Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Cultura política e reforma agrária


Estudos Sociedade e Agricultura 12, abril 1999: 178-183.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA.


Terra Prometida. Uma história da questão agrária no Brasil é mais um livro que lança um olhar sobre o mundo rural interpelando a nossa cultura política. Os seus autores – Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira Da Silva, militantes da história da agricultura brasileira – não apenas ostentam simpatia pela dimensão nacional-popular da nossa cultura política como mobilizam nesta sua historiografia agrária uma chave de leitura concebida para obter um certo resgaste da Era Vargas (“Para muitos, talvez a maioria dos nossos cientistas políticos, dizem eles, o projeto varguista fora sempre limitado, autoritário e escamoteador da participação popular. Talvez pudéssemos nuançar tal posição”, p. 178). Trata-se do modelo que eles chamam de fordista-keynesia-no periférico, uma fórmula de inspiração gramsciano-furtadiana com a qual se referem à nossa história contemporânea, de olho na especificidade da tentativa de “desenvolvimento regulado do capitalismo” entre nós, que, como se sabe, terminou resultando nas transformações “pelo alto” experimentadas pelo país no pós-30.

É por esse registro que os autores apresentam a sua proposta de história da questão agrária brasileira demarcada pela vigência dos três seguintes “padrões agrários”: a) o plantacionismo, oriundo da Colônia, tematizado no texto, porém, a partir do seu período de auge com as chamadas “reformas liberais latino-americanas” da segunda metade do século XIX; b) o padrão fordista-keynesiano propriamente dito, que estrutura o industrialismo urbano e arrasta o campo a reajustamentos, modelo que se estende de 30 até 64, quando se enfraquece e, afinal, teria se esgotado; c) o terceiro padrão, à falta de um nome sugestivo como aqueles, vai ser a chamada “modernização forçada da agricultura” do pós-64, cuja marca seria a do “esvaziamento da luta pela terra como questão nacional”; na verdade, um agrarismo travestido de “solução técnica”, encapuzado pelo medo da ameaça guerrilheira, conforme a doutrina de “segurança nacional” da Guerra Fria.

O perfil de questão da terra da questão agrária, no dizer dos autores de Terra Prometida, vai se definir, desde a segunda metade do século XIX, em contextos de modernização que debilitam, mas não exaurem, a cultura arraigada de desconhecimento de acesso democrático à terra. A Abolição fora o momento alto do processo de formação da nacionalidade, mas não se concluíra, como, aliás, voltara a dizer Caio Prado Jr., em 1963, no texto que dedicara ao Estatuto do Trabalhador Rural.

O perfil plantacionista e latifundiário da República não será consagrado, naturalisticamente, como reafirmação atávica. Houve luta e 1889 terá o seu momento jacobino, durante o “interregno sem fisionomia” até 1894, como estranhamente o chamara Guerreiro Ramos, em texto de 1957, referindo-se a esta brecha no exercício continuado e pleno da dominação dos agrários antes de 30. Segundo os autores de Terra Prometida, os primeiros reformistas da República, Rui à frente, sonharam em desbravar uma via farmer brasileira, propondo a “desamortização das terras enquanto equivalente de mercadoria” e o cadastramento das propriedades (“Tais transformações representariam, de um só golpe, uma verdadeira revolução: o capital e seus proprietários assumiriam o controle da economia e os aspectos decorrentes do prestígio da posse da terra seriam nivelados pelo processo econômico, com a eficiência e a produtividade estabelecendo critérios de hierarquização”, p. 72). Além dessa mobilização e tributação da terra, eles lembram dois outros pontos igualmente ambiciosos desse programa americano: um vigoroso esforço de incorporação dos negros à nação (sistema de ensino e distribuição de lotes) e o desenvolvimento industrial, os quais, postos em prática, certamente abririam fissuras importantes na cultura do valor da propriedade como “programa de vida” (p. 74), vale dizer, na hegemonia plantacionista.

Aquela luta “de conteúdo positivista e jacobino”, como se sabe, foi interditada mediante o afastamento de Floriano, especialmente com a saída do segmento urbano pequeno burguês da nova configuração governamental; aliás, tema, é oportuno recordar, da atenção de Nelson Werneck Sodré em suas dissertações sobre a República e sobre o papel do tenentismo no processo que ele chamava de “revolução burguesa sem proletariado” do pós-30.

