Estudos Sociedade e Agricultura

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Joanildo A. Burity

Cultura e identidade no campo religioso


Estudos Sociedade e Agricultura, 9, outubro 1997, 137-177.

Resumo: Este trabalho explora diferentes aspectos do debate no campo dos estudos culturais sobre a questão das novas identidades, de seu caráter político e da relevância da dimensão cultural como chave para a compreensão daquelas. Após uma discussão de fundo teórico, busca examinar o tema à luz de desenvolvimentos em curso no campo religioso brasileiro. O que seriam as novas identidades religiosas – na política (crescente participação eleitoral; maior visibilidade na academia e na mídia; dimensão política da experiência comunitária; elementos de sua cultura política); na dialética velho/novo (relações do novo perfil religioso com formas tradicionais de experiência religiosa); na dimensão cultural (particularmente em torno do tema da “inculturação” da liturgia, da mensagem e do comportamento)?

Palavras-chave: Religião; cultura; identidade.

Abstract: Culture and Identity in the Religious Sphere.This article deals with different aspects of the cultural studies’ debate on new identities, their political character and the relevance of the cultural dimension as a key to understanding these identities. The theoretical discussion is then focused on current developments in the Brazilian religious field. What would the new religious identities be in: i) politics (growing electoral participation; increased visibility in the media and the academy; the political importance of community life; aspects of their political culture); ii) in the intersection of old and new issues and groups (the relationship between the new religious profile and traditional forms of religious experience); and iii) the cultural dimension (particularly around the theme of the “inculturation” of liturgy, message and behaviour).

Key words: Religion; culture; identity.

Joanildo A. Burity é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e professor da UFPE.


A pergunta sobre novas identidades na boca de um cientista político pode prenunciar um cálculo instrumental ou, de qualquer forma, reducionista quanto à natureza ou o aporte político destas identidades. Somando-se isto às inclinações de sociólogos e antropólogos, poderíamos ter uma abordagem, ainda que diferenciada da redução politológica, que acenaria para projetos de autonomia, emancipação ou resistência. A questão é: por que nos ocupamos em identificar a emergência de “novas identidades”? O que as torna “novas” seria algum atributo comum que se distribuiria entre os diferentes exemplares de tais identidades, algo “duro” o bastante para ocupar o lugar de um “denominador comum”? Haveria, ao contrário, algum princípio disseminativo, talvez à maneira da semelhança de família wittgensteiniana, que poria em relação de parentesco estas identidades, sem que elas tivessem todas juntas aquele “algo em comum”? Seria a “cultura” o novo nome para este núcleo duro ou para este princípio disseminativo? Mas como nos damos conta deste significante “cultura”? Por que ele se torna significativo neste momento particular em que vivemos?

Na atual profusão de falas e incursões sobre os territórios e tempos da cultura, é inevitável ver um deslumbramento que, antes de apresentar como evidência uma mudança de paradigma, atesta uma certa promiscuidade temática e metodológica. Em termos muito simples, esta situação pode ser descrita como a mudança de agenda e mesmo de linguagem ao ritmo das mais recentes modas acadêmicas. É como se à era da economia agora sucedesse uma era da cultura, ficando por se avaliar até que ponto o papel determinante antes desempenhado pela primeira não estaria sendo colocado pelos “culturalistas” nas mãos da segunda, ou até que ponto esta não é chamada a servir de suplemento para explicações ainda hegemonizadas pela primeira, nos analistas tradicionais. A recepção “fácil” da temática da cultura pode pouco produzir quando é marcada pela repetição de enunciados estilizados e desacompanhada de um questionamento radical, não tanto da determinação econômica, mas da centralidade e auto-suficiência da estrutura. Pois a introdução da questão da cultura pede uma outra forma de colocar o problema da sociedade e da identidade que descentra e desloca substancialmente os padrões objetivistas e essencialistas ainda predominantes, sem que ela mesma venha a ocupar simplesmente o lugar deixado “vago” pelos modelos criticados.

O padrão promíscuo não é novo e pode-se dizer que inaugura nossa forma de relação com o mundo exterior desde o começo, desde que entendamos que “nossa” e “começo” são índices de uma não-contemporaneidade e não-identidade conosco mesmos: nós não estávamos lá, quando tudo começou e o que começou, digamos, na empreitada colonizadora e na nossa eterna emulação com o “primeiro mundo” nunca foi um presente absoluto. Em outras palavras, desde que nos entendemos por gente, nos situamos numa relação com o outro –colonizador, potência imperialista, projeto de independência/ emancipação/modernização, cenário global– em que estamos simultaneamente sempre em falta com nosso destino e já apresentando os signos, experiências ou projetos que correspondem ao state-of-the-arts das sociedades ditas avançadas.[1] Somos híbridos (sendo esta hibridação talvez um nome mais nobre para promiscuidade). Nosso atraso se transfigura em ingrediente do mais avançado, nossa repetição do modelo é sempre uma maneira de dizer que o que este apresenta como seu-próprio também está aqui e é, portanto, um abuso de linguagem ou de poder pretender ser um paradigma puro e superior. Insistentemente sujeitos aos regimes de verdade e objetividade enunciados desde o lugar do “avançado”, repetimos o modelo (e assim confirmamos sua primazia), ainda que apenas para fraturá-lo, apontar sua polissemia, seu desajuste consigo mesmo e, sobretudo, negar sua ânsia de domínio e suas projeções nostálgicas (cf. Burity, 1995).

De um lado, não há como não admitir que este movimento que nos prende ou arrasta para o Outro, nega o efeito de profundidade que a categoria de identidade-a-si carrega. Somos superficiais em nosso tratamento das questões com que nos defrontamos, porque estamos sempre sendo “chamados” a nos ocupar de outras, quando nem bem equacionamos as anteriores. Somos superficiais na nossa repetição do modelo, porque queremos atingi-lo enquanto negamos ou queremos ignorar aspectos básicos de sua lógica ou buscamos apropriações seletivas. Somos superficiais porque o que é “nosso” é uma bricolagem interminável de enxertos do outro (outro atualizado em diversos momentos e lugares: Indígena/Africano/Europeu, Oriente/Ocidente, Tradição/Modernidade, Atraso/Avanço etc.).

Por outro lado, há um aspecto perfeitamente apropriado na grande diversidade de falas que hoje mobilizam os temas da cultura e da identidade e que corresponde a uma mudança de “sensibilidade teórica”, entendida exatamente como a introdução de um certo grau de emoção na linguagem teórica. Sensibilidade que se traduz na atenção para com a subjetividade; na impaciência ante a aridez do racionalismo; na valorização da ética; num certo esteticismo da vida como obra de arte; na experimentação com outros gêneros de discurso acadêmico e político; no redimensionamento do projeto global para pequenas narrativas de emancipação. Nesta nova sensibilidade, a sociedade é construção atravessada pela contingência e a indeterminação; a ação se origina em decisões fundadas em opções indecidíveis[2] e, portanto, inseparáveis da responsabilidade; a identidade não é algo que se tem, mas é o efeito precipitado (logo, instável) de atos de identificação que atestam uma falta insuperável no âmago do sujeito; a pluralidade e a inerradicabilidade da relação com o outro são constitutivas da dinâmica pessoal e coletiva; os lugares de emergência do novo são múltiplos e pode-se ter acesso ao espírito do tempo por muitas portas; enfim, a objetividade, o sistema, é apenas estabilização provisória, feita de relações de poder, de uma vibração permanente e incontrolável do social.[3]

Com estas advertências por pano de fundo, este trabalho incursiona sobre as implicações desta recepção da dimensão cultural na análise social e política contemporânea, guiado por uma reflexão sobre a emergência das novas identidades, como objeto e como prática. Trata-se de uma análise circunscrita a partir do que me parece seriam preocupações do analista político em busca de novos elementos para a compreensão dos lugares e da configuração do político hoje. No meu caso, interessam particularmente as interfaces da cultura e da política no campo religioso, mesmo que esteja convicto de que o que aí ocorre não é tão idiossincrático a ponto de não lançar luz sobre outros lugares.

Cuidadoso para não essencializar a cultura ou sua relação com a política, para escapar à regionalização de esferas ou à disposição em níveis, e sobretudo para não repetir o deslumbramento que perde de vista a ambigüidade fundamental dos fenômenos identitários, o argumento procede em quatro momentos. No primeiro, colocamos a questão da relação entre identidade e política após a “virada cultural”. No segundo, discutimos o que há de novo nas identidades que observamos modificando-se ou surgindo na cena contemporânea. A seguir nos interrogamos se a cultura é o que amarra a novidade dessas identidades, se é apropriado conferir centralidade à categoria cultura e se haveria uma maneira diversa de colocar a questão. Em seguida, apresentamos alguns resultados parciais de pesquisas que vimos fazendo sobre o campo religioso brasileiro, ao mesmo tempo como ilustração dos pontos levantados nas partes anteriores e como testemunho de um silêncio inexplicado de boa parte da literatura sobre as novas identidades produzida no âmbito dos chamados estudos culturais.

O interdito moderno sobre a religião, na sua variante “secularizada”, continua a pesar com a força de uma exclusão ante a eficácia da heterogeneidade no campo religioso, a qual compartilharia gestos de reinvenção similares aos das novas formas de identificação. Desta forma, assume-se uma representação do mundo secularizado que dissimula flagrantemente a efervescência religiosa contemporânea e a presença irredutível de formas de religiosidade na identidade compósita de muitos participantes ou simpatizantes dos novos movimentos culturais, políticos, étnicos, sexuais celebrados pelos estudos culturais.

Identidade e política

Comecemos pela afirmação de que toda identidade é política. O que isto quer dizer? Antes de significar que toda identidade é politicamente ativa, que tal posição é desejável ou que contribua para avanços emancipatórios, trata-se de um enunciado sobre a constituição das identidades. Porque a afirmação ou o surgimento de toda identidade se dá num espaço ocupado por outras pretensões de identidade e porque a referida afirmação consiste em traçar uma fronteira que separa o que sou/somos do que não sou/somos,[4] o campo de constituição das identidades é o campo da política. Mas aqui política já não designa apenas as instituições que pretendem delimitar o lugar e as formas legítimas da representação, da disputa e da negociação. A política, como tem insistido Laclau (1990) é constitutiva do que chamamos de objetividade. A objetividade se funda sobre relações de poder.

Uma segunda conseqüência desta postura é que toda identidade é contingente a condições históricas, sociais, culturais, políticas (no sentido convencional) e esta contingência desautoriza suas pretensões de detenção da verdade, de legitimidade universal ou de superioridade natural. Esta desautorização não procede, porém, de uma mera postulação teórica, ou mesmo moral. Ela é efetuada cotidianamente, continuamente, no jogo das identidades, na revelação das limitações ou vícios de origem de cada uma, das suas inconsistências, inconseqüências, arbitrariedades ou debilidades, de seu particularismo insuficiente para encarnar definitiva ou inteiramente o universal. E ela produz conseqüências nem sempre agradáveis – como quando ela é feita pelo adversário que me descobre em falta, ou aponta para os impasses ou fracassos de minhas ações ou projetos.

É preciso, entretanto, uma certa cautela em relação a uma redução politológica da identidade: a pergunta pela política na “origem” e “desenvolvimento” da experiência identitária se coloca hoje num momento de generalização, mas também de extenuação da política. É preciso nos pormos de acordo sobre o uso do significante “política” aqui (mas seria isto possível?), pois um dos efeitos de sua generalização é o da multiplicação de seus sentidos, numa disseminação sem fim, que haure do que esteve “sempre lá” na palavra política, sem jamais ter estado simples e inquestionavelmente lá. Ampliações da política, restrições da política, exaltação da política, desencanto com a política – cada um destes sintagmas pode ser interpretado em múltiplas direções. Dizer que a política está na raiz do surgimento e processo[5] de toda identidade esbarra no fato de que muitas identidades se afirmam como apolíticas ou mesmo antipolíticas e na descoberta mais recente de que existem recessos, reentrâncias no social que se quer que estejam ao abrigo da política. E aqui há pelo menos dois sentidos para esta ressalva ou resistência contra a política: (i) a idéia de que a experiência da identidade é uma experiência de gozo comunitário, de descoberta do que é comum, partilhado e de afirmação dos mesmos valores e objetivos, não podendo, portanto, ser perturbada pela introdução de conflitos ou diferenças artificiais; e (ii) a idéia de que a politização generalizada, no que ela carrega de demanda por institucionalização de normas, procedimentos, condutas, ou pela adoção de programas visando a sancionar o interesse da sociedade pela reparação de injustiças cometidas, é potencialmente invasiva, panóptica, reduzindo os espaços de privacidade ou de liberdade de fazer e ser sem referência à obediência a poderes externos (seja estatais, seja comunitários).

