussão política local e estadual.[21]

É nesse contexto de acirrada luta pela terra que se insere a história de João Ortt, também reveladora de que pelo interior do país nem tudo era modorra e preguiça. Contrariando as concepções dominantes, que consideravam os sertanejos submetidos à lógica do movimento de expansão das fronteiras, esses homens dispunham de uma certa margem de liberdade e de escolha, que é necessário levarmos em conta ao escrevermos a história dos sertões.

 

A luta armada: a história de João Ortt

Para os anos 30, dispomos de alguns indícios que nos levam a pensar que os ânimos não tinham serenado, nem a disputa pelas terras do arrendamento era coisa do passado. Mato Grosso foi alvo de interesse nacional quando da passagem da Coluna Prestes, e as relações de trabalho dominantes nos ervais passaram a ser conhecidas nacionalmente a partir de algumas publicações dos tenentes, que relataram os horrores que a Companhia infligia a seus trabalhadores. (Cabanas, 1927; Talma, 1926). Perceptíveis já na década de 20, as mudanças causadas pela Estrada de Ferro Noroeste do Brasil contribuíram para modificar o panorama econômico e populacional da região sul, facilitando seu abastecimento, bem como o escoamento das mercadorias produzidas no Estado.[22] Ao longo do traçado da ferrovia, surgiram grandes propriedades e também cidades, como Campo Grande, que de simples povoado passou a ser o pólo econômico da região sul.

Aliado às modificações econômicas, podemos apontar o recrudescimento dos movimentos que visavam separar o sul do resto do Estado, principalmente após a derrota da região na Revolução Constitucionalista de 1932. O domínio político da Companhia continuava a ser contestado, bem como o quase monopólio que exercia sobre as terras. É nesse contexto que se enquadram tanto a história de João Ortt, que organizou um ataque armado às instalações da Companhia, quanto a da “Liga dos Combatentes”. Estas histórias também só se tornaram conhecidas por vias indiretas e de um modo bastante fragmentário, o suficiente, contudo, para levantar pistas de que a luta pela propriedade da terra continuava a dominar o cenário político da região.[23]

Ao final de 1931, articulava-se em Ponta Porã um movimento político que visava provocar uma revisão nos contratos de arrendamento assinados com o governo do Estado, movimento que se concentrava em torno da “Liga dos Combatentes”. Trataram de fazer chegar aos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo suas pretensões, bem como a situação da região: “dois terços de Ponta Porã estão arrendados à Empresa Matte Larangeira, num total de mais de 700 léguas, sendo que, no terço restante essa Companhia é proprietária de 57 léguas. Assim, resta para o povo, isto é, para toda a população de um município, uma área insignificante, onde vivem 43.000 almas.” Seus objetivos eram claros: “a instituição da pequena propriedade porquanto pleiteiam o loteamento da área.” A interventoria estadual foi duramente criticada, por não tomar providências quanto ao arrendamento das terras ervateiras. Por esse motivo, “o desassossego do povo começa a traduzir-se em movimentos de opinião ao longo da fronteira. Ali os ânimos estão exaltados. Há um grande trabalho de arregimentação em prol da questão das terras.”[24]

Essas declarações foram prestadas por Moura Carneiro, reconhecido advogado que atuava em favor daqueles que tinham requerido terras sob domínio da Companhia, que, por sua vez, defendeu-se afirmando que sua presença na região só trazia o progresso e a modernidade. Para a Matte Larangeira, “essa apregoada existência de hostilidades semi-seculares entre a Companhia e o povo, não passa de fantasia perversa. O que houve na região, em fases agitadas da vida do Estado, foram lutas e competições políticas, em que todas as vezes se procurou envolver a Companhia e às quais ela sempre se esquivou a bem de seus interesses.”[25]

Para a Companhia, os membros da “Liga” seriam meros agitadores, “desvairados pela ambição” e sem competência para falar em nome dos interesses do Estado. Nesse sentido, os panfletos distribuídos pela “Liga dos Combatentes” foram considerados injuriosos por utilizarem uma linguagem que demonstrava “propósitos subversivos”, visando provocar “movimentos coletivos que forcem os poderes públicos a intervir a bem da ordem.”[26]