Na narrativa do livro, a Terra Prometida se confunde com a trajetória deste nosso capitalismo sem atores revolucionários, urbanos ou agrários, um capitalismo desde o início exigente da ação pública também para modernizar o mundo rural. Na Era Vargas, essa intervenção supletiva seria tímida e de simples ajustamento para vencer o imobilismo e forçar a agricultura a subsidiar a indústria; ação estimulada à medida que se tornava irreversível o “deslocamento do eixo da economia para dentro” e avançava a erosão do plantacionismo. Ao contrário de uma revolução agrária, tema naturalmente alheio à coalizão vitoriosa em 30, aquela nossa revolução burguesa “vinda de cima” não ativara o campesinato alargando a vida política nacional, como retrata bem a dissertação específica de Terra Prometida sobre o processo dúplice, de um lado, de real presença governamental na agricultura para redirecionar a sua lógica, e, de outro, de idealização do camponês, um ser sediado no imaginário popular que o Estado Novo iria alimentar. A “incongruência”, pintada em fontes várias, consiste mesmo numa das novidades dos autores, quem sabe, no melhor dos seus insights sobre a natureza enviezada das relações entre “infra-estrutura” e “superestrutura” no curso histórico da nossa modernização burguesa.

Já nos anos do nacional-desenvolvimentismo, tal como a concebiam os intelectuais do Iseb, o PCB e o governo de Jango, sim, a reforma agrária será reconhecida como um “imperativo desenvolvimentista”, em nosso jeito brasileiro, à moda clássica. Deixando para trás o tempo das ações esporádicas e subversivistas, de que falara Gramsci, os camponeses brasileiros iriam sair da mudez (lembrando aqui um termo isebiano) e se constituir em movimentos sociais, conseguindo inclusive chegar, mediados pelos partidos, à cena pública e governamental como seres influentes (os autores não têm dúvida em dizer: “Sem tentar exagerar as cores do quadro, poderíamos dizer que a incorporação dos trabalhadores rurais, entendida naquele momento pelo Estado e amplos setores reformistas da sociedade como extensão da legislação social ao campo, constitui o fulcro da crise que eclodiria na década de 60”, p. 179).

Com a ditadura, o reformismo agrário de fundo nacional-popular iria se converter numa anti-reforma agrária, mudando o cenário do mundo rural: a conexão latifúndio/minifúndio como núcleo problemático daqueles anos 50/60 –argumentam os autores de Terra Prometida, traçando o fio mais grosso do movimento abafado do pós-64– iria se diluir ante a emergência de um outro protagonista, os complexos agroindustriais, quando então se conhecerá a fisionomia de um novo padrão agrário. A dissertação apresentada deixa bem evidente que a ponta modernista dessa intensificação industrial da agricultura (com seus créditos, isenções e incentivos, a ânsia pela produtividade e o largo uso das tecnologias) arrastava do pretérito agrário a questão da cidadania bloqueada, isto é, um tema da “nacionalidade”, a idéia do “mercado interno”, como teorizavam os nossos velhos e novos clássicos (não esquecer o mesmo Caio Prado Jr. de 1933 e 1942 e Furtado de 1954 e 1959). Vale dizer, o arcaísmo político, coadjuvante na obra do militarismo, era quem ajudava a dar passagem para aquele novo que, se por um lado, ia em marcha batida esmaecendo a oposição cidade/campo, indústria/agricultura, por outro, deixava rastros de crise e desemprego que, progressivamente, conformavam o fenômeno da exclusão como apartheid social, a “nova” marca estrutural da formação social brasileira.

Como o livro se concentra no período de vigência do experimento fordista-keynesiano, talvez surpreenda que a sua parte mais contemporânea, pela forma mais de registro dos termos de “uma dívida não resgatada”, não exiba o sabor dissertativo multicolorido que aparece em várias passagens das seções quarta, “A questão agrária no Brasil”, e quinta, “Terra e democracia na construção do Brasil moderno (1945-1998)”, esta última principalmente nos seus primeiros capítulos: “A questão agrária como problema nacional” e “Reforma agrária e crise política no Brasil (1950-64)”. Os seus tópicos dedicados à questão da exclusão social, ao Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República e ao MST, por serem temas correntes, não avultariam se não fosse justamente o comparativismo alimentado no livro para incentivar o leitor a fazer, ele próprio, um exercício de associação dos três padrões agrários e, assim, melhor visualizar o “sentido” do nosso mundo rural em mutação lenta e custosa.