A politização contemporânea das identidades se fez, em alguns momentos, contra a idéia de uma onipresença da política, em favor da busca ou afirmação de espaços não-políticos. A questão não é que “isto não contribui para a mudança da sociedade”, mas se é possível escapar à dimensão do político e se não é importante que “sobrem” estes espaços irredutíveis à lógica totalizadora e calculadora da política. A resposta é negativa no primeiro caso e afirmativa no segundo, devendo-se atentar para a distinção o político/a política. O político é o nome da dimensão instituinte de toda prática e identidade, caracterizada pelo que dissemos acima sobre relacionalidade, contingência e antagonismo. Na medida em que há divisão, diferença e a necessidade de (i) demarcar o território de uma identidade em relação a outros, e (ii) organizar internamente a economia das distâncias, isto é, o funcionamento e partilha de poder do campo assim definido, aí estará o político. Já a política diz respeito à explicitação de uma lógica da ação coletiva que demanda a definição de programas e projetos e que implica na institucionalização de práticas ou normas de alcance coletivo (no limite, universalmente aplicáveis). Uma lógica que se mostra, em larga medida, calculadora, instrumental, agonística e totalizante. Se a direção ou a expressão concreta da política pode ser modificada pela dose de elementos éticos, altruístas ou humanistas que ali compareçam, estes não conseguem eliminar sua lógica, apenas talvez atenuar seus efeitos arbitrários e dominativos.

Falei há pouco do processo da identidade. Com isto apontava para mais um traço do problema, que diz respeito à possibilidade de uma leitura expressiva da identidade. Se nossa identidade é algo que se forma na interioridade de um self, de uma consciência-a-si prévia a qualquer encontro com o outro, então o jogo das identidades pressuporia que estas se constituíssem plenamente fora do encontro e que apenas representassem os seus “interesses” na esfera pública. Sua prática seria expressiva, no sentido de exteriorizar algo que se produziu noutro foro, de publicizar algo que se constituiu plenamente num momento prévio. Mas isto estaria em contradição com tudo o que dissemos. Pois se a historicidade, a contingência, o relacionalismo e o antagonismo são marcas da identidade, esta nunca se constrói inteiramente no seu território próprio, seja porque outros a impedem, ameaçam; seja porque a seduzem, “possuindo” algo que ela não tem, mas julga fundamental; seja ainda porque no espaço público ela tem que enfrentar, conviver ou negociar com outras identidades e modifica-se neste processo. As identidades, assim, não estão nunca acabadas. Elas estão em falta desde o início, elas são falta constitutiva, falta que precisa ser preenchida, mas nunca encontra o ponto final de equilíbrio, pois o nome da falta é o desejo do Outro, que segundo a perspectiva lacaniana, é insaciável, inalcançável – não tanto por sua sublimidade, mas porque o Outro também não é ser em plenitude, é ser desejante (cf. Zizek, 1992).

Nunca acabados, os sujeitos não têm uma identidade, eles se empenham na sua construção por meio de atos de identificação. Com o cuidado apenas de não transformar estes atos no fruto de uma reflexão, pois mesmo que o momento da decisão seja o momento do sujeito, este nunca controla inteiramente as condições em que decide, nem mesmo sabe inteiramente o que quer (isto é, há um chamado do outro prévio à decisão, que nem sempre se reconhece). A identidade será sempre o momento estável, porém lábil, provisório, de uma tentativa permanente de realizar o desejo que nos levaria, finalmente, à (auto)-revelação de quem somos. Ilusão necessária que nos arrastará em direção a santos, heróis, líderes ou ideais, sedutores, promissores, nobres, legítimos; ou nos impelirá para perto ou longe de outros tantos, insuportáveis, ameaçadores, ilegítimos.

A identificação é um processo dinâmico, mas nem bem ativo nem passivo de construção. Decidir é o espaço-tempo do sujeito, mas a decisão se faz na ausência de pleno “conhecimento de causa”, por meio de uma aposta e envolvendo uma responsabilidade irredutível, independentemente das realizações se aproximarem ou não dos desejos. Neste sentido é preciso problematizar uma certa interpretação do “projeto esteticista” que, pela imagética da “vida como uma obra de arte”, corre o risco de reintroduzir um intencionalismo questionável do sujeito como senhor de sua própria história. A esteticização da vida cotidiana não implica na apologia da liberdade e autonomia do sujeito moderno. Antes, ela ressalta com ainda mais força a implicação das identidades em contextos significativos, ou num determinado “espírito do tempo” que, por certo obra de pessoas e grupos, não pode ser atribuído a ninguém em particular.

A figura do artista, em sua liberdade soberana, a moldar a obra de arte, bem como, freqüentemente, sua própria vida, segundo um desígnio criador, certamente é apelativa e móvel de inúmeras formas de identificação. Desprendimento, liberdade, um estar-em-casa com a excentricidade, quem sabe também com a solidão e a incompreensão dos demais, uma consciência da labilidade de si mesmo – tudo isso nos remete a ela. E com isso, à sedução de uma experiência da liberdade como des-implicação, como desintrincamento de uma comunidade condicionadora ou repressora. Mas tanto a figura assim idealizada, quanto as experiências pessoais dos artistas por ela animados, ou ainda os movimentos das pessoas ou grupos que fazem a “tradução” do projeto esteticista, estão sempre implicados, contextuados.

Como afirma Maffesoli, “a estética não é nada individualizada, mas constitui antes uma massa global onde, de um modo orgânico, todos os elementos materiais e espirituais do corpo social e natural entram numa perpétua sinergia” (1996: 339). Assim, na vida como obra de arte social, feita de pequenos mosaicos de muitas formas cujo ponto de referência originário se perdeu, se disseminou, “o objeto e o sujeito se perdem um no outro, até se confundirem numa massa indiferenciada. (...) [Essa] confusão existencial ou social ... poderá ser a confusão nos objetos, no trabalho ou no transporte comum, poderá ser a do turismo de massa ou dos diversos divertimentos para multidões, coisas nas quais o indivíduo, enquanto tal, esvai-se, afoga-se, e com isso reencontra-se. Experiência que está próxima daquela do amante da arte, ou, ainda, da do crente que 'faz um só com seu deus'. Em cada um desses casos, a crença, a arte, a vida sem qualidades, cada indivíduo é impelido por uma espécie de pulsão que, ultrapassando a existência particular, o integra numa vida global” (Idem: 340). Uma vida em que o projeto esteticista faz sentido, é valorizado, apresenta-se como uma forma legítima de “fazer seu caminho”, ao lado das demandas de adoção de uma identidade indivisa, homogênea. Compor-se, teatralizar-se, transferir-se para suas ações, são formas de esteticização que só valem por sua inserção num contexto comunitário – apoiadas, afirmadas, observadas, resistidas, reprimidas.

Novas identidades?

As velhas identidades estão em crise, ouve-se insistentemente. Basta que tenham durado o bastante para ainda subsistirem e encontram-se em irremediável descompasso com o “seu” tempo. São não-contemporâneas com o seu tempo e fazem mal aos corpos dos que as carregam. É assim que oscilações iniciadas nas margens do social vão levando ao descolamento de corpos e energias em direção a outras formas de agregação. É assim que passamos a falar sobre o surgimento das novas identidades. Mas o que são novas identidades? Quais são as novas identidades? Ou, mais fundamentalmente, como chegamos a ver o novo nas identidades?

Em primeiro lugar, é em relação a padrões do familiar/estranho e à percepção de que nossos mapas cognitivos já não conseguem dar conta de identidades conhecidas e de outras que não suspeitávamos existirem ou serem possíveis, que enxergamos o novo. O novo está, pois, cindido de partida entre um velho/familiar/teorizado/ teorizável e um excesso, um resto, uma inadequação ou oscilação que nos anuncia a chegada do outro. O outro –outra(s) pessoa(s), outra situação, outra época– nos chega sempre enquanto desafio a nossa capacidade de discernimento e compreensão, e dependendo de estarmos relativamente bem instalados ou relegados à margem, será monstruoso ou belo, repelente ou atrativo. Ainda que o novo só atraia enquanto não nos damos conta de que não é desejável ou não fornece o caminho alternativo.

O novo só pode ser percebido em relação ao que já não é, ou não consegue ser mais, e partilha com este a divisão constitutiva. Não existe o novo-em-si. Estamos de novo no território da constituição do “próprio” das coisas: na hora em que falta o conhecido, em que fracassa o antigo, em que a estabilidade deixa de ser um trunfo e passa a ser um embaraço, espessa-se a transparência, a lógica e a explicabilidade de tudo e anunciam-se, em meio à névoa, outras formas, outros referenciais, outras linguagens. Experimenta-se tateante, fala-se inadequadamente palavras em mais de um “idioma”, o dialeto desajeitado do novo, entrecortado de silêncios, vacilações, a exigir ouvidos apurados para perceberem o nexo entre os enunciados heterogêneos que se acumulam.

O novo das identidades é algo que (i) se acrescentou às velhas identidades, sem ter que fazer desaparecer quem as possuía –continuam sendo as mesmas pessoas, porém outras; (ii) se interpôs entre o objeto das velhas identidades e seus “portadores”– são identidades deslocadas, em busca de um novo nó, um novo horizonte, um novo ponto de ancoragem; (iii) esteve sempre lá, como possibilidade não atualizada, mas excluída, e “retorna” para cobrar o esquecimento ou a repressão de que foi vítima; (iv) deslocou as velhas identidades, chamando-as a uma conversão, uma mudança de paradigma kuhniana, impondo-lhes uma descontinuidade pelo encontro com a alteridade. Este “novo”, portanto, não anuncia necessariamente o inusitado, nem tampouco o desejável. O novo pode ser o mais antigo, o mais irritante, o desde há muito aspirado, e isto tanto na direção do que hoje nos pareceria aceitável e necessário, quanto do ilegítimo, ultrapassado ou insuportável. Como pode também ser a promessa de finalmente realizar “o projeto”, por outros meios, pelo aggiornamento dos antigos com técnicas e formas postas pela experiência do novo. Mesmo que, em certos casos, “o projeto” seja precisamente a recusa de todo projeto, a afirmação irreservada do presente, a abertura incondicionada ao futuro ou o aceno vacilante para a chegada deste futuro.

Uma segunda questão relacionada ao problema das novas identidades é a de que elas testemunham um cansaço com os grandes projetos, com a luta contra as estruturas no nível macro, com o adiamento do prazer para o momento da fruição total futura, com a negação das emoções como elemento intrínseco às experiências da subjetividade e da comunidade. Autores como Maffesoli (1996) têm insistentemente chamado a atenção para este “hedonismo” e este “presenteísmo” das novas formas de identificação. Num livro recente, não obstante qualificações neutralistas do autor (Idem: 19), tem-se uma apologia do cotidiano, do emocional, do presente enquanto vida e possibilidade, que não deixa de ser ingênua e insustentável no seu tom, sem que tenhamos que recusá-la no contexto de uma leitura perspectival. É certo que muitas de suas constatações são empíricas – sendo talvez seu limite a confiança que deposita nesta empiricidade. Pois, se o que se constata é a difusão, a fissura, a pluralização, a aparência, como sustentar alguma certeza quanto à “solidez” destes objetos evanescentes e prismáticos?

