Estudos Sociedade e Agricultura

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Ana Louise de Carvalho Fiúza

Mulher e ambientalismo


Estudos Sociedade e Agricultura, 9, outubro 1997: 178-189.

Ana Louise de Carvalho Fiúza é aluna do Programa de doutorado da UFRRJ/CPDA.


A partir de meados dos anos 70 em vários encontros promovidos pelas Nações Unidas e por ongs de projeção internacional vem se afirmando o tema da relação da mulher rural dos países do hemisfério sul com as questões ambientais. A trajetória dessa nova problemática se fez mediante a conjunção de acontecimentos econômico-sociais e políticos, acompanhada de um certo revival da associação cultural entre a imagem da terra com a imagem da mulher na metáfora da mãe-natureza.[1]

Estes comentários bibliográficos têm por objetivo realçar a relação da mulher com a natureza como uma problemática expressiva do contexto cultural e político dos movimentos ambientalista e das minorias que se desenvolveram nos EUA e na Europa a partir da década de 60 e, no Brasil, somente a partir dos anos 1970, em reação aos excessos da modernidade como identidades contraculturais (Luz, 1992).

Tais movimentos anunciaram a erosão dos valores de algumas instituições da sociedade moderna, como a ciência, a família, a religião, o machismo, o racismo, as guerras, o modelo de desenvolvimento econômico, o limite ecológico da exploração da natureza (idem). É sintomático que eles se voltassem para o modo oriental de vida, valorizando deste a harmonia do convívio humano com a natureza. Não estranha que criticassem limites da razão e procurassem opor a espiritualidade oriental ao ethos do individualismo utilitário, e denunciassem a racionalidade burguesa, a tirania da eficácia produtivista e o mercado como raízes da deterioração do habitat, a crise das ideologias e a crença no mito do progresso (idem).

Os chamados novos sujeitos políticos trazem todas essas indagações, abrindo uma discussão paradigmática. Vaitsman se refere à emergência da problemática do outro, a partir dos movimentos de afirmação racial, étnica, sexual, local etc., que permitem identificar nos discursos derivados da concepção iluminista a dominação empírica de uma razão “branca, masculina, burguesa e ocidental” (Vaitsman, 1994: 21).

É preciso atentar para o fato de que a crítica à mercadorização da natureza, do trabalho e da mulher fora do eixo dos países do Norte por si não oferece alternativas ao modelo de sociedade capitalista ocidental. A propósito, Moraes e Duayer observam que a ênfase na natureza fragmentária do mundo e do conhecimento humano próprios da modernidade têm como conseqüência mais dramática a de dificultar a política emancipatória em uma acepção totalizante. Esses autores se reportam à perspectiva de David Harvey segundo o qual, ao mesmo tempo que o pensamento pós-moderno permite o reconhecimento da alteridade de outras vozes e abre perspectiva para a valorização de novas e instigantes formas de luta política, ele impede que essas vozes tenham acesso a fontes mais universais de poder (Moraes e Duayer, 1997).

É dentro dessa perspectiva de crise de paradigmas que trataremos de descrever a trajetória do tema mulher/meio ambiente em alguns fóruns internacionais. Nossa intenção é realçar o fato de que, além de vítima da crise ambiental, no modo específico do gênero, a mulher rural aparece como importante agente de preservação ecológica. Procuraremos chamar a atenção para o perigo que seria atribuir à recuperação do meio ambiente à mulher, menosprezando as múltiplas razões da crise ambientalista, perpetuando-se assim uma ideologia de gênero inócua. Igualar interesses da mulher às questões ambientais, tendo por base o caráter tradicional das obrigações cotidianas que a subordinam à natureza, também pode significar naturalização do seu atual papel e da sua sobrecarga de trabalho.

O primeiro marco que suscitou a associação mulher/meio ambiente foi o surgimento do conceito de ecodesenvolvimento, lançado por Maurice Strong, na década de 70. Essa noção explicitava uma concepção de desenvolvimento adaptado às áreas rurais do Terceiro Mundo e a uma utilização criteriosa dos recursos, tendo como meta o não-comprometimento da natureza (Layrargues, 1997). Essa preocupação trouxe à tona dois fatores decisivos para que a mulher também fosse percebida como portadora de mais afinidade com a natureza do que o próprio homem. O primeiro deles seria a visibilidade da mulher nas zonas rurais do Terceiro Mundo face à migração do homem para os grandes centros urbanos em busca de emprego. Categoria expressiva, a mulher rural passou a ser vista como um ser indispensável à realização de planos e projetos ambientalistas. O segundo fator decisivo daquela associação foi mais de caráter cultural: a representação social da terra como ente feminino (como na metáfora) vinculava atributos da natureza –receber semente e gerar frutos– à condição da mulher, como ser mãe e amamentar filhos.