A existência da “Liga dos Combatentes” estava conseguindo cumprir seus objetivos, divulgando na imprensa a situação do município de Ponta Porã sob o domínio da Matte Larangeira, a ponto de incomodá-la e fazer com que respondesse aos ataques que sofria. Nacionalmente, a Companhia tinha já sua imagem associada à escravidão por dívidas e aos maus-tratos que infligia aos coletores de mate. No romance Parque Industrial, de Patrícia Galvão, publicado em 1932, um personagem afirma que as autoridades, ao incentivarem a migração para o campo, queriam ver os trabalhadores morrerem de chicotadas “na mate-laranjeira” (Galvão, s.d.: 26). Em Ponta Porã, boicotavam-se os jornais que publicavam reportagens favoráveis à Companhia, e até foi organizado um ato cívico no túmulo de Batista Azevedo para lembrar os mártires que morreram em prol dos posseiros.[27]

Foi nesse contexto que, em março de 1932, João Ortt reuniu um bando armado e atacou alguns ranchos da Companhia onde se elaborava a erva-mate. As notícias são muito esparsas e fragmentárias, e a ausência documental dificulta um pleno entendimento dos acontecimentos que se seguiram.

Segundo o relato de Puigari (1933), Ortt estaria em litígio com a Companhia devido a uma antiga disputa por terras, mas nas esparsas notas publicadas nos jornais de São Paulo, aparece como o chefe de um grupo de bandidos. A imagem de banditismo se consolida com um segundo ataque do grupo de Ortt poucos meses depois, e que contou com a participação de um conhecido bandido da região da fronteira paraguaia, Sindulfo Garcia. Este segundo bando de Ortt entrou em confronto com o Exército, que moveu acirrada perseguição aos considerados bandidos, adentrando o destacamento de Ponta Porã no Paraguai para prender alguns membros do grupo, dentre eles o próprio Sindulfo Garcia (Klinger, 1951). De Ortt, contudo, não mais se teve notícias.

Não fosse pelos telegramas de Bertholdo Klinger para o quartel de Ponta Porã, jamais saberíamos que alguns membros da “Liga” foram incriminados como fornecedores de armas ao bando de João Ortt e outros, por estarem articulados com Moura Carneiro no levante do 18º B. C. de Campo Grande (sublevação militar que, concomitantemente aos ataques de Ortt, acontecia naquela cidade, organizada por “alguns sargentos”).[28] Klinger, quando se dedica a explicar a sublevação em Campo Grande, pouco esclarece, principalmente quanto à participação de Moura Carneiro, preso e acusado de ser o mentor dos sargentos que se rebelaram. Ainda segundo Klinger, encontrava-se em poder de Moura Carneiro correspondência comprometedora com Orlando Carmo, também preso em Ponta Porã, bem como Alexandrino Marques, ambos membros da “Liga dos Combatentes” e acusados de fornecer munição ao grupo de Ortt. Klinger, em sua autobiografia, nada esclarece sobre as pretensões do levante, nem de que forma Moura Carneiro estava implicado (Klinger, 1951). Fica a interrogação sobre o modo como os acontecimentos se relacionaram. No entanto, as pistas documentais sinalizam para se pensar no ataque de Ortt e na sublevação militar em Campo Grande como uma tentativa de atrair a atenção das autoridades para a questão do arrendamento dos ervais.