Ao mesmo tempo, Maffesoli está correto quando desassocia esta tendência de um suposto reforço do individualismo, de uma necessária recaída no irracionalismo, de um empobrecimento da experiência devido à massificação, à superficialidade dos pertencimentos. Segundo ele, estamos antes às voltas com um vitalismo que ressalta a dimensão do “estar-junto como sendo essencialmente uma 'religação' mística sem objeto particular” (Idem: 29). Nas revoluções islâmicas, na crise da moral do trabalho, na explosão do turismo, no crescimento das chamadas seitas e das diversas formas de esoterismo e misticismo, nos sincretismos políticos ou ideológicos, “se está em confronto com um verdadeiro impulso instintivo, uma espécie de vis a tergo, que incita a se reunir por tudo e por qualquer coisa, importando apenas, afinal, o ambiente afetivo no qual cada um está imerso. Daí a transformação de um grupo em outro, o desengajamento e a irresponsabilidade que são o sinal dos tempos... Em suma, esboça-se um novo dado social que acentua, antes de tudo, a fusão, sem levar em conta o seu porquê” (Idem: 30).

Esta pulsão “participativa”, fusional, se dá, paradoxalmente, em meio a uma pluralização –e relativização– de valores, que Maffesoli, seguindo Weber, chama de politeísmo de valores. Acrescentaríamos que o paradoxo tem dois aspectos correlatos: (i) a maioria das experiências do estar-junto se fazem em nome de uma diferença a salvaguardar, resgatar ou cultivar; e (ii) o comunitarismo de base que anima estas afirmações da(s) diferença(s) recusa qualquer idéia de um todo orgânico, um sistema, do qual seriam momentos puramente diferenciais (daí a minha dificuldade com a recuperação que faz Maffesoli da idéia de “corpo social”), neutros entre si. Se há que fazer parte de um todo, que seja o “nosso” todo, ou que aquele não nos “importune” demais.

O paradoxo torna-se mais intrigante –às vezes perigoso– dada a subsistência do que, de formas diversas, autores como Lefort, Laclau, Hall, Connolly têm destacado como a tentação do Um; a pretensão de pureza que qualificaria uma identidade à superioridade sobre as demais; a negação radical de toda concepção de universal(idade); o ressentimento ante o trágico da vida (que cobra de/atribui a um outro a responsabilidade pela experiência da finitude, da contingência e da “injustiça” da vida). Cada uma destas atitudes exige sutileza na análise das novas identidades, explorando sua ambigüidade inerradicável e enfatizando a abertura do jogo como condição para que a afirmação da identidade-como-diferença não se transforme em entrincheiramento ou colonização.

Por fim, é necessário distinguir, na análise das novas identidades, uma dimensão de asserção coletiva e uma dimensão disseminativa. A primeira aponta para as novas identidades como “projetos” de pessoas ligadas a movimentos que fazem da “política de identidade”[6] seu foco. A segunda dá conta das modificações experimentadas ao nível das trajetórias pessoais, seja como ponto de partida para uma inserção parcial em grupos, instituições e/ou movimentos sociais, seja como experiência cotidiana, refletida ou não, que através da pesquisa pode ser detectada, tematizada e provisoriamente organizada. As novas identidades são identidades de grupos e de indivíduos em transição. No caso dos movimentos de mulheres, de negros, de homossexuais, de indígenas, ecológico etc., –daquilo que recai sob o rótulo de “multiculturalismo”– estamos diante da primeira dimensão. No caso das subjetividades compósitas, cambiantes, que ocupam diferentes lugares sociais –inclusive nos movimentos que acabei de mencionar– e que lutam entre a fixação às demandas de uma identidade e a sedução de uma visão estetizante da vida, nos defrontamos com a segunda dimensão. Aqui também temos novas identidades. No caso da religião, de que nos ocuparemos abaixo, parece ser esta a que merece maior atenção. E isto tem escapado a muitos analistas.

O trânsito entre as duas dimensões está sempre em aberto. Identidades pessoais deslocadas, em busca de reinvenção, podem encontrar-se a caminho com outras e descobrirem que caminhar junto pode ser mais eficaz, mais assegurador, mais recompensador. E nisto a dimensão disseminativa detém-se por algum tempo, o suficiente para produzir uma identidade coletiva ou para engrossar as fileiras de outra(s) já existente(s). Por sua vez, frustrações, insatisfações ou crises podem acometer participantes dos novos movimentos (culturais ou sociais) –como efetivamente vem ocorrendo desde inícios dos anos 90[7]– lançando-os no campo disseminativo em busca de novos referenciais, projetos e estratégias de construção do eu/nós.

Identidade e cultura

Pelo que vimos até aqui, a heterogeneidade, a contingência, o paradoxo caracterizam muito da percepção contemporânea sobre a experiência da identidade. Seja no que se refere ao momento constitutivo (político) destas identidades, seja no jogo entre novas e velhas formas de identificação, vê-se a tentativa ou o gosto por realçar o plural, a cintilância das diferenças, a irredutibilidade do outro ao mesmo.

O que amarra as novas identidades entre si? O que faz com que as agrupemos sob o rótulo de “novas”? Se suas características são dispersantes, antes que agregativas, como reconhecer o seu comum? Tratar-se-ia apenas de atributos gerais, abstraídos de todo conteúdo concreto? Seria a cultura, como objeto ou meio, que proporcionaria a base de reconhecimento das novas identidades?

Na tradição aberta por Parsons, como chama a atenção Margaret Somers, a preocupação em legitimar a questão da cultura na análise sociológica, levou-o a precaver-se contra idéias de autonomia dos sistemas simbólicos, e a afirmar a cultura “como as normas socialmente institucionalizadas e os valores sociais subjetivamente internalizados de um sistema social” (1995a: 118). O que resultou numa redução internalista da cultura e, ao mesmo tempo, numa ênfase normativa que desaguou, no início dos anos 60, no conceito de cultura política, na esteira do clima da guerra fria e das teorias da modernização.

Mais recentemente, no bojo de uma crise dos modelos totalizantes até aqui vigentes, assiste-se a uma recuperação seja da dimensão cultural, isto é, simbolicamente constituinte, de toda prática; seja da legitimidade de aspectos culturais na análise sociológica e política das identidades coletivas; seja da ir-redutibilidade dos modos de vida (ethos, ética) de povos, regiões, grupos étnicos e outros coletivos tradicionalmente identificados com o plural “culturas”.

De conjunto internalizado de normas e valores, passa-se a valorizar a dimensão material[8] das práticas culturais, ao mesmo tempo que se descentra o problema das normas e valores de uma concepção de sociedade como totalidade para o território de vivência e concorrência entre múltiplos ethoi, no espaço plástico e móvel do social. A despeito da violenta reasserção do determinismo econômico na vigência do chamado discurso neoliberal, encontramo-nos por toda parte com um mal-estar explícito diante das explicações deterministas e objetivistas em favor de uma postulação do caráter construído de toda ordem (social, política, cultural). Construção onde o simbólico/discursivo e o material são co-extensivos, onde o sentido e as práticas se articulam permanentemente e tecem o real. Cultura deixa de ser vista como o conjunto das expressões espirituais de cada sociedade (nacional) materializadas nas artes, literatura, monumentos e no “caráter nacional” e passa a ser definida como um processo constante de produção de sentido inseparavelmente ligado a práticas individuais e coletivas, por meio dos quais a realidade social se constitui e que inclui, mas não se limita àquelas (cf. Gemignani, 1996; Alvarez, Dagnino e Escobar, 1996).

É certo, muitos analistas apontam, que as chamadas novas identidades se constroem com base na valorização de aspectos culturais, ou na defesa de uma dada cultura. A questão é se a nova centralidade da cultura se configura pela reocupação da primazia do objetivo, do material, do econômico, outrora hegemônicos. A cultura de que tantos falam hoje pode comparecer (i) como novo paradigma explicativo substituindo o anterior (mas a vigência do economicismo neoliberal nos deveria advertir contra esta leitura); (ii) como simples adendo destinado a suprir uma desatenção ou unilateralidade do racionalismo embutido nos discursos objetivistas e deterministas; ou (iii) num movimento típico da desconstrução e do pós-estruturalismo, como aquele suplemento que substitui ao complementar. Suplemento que usurpa o lugar que provisória e parcialmente se lhe abriu no sistema, atestando a incompletude deste, bem como a impossibilidade de completá-lo inofensivamente.

Ou seja, a lógica do suplemento bloqueia os procedimentos (i) e (ii) acima, quer mostrando a contingência do suplemento, quer ressaltando o seu perigo, como antevia Rousseau, para a ordem que o requisita. Sendo assim, seria inútil pretender reduzir a complexidade da dinâmica social à intervenção do cultural tanto quanto pretender abrir um espaçozinho para a cultura no interior de um paradigma economicista e objetivista. Como já sinteticamente formulado: “Se há sempre ‘algo mais’ além da cultura, algo que não é bem capturado pelo textual/discursivo, há também algo mais além do chamado material, algo que é sempre cultural e textual” (Alvarez, Dagnino e Escobar, 1996: 5-6).

Parece ser preciso manter a tensão (distinção) entre o material e o cultural, o cultural e o político, e simultaneamente afirmar que não se trata de uma distinção entre o objetivo e o subjetivo, o acessório e o importante, pois a produção de sentido é constitutiva e a maneira como nos damos conta e fazemos sentido das próprias distinções acima já se dá num contexto significativo. Este procedimento talvez nos permita argumentar que todos os agentes sociais (indivíduos, grupos e instituições) estão permanentemente imersos num processo de definição e redefinição de significados, num conflito das interpretações (Ricoeur), e, portanto, em práticas culturais, sem deixarmos de ressaltar que nem tudo é cultura ou política, num jogo em que o sentido preciso destes termos fica sempre por determinar em situações concretas.

Para voltar ao problema das identidades, pode-se dizer que se a cultura é o que amarra a novidade dessas identidades, esta última não se esgota na sensibilidade à dimensão simbólica de toda prática, nem na percepção propriamente acadêmica da dinâmica das identificações. Parte da novidade dessas identidades se refere às pessoas que elas envolvem/mobilizam; parte, às questões que elas se colocam; parte, aos repertórios de ação e modalidades discursivas que empregam os novos grupos etc. Neste sentido, a novidade vai além do foco cultural e precisa ser captada pelas lentes da sociologia, da ciência política, da psicologia etc.

Num trabalho em que passa em revista boa parte da tradição associada à categoria cultura política, Margaret Somers faz um comentário que poderíamos estender à discussão acima: para ela, os “praticantes do novo conceito de cultura política insistem, primeiro, em que as práticas, atividades e idéias políticas dos atores históricos devem ser vistas como sistemas simbólicos com suas próprias histórias e lógicas; e, segundo, que estas lógicas simbólicas são em si modalidades de política e poder tanto quanto são expressões culturais” (Somers, 1995a: 127). E, mais adiante, “[n]estes novos trabalhos, os significados são concebidos como significados relacionais. Uma relacionalidade de significados leva as referências de um elemento cultural para longe de sua verdadeira essência como objeto intelectual categórico, supostamente representando um objeto social 'real' com atributos que podem ser categorizados conceitualmente. Ao contrário, vêem-se os significados individuais como apenas sendo ativados em relação com outros significados e na história” (Idem: 132).

Finalmente, numa seqüência do trabalho, Somers arremata: “Como construções sociais igualmente vulneráveis às variações da cultura, as relações políticas e societárias são ambas distinções analíticas de uma concepção relacional e polivalente da vida social; a questão da mistura precisa entre aspectos simbólicos, políticos e 'materiais' em qualquer situação dada será apenas isto – uma questão a ser investigada, não um pressuposto abrangente. Sejam economias, estados, mercados, códigos simbólicos, ou identidades, nenhum aspecto do mundo social é mais 'natural' do que qualquer outro, mas todos constituem, como coloca Chartier, 'objetificações [representações] que constroem uma figura original a cada vez'“ (1995b: 269; cf. Alvarez et al., 1996: 8).