Além do conceito de ecodesenvolvimento, a percepção da mulher como agen-te ambientalista tornou-se internacionalmente mais visível após a conferência sobre o Meio Ambiente Humano realizada em Estocolmo, em 1972. Nessa reunião, pela primeira vez o problema da degradação ambiental nos países desenvolvidos foi colocado como uma necessidade que exigia integrar a preocupação com a defesa do meio ambiente no próprio processo de desenvolvimento.

Após essa conferência, a Assembléia Geral da ONU resolveu declarar 1975 como o Ano Internacional da Mulher e realizar uma conferência mundial específica com o objetivo de formular recomendações para promover a sua plena igualdade e participação na vida social e política. O ponto de partida, desde logo, seria reconhecer que as funções produtivas e reprodutivas da mulher estavam intimamente ligadas a condições políticas, econômicas, socia-is, culturais, jurídicas, educacionais e religiosas.

Neste sentido, muito contribuíram para dar visibilidade à mulher rural as pesquisas de Ester Beserup sobre o trabalho da mulher rural pobre do Sul e a sua contribuição para o desenvolvimento rural. Antes da divulgação dos trabalhos de Boserup na década de 70, as organizações de desenvolvimento percebiam os direitos da mulher rural somente enquanto dona de casa e esposa, como se pode ver em vários programas baseados no estereótipo tradicional, como por exemplo, os programas para o cuidado da saúde das crianças, ou de nutrição e economia doméstica. As mulheres eram vistas como beneficiárias do desenvolvimento em seu papel reprodutivo, menosprezando-se a sua função propriamente econômica (Charkiewicz-Pluta, 1991). Boserup teve o mérito de ter fornecido elementos para a formulação do conceito WID (Mulheres no Desenvolvimento) que rapidamente se institucionalizou na forma de departamentos, projetos de desenvolvimento e escritórios de mulheres abertos em vários países do Sul (idem).

O conceito WID pressupunha como principal meta a alcançar a integração completa da mulher ao desenvolvimento econômico. Os especialistas em WID da FAO começaram a considerar a literatura do gênero em todos os níveis da sua organização, em documentos políticos, nas políticas de emprego, no planejamento de projetos etc., nos quais aparece a idéia de papéis sexuais socialmente construídos, portanto, modificáveis para se tornarem mais simétricos.

Desde, então, os estudos sobre as comunidades rurais e as especificidades da mulher rural e o seu papel na economia local aumentaram consideravelmente. A percepção do novo papel da mulher se expressou na realização em 1975 da primeira conferência sobre mulher e desenvolvimento, na Cidade do México, durante a qual proclamou-se o direito ao acesso, igual ao homem, à educação, treinamento e recursos fundamentais como terra e capital. A ênfase na igualdade de oportunidades e direitos foi também o traço marcante da chamada conferência mundial para o Exame e Avaliação dos Lucros da Década das Nações Unidas para a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, que teve lugar na cidade de Nairobi, entre os dias 15 e 26 de julho de 1985.

Essa terceira conferência fechou a década das Nações Unidas dedicada à mulher, e nela se aprovou estratégias prospectivas, visando a integração da mulher na corrente de desenvolvimento durante o período compreendido entre 1986 e o ano 2000. O documento elaborado nessa última conferência relacionou claramente o lema Igualdade, Desenvolvimento e Paz em suas três condições indispensáveis (emprego, saúde e educação) com a condição da mulher. Igualdade não só no sentido da igualdade jurídica, mas também de responsabilidades e oportunidades para a mulher enquanto beneficiária e agente ativo do desenvolvimento. A paz, por sua vez, entendida não só como ausência de guerra, mas também como o desfrute de condições de justiça social, como igualdade de direitos humanos e de liberdades fundamentais (Mauleón, 1994). A avaliação que aí se fez dos obstáculos à ascensão social da mulher apontou tanto para particularidades políticas e econômicas (crise econômica mundial, programas de ajuste do FMI etc.) como para os obstáculos de ordem microssociológica, como a dupla jornada das tarefas domésticas e a participação no mercado de trabalho. A conferência enumerou várias medidas para a incorporação “produtiva” da mulher sobretudo no que se refere ao acesso eqüitativo a bens e rendas.

