Estudos Sociedade e Agricultura

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Gian Mario Giuliani

A profissionalização dos produtores rurais e a questão ambiental


Estudos Sociedade e Agricultura, 9, outubro 1997: 102-126.

Resumo: A modernização da agricultura nos remete à figura do agricultor profissional como um produtor voltado para o mercado, especializado em um produto, conhecedor das técnicas propostas por agências de financiamento e apoio técnico. Esta é uma imagem simplificada e coloca a profissão dos agricultores como "uma questão" que exige ajuste entre estruturas produtivas e formas de organização social. A análise sociológica das profissões, baseada na organização industrial não é adequada à situação da maioria dos produtores rurais e deve-se redefinir o que é "especialização" na atividade destes. O confronto das "agriculturas alternativas" com a agricultura moderna mostra diversos perfis profissionais, distribuídos no continuum entre os dois pólos. A profissionalidade completa do produtor rural está hoje na capacidade em produzir alimentos sadios e em estabelecer relações socialmente satisfatórias com o meio ambiente.

Palavras-chave: Profissões rurais; produtores rurais; agricultura alternativa.

Abstract: The professionalization of rural producers and the environmental question. The modernization of agriculture highlights the professional farmer as a producer integrated into the market, as a specialized producer, and connoisseur of the techniques the financing agency requires. This is a simplified picture of the professional identity of the rural producer and this paper questions the nature of the profession of the rural producers and examines problems between the evolution of the productive structures and forms of social organization. The sociological analysis of professions, based on industrial organization, is inadequate to the situation of the greater part of rural producers: financial and technical ability, and even specialization, are not enough to define their activity as a "profession". The definition must also include their environmental relations. The comparison between "alternative" and modern agriculture allows us to present different professional profiles, distributed along a continuum between these two poles. The complete professionalization of rural producers today depends on their ability to produce wholesome nourishment and preserve socially satisfactory relations with the environment.

Key words: Rural professions, rural producers, alternative agriculture.

Gian Mario Giuliani é professor da UFRJ.


O desenvolvimento e a modernização da agricultura remetem-nos imediatamente à figura do agricultor profissional como protagonista relevante desse processo. Pensa-se sobretudo em um produtor voltado exclusivamente para o mercado, especializado em um determinado produto e conhecedor das técnicas produtivas e das tecnologias aconselhadas (muitas vezes impostas) pelas agências de financiamento e apoio técnico. Esses traços da identidade profissional do produtor rural não só desenham uma imagem simplificada de uma realidade de fato mais complexa, como sobretudo já não parecem ser garantia segura para o almejado sucesso econômico aos agricultores que preencham tais características, nem mais parecem ser suficientes para satisfazer às exigências da sociedade. A história do desenvolvimento rural em diferentes países, e no Brasil com certeza, tem resgatado a formação de regiões onde se concentram produtores especializados com características tidas como profissionais, mas que constantemente se defrontam com sérias dificuldades para obter crédito, fazer investimentos, manter-se no mercado, dispor de terra suficiente, isto é, para reproduzir as condições básicas para o exercício do que seria a sua profissão.

A partir dessas premissas, achamos necessário refletir sobre a profissão dos agricultores como sendo "uma questão", isto é, como algo que não decorre "naturalmente" do processo de desenvolvimento da sociedade, mas que se torna objeto de problematização, justamente à medida que requer ajuste entre estruturas produtivas e formas de organização social no plano institucional e cultural. Nesse sentido, teremos que avaliar de imediato o próprio conceito de "profissão" quando aplicado às atividades agrícolas e à complexa figura do produtor rural.

As profissões na Sociologia

Na tradição sociológica as profissões surgem como dimensões específicas da sociedade industrial e se referem àquelas atividades especializadas nas quais prevalecem características do trabalho intelectual. Na visão organicista da divisão do trabalho social (Spencer e Durkheim), elas seriam formas funcionais que adequam os indivíduos à estrutura social, em parte porque através da especialização os indivíduos diminuem o desconforto da competição, em parte porque elas lhes proporcionam um sistema de normas que orienta as suas condutas, induzindo sentimentos de auto-estima e confiança na organização social que passa a ser vista como uma entidade que progressivamente pode melhorar as condições de vida. Em A divisão do trabalho social, Durkheim enfatiza dois aspectos de muita relevância: de um lado, aponta para a existência de uma "moral profissional" (do advogado, do professor, do médico, do magistrado, do soldado, do sacerdote etc.); moral que impõe obrigações, até muito rigorosas, nas relações com os "clientes" e que parece ser mais sólida que a moral regulatória das relações entre assalariados e empregadores. De outro, ele sustenta que as profissões estariam principalmente ligadas ao progresso na divisão do trabalho, admitindo que nelas influi também uma certa tradição de hereditariedade a passar de pai para filho.