Ao destinarem o livro aos jovens brasileiros, os autores de Terra Prometida põem muitas notas explicativas, inclusive em três seções gerais – “O capitalismo e o surgimento da questão agrária”, “As grandes teorias explicativas da questão agrária” e “A questão agrária no novo mundo” – se estendem para além das necessidades do constructo ali desenhado para organizar a dissertação agrário-brasileira, mostrando cuidado para torná-lo funcional. O livro, porém, se torna atraente em algumas passagens construídas ao sabor do ofício – quando os autores mobilizam as fontes; algumas típicas da historiografia, outras, numerosas, muito pouco convencionais, confessando intenção de seu uso. As primeiras calçam as narrativas ao estilo usual, e o leitor as verá ao longo do volume. Levado pelo segundo tipo de fonte, ele sentirá melhor os traços mais vívidos daquelas partes que são verdadeiros insights e dissertações tópicas, os pontos, aliás, mais interessantes desenvolvidos pelos autores. Aqui, só alguns pouquíssimos exemplos do uso dessas fontes: a marchinha de Lamartine Babo “G-e-gê”, posta como registro das transformações que adviriam com o movimento de 30, como ela diz: “Graças ao rádio e ao parabelo”; um poema de Cassiano Ricardo alusivo à novidade da pressa urbana que toma conta dos anos 40, ao novo tempo diferente do tempo da natureza (“As horas caem sobre nós verticalmente/como chuva secreta”), o “Pralapracá de automóveis. Buzinas. Letreiros”, versejado ao estilo do “grito/aflito/apito” (Noel Rosa); a “versão” que Ataulfo Alves e Felisberto Martins dão à substituição das figuras populares do malandro urbano e do bugre pelo operário produtivo em “É preciso casar”, num disco da Odeon. Também merecem ser referidas as menções às obras de Tarsila e Portinari, à literatura do ocaso, como Caetés, Menino de Engenho, o Jeca Tatu e à bibliografia das explicações do país (Freire, Buarque de Hollanda). Para equacionar a tendência à inversão de relação campo/cidade, os autores fazem “citação” da “Asa Branca” de Luiz Gonzaga e de Vidas Secas; e para a novidade da invasão da questão agrária nas cidades, recorrem a Adoniran Barbosa e sua “Saudosa Maloca” no disco da Continental e a Orestes Barbosa, no inesquecível “Chão de Estrelas”. Para o pré-64, duas fontes exemplares: João Cabral de Mello Neto (“Morte e Vida Severina”) e o “Funeral de um lavrador”, de Chico Buarque. Para o tema “a classe operária vai ao campo”, socorrem-se dos compositores João Bosco e Aldir Blanc com o seu “O Rancho da Goiabada” (1978), e assim por diante.

Os autores de Terra Prometida fazem a aposta de que o testemunho da história pode nos levar ao encontro com a nossa cultura política nacional-popular, evocando lembranças-emblema, oportunas nesta hora de enfraquecimento dos valores e das causas gerais, de alheamento e marco zero, da chamada “desnecessidade da reforma agrária” e da revolta cega. Para eles, o espírito da “reforma agrária” da Era Vargas, quanto menos, transmite a idéia de que, neste país, há larga tradição de “política pública” voltada para a reforma do mundo rural, mesmo aquela de reformismo “pelo alto” e de intervenção oblíqua do Estado (p. 132). Quanto ao tempo mais contemporâneo da nossa experiência de capitalismo administrado, após a leitura de Terra Prometida, o leitor tem diante de si a “reforma agrária política” dos anos 50, exposta em uma cena pública de democracia política, donde ela iria se viabilizar à medida que fosse se consolidando a convergência dos movimentos sociais com o poder público, incluídos aí os partidos, naquela época envolvidos num processo de encaminhamento de “medidas parciais de reforma agrária” em aproximação àquilo que todos eles disputavam e tinham no horizonte como imaginário social e político.

Terra Prometida quer convencer não apenas pela tematização de uma questão, como se dizia nos anos 50, candente, mas sobremaneira pela interpelação que o livro faz da tradição nacional-popular. Se procedente a leitura, estaria aberto mais ainda o campo à divagação. Não ficaria, por exemplo, ainda mais instigante se os autores tivessem convocado à sua problematização uma dissertação de ciência política mais específica sobre o tema da correlação revolução burguesa/revolução agrária, como a dissertação gramsciana sobre o Risorgimento, qualificando a natureza de “revolução passiva” do nosso trânsito para a modernização?  Desse exercício não só teriam obtido o mesmo realismo com o qual já mostram a Terra Prometida como uma dívida que, à falta de um 1789, vem sendo paga aos poucos, como ainda, quem sabe, também teriam deixado muito mais claro a tematização do livro sobre uma das marcas do processo de seu “resgate” – em ritmo mais acelerado quando a marcha contínua da democratização social converge com a vigência da democracia política; e de passo lento, quando os dois protagonistas da reforma do mundo rural – poder público e movimentos sociais – se separam. A conjectura aqui é a de que a anunciação que fazem os autores da sua interpelação do nacional-popular, se reposta pelo paradigma da democratização, que decorreria do apelo àquela sugestão gramsciana, poderia acrescentar mais um parâmetro ao chamamento que Terra Prometida faz aos jovens. E, então, o fundamental, segundo Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira Da Silva, seria que eles dessem atenção à necessidade de intervenções aqui e agora, em rebeldia ao quietismo, ao que se adicionaria, pois, a importância da ação governamental para a realização da reforma agrária; ação pública, dir-se-ia, indo mais longe, obtida com maior sucesso sempre e quando se pratica, com eficácia, a política de convergência democrática pluriclassista e reformadora.

Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira Da Silva. Terra Prometida. Uma história da questão agrária no Brasil, Rio de Janeiro: Campus, 1998, 212p.