Metamorfoses e recriações no campo religioso brasileiro[9]

Tudo o que foi dito até aqui pode ser ilustrado no exame das novas identidades religiosas no seio do cristianismo.[10] Ilustração dos aspectos envolvidos no jogo das identidades, mas também testemunho de uma desconfiança ou silêncio quanto à possibilidade de incluir tais identidades no catálogo das novidades. É como se falar de novidade no campo religioso fosse aludir a revivescências da tradição ou ao acirramento de tendências fragmentadoras num momento de valorização do senso de comunidade e ecumenicidade. Uma novidade que não seria a mesma da representada pelos “novos movimentos sociais”. Assim, sendo a dimensão de asserção coletiva das novas identidades a única ou privilegiada forma de sua expressão, descura-se ora a dimensão disseminativa, manifestamente mais presente no caso da militância religiosa (cristã), ora a presença (ou atenção) crescentes, a partir de fins dos anos 80, dos cristãos em meio aos novos movimentos.[11]

Num trabalho recente, Paula Montero justifica a relevância da religião para a análise da relação entre cultura e democracia no contexto da globalização. Segundo ela: “Os sistemas religiosos, por serem sistemas culturais mais abrangentes e menos 'neutros' do que as práticas de consumo, poderiam constituir-se em um campo de estudo privilegiado dos processos contemporâneos de globalização dos particularismos” (1996: 94). E toma o caso da prática missionária da Igreja Católica como emblemático da complexidade da relação entre universal e particular num contexto que se pretende planetário, global e onde a questão cultural comparece fortemente. Voltaremos a isto abaixo.

Nas páginas seguintes ofereceremos algumas indicações de como a trajetória dos grupos religiosos cristãos no Brasil contemporâneo tem levado à transformação de práticas identitárias, num movimento ambíguo em termos das direções para onde aponta, mas inequívoco em termos da transição que representa para os agentes envolvidos. Encontraremos aqui tanto a dimensão disseminativa quanto a de asserção coletiva das novas identidades, embora o acento recaia substancialmente sobre a primeira, sendo a segunda uma característica apenas dos grupos mais engajados social e politicamente.

Examinaremos três áreas distintas: a relação velho/novo nas identidades religiosas, a política, e a sensibilidade à questão da cultura – destacando apenas que, nos casos concretos, individuais ou de grupos/movimentos, há quase sempre um ziguezague de cruzamentos, com direito a algumas paradas mais prolongadas em um ou outro lugar, impossível de ser apropriadamente descrito nos limites deste trabalho. Em todo caso, no meio do tiroteio, esteve sempre implicada, de uma forma ou de outra, a questão da cultura e de sua recepção/efeitos em relação à experiência de fé.

1. A relação velho/novo nas identidades religiosas 

Comecemos com o fim dos anos 70, que serve como referencial razoável da gênese das mudanças experimentadas pelas identidades religiosas no Brasil. O contexto político desta delimitação é irrecusável, pode-se perceber. Abertura política do regime militar, crescimento da oposição, ressurgência das mobilizações sindicais, proliferação de movimentos e formas de associativismo popular ou vinculadas a temas/questões (mulher, ecologia, negro, paz etc.), surgimento do PT, agravamento da crise econômica (inflação, endividamento externo, defasagem salarial, recessão, desemprego), são todos signos de um contexto de politização. As igrejas (católica e evangélicas) não passaram incólumes por tudo isso. Mesmo aquelas (ou setores delas) que reagiram mais ferrenhamente contra a onda politizante não conseguiram escapar às demandas do momento ou às acusações de que sua suposta neutralidade levava água ao moinho da ordem vigente. A divisão eclodiu no seio das igrejas, entre tradicionalistas e modernizantes, com radicais e moderados em ambos os lados, recolocando a questão do político no coração do campo religioso.

Interagindo com o clima crescente de resistência ou contestação políticas, no país e no continente, algumas igrejas (ou grupos e setores dentro das que majoritariamente reagiam ao processo) começaram a se colocar a questão da relevância e da eficácia da fé em termos de sua capacidade de inserção social e de promoção ou participação na mudança política. Com muitas dificuldades, especialmente no caso evangélico, vai se configurando um discurso crítico bidimensional – uma face voltada para a reforma eclesial e outra para a mudança da sociedade. Discurso que acompanhou não somente o ritmo, mas também o destino do discurso democrático-radical na virada da década de 90, sendo em larga medida incorporado/neutralizado ou derrotado pela visão pragmático-conservadora.

A trajetória poderia ser a grosso modo resumida assim: a experiência da crise socioeconômica, da tomada de consciência dos excessos da repressão e da percepção/participação da luta da oposição para encontrar caminhos de ultrapassagem da ordem vigente deslocou a identidade de muitos cristãos, reativando neles uma sensibilidade crítica da fé que já se exprimira historicamente em inúmeras situações.

Esta sensibilidade adveio seja de envolvimentos prévios com “o mundo” antes de 1964; seja da experiência pessoal da dureza do regime (perseguição, prisão, tortura) ou da crise econômico-social (desemprego, miséria, falta de perspectivas); seja da “observação” da situação a partir das lentes da fé. Enquanto sensibilidade ao mesmo tempo religiosa e política, esta atitude se configurou em dois “projetos”: um de reforma eclesial, outro de reforma social. Nasciam, assim, a Igreja popular (de matriz católica), a pastoral ecumênica e o movimento evangelical[12] (de matriz protestante), cuja análise já foi feita por muitos em outros lugares, não cabendo retomá-la aqui.[13]

Surge o “militante cristão” dos anos 80. Ligado ao associativismo urbano ou rural, ao movimento estudantil, sindical, de mulheres, de negros, de índios etc., aos partidos de oposição, seu papel era articular fé e vida, evangelho e responsabilidade social. Seu lugar de atuação era simultânea ou alternadamente a igreja e a sociedade. Alguns entenderam sua posição eclesiástica mais como um ponto de passagem eventual no ataque às estruturas sociais opressivas, sendo que o lugar realmente importante era o da sociedade. De qualquer forma, o discurso da fé servia como motivação e a reflexão teológica devia ser um ato segundo a este envolvimento primordial com a história, com a realidade concreta da vida, com a sociedade e a política.

Em tensão com o militante cristão emerge a figura dos católicos ou evangélicos “progressistas”, que, sem se envolverem diretamente nas manifestações públicas, apoiavam uma certa “abertura” do provincianismo (político, moral, social) eclesiástico para os novos ventos liberalizantes. Via de regra, aqueles entendiam que não era necessário mexer muito nas doutrinas básicas, para que se tornasse as igrejas mais modernas e atrativas aos não-cristãos.[14] E não eram necessárias mudanças radicais na política para que se desse a passagem à democracia e à liberdade no país. Esses segmentos, hegemonizados pela esquerda teológica até a segunda metade dos anos 80, ou bem tornar-se-ão a nova liderança pós-transição, ou bem aliar-se-ão aos setores conservadores para conterem os “excessos dos radicais”, e retomarem o “equilíbrio”.

Ao longo dos anos 80 foram jogados os lances decisivos da batalha pela dupla reforma, opondo os tradicionalistas aos modernizantes, com visível vantagem para os últimos, até que o final da década traz à tona os limites da compreensão politizada da fé (associada à teologia da libertação e à pastoral popular) paralelamente a uma retomada conservadora a nível mundial (na política e na religião), à derrocada do socialismo real, culminando com a derrota eleitoral das esquerdas em 1989. Como resultado, instaura-se uma nova hegemonia, se não francamente conservadora, pelo menos pragmática, redescrevendo a problemática radical ou “progressista” dos anos anteriores em termos da “recuperação de ênfases perdidas”.

O saldo disto tudo foi um rearranjo geral do campo, nos seguintes termos:

parte das demandas e do discurso da esquerda teológica foi legitimada e adotada pela nova hegemonia (moderada ou tradicionalista) e redescritas num tom espiritualizado, metafórico;

a pastoral popular (católica e ecumênica) entrou em franco processo de reavaliação, passando a valorizar mais a dimensão emocional, carismática, mística da fé como específico-religioso inegociável em relação a qualquer prática politizada intramundana. Igualmente, as resistências ideológicas antes oferecidas aos evangelicais são abrandadas, abrindo-se um diálogo em busca de uma resistência comum à maré conservadora;

os segmentos moderados/conservadores foram afetados pelas disputas da década anterior, vindo a admitir a legitimidade de posicionamentos políticos das Igrejas, em determinadas conjunturas, e do envolvimento cidadão dos seus membros, permanentemente; a penetração de mudanças litúrgicas ou na pregação defendidas pela esquerda teológica; uma tímida, mas perceptível, liberalização de costumes (cuja profundidade varia enormemente conforme a região ou a denominação), no caso do protestantismo;

os segmentos radicais têm estado na defensiva desde então e em busca de novas áreas ou temas de reagregação das forças mobilizadas no período anterior à crise. No campo da teologia, a reflexão sobre os impasses da teologia da libertação ensejou uma retomada da relação entre teologia e economia; a abertura à questão da cultura; a emergência de um paradigma místico-ecológico (notadamente nos trabalhos de Leonardo Boff); o enfrentamento das questões da espiritualidade, da mulher e da contribuição afro-indígena ao cristianismo do continente; o esforço para dar dignidade teológico-política à problemática do pluralismo.

No campo católico, desde fins dos anos 80, setores da pastoral popular começaram a difundir uma autocrítica relativa ao racionalismo pastoral, à hiper-politização do discurso da teologia da libertação e à descoberta da gratuidade da experiência de fé e de partilha. O tom geral é o de uma sensibilização do discurso teológico,[15] abrindo-se à questão da “cultura”, tomada num sentido que inclui a etnicidade, o cotidiano, a subjetividade, o gênero, o corpo, o prazer, a espiritualidade, como dimensões de um mesmo domínio, o da construção e afirmação de uma identidade coletiva, comunitária.

Paralelamente, cresceram em espaço e importância os movimentos teo-logicamente conservadores, de base internacional, diretamente apoiados pelo Vaticano. Com sua ênfase quase exclusiva na experiência religiosa individual e sua preocupação com a perda de membros para as religiões afro e o (neo)pentecostalismo, esses movimentos ganharam espaço no refluxo da pastoral. Se ao nível dos posicionamentos da CNBB ainda se pode perceber com certa clareza a atuação da esquerda teológica (CNBB, 1990; CNBB, 1992), houve um encolhimento da pastoral popular, que perdeu muito da pujança e independência de antes (Teixeira, 1993: 19-23). Ante a (re)paroquialização das CEBs, chegou-se mesmo a falar em institucionalizá-las como paraeclesiásticas, à maneira do protestantismo, mantendo o vínculo teológico com a Igreja, sem se subordinar inteiramente à hierarquia (Ploeg, 1988; 1991).

A nova face da Igreja, assim, ainda fala uma linguagem “da libertação”, ao mesmo tempo que o sentido desta fala é muitas vezes impreciso, es-piritualizado e despolitizado. Isto é, se fosse possível falar de uma face, pois parece que o modus vivendi alcançado foi o de se respeitarem os diferentes “catolicismos” de cada tendência, colaborando no que é possível, abrindo espaços nas promoções de cada uma para uma certa participação das demais e seguindo caminhos diversos quando os limites de cada identidade colidem com os de outra(s). Na medida em que o princípio hierárquico mantém-se inalterado, e mesmo fortalecido, a “unidade na diversidade” publicizada mal disfarça os efeitos de escaramuças em que o “novo jeito de toda a Igreja ser” parece muito com o que esta sempre foi.

No campo evangélico, a crescente visibilidade social e política do pen-tecostalismo revelou um dinamismo insuspeitado anteriormente. Os setores ecumênicos tiveram destino semelhante ao da pastoral católica. Entraram esta década se questionando sobre os erros estratégicos cometidos ao tentarem aplicar no modelo eclesiológico protestante (simultaneamente fissíparo e com alto grau de adesão ativa dos seus participantes) a orientação da pastoral popular, de inegáveis contornos católicos.[16] Além do mais, descobriram o valor da espiritualidade como experiência de gratuidade ao mesmo tempo que o protestantismo brasileiro se “pentecostalizava” teológica e litur-gicamente – maior espontaneidade nos cânticos, nas “declarações” em voz alta, maior flexibilidade litúrgica (quase total ausência de momentos simbólicos ou sacramentais, aceitação definitiva de uma imensa variedade de instrumentos e ritmos musicais e discreta utilização de recursos multimídia, explosão da música gospel, das bandas e shows), nova modulação da linguagem (grande ênfase na “luta espiritual” contra as forças do mal, na arregimentação do exército dos santos, comandados por um Deus guerreiro, acrescida de certos momentos de relacionamento amoroso com Deus, com confissões de amor e juramentos de fidelidade etc.).