Por sua vez, Weber, mesmo observando a sociedade do ponto de vista dos atores e suas ações, se debruça sobre a problemática das profissões nas sociedades modernas e industriais. De início, ressalta a forte predominância de ações racionais nas profissões; atento depois ao tema das formas das relações sociais, Weber tende a enfatizar uma certa hierarquia com base no prestígio social que as profissões, sobretudo as de tipo intelectual, ostentam por serem socialmente reconhecidas como portadoras de habilidades particularmente úteis. Em diversas partes de Economia e Sociedade, Weber trata das profissões. No capítulo "As categorias sociológicas fundamentais da vida econômica", por profissão entende, antes de tudo, uma certa posição no interior da divisão do trabalho: a profissão corresponderia à peculiar especificação, especialização e coordenação mostradas pelos serviços prestados por um indivíduo. O autor faz uma primeira distinção no nível das relações sociais de produção, afirmando que a divisão das profissões, entendidas como associações, pode ser resultado de atribuições heterônimas (reguladas por normas provenientes de âmbitos externos à associação) de serviços prestados em troca dos meios de subsistência correspondentes, o que ele chama de "divisão servil das profissões" (praticamente, o que ocorre entre os assalariados); ou pode ser devida à orientação autônoma (reguladas por normas definidas no interior da associação) dentro de um mercado dos serviços e que ele chama de "divisão livre das profissões" (os nossos profissionais liberais). Assim, a especialização profissional pode ser autocéfala (os dirigentes são escolhidos pelos membros da associação), como a do artesão, médico, advogado, artista; ou heterocéfala (os dirigentes são escolhidos fora da associação), como a de operários e empregados, mas sempre permanece relacionada com as oportunidades de ganho, chegando a ser objeto de profissões independentes e estáveis somente aqueles serviços que supõem um mínimo de formação e para os quais existem probabilidades de ganhos continuados. Para Weber, portanto, há dois elementos fundamentais que caracterizam uma profissão: de um lado, um certo saber especializado; de outro, o fornecimento de um serviço em troca de uma remuneração.

No capitulo II, parte 3, "Formas de comunidade e interesses econômicos", Weber observa que nas comunidades que se distinguem de outras por terem uma qualidade específica adquirida mediante educação, ensino ou prática, criam-se círculos entre indivíduos privilegiados que monopolizam, como profissão, o controle sobre bens ideais, sociais ou econômicos, assim como sobre obrigações e posições na vida, reconhecendo o exercício do mesmo ofício somente aos que: 1) recebem uma preparação através de um noviciado; 2) demonstram aptidão que os qualifica para o exercício da atividade; 3) levam consigo um período de trabalho sem remuneração. Na Parte II, Capitulo IX, "Sociologia da Dominação", "A essência da dominação burocrática", Weber se refere ao "cargo como profissão", já que este exige uma série de conhecimentos firmemente prescritos que requerem um longo preparo, já que impõe exames especiais de admissão e que contempla inclusive um caráter de dever do funcionário. Finalmente, para o autor, a profissão tem também um componente ligado a valores. Referindo-se explicitamente ao "fazer ciência" e ao "fazer política", ele define a profissão do cientista ou do político como algo que nasce de uma vocação e acompanha-se de paixão, mesmo que tenha que ser desempenhada metodicamente como uma missão. Entretanto, para o autor haveriam duas maneiras de exercer estas duas profissões (e talvez, grande parte das profissões): pode-se viver "para" a política ou para a ciência, como também "da" política ou da ciência (Weber, 1984: 1066).

Assim, nos fundadores da Sociologia, as profissões figuram como parte da estrutura da sociedade moderno-industrial, como resultado da divisão do trabalho e são referidas a atividades tanto autônomas como dependentes. No entanto, esses autores chamam a atenção para o fato de que suas dimensões mais peculiares estariam situadas ao nível das relações socioculturais, exigindo habilidades particulares e trabalho intelectual, comportando normas de conduta e valores específicos, produzindo, afinal, uma hierarquia de prestígio social.

São estas últimas dimensões que a sociologia contemporânea desenvolve em seus estudos sucessivos. Prandstraller (1980) mostra como, do final dos anos 30 aos anos 50, os trabalhos sobre as profissões se multiplicam, até que o ensaio de Greenwood (1957) abre o caminho para a sua consolidação num verdadeiro ramo da sociologia. Nesses estudos as profissões aparecem com sua identidade definida basicamente pelo prestígio social e a conotação de ocupações "de ordem superior". Ademais, talvez ainda sob a influência das corporações medievais, as profissões continuam reforçando sua identidade a partir de associações de membros que exercem a mesma atividade.

Greenwood propõe que as ocupações sejam vistas como distribuídas em um continuum: de um lado, as profissões reconhecidas como tais (médico, advogado, professor, cientista etc.), de outro as ocupações menos especializadas e valorizadas (o vigia, o boy, o servente etc.), distribuindo-se no meio todas as outras. Assim, o autor busca caracterizar os atributos comuns daquelas ocupações consideradas profissões: a) uma habilidade superior, baseada em conhecimentos organizados em sistemas coerentes, em corpos de teorias, sendo tal habilidade, além de prática, intelectual; b) a autoridade profissional, que confere a quem exerce a profissão o poder de estabelecer o que é bom e o que é mau para seus clientes, restando a estes somente a possibilidade de aceitar, ou não, o seu julgamento e decisões; c) a chancela da comunidade, ou seja, o controle que esta exerce sobre os mecanismos de admissão ao exercício da profissão, geralmente feito através de títulos e diplomas de escolas apropriadas que conferem o reconhecimento da utilidade social da profissão; d) a presença de um código de ética, que regula as relações entre colegas e normatiza a conduta dos profissionais para com os clientes; e) a existência de uma associação que tutela os membros da profissão e inclusive cria uma cultura profissional com símbolos e valores específicos (Prandstraller, 1980: 15-16). De certa forma, no modelo de Greenwood ainda permanece a base do tratamento sociológico das profissões, apesar dele ter sido tachado de formalista e estereotipado pelo fato de ter subestimado a distância entre os atributos das profissões e a prática efetiva das mesmas.