No decorrer dessa conferência, por influência das idéias de feministas ocidentais, agências de desenvolvimento e interferência de alguns governantes, o tema da igualdade passou a ser associado à “eficiência” da mulher na erradicação da pobreza. A mulher rural do Sul, valorizada como possuidora de maior capacidade do que o homem para superar adversidades, à medida que caíam os investimentos sociais em muitos países do Sul e aumentava a emigração rural masculina e era ela quem conseguia –com grande criatividade no aproveitamento de recursos escassos– garantir o sustento da família. Criou-se então o conceito de eficiência adaptada que levava à assimilação da noção de participação com igualdade. O que, de fato, ocorre é que os cortes nos gastos sociais passaram a ser compensados pela sobrecarga do trabalho feminino. Esse enaltecimento da eficiência da mulher em condições adversas não oculta a preocupação com a pobreza, sobremaneira a da mulher rural, sensibilizando a conferência de Nairobi. Nesse sentido, foram propostas estratégias para promover a mulher rural como sujeito possuidor dos mesmos direitos que o homem (Charkiewicz-Pluta, 1991).

Mauleón também já destacou como aspecto mais relevante dessa conferência mundial, as estratégias pensadas para enfrentar a pobreza, seus efeitos sobre a mulher e a preocupação em garantir-lhe auto-suficiência. Nesse sentido, ela lembra que foi proposto a participação da mulher nas diferentes instâncias e etapas de decisão e planejamento de políticas de desenvolvimento e a sua integração aos programas de tecnologias modernas, as quais eram consideradas como fundamentais para minimizar a sobrecarga do trabalho feminino, ao propiciarem a substituição do esforço físico pela energia e o trabalho industrial. Essa valorização dos meios produtivos industriais constituiu-se em demarcador de águas entre a priorização da igualdade social da mulher e a percepção da sua função na preservação ambiental, tema recorrente quando o ambientalismo toma maior vulto. Até essa conferência de Nairobi, a vinculação da mulher com o meio ambiente era pensada mais em termos de preservação das suas condições de existência e ainda não marcadamente como instrumento de defesa da própria natureza. A meta era criar possibilidades de organização, proporcionando-lhe recursos físicos, financeiros e humanos, ensino e capacitação. E, também, estimular as aspirações das mulheres para que mantivessem o desejo de construir uma vida melhor, procurando eliminar a crônica falta de esperança. Ou seja, os programas e os projetos visavam sobremaneira fortalecer o próprio acesso a tecnologias modernas visto, então, até mesmo, como qualitativamente positivo.

Um ano antes da realização da conferência de Nairobi já haviam aparecido vozes dissonantes ao discurso de inserção da mulher ao modelo de desenvolvimento ocidental. Foi no Primeiro Encontro DAWN (Alternativas de Desenvolvimento com Mulheres para uma Nova Era), também na Índia, onde a concepção WID (Mulheres no Desenvolvimento) das agências governamentais da ONU começou a ser abertamente criticada, sobremaneira porque ela não punha em xeque a lógica exploradora e excludente do capitalismo. Os programas inspirados na concepção WID operavam em agências de desenvolvimento e projetos governamentais sem questionar o próprio modelo econômico, extremamente perverso para a mulher pobre do Sul e para o meio ambiente. Não bastava proclamar a representação dos interesses da mulher em órgãos oficiais para assegurar-lhe igualdade de oportunidades no desenvolvimento econômico e social.

Nesse Encontro DAWN (Alternativas de Desenvolvimento com Mulheres para uma Nova Era), onde se destacaram mulheres dos países do Sul, como Wangari Maatai, líder do Cinturão Verde no Quênia e Vandana Shiva, filósofa indiana, se afirmou de forma clara a rejeição ao modelo de desenvolvimento ocidental, coercitivo para os países do Sul, erguido sobre uma estrutura patriarcal que agravava a subordinação da mulher e só a levava a uma desproporcional pauperização. Vandana Shiva (1992) defendeu um desenvolvimento alternativo baseado na agricultura tradicional de subsistência, diferente do modelo destrutivo e masculino, que sempre leva à mercadorização da mulher.