A Companhia aproveitou-se da situação para se ver livre daqueles que em Ponta Porã faziam sistemática oposição à sua presença na região. Com essas prisões, a Matte Larangeira conseguiu acabar com a campanha movida na imprensa contra o arrendamento dos ervais. Somente em 1938, já beneficiado com a anistia, Moura Carneiro voltou a atacar o arrendamento nos jornais do Rio de Janeiro, momento em que este estava para ser reafirmado com o governo estadual. As reportagens de Moura Carneiro, em 1938, publicadas no jornal O Radical, do Rio de Janeiro, com certeza contribuíram para que o arrendamento fosse discutido pelo Conselho de Segurança Nacional, o que determinou o fim dos contratos.[29]

Entretanto, da história de João Ortt conservou-se uma interpretação bastante despolitizada, predominando a versão que o tratava como mais um bandido que assolava a fronteira, desaparecendo do cenário a “Liga dos Combatentes”. As ações de Ortt foram descritas como sendo de cunho meramente pessoal, envolvendo uma rixa entre a sua família e a Matte Larangeira pela posse de uma área de terra (Puiggari, 1933; Klinger, 1951). Sobressai o caráter pessoal do ataque, como se fosse um ajuste de contas entre a Companhia e João Ortt. As conexões entre os vários eventos que delineamos acima foram preteridas numa versão que privilegiou o aspecto pessoal. Assim, o que para nós, com os poucos indícios que colhemos, aponta para um movimento contra os arrendamentos da Companhia, ficou registrado como banditismo. Entendimento assumido também por uma historiografia mais recente, a exemplo de Corrêa (1982) e Arruda (1989).[30]

No emaranhado tecido pelo imaginário do sertão, uma outra trama se sobrepõe: a luta dos posseiros pela legalização de sua terras, as estratégias definidas pela Companhia para cooptá-los como pequenos produtores sob seu domínio, e a luta dos renitentes changa-y na elaboração clandestina dos ervais da Companhia. Indícios de que a resistência à política dos espaços vazios era cotidiana, e que se almejava um outro destino para o tão propalado progresso da região.

 

Produzindo o esquecimento: a campanha da Marcha para o Oeste

Considerada por Getúlio Vargas o verdadeiro sentido da brasilidade, a Marcha para o Oeste foi uma campanha de forte cunho publicitário lançada pelo Estado Novo em 1938, em que se propunha a integração do sertão ao corpo da Nação, através da criação de colônias agrícolas na região da fronteira. Em sua forma discursiva, era a Marcha dirigida a todos, mas no plano substantivo visava conter tanto o poder oligárquico dos grandes proprietários, quanto a luta pela terra no interior do Brasil. Nesse sentido, pode-se entender a proposta de criação da Colônia Agrícola Federal de Dourados como uma estratégia de controle político do poder da Companhia, ao mesmo tempo em que se buscava arrefecer os ânimos daqueles que lutavam pela fragmentação dos ervais em pequenas propriedades. Essa estratégia não teve visibilidade social, pois enfatizava-se que Mato Grosso era uma região de imensos espaços vazios (Lenharo, 1986; 1985).

Fundada em 1946, a Colônia Agrícola efetivamente nasceu da luta pela terra, contra os arrendamentos da Matte Larangeira. Canalizando antigas aspirações de fracionar os ervais em pequenas propriedades e impulsionar o desenvolvimento da região pelo adensamento populacional, a criação da Colônia pode ser entendida como o resultado de uma política governamental para controlar o poder da Matte Larangeira e dirimir o conflito pela terra, acirrado desde os anos 30. Discursivamente, no entanto, essa questão jamais foi levantada. Ao apresentar Mato Grosso como um sertão a ser ocupado, apagava da memória histórica a luta pela terra travada pelos posseiros ao longo de quase 50 anos.

Para Foweraker, a história legal da terra no sul de Mato Grosso, em comparação com o oeste do Paraná, teria sido “mais pacífica e menos sujeita aos conflitos de modo geral”, chegando mesmo a afirmar que na região teria havido uma “relativa ausência de conflitos”. As razões apontadas passam, evidentemente, pelo monopólio da Companhia Matte Larangeira, que usou de sua própria força policial para manter os colonos fora de suas terras em muitos casos; o ritmo lento do povoamento; a falta de concessão de terras litigiosas a empresas ferroviárias e a quantidade de terra disponível que, “sendo abundante, era barata, havendo poucos motivos para se lutar por ela”(Foweraker, 1982: 136).