Como observa Prandstraller, a sociologia das profissões começa a perceber mais recentemente que, ao lado dos poderes econômico e burocrático que condicionam as relações sociais, também pode haver um "poder profissional". Nessa perspectiva, a possibilidade de uma atividade se tornar profissão depende do tipo de relações estabelecidas entre quem oferece o serviço e os fruidores destes. Assim, o fator determinante da profissionalização seria a capacidade de os profissionais exercerem controle sobre as necessidades dos clientes e as maneiras de satisfazê-las. A questão do poder profissional torna-se de fato mais clara quando os clientes adquirem maior consciência de suas necessidades, afinam seus instrumentos avaliativos da qualidade do serviço oferecido e passam a reivindicar maior espaço nessas relações. Mesmo assim, a habilidade específica continua sendo a base do processo no qual um grupo de experts se destaca da massa indiferenciada dos produtores, ganha autoridade e adquire um certo grau de autonomia na gestão de sua atividade.

A ocupação de produtor rural pode se tornar uma profissão?

À luz dessas considerações, podemos sustentar que a atividade de produtor rural tem aspectos que, em princípio, permitem considerá-la uma profissão: com efeito, o exercício dessa atividade requer conhecimentos e habilidades específicas, fornece à sociedade produtos indispensáveis e os produtores têm suas próprias associações. Entretanto, as características que identificam empírica e historicamente os indivíduos que se dedicam à produção agrícola não expressam nenhum reconhecimento social no sentido da profissionalização, nem os agricultores têm demonstrado possuir uma clara identidade profissional. Na prática, as suas habilidades sempre foram depreciadas, quando não ignoradas por completo; a falta de prestígio socialmente reconhecido tem levado a maioria dos filhos de agricultores a fugir do campo à procura de ocupações urbanas; os produtos agrícolas aparecem aos olhos da população mais como resultado de um serviço prestado pelos comerciantes; não é visível nenhuma ética profissional específica, nem os agricultores têm proposto normas de conduta que regulem suas relações com os clientes, além das que lhes são impostas pelos organismos públicos; as suas associações são muito mais uma mistura de sindicato com cooperativa, incapazes de produzir símbolos e valores específicos de uma cultura profissional.

Esse impasse tem raízes histórico-estruturais muito profundas (Souza Martins, 1981) e não é exclusivo dos produtores rurais brasileiros. A primeira grande dificuldade está no fato de que a categoria "produtor rural" inclui populações muito diferentes entre si e supõe uma série de definições bastante variadas em diversos níveis. No plano da fragmentação espacial, deparamo-nos com os mesmos produtos gerados com técnicas e sob relações sociais as mais diferentes. Quanto à própria denominação das técnicas e meios produtivos, a linguagem varia de região para região. A estrutura produtiva diferencia marcadamente os produtores entre pequenos, médios e grandes; integrados e não-integrados, especializados e policultores etc., inserindo-os em diferentes posições do tecido social e levando-os a diferentes auto-avaliações e, portanto, a uma vasta gama de aspirações e perspectivas.

Em muitos países, inclusive naqueles dotados de um setor primário mais desenvolvido que o do Brasil, esta problemática é claramente apontada. Na França, para identificar a especificidade da atividade agrícola é preciso opô-la a uma outra atividade externa à agricultura. Por exemplo, Barthez (1986) indaga se os que trabalham na agricultura podem se declarar "agricultores", como se fossem portadores de um título, isto é, de um conjunto de atributos pessoais, independentes da unidade produtiva particular que exploram. A situação dos agricultores aparece como resultado de uma "condição" e não de uma relação social. Em primeiro lugar, porque sua atividade não existiria fora da definição de estabelecimento agrícola e, como este normalmente engloba os espaços produtivo e doméstico como um todo indissociável, a unidade produtiva é sempre confundida com a unidade de residência. Não tendo uma clara identidade profissional, sua situação de trabalho "permanente" não parece ter nem começo nem fim. Nesta lógica, a atividade do produtor rural não seria comparável às outras profissões que, normalmente, ocupam o homem somente durante um tempo e uma parte de sua existência, mantendo o espaço de trabalho aberto ao público separado da intimidade do espaço doméstico. Em segundo lugar, porque o fato de dispor de uma unidade produtiva não significa que o exercício da atividade agrícola seja a única identidade do produtor. A difusão do part time na agricultura francesa é um fenômeno generalizado entre os membros da família dos produtores e se difunde rapidamente entre os próprios produtores (Barthez, 1986). Assim, Barthez, revitalizando a afirmação de Maspetiol (1946) –"ser camponês não é uma profissão mas uma condição"–, pergunta-se como seria possível conciliar a modernização da agricultura com um campesinato descrito mais como uma "essência" do que como uma categoria profissional.

A análise sociológica das profissões construída a partir da organização industrial resultaria ser, portanto, um modelo não imediatamente adequado à situação da grande maioria dos produtores rurais. Por outro lado, a concepção moderna da organização social exige cada vez mais uma identidade profissional em todas as esferas da vida produtiva, incentivando os produtores rurais a reivindicarem condições para que sua atividade possa se tornar uma profissão, mesmo que para esta não se disponha de um modelo bem definido como o das profissões industriais.