A perda de dinamismo missionário das igrejas tradicionais, agora atra-vessadas de dentro pelas demandas espiritualizantes dos simpáticos à matriz pentecostal, pôs em xeque a pastoral ecumênica como alternativa interna ao campo protestante.[17] Mas, por outro lado, relaxou a má consciência de ser “diferente demais”, assumindo uma postura abertamente pluralista: não dá para sair por aí fingindo aceitar a pentecostalização do perfil comunitário evangélico, mas já não se trata de uma batalha entre a verdade e o erro. Como para a linha da libertação católica, trabalha-se junto onde der, cada um vai para seu lado quando as diferenças são mais importantes, e faz-se o trabalho miúdo de propagação e debate sem o qual não pode existir alternativa contra-hegemônica. Como a face comum do protestantismo nunca foi institucional, a luta de trincheiras continua possível e mesmo elevada a valor estratégico.

O movimento evangelical, com sua mescla de conservadorismo teológico e postura política de centro-esquerda ou esquerda, conseguiu ganhar terreno no meio disso tudo, tanto em relação aos “fundamentalistas” quanto aos liberacionistas. Entrou nos anos 90 amplamente disseminado nas igrejas –o que não significa oficialmente legitimado– e dotado de um suporte institucional, para cuja criação contribuiu fortemente: a Associação Evangélica Brasileira (AEvB). Além disto, a esquerda evangelical organizou, com o apoio, em alguns lugares, de setores ecumênicos, o Movimento Evangélico Progressista (MEP), que cresceu desde seu surgimento em 1990, e já realizou dois congressos nacionais (o último em junho de 1996, em Paripueira-AL). Boa parte das lideranças históricas do movimento engrossou as fileiras da politização e perdeu espaço no rearranjo de forças intra-eclesiástico ocorrido na virada dos anos 80/90. Há uma nova geração, mais pragmática, menos exigente nas suas alianças e mais orientada para um sentido de ocupação de espaços institucionais no campo evangélico, majoritária inclusive na AEvB. A esquerda evangelical aproximou-se decididamente da ala ecumênica, abrindo um espaço de diálogo e ações conjuntas insuspeitado antes do fim dos anos 80.

Ante a desmontagem da Igreja popular; o arrefecimento do ânimo militante das instituições eclesiásticas; e a hegemonia de uma espiritualidade verticalista, que se relaciona instrumentalmente[18] com as dimensões da cultura e da política e pragmaticamente com as diferentes correntes teológico-pastorais, só se pode imaginar as dificuldades vividas pela geração crítica que ainda se mantém nas igrejas “realmente existentes” para sobreviver espiritualmente ali. Isto vem gerando uma dispersão que borra as fronteiras institucionais das instituições eclesiásticas, bem como a divisória católicos/ecumênicos/evan-gelicais, criando aquilo que os teólogos nos anos 80 chamaram de o eclesial (por distinção ao eclesiástico) e que se expressa de diversas maneiras: (i) o abandono de toda freqüência a comunidades de fé, sem se abrir mão do referencial de fé e da vinculação ao espaço eclesial (não-institucional); (ii) a busca de pequenos grupos ou comunidades alternativos, reunidos com regularidade ou não; (iii) a participação em organismos ecumênicos ou para-eclesiásticos sensíveis às demandas religiosas e ideais desta geração; (iv) a participação em eventos (congressos, simpósios, encontros) regionais, nacionais, onde se possam “reabastecer” as energias dissipadas na luta cotidiana (social e eclesial/ástica) e satisfazer às necessidades religiosas não cobertas pelas igrejas ou comunidades disponíveis; (v) a “resignação” ante a falta de alternativas, com a tentativa de se inserir até onde for possível nos espaços “oficiais” existentes e modificá-los incrementalmente.

Resta ainda destacar como, por outro lado, as identidades religiosas no protestantismo dos anos 90 vêm experimentando uma decidida mas não alardeada flexibilização dos costumes, testemunha de uma maior integração à sociedade brasileira. Passados os tempos em que “ser crente” era não beber, dançar, fumar, jogar, fazer sexo antes do casamento, ir a cinemas, bares e boates, usar gíria ou palavrão (embora alguns ainda assim o entendam), percebe-se uma prática pouco a pouco mais extensiva, silenciosa, mas assumida, de se permitir moderadamente esses prazeres da carne ou formas de comportamento. Isto se dá como parte de uma visão da moral cristã mais atenta às necessidades do corpo e da mente e questionadora dos condicionamentos culturais ou históricos das interdições citadas, e que alcança sobretudo a juventude e a geração anos 60. Curtir a MPB ou a música regional, inclusive ir a shows; fazer terapia para “trabalhar” traumas familiares e religiosos; ir à praia (e não à escola dominical) no domingo de manhã, são outras tantas atitudes que atestam um mundanismo “suave” em que muitos de seus praticantes são participantes ativos e ortodoxos de comunidades evangélicas.

2. Identidades religiosas e política

Esta foi a área de maior potencial de conflito, mas também a porta de entrada para muitos dos avanços que se deram nas igrejas nas últimas décadas. Via de regra, foram os cristãos politizados, católicos e evangélicos, que primeiro se aperceberam de como o apoliticismo ou reacionarismo das igrejas estava vinculado, dentre outras coisas, à rejeição da cultura e do mundo, a padrões autoritários de exercício do poder eclesiástico, a formas de discriminação social, racial e sexual a partir da própria vida eclesial, à perda de relevância da mensagem cristã na situação contemporânea e ao enrijecimento e monotonia das cerimônias religiosas. Para além de toda crítica (e autocrítica) que se venha a fazê-los, não se poderá jamais deixar de registrar esta contribuição.

A resistência e a transição democráticas colocaram uma agenda para as instituições religiosas que, a despeito da veemente recusa de seus setores conservadores, atualizava ou modulava dentro delas uma série de demandas que emergiam na sociedade “lá fora”. No caso católico, seguindo um padrão histórico de presença política da Igreja, já amplamente conhecido, apenas com uma significativa mudança de sinal: a igreja hierárquica –mobilizada nas bases pelas CEBs e pastorais especializadas– estava na vanguarda da oposição. No caso evangélico, algumas igrejas históricas (especialmente as Metodista, Episcopal, Presbiterianas Unida e Independente e Evangélica de Confissão Luterana) foram hegemonizadas pela ala liberacionista, com episódica e localizada presença em outras (Batista, Presbiteriana do Brasil, Congregacional, Luterana do Brasil etc.). Os evangelicais, bem menores e menos organizados, estiveram presentes em todas estas, e fizeram incursões pelas pentecostais (especialmente a Assembléia de Deus). A maior parte das comunidades, porém, resistiam a qualquer envolvimento com a política.

Isto mudou profundamente, desde pelo menos as eleições para a Constituinte em 1986, chegando a um grau hoje em que os partidos e candidatos que não levam em consideração os grupos religiosos em seu discurso e estratégia correm sério risco de se complicarem ou inviabilizarem eleitoralmente. Notadamente em relação aos evangélicos, uma vez que a pastoral popular católica já tinha canais de comunicação em certas áreas do espectro político e a hierarquia sempre mostrou grande desenvoltura na política institucional. Apesar de ainda ser uma parcela pequena da população, os evangélicos tornaram-se muito ciosos de sua dimensão pública, da importância de traduzir em representação a força numérica que possuem hoje, sem falar no padrão de freqüência regular, que é indiscutivelmente mais intenso do que no catolicismo.

Na esteira de toda a experiência da pastoral popular e dos esforços do evangelicalismo radical, duas atitudes assinalam importantes mudanças: primeiro, a impaciência frente à noção de “projeto”, naquilo em que esta implica numa estabilização “precoce” do caráter plural e contingente da articulação entre religião e política. Uma valorização do cotidiano, da “experiência pequena”, do esforço pela negociação de um modus vivendi em meio à diversidade de práticas e concepções de fé e política, são traços marcantes entre ecumênicos e evangelicais. Segundo, o “retorno” à rediscussão de concepções básicas, quando menos a própria noção de “política”, seu “quê” e seu “quem”, e a relação entre lutas particulares e horizontes globais de mudança. Não basta mais postular a legitimidade da política no campo religioso, ou mesmo a quem apoiar. O debate também inclui a redefinição de “política”, pois a dimensão cultural por tanto tempo maltratada na tradição radical penetrou com força no discurso político. E traz com ela o potencial de desestabilizar ar-gumentos objetivistas ou de autoridade e de pressionar por arranjos pluralistas.

Num texto recente procurei investigar, no contexto da celeuma em torno da Igreja Universal do Reino de Deus instalada em fins de 1995, em que medida se poderia falar de uma contribuição da identidade e práticas religiosas –no caso, pentecostais– à democratização (cf. Burity, 1996). Explorei ali algumas hipóteses preliminares sobre a questão da cultura política, que poderiam ser ampliadas aqui com as seguintes considerações, feitas a partir da análise parcial de entrevistas com candidatos religiosos a vereador do Recife nas últimas eleições (1996)[19]. Dentre outras preocupações, tentou-se relacionar os valores e experiências políticas dos candidatos a sua identidade religiosa.

A primeira observação geral a se fazer é que não se pode traçar uma homologia entre conservadorismo e radicalismo na religião e na política. O que se coloca nos últimos anos é a vigência do pluralismo de valores a que aludimos anteriormente, de tal forma que as composições entre os dois campos são as mais variadas. Visto de uma perspectiva normativa, acho que é possível dizer que o conservadorismo religioso não põe nenhum empecilho intransponível à vivência democrática e que o radicalismo político –até onde representado na amostra– caminha cada vez mais para a introjeção de práticas pluralistas e para a tolerância de posturas conservadoras em religião.

A identificação de valores bíblicos ou teológicos que dêem respaldo seja à legitimidade da atuação político-partidária, seja à democracia, seja a atitudes específicas quanto à justiça social, à pobreza e à dominação, é extremamente genérica ou mesmo inconsistente na fala da maioria dos entrevistados. Mais precisamente, ao serem indagados sobre quais daqueles valores informam ou embasam sua decisão de concorrer a um cargo eletivo ou sua atuação sociopolítica prévia (quando havia), muitos identificam elementos que remetem a uma avaliação negativa da política (concreta) e se reportam a um nível de leitura da Bíblia que não se beneficia dos avanços no campo da teologia. Trata-se, portanto, de uma articulação leiga (ao mesmo tempo não-clerical e não-teologizada), no sentido comum do termo. “Honestidade” (no trato da coisa pública e no relacionamento com o povo – sinceridade), “ética” (assimilando-se bastante a honestidade), “ser porta-voz e braço de Deus no mundo”, “solidariedade”, “fé/esperança”, “amar o próximo”, “respeito à religião dos outros”, “honrar os compromissos”, “igualdade para todos”,[20] “a verdade que liberta/liberdade plena” e os exemplos bíblicos de José, Daniel, Davi, Jesus, são os princípios declarados.

O que poderia nos indicar, comparando-se com a riqueza de elementos oferecidos pelo discurso teológico e pastoral dos anos 80, que algumas das questões mais candentes da política brasileira nos anos 90 –falta de ética, valorização da competição, falta de vigor na luta contra a desigualdade, crise de autoridade da elite política–[21] fazem ressoar temas que nem sempre estão explicitados na tradição bíblica, mas se associam à imagem tradicional da pessoa re-ligiosa: honestidade, integridade, solidariedade. Atitudes que, por sua vez, são compreendidas individualmente, apesar de valorizadas como ideais comunitários.