As histórias de Ortt e de Nazario de León vêm nos mostrar que não existia uma “ausência de conflitos”, nem a terra era abundante, como costumavam propagandear. Nas fímbrias do poder da Companhia Matte Larangeira situava-se uma multidão dispersa de posseiros, changa-y e pequenos proprietários que cotidianamente enfrentavam o monopólio legal das terras ervateiras.

Por outro lado, Foweraker, com propriedade, aponta como fator decisivo para a não-distribuição de terras no sul do Mato Grosso a necessidade de manter intacto o status quo dos políticos de Cuiabá, tendo-se por base a tradicional animosidade entre o sul e o norte, lembrando que, em diversos momentos de sua história, romperam movimentos que visavam separar o sul do Estado. Ainda para Foweraker: “as terras (...) eram eleitoralmente importantes, e quanto mais longe prosseguisse o povoamento da fronteira, mais a balança política se inclinaria para o sul e maior seria a representação por ele alcançada. A partir de 1930, o povoamento da terra é politicamente vantajoso para o sul e ameaça a sobrevivência dos políticos do norte, que trabalham para sabotá-lo. Naturalmente, o povoamento é também uma questão política no sentido mais amplo, visto que tanto políticos do norte como do sul tinham pretensões especulativas sobre a terra - como em todo o Brasil -, sendo a maioria das pressões exercidas não em função de rivalidades regionais, mas com finalidades lucrativas.” (Foweraker, 1982: 137).

Esta questão vem corroborar o fato de que o acesso à terra não era pacífico, não só por esta se encontrar sob o domínio da Companhia Matte Larangeira, mas por se tratar fundamentalmente de uma questão de domínio político. Ao longo do período estudado, o acesso à terra deu a tônica para a política regional e para a vida de muita gente que não se submeteu à lógica do progresso para o sertão apoiado na grande propriedade, como Nazario de León e João Ortt.

Desse modo, o que no imaginário social aparece como sertão tem uma história tecida na luta pela terra, em que posseiros e pequenos proprietários tramaram derrotar uma grande companhia e impor um novo sentido ao propalado progresso; e em que o conflito armado aparece travestido de banditismo, e de bandidos aqueles que lutaram pela posse da terra.

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Notas

[1] Thompson (1987: 252), onde polemiza com Rogers: “pois a categoria ‘criminoso’ pode ser desumanizadora: se um grupo de homens é descrito como uma ‘quadrilha’, composta de ‘valentões’ que vivem numa ‘subcultura criminosa’, sua descrição é tal que desautoriza um exame mais cuidadoso. Eles são vistos (...) como uma ameaça à autoridade, à propriedade e à ordem. E assim as categorias nos preparam exatamente para as conclusões (...)”. Estou aqui me referindo também ao prefácio de Thompson (1986: 13), que aponta para os “imensos ares superiores de condescendência da posteridade” com que alguns sujeitos foram focalizados pela historiografia, para lembrar que “suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência.”

[2] A Companhia Matte Larangeira teve sua origem nas atividades de Thomaz Larangeira que arrendou, após a guerra com o Paraguai, uma vasta extensão de terras do Estado do Mato Grosso para elaborar erva-mate nativa na região sul do planalto de Amambai, região de fronteira com o Paraguai. Posteriormente, foram seus direitos adquiridos pela família de Joaquim Murtinho. Ver Arruda (1989); Guillen (1991). 

[3] Em sua maioria, os trabalhadores da Companhia eram paraguaios. O Paraguai tinha parte de sua economia baseada na elaboração da erva-mate, e, ao findar o século XIX, a Industrial Paraguaia era a maior companhia de mate do país. No início do século, a atividade ervateira foi implantada também no território de Misiones, Argentina. No Brasil, o maior produtor de mate era o Paraná. Podemos, portanto, considerar toda a região platina como tendo uma vasta tradição de trabalho na erva-mate. Ver Echeverria (1986); Linhares (1969); Padis (1981).

[4] Para a questão da migração gaúcha ver Guillen (1996). Um estudo da política coronelista em Mato Grosso e das dissensões entre o norte e o sul pode ser encontrado em Corrêa (1982).