Algumas condições parecem ser relevantes para a profissionalização dos produtores rurais, apresentando, porém, aspectos contraditórios e revelando até obstáculos a este tipo de transformação. Em primeiro lugar, podemos citar a origem rural que, em princípio, qualificaria os produtores para a "vocação" agrícola e os dotaria de conhecimentos da região capazes de responder adequadamente às peculiaridades locais. No entanto, tal condição não parece ser hoje tão indispensável como parecia há poucas décadas. Dois fenômenos relativamente recentes, embora ainda incipientes, demonstram que é crescente a procura de inserção produtiva em atividades agropecuárias de pessoas provenientes da cidade e que, muitas vezes, nem mesmo têm tradições rurais: o Movimento dos Sem Terra (MST) e o chamado "neo-ruralismo". Dependendo das regiões, e mais freqüentemente no Estado do Rio de Janeiro, uma parte dos militantes do MST que têm participado de ocupações de terra e se estabelecido em assentamentos, são trabalhadores que anteriormente haviam deixado o campo e se estabelecido na cidade (Giuliani e Castro, 1995). Os "neo-rurais" são produtores agropecuários de clara tradição urbana que buscam no campo a realização de modelos de vida mais satisfatórios. São indivíduos com elevado grau de escolarização, possuidores de redes de informação nacionais e internacionais especializadas e que têm investido considerável capital na produção de produtos destinados a um mercado de consumo urbano seletivo (queijos finos, ervas finas, camarões da Malásia, cogumelos, escargots, trutas, rãs etc.), por eles próprios reconstruído a partir de suas anteriores redes de relações urbanas, nunca cortadas. (Giuliani, 1992). É interessante observar que esses dois tipos de produtores rurais, tão diferentes entre si, têm em comum o fato de desenvolverem uma certa "vocação profissional" em contraste com trajetórias de vida que os mantinha afastados do campo. Nestes casos, o que parece ter maior peso em um processo de profissionalização não seria a origem e a tradição, mas as motivações e condições individuais que orientam as escolhas de vida; tal como nas profissões urbano-industriais, por exemplo, as motivações levam os indivíduos a buscar certas carreiras profissionais.

Uma segunda condição, a mobilidade espacial, poderia indicar que uma porção considerável do território permanece ainda "disponível" para o mercado de terras, e este elemento, dependendo das condições, pode ser favorável ao processo profissionalizante, já que permite a expansão da área das propriedades, assim como a instalação de novos produtores rurais. Entretanto a mobilidade é no Brasil mais alta entre a população pobre sem terra própria, exposta ao perigo constante da insatisfação, necessidade, expulsão e pauperismo, assim como entre a população rica, interessada em se apropriar de terras para fazer negócios. Em ambos casos a instabilidade não poderia consolidar a profissionalização. A mobilidade pode ainda resultar de uma crise de sucessão, quando a terra dos pais não basta para absorver os filhos como novos produtores. De modo geral, os futuros agricultores provêm de famílias de agricultores e a crise de sucessão atinge grande parte dessas famílias em todas as situações em que a agricultura tende à modernização. No Brasil dos anos 70 e 80, a falta de terra alimentou significativos movimentos migratórios de agricultores do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina para as fronteiras agrícolas das regiões Norte e Centro-Oeste. Também levou, no Rio Grande do Sul, os filhos de agricultores sem perspectivas a criarem o Movimento dos Sem Terra, hoje atuante em todo o país. Entretanto, não podemos esquecer que a crise de sucessão pode ocorrer não somente pela falta de terra. Champagne (1986) observa que na França, por exemplo, a maioria dos filhos dos agricultores não pretende permanecer na agricultura, querendo se empregar em outros setores. Segundo o autor, pesquisas mostram que na França para muitas propriedades pequenas não há nenhum sucessor. Somente 22,5% dos agricultores chefes de família com idade entre 50 e 60 anos têm sucessor certo; a grande maioria não sabe o que será de seu estabelecimento após sua desistência ou morte (a este respeito ver também Lamarche, 1993). É evidente que aqui influem não somente considerações de ordem econômica, mas também fatores socioculturais, como, por exemplo: o grau de integração no consumo, a educação, saúde e a mobilidade social dos produtores rurais no conjunto da sociedade; o grau de valorização social de sua atividade; a avaliação comparativa com as atividades urbanas feita pelos produtores rurais etc.

Assim, outra condição importante a ser considerada é a posse regularizada da terra. Uma boa parte dos agricultores vive em situação de instabilidade, principalmente aqueles que se declaram abertamente posseiros sem registro e ocupantes. Estas categorias vivem uma potencial ou real situação de conflito que ameaça a sua estabilidade, já que as terras que ocupam têm um dono, ou um pretendente mais ou menos ativo. É compreensível que em tais situações os produtores não encontrem incentivo para investir no estabelecimento e na produção, acabando por praticar uma agricultura pouco rentável. A título de exemplo citamos o Cadastro dos Produtores Rurais do Município de Angra dos Reis (Giuliani, 1991), através do qual detectamos uma enorme distância entre o registro "oficial" da propriedade da terra e sua distribuição real. A alta freqüência das categorias dos posseiros sem registro e dos ocupantes é um dado que ainda subestima aquela distância. No Cadastro existem somente 272 estabelecimentos (de um total de 1.075), somando 13.885 ha, cujos nomes dos responsáveis encontramos também na listagem do Incra de 1990. Aparentemente, quase a metade da área do município e 1/4 dos imóveis estariam regularizados, mas, na realidade, a situação é muito mais confusa. Nos dois levantamentos coincidem perfeitamente só 41 imóveis com um total de 5.357 ha, ressaltando que um imóvel mede 4.552,8 ha. Nos restantes 202 imóveis e 12.252 ha, cujos titulares aparecem nas duas listagens, não há a menor correspondência a respeito nem do número de imóveis possuídos, nem da área destes. Os meios à disposição dos produtores para solucionar problemas dessa natureza são muito poucos. Mesmo que houvesse uma maior difusão de informações e fossem montados esquemas para ajudar essa população a superar os labirintos burocráticos, seria indispensável que os governos (municipal, estadual ou federal) traçassem políticas concretas de regularização fundiária, de assentamento rural e de Reforma Agrária, sem as quais o nível de fixação dos produtores à terra, elemento essencial de uma eventual profissionalização, continuará muito precário.