A cultura política que transparece nas falas dos candidatos entrevistados aponta para a valorização da democracia, principalmente na sua modulação liberal (institucional, eleitoral, procedimental), mas também na cívico-re-publicana (participativa, igualitária),[22] mesmo em presença de uma clara insatisfação com as manifestações concretas da política. Esta insatisfação é demonstrada em relação a ambas as tradições democráticas. No caso do liberalismo, aponta-se insistentemente o hiato entre as práticas institucionais vigentes e os valores éticos da lisura, da isenção, da imparcialidade, da transparência, da responsabilidade diante da sociedade e/ou do eleitorado. Também se questiona a obrigatoriedade do voto, um elemento específico da ordem liberal brasileira, como óbice à idéia de liberdade. Há ainda uma clara asserção da separação de esferas entre igreja e estado, religião e política, embora isto não implique num juízo negativo sobre a atuação política de pessoas religiosas, ou mesmo sobre a responsabilidade da igreja de preparar para o exercício da cidadania. Enfim, os canais institucionais existentes para resolução de conflitos e encaminhamento de demandas sociais –justiça, polícia, partidos, instâncias de participação da sociedade civil em órgãos públicos– são avaliados como insuficientes em número ou débeis em seu funcionamento e utilização por parte dos cidadãos.[23] Para um candidato do PMDB, a pressão necessária às mudanças não consegue encontrar espaço nos canais existentes. Não há nenhuma postura antiinstitucional, contestatária, na fala dos entrevistados.

No caso da tradição cívico-republicana, confrontam-se as discriminações, a apropriação privada de recursos públicos e as gritantes desigualdades sociais, por um lado, com a idéia de que uma sociedade democrática tem que proporcionar condições de igualdade (social e econômica) a seus cidadãos. Um outro aspecto destacado por cerca da metade dos entrevistados refere-se à valorização da participação e mesmo à afirmação (por uma candidata do PPS) de que os conflitos e a bandeira da justiça social estão sendo hoje encaminhados por organismos da própria sociedade, com maior conhecimento de causa dos problemas específicos e menor ambição pela ocupação de espaços de poder (em contraste com os partidos políticos). Assim, há vários candidatos que participam ou apóiam o trabalho de organizações de direitos humanos, mulheres, crianças e adolescentes. A prioridade definida pelo candidato do PMDB já citado foi a de modificar a sociedade a partir da sua organização, pressão sobre o governo, esclarecimento e luta contra a desigualdade social. Para ele, se hoje há mais liberdade no país, ela é “puramente política”, faltando ainda “a liberdade social propriamente dita, a liberdade econômico-social do povo”. Outro entrevistado, do PT, afirma que “viver uma democracia é garantir ao povo a riqueza que o país produz”, o que exige uma democracia “diferente”, “onde haja justiça social, distribuição de renda, escola para todos, emprego, uma vida digna”. Assim, a participação (organização, informação, pressão) torna-se essencial para se avançar na democratização, mesmo se saiba quão desconhecedora ou desencantada das coisas da política a população se mostra: “eu não acredito em nenhum governo e em nenhum parlamento se não tiver sintonizado com a sociedade civil organizada, porque pra mim são os movimentos, são [sic] a participação do povo que muda a sociedade”.

Nenhum dos candidatos avalia a política (seja na dimensão teórica, seja na dimensão prática) em termos de posições estruturais dos agentes sociais nem pela contraposição de modelos econômicos (capitalismo, socialismo etc.). A única possibilidade desta leitura é na genérica e retórica afirmação de compromisso com os pobres. Mas estes não aparecem, com a exceção do único candidato do PT entrevistado (ligado à pastoral católica), nem como excluídos, segundo uma terminologia amplamente difundida hoje, nem como oprimidos. São os “mais fracos”, os “menos favorecidos da sorte”. Somente uns poucos assumem a divisão social (e o conflito, a competição) como dados “naturais” de uma sociedade democrática.

Perguntados pelas razões de sua candidatura, os entrevistados aventaram motivos já comuns ao discurso político: convocação de amigos e forças sociais (5), posse de qualificações para o exercício do cargo (3), desejo/possibilidade de provocar mudanças (3), motivação de fé (3), continuidade do trabalho já realizado como vereador (1), necessidade da igreja de ter um representante (1). Mesmo considerando-se que, sendo a situação de entrevista parte da campanha destes candidatos, sua tendência é de dar uma “dimensão maior” a sua candidatura, pode-se dizer que a motivação corporativa é mínima entre os entrevistados. Em outros trechos das entrevistas isto se confirma, indicando que a aceitação do caráter supra-religioso da representação parlamentar é inquestionada e que mesmo entre os pentecostais (5 dos entrevistados), a maioria (4) não aventa qualquer projeto corporativista. O vereador é um representante de toda a cidade, mesmo quando mantém uma relação mais forte com uma ou mais comunidade(s) específica(s). Nesse sentido parece ser preciso relativizar para o caso estudado o argumento amplamente difundido de que a intensificação da participação evangélica tem sentido corporativo e sem compromissos mais amplos com a sociedade em geral. O candidato ligado à Igreja Universal não fez uma única menção de representar a igreja; isto só ocorreu com um candidato, ligado à Igreja do Evangelho Quadrangular.

3. Identidades religiosas e a dimensão cultural

Um aspecto notável do discurso religioso nos últimos oito anos, pelo menos, é a crescente sensibilidade para a questão da cultura. No campo católico, tal sensibilidade veio a par com a crise da pastoral e mesmo por ocasião da definição da questão cultural para o VIII Intereclesial das CEBs, houve resistências dos setores mais radicalizados, que viam o tema como um desvio do que realmente importava para a luta emancipatória dos pobres. Afora esta questão estratégica relativa ao lugar do problema na concepção da pastoral, poder-se-ia dizer que para os setores moderados e conservadores a atenção para o tema sinalizava tanto para uma confissão da esquerda religiosa de que teria deixado de lado aspectos importantes da vivência social quanto para uma arena menos polarizadora (leia-se politizada) de debate e atuação das igrejas. Ao que tudo indica, a questão da cultura desarma ambas as assunções, apontando para aspectos extremamente sensíveis –e altamente politizáveis– das instituições religiosas e da sociedade em geral, relativos à história da evangelização (e a violência feita às “culturas oprimidas”, como denomina Clodovis Boff: negra, indígena, das mulheres, dos migrantes, dos operários, dos camponeses, dos marginalizados – cf. Boff, 1993: 73-75), à repartição do poder na igreja e na sociedade e à situação desses grupos na estrutura social. A julgar pelas propostas de ação afirmativa dos grupos subalternos, organizados em torno de demandas culturais, no interior das igrejas (especialmente a Católica) e através de redes de movimentos sociais, o conflito pode ser até mais explosivo do que a clivagem ideológica dos anos 80.

Já em 1989, durante o VII Encontro Intereclesial das CEBs, em Duque de Caxias-RJ, dois motivos são detectáveis, subjacentes a afirmações de força e chamadas à unidade: (i) a frustração das esperanças de mudança substantiva bem como de abordagens ultrapolitizadas da vida social; (ii) a emergência do tema cultural. Um assessor protestante da pastoral popular comenta: “E essa questão da cultura, tem-se mostrado nas CEBs que ela é muito mais revolucionária do que a própria concepção política que você tinha antes. Porque era muito mais fácil você fazer a identificação da sua contradição, do seu inimigo, entre o burguês e o proletário. (...) Agora, você colocar nessa contradição de que é o branco, de que é o negro, de que é o índio, de que é a mulher... quer dizer, a questão complicou extremamente”. Surgem implicações muito mais amplas do que comportava a concepção de política que se tinha antes, as quais remetem a uma questão “mais global, mais geral, porque aí você vai enfrentar a questão do cotidiano, vai enfrentar a questão da vida das pessoas, do nascimento das pessoas, dos seus valores, da sua arte, da sua visão de mundo, que era esquematizada através dos elementos socioanalíticos com os quais nós estávamos trabalhando”.

O teólogo da libertação João Batista Libânio vai mais longe e diz: “[n]a questão da cultura, a Igreja aparece diretamente como a força opressora. É ela que se mostra marcada por uma cultura branca, machista, ocidental e que, sobretudo nos seus centros de poder, sente dificuldade com a inculturação profunda da fé, da liturgia, da canonística no mundo negro, ameríndio e feminino” (apud Teixeira, 1996: 114). A inculturação, que se torna ponto permanente de reflexão no campo católico desde então, em sua abrangência litúrgica, teológica e pastoral, é tema polêmico.

Neste caso, a abertura ecumênica, favorecida especialmente a partir da teologia da libertação, possibilitou uma dupla reconstrução, da subordinação e da contribuição de setores marginalizados (especialmente negros, índios e mulheres) para a mestiçagem do cristianismo latino-americano. E não apenas a recontagem da história dos subalternos, após quinhentos anos de evangelização no continente, mas também os “enxertos” sugeridos ou praticados em várias ocasiões no corpo da doutrina e da prática da Igreja oficial, têm gerado uma série de clivagens. Assim, demanda-se não só a reescritura desta história, mas maior presença, por ex., de negros e mulheres no ministério ordenado ou em funções estratégicas de liderança eclesiástica; a introdução de aspectos dessas culturas na liturgia; e o empenho da Igreja por uma nova configuração social que rompa com o preconceito e a exclusão seculares e dê espaço a representantes, reivindicações e formas de ser provenientes daqueles grupos.

Para Marcello Azevedo, a inculturação diz respeito ao “diálogo da mensagem cristã com uma cultura concreta, em nível de suas próprias raízes, de modo a articular fé e vida, e a permitir que esta cultura, inspirada e transformada à luz do Evangelho, possa expressar a fé em seus próprios termos...” (apud Teixeira, 1993: 24). Tal compreensão esteve presente no VIII Encontro Intereclesial de CEBs, em Santa Maria-RS, em setembro de 1992, onde o tema das culturas oprimidas foi visto à luz do projeto evangelizador da igreja latino-americana, em seguida discutido na reunião da Celam em Santo Domingo. Cultura aparece aqui como uma espécie de sinônimo ou paralelo de “saber popular” (Teixeira, 1993: 25), cuja ignorância por parte da “linha de libertação dos empobrecidos” constituiu-se numa forma de sujeição destes, mas também numa das razões da falta de resposta da massa ao discurso da libertação.

Segundo Teixeira, considerar a cultura é passar em revista a evangelização católica na América Latina, salientando o confronto, a “destruição da alteridade” que a caracterizou em larga medida (Idem: ibidem) e fazendo emergir “a consciência da diversidade cultural e de sua complexidade, bem como a necessidade de pensar a mensagem evangelizadora a partir dos códigos e da lógica cultural do outro. Só é de fato capaz de chegar ao outro aquele que consegue fazer a experiência do próprio limite, a experiência do mistério, a experiência do ‘esvaziamento’” (Idem: 26). Contra este pano de fundo, a redescoberta da espiritualidade seria uma experiência para além dos muros da igreja e da crise da pastoral, atestando uma crise dos paradigmas da modernidade e a emergência de novas formas de subjetividade, no que ela tem de afetividade, simbolismo, gratuidade, promessa, projetos de realização pessoal (Idem: 39-40).[24]

Desta forma, se é possível dizer que a inculturação penetrou firmemente no discurso missiológico e eclesiológico católico, não se trata de um suplemento insípido, mais fácil de contornar do que o suplemento político dos anos 70/80. Ele levanta questionamentos não apenas para a “Igreja oficial”, como para a “Igreja na Base” (referenciada nas CEBs). É pela mão da “cultura” que a teologia da libertação se colocou seriamente a questão da modernidade (cf. Boff, 1993: 83ss; CNBB, 1992: 7-16). Na ata da segunda reunião da Comissão Episcopal com representantes da Comissão Nacional Ampliada, Assessoria e Secretariado do Intereclesial de CEBs, preparatória do IX Encontro, realizada em abril de 1995, a questão da inculturação assume destaque, admitindo-se os desafios que coloca mesmo para a pastoral liberacionista: se as CEBs já vêm na prática avançando nessa direção em termos da liturgia, do uso da Bíblia, do ecumenismo, da afetividade expressa na vivência comunitária, na participação dos leigos, na atitude solidária, no testemunho e na espiritualidade, os desafios que se colocam dizem respeito à sua relação com as massas e a modernidade, a cultura urbana e o pluralismo cultural e religioso; à participação da juventude; à relação entre culturas locais e a televisão; e à articulação com as igrejas (apud Teixeira, 1996: 222-25).