Concomitantemente à elevação dessas vozes, desde meados da década de 80, expandiu-se o debate sobre o tema “Mulher e Meio Ambiente” para além dos órgãos ligados à ONU. Muitas ongs de atuação internacional se transformaram em porta-vozes das concepções do desenvolvimento alternativo e de princípios essencialistas femininos, embora o tema Mulher/Meio Ambiente ainda continuasse a cargo da ONU, especialmente através de agências como a Unep e a Intraw.[2]

Assim se foi configurando a associação do tema da mulher com o meio ambiente a partir de uma cada vez maior referência ao desenvolvimento de tipo oriental, aumentando o distanciamento em relação à visão WID. Embora as duas concepções tenham associado a mulher mais preferencialmente à natureza do que o homem, a forma de perceber a especial ligação da primeira com o ambientalismo se dava por prismas diferentes. O conceito WID considerava a constituição histórica das obrigações da mulher como determinante daquele vínculo. A influência das ciências sociais, especialmente através da problemática do gênero, vai distinguir a dimensão do sexo da dimensão social de modo bastante claro.

Já na concepção oriental, via-se a ligação mulher/natureza como justaposição da condição biológica à social. Quer dizer, as obrigações da mulher decorriam da dimensão biológica. Poder dar à vida, alimentar filhos, da mesma forma que a natureza recebe a semente e fornece seus frutos, era considerado como relação intrínseca da mulher com a natureza. Aqui se essencializava os papéis sexuais, diferente da concepção antropológica que, principalmente a partir da década de 80, com Rosaldo, Lamphére, dentre outros, vem mostrando que homens e mulheres têm papéis culturalmente atribuídos e, portanto, variáveis (Rosaldo & Lamphére, 1979).

Um marco fundamental no redimensionamento do conceito WID foi a publicação, em 1987, do Relatório Brundtland. A noção de desenvolvimento ali consolidada diluiu as diferenças anteriormente visíveis entre o paradigma do desenvolvimento dominante e o do alternativo (Layrargues, 1997). Ou seja, enquanto o conceito de Ecodesenvolvimento apontava para a necessidade de um nivelamento do consumo entre Norte e Sul, a noção de desenvolvimento sustentado chamava a atenção para o fato de que, antes de fixar um teto de consumo material para as nações desenvolvidas, seria recomendável estabelecer um piso de consumo a ser alcançado pelos países subdesenvolvidos. Esse deslocamento no patamar de consumo do máximo aceitável para o mínimo recomendado desobstacularizou os limites às pretensões de crescimento econômico dos países do Norte, escamoteando a responsabilidade dos mesmos pela degradação ambiental (idem).

Assim, a diluição do potencial crítico do conceito de Ecodesenvolvimento diluía também os antagonismos através dos quais se percebia a relação da mulher com o meio ambiente. O conceito WID vai cedendo espaço para as concepções ligadas à noção WED (Mulher, Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável). Nos anos seguintes ao relatório Brundtland, o debate ambientalista, especialmente em agências internacionais como a UNEP, FAO, Unifem, Instraw e muitas ongs, passou a enfatizar o tema do envolvimento da mulher com o Desenvolvimento Sustentado (Charkiewicz-Pluta, 1991).

Enquanto se pensava em termos WID, a diferenciação realmente essencial dizia respeito à perspectiva de desenvolvimento. Aqueles que viam o papel da mulher como resultado de uma construção social posicionavam-se francamente a favor da bandeira da igualdade de direitos e oportunidades, sem que isso significasse, necessariamente, uma proposta de mudança do modelo econômico, mas apenas uma restruturação dos papéis tradicionalmente atribuídos a cada sexo. Já os que viam a condição da mulher desde um ponto de vista essencialista, defendiam a tese de que não eram das especificidades de seu papel que resultavam a sua submissão, mas, sim, do modelo capitalista, patriarcal, que desvalorizava as tarefas que lhe eram “próprias”. Ou seja, se em ambas as concepções fazem-se presentes noções culturais também do modelo ocidental, o que as distingue é a crítica de teor político próprio à vertente essencialista, ausente na versão construtivista.