Finalmente, o tamanho mais apropriado das unidades produtivas é hoje uma condição relevante para a profissionalização dos produtores. É uma questão hoje discutida sem a paixão política que a acompanhava, por exemplo, no imediato pós-guerra. Já não se discute se são mais produtivas as grandes ou as pequenas unidades, desde que as potencialidades dos estabelecimentos sejam exploradas da maneira mais adequada ou até sua plenitude. Se ainda resta algo da velha problematização, isto se refere ao tamanho mínimo abaixo do qual a unidade produtiva já não consegue se reproduzir como tal. No contexto, por exemplo, dos diferentes países da Comunidade Econômica Européia (CEE) as estruturas fundiárias de alguns países como Grécia, Portugal e Itália apresentam uma área média dos estabelecimentos agrícolas que geralmente é considerada muito pequena (até 7,5 ha) para permitir a sua "normal" reprodução econômica e social e contribuir para o bom desempenho do setor (Inea, 1990 e Nomisa, 1992). De qualquer forma, está claro que a definição do tamanho mínimo do estabelecimento é uma construção histórico-social, e que precisa ser avaliada dentro de contextos nacionais e regionais.

No Brasil esta questão ainda conserva um pouco do sabor político que a impregnou até a década de 70, com certeza, devido à forma perversa pela qual se processou a modernização agrícola e às condições precárias de vida de boa parte da população rural brasileira. Atualmente, o reconhecimento de que a chamada "pequena produção" desempenha ainda um papel relevante não passa tanto pela afirmação de sua maior eficiência produtiva frente à "grande produção", mas pelo argumento mais freqüente de que, nas condições atuais, o seu fortalecimento é a melhor forma de assegurar a reprodução daquela população rural que estaria destinada à migração urbana e à miséria. Quanto à capacidade produtiva, parece haver um certo consenso em torno da idéia de que as pequenas unidades exploram mais intensivamente os escassos fatores de que dispõem, sobretudo a terra, porém, a massa de valor produzido pelas grandes unidades, tanto em termos absolutos como por unidade de trabalho, é decididamente maior. Posta a questão nesses termos, pode-se deduzir que somente terão passagem para a profissionalização os produtores empresariais e os produtores familiares que têm conseguido preencher os critérios da "agri-cultura moderna".

Como já dissemos no início, tal visão é reducionista e não permite desenvolver potencialidades que são negligenciadas. Já é clara, e em via de se tornar consenso, a idéia de que, em muitos âmbitos da sociedade, a modernidade não implica necessariamente uniformidade, nem ruptura com o passado; ela poderia também expressar a adaptação à mudança pela capacidade de combinar elementos novos com partes da tradição. Se estendermos essa idéia também à agricultura, poderíamos pensar em uma especialização mediante o resgate das tradições. Por exemplo, os chamados "pequenos produtores familiares" estão longe de serem considerados um modelo de agricultores profissionais, no entanto, têm uma clara vocação histórica e tradição de produtores de alimentos para uma população urbana crescente, tendo mostrado também uma clara capacidade de adequar suas condições produtivas aos critérios de produtividade de uma agricultura moderna, quando ajudados por políticas apropriadas e quando lhes são criadas condições favoráveis à sua permanência no campo.

Os produtores rurais como profissionais diferentes

O conjunto dos elementos específicos dos produtores rurais habitualmente estudados pelos cientistas sociais, e pela sociologia rural em particular, não permite delinear um modelo único de profissional, já que na construção da identidade desses atores como tais influem fortemente condições históricas e regionais particulares. Entretanto, não podemos esquecer que, para qualquer caso, seria uma redução incorreta pressupor a uniformidade dos profissionais. Com efeito, dentro da mesma profissão existem concepções muito diferentes em várias de suas dimensões constitutivas: no nível dos conhecimentos técnico-científicos que a fundamentam (pensemos nos médicos homeopatas e alopatas, nos professores com vocação para o ensino e para a pesquisa); na maneira de exercer a profissão (há os que vivem "dela" e outros "para ela"); no tipo de clientes para os quais a profissão é exercida (pensemos nos advogados e médicos para ricos e para pobres). Queremos dizer com isto que na mesma profissão podemos encontrar profissionais muito diferentes entre si, com concepções e práticas até conflitantes, sem que por isso a sua profissionalidade possa ser questionada.

A profissionalização dos produtores rurais deveria passar, portanto, pela revisão de algumas definições e certos conteúdos. Em primeiro lugar, deve ser reavaliado o que pode ser considerado como "especialização" na atividade dos produtores rurais. Esta noção, base de qualquer profissão, é normalmente identificada no produto sobre o qual se concentra a maior parte da atividade: assim temos produtores de tomates, de morangos, de soja, de cana-de-açúcar etc. Decorrente de uma idéia de profissão calcada no modelo urbano-industrial, tal concepção esquece que os trabalhos executados na condução de um estabelecimento rural são sempre variados e muitos deles, a rigor, nem poderiam ser considerados diretamente agrícolas, como, por exemplo, a construção de cercas, de imóveis, de estradas, o desmatamento, o conserto e a manutenção de instrumentos de trabalho e máquinas etc. A "especialização" do produtor rural, portanto, deveria ser reconhecida justamente na sua capacidade de desempenhar de maneira coerente e eficaz quase todos os diferentes trabalhos exigidos em sua atividade produtiva. Sendo assim, a peculiaridade técnica em saber articular múltiplas atividades e o reconhecimento social de que somente alguém com certas características possui tais habilidades particularmente úteis, podem constituir a base sobre a qual é possível se desenvolver a identidade profissional do produtor rural. Não seria suficiente, assim, modificar a maneira de produzir, mas se deveria também criar conceitos novos da atividade econômica, uma vez que as classificações das atividades impostas pela indústria se tornam muito estreitas para os produtores rurais.