[5] A língua dominante na região era o guarani, falado pelos trabalhadores paraguaios. Changa-y era a denominação usada para o trabalhador que elaborava clandestinamente erva-mate na área de arrendamento da Companhia. Eram conhecidos também como changadores.

[6] Para a região sul do Estado, Corrêa (1982) aponta 16 conflitos armados entre 1891 e 1922, envolvendo os coronéis e seus bandos em disputa pelo poder político local. Apesar de afirmar que eram joguetes nas mãos dos coronéis de Cuiabá, a constante formação de bandos organizados marcou a vida cotidiana da região a ponto de ser considerada uma população armada. Afora os bandos armados pelos coronéis, também era comum na região a formação de grupos de bandidos que assolavam as fazendas, roubando gado e se refugiando no Paraguai. Para o período de 1872 a 1943, Corrêa menciona a existência de 16 grupos organizados, sendo que um desses era constituído de trabalhadores da Matte Larangeira, que atacou o quartel do exército em Porto Murtinho. Afora os grupos armados e os bandidos, a região foi testemunha de alguns levantes militares. Durante o período de 1912 a 1932, Corrêa fala de seis manifestações revolucionárias das forças militares, contando-se o movimento tenentista, a Coluna Prestes, as Revoluções de 1930 e 1932. Dentre essas manifestações conta-se também um ata-que de desertores do Batalhão de Caçadores à Companhia Matte Larangeira, em 1932.

[7] A Questão Matte envolveu os grupos políticos organizados no Estado de Mato Grosso em torno de uma nova proposta de arrendamento dos ervais, na qual a Companhia sobrelevava seu poder político sobre a região. A oposição política à Companhia passou então a advogar a fragmentação da região dos ervais em pequenas propriedades e o fim dos arrendamentos. Ver Guillen (1991).

[8] Resolução 725, do Estado de Mato Grosso, de 24 de setembro de 1915. Esta resolução e os contratos de arrendamento dos ervais podem ser encontrados em Serejo (1986). Para as discussões políticas estaduais envolvendo os contratos de arrendamento, ver Corrêa Filho (1924).

[9] Não encontramos os processos de Nazario de León. Pudemos reconstruir sua história a partir do processo que corria na Comissão Especial de Revisão da Concessão de Terras na Faixa de Fronteira (doravante CEFF) sobre o lote Carapó, já que Nazario de León teria vendido o lote a Azevedo e no referido local tinha surgido uma pequena povoação, de mesmo nome, que reivindicava também aquelas terras. Arquivo Nacional, CEFF, Operações sobre Terras Públicas, lata 233, protocolo 257, de 1940, arquivado em 16/11/1942. A CEFF foi criada durante o Estado Novo, diretamente subordinada ao Conselho de Segurança Nacional e à Presidência da República, e retirava dos governos estaduais o controle sobre a faixa de fronteira, cabendo apenas à CEFF autorizar a instalação ou continuidade de qualquer atividade econômica na região, bem como a autorização para a venda ou arrendamento de terras devolutas.

[10] A Companhia protestou até o Decreto nº 90, de 17/12/1936, que reservava área para a povoação de Carapó, alegando que se tratava de área de arrendamento. Ver parecer favorável à anulação do decreto em Legislação Sancionada, de Mato Grosso, 1937, Arquivo Público de Mato Grosso, doravante APMT. Uma nova área de 20 mil ha para o patrimônio de Carapó só foi reservada em 1941, quando o contrato de arrendamento estava em discussão no Conselho de Segurança Nacional. Ver AN/CEFF, lata 233, protocolo 257, de 1940.

[11] Contrato de habilitação referia-se a um sub-arrendamento dos ervais, em que o habilitado recebia da companhia direito de elaborar erva, mas devia entregar-lhe toda a produção. Este tipo de regime imperou nos ervais, já que a Matte Larangeira não explorava diretamente todos os ervais que detinha por arrendamento. Ver Guillen (1991: 215-216).