O que acontece quando surgiu o conceito desenvolvimento sustentável? Desde logo, um crescente consenso sobre o caráter predatório do desenvolvimento ocidental e de que era necessário substituí-lo por um outro que garantisse futuro às gerações vindouras. Daí a valorização de todo pensamento que ressaltasse a proximidade da mulher com o meio ambiente, especialmente o seu talento preservacionista, em detrimento de um enfraquecimento da corrente da igualdade de oportunidades no próprio sistema econômico.

Com o conceito WED se despotencializou as duas críticas à ordem econômica presentes na conceituação WID. O esvaziamento da crítica que ressaltava o papel da mulher como socialmente construído aconteceu porque a reivindicação de igualdade de oportunidades foi obscurecida pela percepção que se construiu sob o conceito WED da mulher como um instrumento de defesa do meio ambiente. Já o arrefecimento crítico da perspectiva essencialista deveu-se ao fato de o conceito de desenvolvimento sustentável ter sido incorporado à questão ambiental sem questionar as desigualdades estruturais do sistema capitalista e a submissão dos países do Sul.

Desse modo, as divergências que antes opunham no plano político aqueles que relacionavam mulher rural à sua construção histórica e defendiam medidas igualitárias, inclusive para mulheres dos países do Sul e os que denunciavam a mentalidade patriarcal como responsável pela submissão da mulher passam a ser percebidas mais como diferenças culturais, uma vez que o que permanece como divergência é a concepção dos papéis sexuais e não mais a crítica ao modelo de desenvolvimento.

Em suma, o conceito de Desenvolvimento Sustentável, centrado na idéia de sobrevivência ecológica e não no potencial máximo do sistema produtivo, enfraqueceu a crítica ao padrão de consumo dos países do Norte, em boa medida responsáveis pelo escasseamento dos recursos naturais do planeta. Agora todos se importam com o meio ambiente, e sob o novo manto de exploração sustentável se irmanam, reconhecendo o valor da defesa da mãe-Terra.

Se o argumento WID era o de que a política de desenvolvimento falhava ao não reconhecer o papel da mulher na família, no meio rural, no plano da economia de mercado e no controle dos recursos naturais, o da concepção WED consistia em procurar converter os recursos naturais e humanos em riqueza, com maior ênfase nas pessoas, na sua comunidade e no seu sistema vital. Nesta conceituação se reuniam preceitos ambientalistas e sociais, relacionando expectativas qualitativas de desenvolvimento –preservação dos recursos naturais– com a eliminação da injustiça social. Destaque especial às condições de subsistência para as pessoas pobres do Sul, inclusive as mulheres do meio rural, igualando os seus interesses com a causa da recuperação do meio ambiente, projetando a condição feminina nos fóruns e discussões internacionais.

O problema é que os pressupostos essencialistas da concepção WED identificam a desigualdade nas relações de gênero como uma conseqüência do modelo capitalista de desenvolvimento no que se refere às tarefas reprodutivas que geram dinheiro, nas quais o homem tem supremacia. A indagação é se um modelo alternativo que se proponha a atender às necessidades humanas, seria necessariamente não-sexista?

Pode-se argumentar que não será a forma diferenciada de se relacionar com o meio ambiente que modificará o status social da mulher, uma vez que a transformação deste relaciona-se com valores, padrões de comportamento e visões de mundo. A tecnologia nunca existe num sentido “não-social”. Ela sempre se constitui em práticas de linguagem e outras formas de representação. A forma de se relacionar com a natureza através de um determinado tipo de técnica é perpassada pela percepção cultural dos papéis sexuais.

Whitehead já observou que a sobrecarga de trabalho da mulher na esfera familiar indica sobreposição de forças. O casamento deve ser visto como uma relação de trabalho potencialmente de exploração da mulher, especialmente devido a habilidade do homem, como cabeça do casal, em distribuir tarefas e decidir sobre a destinação e uso dos bens produzidos na família. Tal situação deve-se ao fato de que as ações econômicas dentro do casamento regem-se por convenções diversas das do mercado, uma vez que na família o trabalho não se realiza em função de recompensa, mas com base na necessidade, associada às diferenciações de sexo e idade, como critério de acesso a recursos dentro da família (Whitehead, 1991).