Em segundo lugar, o processo de modernização dos produtores familiares pode se concretizar com diferenças segundo as regiões e as peculiaridades dos próprios produtores, porém há aspectos recorrentes em praticamente todas as situações quando observados com relação à questão socioambiental. A título de exemplo nos referimos ao estudo de Silveira (1996) na área da Microbacia Hidrográfica do Córrego Taquara Branca, no município paulista de Sumaré. A área do estudo associa uma produção agrícola intensiva com uma forte expansão urbana e apresenta problemas ambientais crescentes (erosão, poluição, escassez de água), devido ao uso de técnicas de exploração do solo altamente desgastantes, como desmatamento, uso intensivo de máquinas e implementos químicos e, sobretudo, por causa da monocultura. Os produtores dessa região não só enfrentam uma forte dependência de elementos externos (como crédito rural, mercado de insumos e produtos, assistência técnica etc.) ligados ao paradigma tecnológico da agricultura moderna, como se tornam, ao mesmo tempo, causadores e vítimas dos problemas ambientais.

É interessante refletir sobre o fato paradoxal de que este tipo de modernização que, em princípio, deveria profissionalizar os produtores, transforma a sua atividade em algo que causa prejuízos à sociedade e a eles próprios. Em primeiro lugar, os produtores geralmente podem sofrer danos no seu próprio terreno, devido ao uso muitas vezes impróprio do trator (pode haver compactação, abertura excessivamente profunda pelo arado). Também podem ser pessoalmente prejudicados pelo uso inadequado, ou manipulação incorreta, de agrotóxicos. Finalmente, a extremada especialização, a monocultura, pode expor os cultivos a uma maior incidência de pragas.

Particularmente preocupante é o fato que tais danos não se limitam aos confins da propriedade, mas se estendem ao conjunto da sociedade. À primeira vista, o desgaste do solo parece atingir somente o produtor, já que é um bem apropriado individualmente. Mas, como prova do fato de que a atividade do produtor extrapola seus interesses individuais, está o sentimento que espontaneamente surge em um produtor que erra na organização de sua atividade e, após perder sucessivas colheitas de milho, arroz, soja etc., encontra-se com uma área de terreno improdutivo e esterilizado. O senso comum acaba estigmatizando este produtor não só como alguém que "errou de profissão", mas também como alguém que compromete o meio ambiente. De fato, existem conseqüências decorrentes do desgaste e da erosão do solo que ultrapassam os limites da propriedade que passam do privado para o público. O desmatamento e as queimadas, técnicas comuns entre os produtores familiares para expandir a produção ou para a rotação de culturas, quando praticadas sem critério, podem deixar desprotegidas as fontes e os córregos, causando sérios prejuízos ao sistema de abastecimento das águas, assim como podem expor o solo a irreversíveis fenômenos de erosão. A título de ressalva, cabe observar que o fenômeno mais radical da desertificação não parece estar associado à atividade agrícola familiar, mas sobretudo às práticas de transformação radical do ecossistema, sobretudo de floresta para pasto, praticadas por grandes produtores, ou grandes proprietários, geralmente classificados como "produtores modernos", já que se utilizam de grandes aparatos mecânico-industriais, de biotecnologias e de financiamentos bancários. Desmatamento e desertificação são vividos como uma perda social, mais que individual, porque árvores e florestas constituem elementos da natureza cuja função de fotossíntese e produção de oxigênio beneficia todo o mundo.

A própria tecnologia moderna, muito quimicizada, pode provocar seríssimos danos à sociedade. Os insumos não terminam de ser ativos quando chegam a seu destino, até à formação do produto, mas continuam agindo sobre os diferentes elementos do meio ambiente no qual estão inseridos. Assim, os fertilizantes e defensivos químicos, por exemplo, podem passar da terra para os lençóis freáticos, contaminar as águas subterrâneas, reaparecer na água que irriga os campos, na que é tirada dos poços para beber, na que retorna como chuva ácida etc. Também a monocultura, nos casos de áreas importantes ocupadas por um número relevante de pequenos produtores, todos produzindo a mesma coisa e com os mesmos métodos modernos, pode resultar em atividade muito prejudicial. Nesse caso, o ecossistema daquela área acaba extremadamente debilitado em sua biodiversidade original, o que provoca efeitos ecologicamente desequilibradores, com prejuízos ao solo, à flora, à fauna e ao meio ambiente em geral. Finalmente, as atividades dos produtores rurais podem ainda causar danos à sociedade através do fornecimento de produtos prejudiciais à saúde dos consumidores. Inclusive sua própria atividade poderia sofrer sérias conseqüências, caso os comerciantes se tornassem sensíveis aos clientes que exigem produtos não contaminados por agentes químicos.

Já que se torna cada dia mais evidente que o processo de modernização da agricultura não produz a uniformização e sim a diferenciação entre os produtores rurais, torna-se mais visível o desenvolvimento não só de diferentes profissões na agricultura, mas sobretudo a tendência à formação de dimensões novas da profissionalidade que requerem um olhar mais aberto. Refiro-me aqui à possibilidade de que os produtores rurais não tenham que ser encaixados em uma única profissão, que possam se desenvolver profissionalmente criando até novos saberes. Nesse sentido a "profissionalidade" do produtor rural não pode se limitar à sua capacidade tecnológico-financeira, mas deve incluir as relações que suas atividades mantêm com a sociedade, hoje muito claras sobretudo através da questão ambiental.