[12] Nazario de León procurou se defender através de uma apelação cível, onde soubemos das alegações da Companhia. Ver Annaes Forenses do Estado de Matto Grosso. Apellação Cível n. 512. Cuiabá, Typ. Official, 1928, v. VIII, p. 180-181.

[13] O Progresso, Ponta Porã, 19/9/1926.

[14] Ver carta dirigida a Heitor Mendes Gonçalves, administrador da Companhia em Mato Grosso, remetente não identificado, datada de 15/1/1925, Arquivo da Companhia Matte Larangeira, Campo Grande, doravante ACML, em que o signatário pedia autorização da empresa para requerer compra de terras ao Estado.

[15] Ver Ofício da Secretaria de Agricultura de Mato Grosso, exercício de 1935-1938, APMT, cx. 1936.

[16] A escravidão por dívida foi um regime de trabalho dominante não só nessa região, mas pode ser encontrada nas fazendas de gado do pantanal, nos seringais amazônicos ou mesmo nas usinas nordestinas.

[17] Costa Marques, Joaquim Augusto. Mensagem dirigida pelo Exm. Sr. Dr. __________, Presidente do Estado á Assembléa Legislativa ao installar-se a 1a. sessão ordinária da 10a. legislatura em 13 de maio de 1915. Cuiabá, manuscrita, 1915, APMT.

[18] A excepcionalidade do caso de Nazario de León está no fato de termos encontrado uma documentação mínima que nos permite fazer inferências e tecer possibilidades históricas sobre outros casos semelhantes. Ver para a questão Ginsburg (1991).

[19] Klinger escreveu suas memórias com uma ortografia própria que, para facilitar a leitura, atualizamos.

[20] Ata da primeira reunião da segunda sessão extraordinária do exercício de 1919, em 4 de março de 1919. Conselho Municipal de Ponta Porã, livro 2 (1918-1922), manuscrito. Câmara Municipal de Ponta Porã, MS.

[21] Basta lembrar que um dos grandes opositores políticos da Companhia Matte Larangeira na cidade de Ponta Porã, Batista de Azevedo, foi assassinado por um dirigente da companhia, Heitor Mendes Gonçalves, e não resta dúvida que o motivo foi político, já que aquele era advogado dos posseiros. Alguns meses antes, Batista de Azevedo tinha estado em Cuiabá, tratando de casos de posseiros, e conseguira a expedição de alguns títulos provisórios de diversos lotes de terra. Ver O Progresso, Ponta Porã, 13/5/1923.

[22] Até a construção das ferrovias, a principal via de comunicação para Mato Grosso era o rio Paraguai, que, desde o final da guerra, tinha sido aberto à navegação e propiciara o crescimento comercial de cidades como Corumbá e Cuiabá. Cf. Alves (1984).

[23] Para a discussão metodológica das fontes indiciárias consulte-se Ginsburg (1989).

[24] Recorte de um jornal, não identificado, de São Paulo, 3 de (...)bro de 1931, pág. 5, na pasta Críticas à Companhia, ACML.

[25] Encontram-se no ACML os recortes dos seguintes jornais: Folha da Manhã, São Paulo, 13/1?/1932; Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 8 e 13/1/1932; A República, Campo Grande, 1/11/1931.

[26] A República, Campo Grande, 1/11/1931.

[27] Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 9/1/1932; Democracia, São Paulo, 16/2/1932.

[28] Ver telegramas sobre banditismo na fronteira no Arquivo Bertholdo Klinger no CPDOC-FGV.

[29] Moura Carneiro enviou, em 1938, um memorial ao Conselho de Segurança Nacional, posteriormente publicado com o título Os arrendamentos da Companhia Matte Larangeira, que, infelizmente, não encontramos. As reportagens contra os arrendamentos dos ervais foram publicadas no jornal O Radical, RJ, durante o mês de agosto de 1938.

[30] Corrêa (1982) trata o banditismo social como movimento pré-político, baseado metodologicamente em Hobsbawm (1978). Não é o caso de Arruda (1989), ainda que assuma integralmente a versão de Puiggari (1933) e a reproduza sem questioná-la.