No campo evangélico, o tema da cultura ganha visibilidade na virada dos anos 70/80 em discussões teológicas nas igrejas históricas a respeito da necessidade de contextualização da pregação e da liturgia às demandas do “ho-mem moderno”. Tratava-se de uma espécie de aggiornamento, que assumia a defasagem da linguagem e dos recursos utilizados pela evangelização protestante no país e a perda do dinamismo missionário das igrejas tradicionais ante o avanço do pentecostalismo. Aggiornamento, entretanto, que foi resistido internamente, por ser associado ao clima politizante dentro e fora das igrejas – o que era parcialmente correto, já que quase sempre eram as mesmas pessoas que se apercebiam do problema missiológico e do problema político: jovens pastores, teólogos e intelectuais (incluindo-se estudantes universitários). A contextualização tinha raízes em duas fontes teológicas então antagônicas, o movimento ecumênico e o movimento evangelical. O primeiro em franco processo de radicalização teológico-política desde os anos 50; o segundo, abrindo-se, timidamente, a partir de meados dos anos 60, para associar evangelização e sensibilidade social e política, evangelização e enraizamento das expressões de fé protestantes nas culturas locais. O desacordo estava no grau de radicalidade do compromisso político e da autocrítica teológica e missionária em relação à questão da cultura, os evangelicais, via de regra, posicionando-se em defesa da ortodoxia.

Em ambos os casos era uma problemática da autoctonia, da “indigenização” das igrejas evangélicas duplamente marcadas pela conformação teológica e eclesiológica dada pela ação missionária ocidental (especialmente norte-americana) e pela força da postura de negação da cultura local (nacional ou particular). Mais precisamente, como observa Longuini, “[a] contextualização inclui tudo o que é inerente ao conceito... de 'indigenização', mas procura ir mais além. Ela se relaciona com o modo pelo qual avaliamos a peculiaridade dos contextos no Terceiro Mundo. O conceito 'indigenização' tende a ser usado no sentido de responso ao Evangelho em termos de uma cultura tradicional. A contextualização, embora não ignore essa noção, leva em consideração o processo de secularização, a tecnologia e a luta pela justiça humana...” (1991: 74).[25]

A admissão de elementos da cultura brasileira na liturgia e na mensagem das igrejas tem sido tema explosivo também no campo protestante. A postura antimundana que incluía uma rejeição da cultura como decaída e anticristã, a ser radicalmente reformada a partir da conversão individual, foi sendo mitigada com o tempo. A introdução de ritmos brasileiros no cancioneiro evangélico, a utilização de instrumentos musicais ligados à cultura popular, afro ou pop (principalmente os de percussão), e a “informalização” da linguagem da pregação foram alvo de muita controvérsia, mas afinal se instalaram.

A forma desta instalação não é, porém, uniforme. Do lado ecumênico e, até certo ponto, evangelical, contextualização abre um debate teológico, tanto quanto pastoral. A cultura questiona a prática da igreja como “produto importado” e como visão estreita da relação entre fé e cultura, tomando acriticamente os condicionamentos históricos do discurso protestante anglo-saxão como parte integrante do “depósito da fé”. Discutir a cultura é assumir o descompasso entre o evangelho anglo-saxão e uma certa releitura das origens e da história do cristianismo à luz da encarnação, entre o cristianismo brasileiro e a modernidade do país, entre as marcas rurais da penetração do protestantismo até a primeira metade do século e o caráter urbano da sociedade atual. É tornar parte da agenda questões como padrões de comportamento individual (associadas ao “ser evangélico”); o lugar da mulher na família, na igreja e na sociedade; o lugar das culturas indígenas e negra(s) nas expressões litúrgicas e teológicas do protestantismo; os dilemas éticos levantados pela tensão entre secularidade e reasserção religiosa tradicional nas últimas duas décadas. É, enfim, fazer a recepção da música, da expressão corporal e da linguagem da cultura afro (brasileira, caribenha, norte-americana, africana) bem como das culturas regionais (“nordestina”, “gaúcha”, “mineira”, “goiana” etc.).

Do lado conservador (incluindo-se parcelas do movimento evangelical) o diálogo com a cultura é presidido por uma lógica instrumental: a eficácia evangelizadora recomenda que se utilizem recursos diferentes para públicos diferentes. A juventude gosta de música e de “agito”? Muita música e linguagem informal, com algumas gírias bem comportadas, podem ser muito mais atraentes do que os velhos hinos arrastados e a retórica agressiva dos velhos pregadores. Procura-se estabelecer uma distinção entre a forma e o conteúdo culturais, recolhendo a primeira e dando-lhe uma nova conotação. Reocupação instrumental, que despreza o ethos implicado nas manifestações culturais de que lança mão em função da conversão dos não-evangélicos ao mesmo tempo que quer alcançá-los através daquilo com que se identificam. Tendo lutado ao longo dos anos 70 contra as guitarras, as baterias e a música pop nas igrejas, nos anos 80 contra o samba, a bossa nova, o baião e as expressões corporais (como a dança, as palmas e os gestos), as igrejas e movimentos conservadores os recrutam agora, no âmbito da era gospel, para apresentarem-se renovadas e atraentes a um público mais diferenciado e exigente do que nunca, inclusive em matéria de religião. Os “louvorzões” e os shows multimídia (em igrejas, clubes ou estádios) apontam para uma nova era, em que tradicionais e pentecostais se informalizam e navegam a crista da revolução tecnológica (várias home pages de igrejas e agências paraeclesiásticas já podem ser acessadas na Internet no Brasil) “em nome de Jesus”.

Não há que se deplorar isso tudo. O processo de desterritorialização de práticas e modelos culturais (seculares e religiosos) já vai em estágio avançado. Somente uma época de sistemática e eficaz reuniformização das diferenças, em nome de alguma grande ameaça (nacional ou global) pode reverter o quadro. A hibridação do cristianismo católico-romano e do protestante anglo-saxão foi se dando em ondas mais ou menos sucessivas e responde pela história moderna desta religião, se entendermos por moderno não apenas uma época histórica, mas também um regime em que entram em tensão permanente, por um lado, a sacralização da ordem social e o modelo de cristandade, e por outro, a secularização e a separação de igreja e estado. Num certo sentido a desterritorialização e hibridação são salutares, são sinais de vigor e plasticidade de projetos particulares candidatos ao universal. Apenas não se pode tomá-las como dados irresistíveis ou mesmo irreversíveis; não se pode acolhê-las simploriamente.

Não há como estabelecer, em geral, um critério de adjudicação entre a contextualização conservadora, instrumental, e a ecumênica/evangelical, crítica. Dizer que a primeira é ilegítima, monológica ou restrita e que a segunda é respeitosa da diferença, dialógica e ampla é já se colocar desde a perspectiva da última. É talvez ignorar, como destaca Monteiro, que a expressão inculturada da fé “repõe, em outro nível, o dilema inerente à contradição de procurar preservar ao mesmo tempo a independência da mensagem do evangelho frente às culturas e a sua capacidade de inserir-se na cultura local” (1996: 98). Afinal, mesmo de forma inculturada, a evangelização quer libertar a cultura nativa de suas limitações. Limitações, acrescentemos, que nem sempre são uma imposição do olhar evangelístico, na medida em que produzem identificações em muitos desses nativos. Monteiro elenca algumas observações preliminares para destacar que o não-relativismo desta posição acaba sendo uma recusa a dar “o salto mortal da afirmação da alteridade bruta, inteiramente outra”, representando uma forma algo envergonhada do projeto ocidental por excelência de devorar as diferenças em nome de valores universais (Idem: 100).

A posição de Monteiro me parece insuficiente para dar conta do complexo jogo de identidade e alteridade que se desenrola aqui. Ela dá a entender que a alteridade guarda identidades puras e sempre abertas ao encontro, mais respeitosas da diferença do que o “lado de cá”. Assim, qualquer pretensão hegemonizante –que necessariamente implica a questão da relação entre o universal e o particular– pareceria uma invasão inaceitável da alteridade. Não estamos aqui nas fronteiras de uma postura essencialista? A julgar pelo que Monteiro diz adiante sobre cultura e democracia (cf. Idem: 106-07, 113), precisaríamos dizer que não. O que levantaria a pergunta do porquê de sua impaciência ante o discurso inculturador. Afinal, se a Igreja católica (referente da autora) tornou-se um campo de luta também nesta área, a ambigüidade do discurso da inculturação deveria ser admitida de partida. E com ela, a atenção para com as vibrações que atestam a vigência da negociação entre identidade e alteridade para além de qualquer “salto mortal” para um ou outro lado – cobrança ilusória de um discurso que descura o antagonismo e o efeito de fronteira que organiza o espaço dos encontros e desencontros entre as identidades.

Considerações finais

A redescoberta das identidades subalternas e os repertórios de ação mo-bilizados para afirmá-las não podem ser creditados a um puro “despertar” dos oprimidos, nem dos locais. Paradoxalmente, os fluxos globais também dizem respeito ao que foi discutido aqui em termos da “recepção” da cultura nos movimentos identitários e na religião. O timing e as formas da contestação trazem uma forte marca ocidental e contemporânea. O retorno da volta às raízes não traz uma pureza recuperada, mas a percepção do enredamento, da contextualidade das identidades, ainda que tal percepção seja resistida em alguns espaços como resquícios da subordinação aos esquemas dominantes. Das ações afirmativas à inculturação, o que é novo e da ordem do cultural é sempre já global (e portanto “externo”) e local. E esta afirmação vale tanto para o Sul quanto para o Norte. Em certa medida, a afirmação dos particularismos corresponde a uma resposta da esquerda política e cultural do Norte à presença do outro (oriental, muçulmano, africano etc.) em seu próprio “reduto”, demandando inclusão. A problemática do multiculturalismo é assim, uma demanda dos subalternos talhada num momento de inflexão da “cultura do Ocidente” em que esta admite sua particularidade, questiona sua superioridade natural e se abre à experiência da multiplicidade intotalizável. Multiculturalismo pós-colonial, que habita no hífen separando esta locução: entre a metrópole e a (não mais) colônia.

Os desafios da virada da década expuseram os limites da idealização do martírio, do sacrifício pessoal em favor da revolução ou da “nova sociedade”. Antigos verbos de necessidade e abnegação (“lutar sem transigir”, “vencer”, “dedicar-se”) agora dão lugar à consideração da subjetividade e corporeidade dos militantes. O enfraquecimento do horizonte de “juízo final” destaca a importância do prazer, do lazer, de fazer coisas por si mesmas, como signos de liberdade que se perderam na luta pela “outra” liberdade. Insistir na primazia de uma transcendência que anseie livrar-se das múltiplas mediações do presente, começa então a ser visto como incapacidade de perceber sinais de “ressurreição” na vida cotidiana, em toda sua fragilidade e “interconexão” mútua. Se a teologia tem a ver com a vida, estas dimensões de gratuidade e “falta de propósito”, para além da produtividade e da eficácia, devem ser inteiramente levadas em conta.

Procuramos destacar ao longo do trabalho como a construção e permanente negociação da identidade são processos políticos, na medida em que implicam em relação, antagonismo, articulação, deslocamento e negociação. Mesmo que as identidades não estejam reduzidas à política propriamente dita, sua cena é a cena do político. Isto é, as identidades são e produzem construções sociais, contingentes, lábeis e em permanente reelaboração. Esta é a base da relevância do tema da cultura, na medida em que a natureza discursiva do social, simbólica e prática (cf. Burity, 1997), torna-se o foco da discussão sobre o real. Não se trata, pois, de reentronizar a política (convencional), mas de destacar que a historicidade do real demanda a atenção para seu aspecto conflitivo e seu aspecto simbólico, o político e o cul-tural. Nem se trata de celebrar um retorno triunfal do sujeito, na forma de um esteticismo ingênuo que faz tábula rasa da sua incompletude, precariedade e contingência. Nem mesmo a novidade das identidades seria o apanágio de grupos específicos, circunscritas em seus temas e práticas apenas a eles ou em pura descontinuidade com o que veio antes. À dimensão de asserção coletiva (movimentos étnicos, sexuais, religiosos, ecológicos etc.) soma-se uma dimensão disseminativa, que não tem dono, nem coerência assegurada, mas responde não menos pela novidade nas identidades contemporâneas.