Por isso parece-nos importante refletir sobre os produtores que participam das chamadas agriculturas alternativas, porque estas constituem um fenômeno cuja difusão no Brasil é relativamente recente e decorre diretamente, por contraste, do processo de modernização; apresentam grandes potencialidades de expansão em nível mundial e inclusive porque boa parte de suas características constitutivas apontam para novos conteúdos da "profissionalidade" dos produtores rurais.

Agriculturas alternativas como novo campo de saber profissional

As agriculturas alternativas são assim chamadas porque têm em comum pelo menos dois elementos básicos: de um lado, por considerarem sumamente importante o meio ambiente, uma vez que com ele sempre intercambiam bens fundamentais; de outro, porque recusam o uso de insumos químicos, técnicas e instrumentos que provoquem desequilíbrio nos ecossistemas naturais ou reconstruídos. Todas contemplam sistemas coerentes segundo princípios que conjugam uma determinada maneira de produzir com maneiras de consumir e de viver consideradas adequadas. Uma vez adotados integralmente, tais princípios definiriam formas de agricultura que se tornariam inconciliáveis com o sistema da agricultura modernizada. Os fundamentos das agriculturas alternativas encontram-se, assim, na agricultura biológica, biodinâmica e ainda na agricultura natural ou ecológica.

A agricultura biológica

Nascida das experiências realizadas pelo agrônomo inglês Sir Albert Ho-word na Índia nos anos 30, a agricultura biológica é a modalidade que tem tido maior difusão, obtendo reconhecimento público de seus méritos. Por sua vez, parte do pressuposto de que a agricultura moderna está reduzindo as reservas de "capital natural" cada vez e de modo mais rápido, principalmente as reservas de solo fértil. A forma de exploração, e sobretudo o ritmo de intensificação dos procedimentos modernizados, provocam desequilíbrios naturais cada vez mais difíceis de controlar. A agricultura biológica recusa a fertilização química e prescreve o uso da fertilização orgânica (vegetal e animal), que teria a capacidade de reduzir significativamente a incidência de doenças nas plantas, tornando-as mais saudáveis, fortes e até mais produtivas, inclusive com frutos de melhor qualidade.

Para Catelli (1990), a agricultura biológica não significa tanto um método produtivo, mas antes um "agir agrícola" dotado de postulados e conhecimentos, que prevê atividades e procedimentos específicos, utiliza instrumentos particulares e estruturas e materiais que perseguem determinados objetivos (idem: 60). Seus postulados fundamentais podem ser assim sinteticamente enunciados: a) cada bem está ligado a outro e tudo faz parte da cadeia dos seres vivos; é a ótica global que se contrapõe à ótica da especialização típica da ciência moderna; b) cada bem acaba em algum lugar, de modo que não existe substância induzida que não afete de alguma maneira o meio ambiente; c) como nossos conhecimentos sobre a natureza são limitados, não pode ser adotada qualquer "novidade" sem que seja longamente testada; d) um bom terreno – suficientemente dotado de seus mecanismos de defesa –pode vencer os inimigos naturais das plantas, já que nenhum organismo pode fugir das leis biológicas gerais (idem: 61-62).

Os conhecimentos da agricultura biológica questionam a agricultura modernizada que se limita a considerar como elementos importantes para a produção o trabalho, o solo e os insumos, negligenciando uma série de outros elementos igualmente ativos, como o ar, a temperatura, a umidade, a combinação das espécies vegetais, animais e orgânicas. Os adeptos dessa modalidade agrícola estão convencidos de que, para se ter sucesso do ponto de vista da qualidade do produto e da conservação do meio ambiente, é necessário considerar todo o sistema sobre o qual a atividade intervém e, por isso, torna-se necessário buscar procedimentos técnicos consoantes com aqueles princípios. O pilar fundamental é a fertilização orgânica, feita com material animal ou vegetal, sendo muito importante para a produção de fertilizante a técnica de compostagem de resíduos, sobras e dejetos orgânicos da própria unidade produtiva. As técnicas de trabalho do solo devem ser superficiais e "doces". A luta antiparasitária e anticriptogâmica deve ser feita com produtos de origem natural diretamente manipulados pelos produtores, e também se utilizando de certas técnicas, como menor densidade na semeadura e escolha de variedades mais rústicas e resistentes. Outro ponto básico é a rotação das culturas que devem se suceder no mesmo terreno, facilitando a reconstituição natural das reservas de materiais nutrientes e defensivos do solo. Em certos casos, são recuperadas as tradicionais técnicas de associação de culturas eliminadas pela agricultura moderna (Catelli, 1990: 63-67). A idéia de que agricultura policultural e diversificada seria mais vantajosa do que uma monocultura baseia-se sobretudo na crença de que um sistema simplificado (com um número menor de elementos e inter-relações) seria mais instável do que um sistema mais complexo, já que neste último as diferentes plantas intercambiam diversos ingredientes com a terra, produzindo um sistema de troca bem mais rico.

Na Itália e na França os agricultores biológicos costumam recuperar as antigas estruturas da agricultura tradicional: tanto os terrenos abandonados, por serem difíceis de trabalhar com tratores, como as velhas construções nas fazendas que mantinham muito próximos a habitação, o estábulo, a cerca dos pequenos animais, o forno, a área de secagem dos grãos etc. Faz parte da infra-estrutura da fazenda biológica não só tudo aquilo que permite a recuperação, o tratamento e a reutilização de qualquer material orgânico resultante das atividades produtivas, como também o tipo de árvores e cercas-vivas, cuja disposição, combinada com a vegetação expontânea, deve assegurar nichos de reprodução da fauna local. A recuperação do "rústico" como retorno à raiz biológica das coisas e à riqueza do material genético no qual se baseava a agricultura tradicional é uma dimensão característica bastante forte na agricultura biológica.