A socialização hierárquica dos papéis sexuais implica uma forma específica de percepção da execução de atividades realizadas por homens e mulheres. Muitas sociedades valorizam as tarefas individuais em termos recompensatórios para aquele que compra e o que vende trabalho. Quando se diz a alguém: “Você trabalha?” a pergunta significa “Você ganha dinheiro?” Daí a conotação do trabalho doméstico realizado pela mulher fora da esfera do mercado como não-trabalho, justamente pelo seu pouco rendimento monetário.

O último argumento tem reforçado a crença de que o modelo alternativo ecologicamente sustentável orientado para necessidades humanas realmente poderia alterar a concepção sobre os papéis sociais de homens e mulheres arraigadas na cultura. O padrão ecologicamente sustentável seria conseqüentemente não-sexista?

A propósito Charkiewicz-Pluta (1991) examina dados empíricos sobre o envolvimento de mulheres em projetos de tecnologia alternativa em experiências de reflorestamento e mostra que nessas atividades a mulher terminou despendendo mais tempo em plantar e arrancar ervas daninhas do que em controlar os recursos produzidos pelo seu próprio trabalho. E quando as árvores eram vendidas, os homens ficavam com o dinheiro. Daí essa autora defender que se complemente a inserção de mulheres em programas ambientais com estratégias de participação e o acesso a todos os estágios e controle sobre os recursos naturais (treinamentos, educação, planejamento familiar etc.).

Em todo caso, mesmo que a passagem de um modelo produtivista para um de tipo preservacionista por si não aponte mudança nas concepções sobre os papéis sociais de homens e mulheres, não se pode negar que, a partir das décadas de 70 e 80, o tema mulher/meio ambiente ao menos representou uma pressão cujo mérito foi o de chamar a atenção para a “invisibilidade” do trabalho da mulher rural e para as características do desenvolvimento econômico nas zonas rurais do Terceiro Mundo, mais especialmente, para o fato de que a implantação de uma determinada técnica agrícola, ao mudar o ritmo do ciclo produtivo, invariavelmente, altera a divisão sexual do trabalho (idem).

 

Referências bibliográficas

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Rosaldo, M. Z. e Lamphére. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

Vaitsman, J. Flexíveis e plurais, casamento e família em cirscunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Shiva, Vandana. The seed and the earth: bioteclogy and the colonization of regenation. In: Development Dialogue, 1992.

Whitehead, A. The green revolution and women’s work in the third world. In: Faulkner, W. e Arnold, E. (Eds.). Technology in women’s lives. Smothered by invention. London: Pluto, 1991.

 

Notas

[1] Associação, aliás, estabelecida no Renascimento, antes do advento da revolução científica do século XVII e da sua visão de mundo racional que transformou aquela representação orgânica da terra em algo mecânico à semelhança de uma máquina produtiva de alimentos e lucros. Em A Morte da Natureza Caroline Merchant recorda essa associação, antes e depois do século XVII. Segundo ela, este século é um marco nas transformações das representações sociais ligadas à natureza e à mulher. Por volta de 1500, os filósofos ainda expressavam uma concepção da natureza como um organismo vivo. A natureza, especialmente a terra, era vista como uma Mãe: uma fêmea tipicamente beneficente, provedora das necessidades humanas. Esta metáfora foi gradualmente desaparecendo à medida que a revolução científica avançava. Merchant chama a atenção para o modo como esta ruptura guarda correspondência com os padrões de exploração da natureza. A imagem da mãe-natureza serviu como uma restrição cultural à ação predadora porque não se explora uma mãe nem se mutila seu corpo. A terra era tida como um instrumento do comportamento ético humano, para coibir a sua destruição. À medida que o capitalismo foi se firmando, as novas relações sociais já não permitiriam a reprodução desse tipo de representação (Charkiewicz-Pluta, 1991).

[2] A Intraw teve sob sua responsabilidade a tarefa de planejar, na chamada década da saúde pública (1981-1990), o treinamento da mulher no fornecimento da água potável e em práticas necessárias à boa higiene da família. Nesse período, aumentou a literatura sobre mulher e reflorestamento, agricultura, saúde animal etc., a partir de pesquisas patrocinadas pelas Nações Unidas.