As novas identidades religiosas emergem num contexto de pluralismo de valores na experiência religiosa e nas formas de interpretar os sinais dos tempos, de se situar no mundo. O que as torna novas não é um conjunto comum de atributos, mas uma circulação de temas e práticas marcados pela experiência do deslocamento de velhas formas de identificação (inclusive as que muito recentemente se haviam apresentado como alternativas) e pelo difícil e nunca garantido aprendizado da vivência plural, da negociação entre o eu/nós e o outro/eles. O certo é que se pode narrar a história desta transição no campo religioso tanto quanto no campo que chamaríamos secular se a fronteira entre ambos e se a existência de outras formas de agrupamento não aconselhassem relativizar esta pérola do discurso moderno que é a oposição entre religião privada e secularidade pública.

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Notas

[1] Esta é uma situação na qual o avanço colonial/imperialista/modernizante é também um testemunho de uma falta na identidade paradigmática, é também um processo histórico de descentramento do modelo. A nostalgia da pureza/comunidade perdida acompanha todos os encontros da “Europa” com seu(s) outro(s) e a violência das conquistas são reações a um “passado” que se recusa a ser fixado, congelado como tradição, como exótica, como satisfação especular do desejo do centro (cf. Burity, 1995).

[2] Isto é, opções que não ditam em si mesmas as condições/razões de sua escolha; ou que abrem um determinado caminho pela preclusão de outros, mas deixam o rastro das alternativas preteridas e, desta forma, são obsediadas por estas daí por diante; ou ainda que não governam inteiramente suas condições de emergência, não podendo controlar inteiramente o que decorrerá delas.

[3] Para algumas referências sobre esta seqüência de postulados, cf. Derrida, 1994; 1995; Laclau, 1990; 1996; Connolly, 1992; Maffesoli, 1996; Gemignani, 1996; Montero, 1996.

[4] O que equivale a dizer que o antagonismo é constitutivo da identidade, antagonismo que não aponta necessariamente para a existência concreta de um outro com os atributos que lhe são imputados por mim/nós (e vice-versa), mas pode se construir mesclando “referentes” concretos e elementos imaginários. O “judeu” no discurso nazista ou o “subversivo” no discurso da ditadura militar não correspondem a seres possuidores de cada uma daquelas características a eles associadas. Tampouco a imagem do nazista ou do agente da ditadura se reduzem à identificação de sujeitos concretos. O efeito do antagonismo é o da construção de uma fronteira que, conquanto possa, em cada momento, apresentar as evidências de sua objetividade, será incapaz de descrever em seus próprios termos (do “nós” ou do “eles”) o que o outro “é” objetivamente. Porque o eu e o outro são habitados por uma negatividade que lhes dá condição de poderem dizer quem são pela negação do que o outro é, mas que lhes nega pelo mesmo movimento qualquer substância, presença-a-si, identidade-a-si.

[5] A ser entendido aqui tanto no seu sentido diacrônico, quanto no seu sentido jurídico: o processo da identidade e do jogo da identidade se dá no tempo e se dá pela permanente disputa pelo legítimo, pelo próprio, pelo aceitável.

[6] Aqui pensada como política que defende o direito à diferença; a legitimidade de modos de vida que destoem dos majoritariamente sancionados/endossados; a responsabilidade da sociedade em proteger/discriminar positivamente grupos sociais que, pela sua origem étnica, preferências éticas, sexuais etc., têm sido historicamente penalizados ou excluídos do acesso a oportunidades asseguradas aos membros “normais” da sociedade.

[7] Num trabalho anterior analisei um desses processos, relativo ao campo da democracia de base constituído pela esquerda religiosa e diversos segmentos da esquerda política e as transformações por ele experimentadas ao longo da década de 80. Transformações nas quais vários dos pontos aqui destacados se colocaram para os militantes (tanto os ativistas quanto os seus intelectuais orgânicos). Cf Burity, 1994: 117-93.

[8] Pelo mesmo procedimento alarga-se a definição do “material” para comportar mais do que o econômico e o objetivo (como empiricidade dada, presente e pura). Este trabalho já fora iniciado no campo dos estudos da ideologia desde os anos 70, por exemplo, no bojo da renovação teórica do marxismo introduzida pela perspectiva althusseriana (com todas as suas deficiências) e seus desdobramentos na análise do discurso, na semiótica e na filosofia. A recepção de Gramsci neste processo foi outro elemento fundamental para reduzir o materialismo vulgar de boa parte da tradição marxista.

[9] Esta seção se fundamenta em dados de pesquisas realizadas em dois momentos: uma, sobre a esquerda cristã durante os anos 80, cujo levantamento de dados foi feito entre julho e outubro de 1992, em Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas – e que fez parte de minha tese de doutoramento; e outra que ora realizamos, sobre cultura política democrática e o campo religioso cristão, com dados levantados a partir de maio de 1996, em Recife.

[10] Não por algum privilégio exclusivo deste, mas apenas em decorrência da nossa maior familiaridade com esta forma de religião. Entendo que se possa ampliar esta análise para outras experiências religiosas na cena atual, seja no campo das religiões não-cristãs estabelecidas, seja no das chamadas seitas ou “novos movimentos religiosos”.

[11] Refiro-me, por exemplo, (i) ao significativo esforço de teólogos católicos e evangélicos no desenvolvimento de uma reflexão sobre a cultura e a ecologia; na tentativa de atribuir uma dignidade própria (para além de sua vinculação ao “Movimento Popular” ou à “luta dos trabalhadores”) às formas de identificação étnicas, éticas, sexuais etc., ou ainda, (ii) simplesmente, à participação de cristãos como ativistas e simpatizantes dos novos movimentos.

[12] Não confundir com “evangélico” que é a (auto-)designação preferida dos protestantes conservadores e tem caráter genérico. “Evangelical” remete a um movimento conservador teologicamente, mas com diversos graus de radicalidade política ou de liberalidade na relação igreja-mundo, que corresponderia a um(a) centro(-esquerda) do espectro protestante, encaixando-se bem na rotulação “progressista” tão usada no discurso político de esquerda dos anos 70/80.

[13] Remeto à extensa bibliografia sobre a presença política das igrejas no Brasil e na América Latina. Para algumas poucas referências, cf. Alves, 1978; Boff et. al., 1987; Mainwaring, 1986; Krischke e Mainwaring, 1986; Freston, 1993; Burity, 1994.

[14] É preciso dizer que esta formulação só se aplica ao caso católico a partir de fins dos anos 80, quando a reação conservadora, capitaneada pelo Vaticano, conflui com a crise da pastoral popular e com o crescimento explosivo das igrejas pentecostais para colocar o problema missionário na ordem do dia.

[15] Numa avaliação recente da experiência de articulação entre igrejas e movimentos sociais nos anos 80, à luz dos acontecimentos do início dos anos 90, Bittencourt Filho e Iullianeli colocaram desta forma a agenda da reconstrução: “Um esclarecimento terno que assuma a poesia, a música, as artes e as linguagens, como mediações da [sic] práticas comprometidas com os empobrecidos. Uma ternura esclarecida que assuma a filosofia, a história, a crítica literária, as ciências sociais, como mediadoras de uma prática lúdica, prazerosa e lúcida. É tempo de forjar caminhos novos. Os reducionismos construídos por uma mediação que fazia uso de uma vulgata marxista têm que ser ultrapassados” (1992: 7). Outras interpretações das mudanças a serem introduzidas na teologia da libertação podem ser encontradas em Souza, 1990b; Richard, 1991; L. Boff, 1990; C. Boff, 1990; 1993.

[16] Alguns indicadores desta afirmação podem ser adiantados: primeiro, o peso do apoio episcopal ou mesmo sacerdotal como elemento de legitimação conducente ao assentimento/obediência é mais forte no catolicismo do que no protestantismo, dada a ausência neste do princípio hierárquico segundo o qual o bispo encarna a Igreja. Em segundo lugar, enquanto as CEBs eram criadas na nova orientação pastoral, com pessoas que decidiam se engajar nelas (influenciadas ou não pelo “poder clerical”), as comunidades protestantes já existiam e as pessoas já tinham uma linha doutrinária e hermenêutica mais ou menos solidificada antes da “nova doutrina” politizante. Em terceiro lugar, a concepção paroquial que superpõe igreja e comunidade local é estranha ao protestantismo, que insiste na desterritorialização do âmbito eclesiástico e no vínculo individual e espiritual entre o fiel e a igreja.

[17] O que quero dizer é que se ela permanece e se recicla vigorosamente, por sua vez depara-se com três dificuldades: (i) está geograficamente delimitada a algumas ilhas no país (especialmente no Rio de Janeiro onde sempre apresentou grande dinamismo); (ii) uma parcela significativa de seus militantes não tem mais vínculos orgânicos com comunidades protestantes, ou participam de experiências alternativas com pequena capacidade de disseminação; (iii) onde tem sido possível trabalhar com grupos ou comunidades evangélicas com o novo perfil, o preço a ser pago é o de uma “paciência pedagógica” ou simplesmente autocontenção que só se justificam pela avaliação dos impasses enfrentados pelo formato anterior da pastoral.

[18] Isto é, como parte de uma tática evangelística que postula a neutralidade da tecnologia em relação à fé, apostando em que o uso daquela hegemonizado pelo discurso re-ligioso potencializa enormemente o alcance, o impacto ou o poder de sedução da mensagem.

[19] De 34 candidatos com este perfil de militância religiosa ou relevância de sua identificação religiosa para a decisão de participar politicamente, 14 foram entrevistados. Deste total (que não é exaustivo, representando porém um número próximo do universo), 5 foram eleitos. A grande maioria dos candidatos era evangélica, havendo também um representante da pastoral popular católica e um do movimento carismático, o que pode ser compreendido pelo perfil definido para a identificação de “candidato religioso”.

[20] Curiosamente, os únicos a mencionarem este princípio eram candidatos por partidos conservadores – um do PSC e outro do PPB.

[21] Que associamos às diversas referências aos exemplos de “políticos” bíblicos, conhecidos por sua intransigência de valores e/ou firmeza de comando.

[22] Restando determinar o grau de articulação ou consistência entre estas duas tradições democráticas demonstrado pelas pessoas.

[23] Os partidos (per se, ou personalizados nos políticos) são os mais penalizados nesta avaliação, sendo questionados por não informarem bem a população quanto aos seus direitos, por malversarem verbas públicas, por só se interessarem na ocupação de espaços etc. O que seria intrigante no caso de candidatos se não conhecêssemos a fragilidade da vinculação partidária neste país.

[24] A este respeito, não deixam de ser bastante ilustrativas as indicações de recente survey realizado em dezembro de 96 pelo Datafolha, publicado no caderno Mais da Folha de São Paulo, em 25/5/97, sobre a “felicidade brasileira”. Ali, um intrigante achado é que 65% dos 2.698 entrevistados em 128 cidades de todos os estados da federação, se considera feliz ao mesmo tempo que somente 23% considera seus conterrâneos felizes. Além disso, colocam o Brasil em primeiro lugar como o país onde as pessoas são mais felizes (43%) e em segundo como o país onde mais existem infelizes (9%). Perguntados sobre os indicadores de felicidade os entrevistados apontam a saúde (24%), a harmonia familiar, a estabilidade econômica e o “estar bem consigo mesmo” (10% cada) na resposta espontânea, e a fé religiosa (23%, quando tivera apenas 7% na resposta espontânea), ter amigos e filhos (16% cada), na estimulada. Religião, bem-estar emocional e estabilidade financeira aparecem então claramente valorizados, embora uma análise mais detalhada seja ainda fundamental para que conclusões menos impressionistas -inclusive a dos comentaristas publicados no caderno- sejam tiradas.

[25] Isto pode ser visto também no discurso católico, por exemplo, no documento da 26a. Assembléia Geral da CNBB, reunida em abril de 1988 (cf. CNBB, 1990: 97-110).