Os instrumentos de trabalho não são definidos e classificados em termos de máquinas e ferramentas, mas em termos de capacidade de resposta aos seguintes requisitos: favorecer a reconstituição do solo e manter o equilíbrio da biosfera; evitar o desperdício energético; poluir o menos possível; reaproximar o homem ao ciclo de reprodução natural; respeitar o critério da pequena escala e adequar a produção às condições ambientais locais. Os materiais utilizados também respondem a certos parâmetros definidos: de um lado, devem ser materiais que não são estranhos aos ciclos biológicos, isto é, devem ser biodegradáveis; de outro, não podem contrariar os equilíbrios próprios do tipo de sistema agrário que se pretende realizar, ou seja, trata-se de uma verdadeira estratégia de comportamento agrícola que combine corretamente características locais, variedade e compatibilidade de culturas, épocas e dosagem das intervenções (idem: 71-82). Assim, a fazenda biológica tem a sua identidade fundada na capacidade de organizar comunitariamente uma série de atividades. Assim como a agricultura moderna, o seu raio de ação não se limita aos confins da fazenda, mas se estende a montante e a jusante do processo produtivo: envolve financiamentos bancários, experimentação e pesquisa em centros de assistência técnica e universidades, associações e cooperativas, formas de comercialização etc.

Os adeptos da agricultura biológica perseguem objetivos tanto de ordem agronômica quanto referentes a outras dimensões sociais. No plano estritamente agronômico, eles procuram diminuir o empobrecimento do solo, reequilibrar biologicamente as partes cultivadas e tornar eficiente a unidade de produção; restaurar a qualidade ambiental das áreas rurais no que diz respeito tanto aos sistemas agrários, como aos ecossistemas naturais. Quanto ao aspecto social, a agricultura biológica significa, antes de tudo, produzir alimentos mais ricos, equilibrados e não-contaminados por elementos químicos. Este objetivo, como sublinha Catelli, funda-se em um "forte componente ético" que reclama uma atividade agrícola capaz de desempenhar uma função muito decisiva na saúde coletiva. Outro objetivo importante é instituir modelos de gestão alternativa dos recursos e das mercadorias alimentares exigidos pelas necessidades locais. Finalmente, essa modalidade de agricultura pressupõe uma nova figura de produtor rural, dotado de uma verdadeira profissionalidade e de um real poder no âmbito da disciplina que orienta sua atividade (Catelli, 1990: 81-82).

A agricultura natural ou ecológica

Conhecida após as experiências de mais de 30 anos do biólogo japonês Masahobu Fukuoka, a agricultura ecológica constitui um conjunto de práticas que poderiam ser definidas como "não fazer". Primeiramente a atividade é precedida por estudos das condições ambientais ótimas para que o terreno possa suportá-la. Assim, são mantidas (ou introduzidas) espécies vegetais não-produtivas, mas que melhoram o ecossistema, antecedendo os cultivos e funcionando como fertilizantes e reequilibradores ecológicos. Uma vez restabelecidos os equilíbrios biológicos naturais, não haveria mais necessidade de arar, adubar, podar, ou usar defensivos.

As constantes associações entre culturas principais e secundárias e a permanente rotação das espécies trabalhadas, asseguram a estabilidade e a continuidade dos ciclos biológicos, e também faz com que não haja necessidade de interrupções nos ciclos produtivos. Aqui também os instrumentos, mais que identificados materialmente, são definidos a partir de certos requisitos. Torna-se fundamental limitar o uso de ferramentas e máquinas, considerando como mais apropriados os instrumentos que reduzem ao mínimo a distância entre as mãos (e o cérebro) do agricultor e o terreno trabalhado. Em geral, são muito revalorizados os instrumentos artesanais mais simples e tradicionais. Este mesmo princípio orienta a seleção das espécies. Evitam-se radicalmente espécies híbridas ou manipuladas pela engenharia genética e são selecionadas as mais capazes de produzir uma regressão para variedades rústicas e mais próximas das espontâneas e originais. Tal prática visa também reforçar, explícita e intencionalmente, certo localismo na produção, no consumo e nos mercados, estimulando novas relações entre o homem, a cultura e a natureza, cuja interação deveria estar na origem do ato de produzir (Catelli, 1990: 83-91).

A agricultura biodinâmica

Criada ainda nos anos 30 pelo alemão Rudolf Steiner, é a modalidade que mais exige conhecimento especializado do meio ambiente e dos ecossistemas agrícolas. A hipótese biodinâmica concebe a realidade não apenas constituída de elementos sensoriais, mas também de entes que fogem à possibilidade de serem percebidos pelos sentidos. Torna-se assim necessário aprofundar os conhecimentos no plano físico-material, buscando tanto compreender as relações entre os seres vivos e os elementos que os constituem, como também entender os movimentos dos astros e as energias cósmicas que influem sobre a terra. Não haveria somente substâncias, mas também influxos que exigem do homem capacidades cognitivas e percepções intuitivas sobre as quais a civilização racional tem silenciado.

A relação que a agricultura biodinâmica estabelece entre o homem e o meio ambiente é bastante diferente da das agriculturas de tipo biológico e natural. Enquanto estas formas se centram nas relações homem-comunidade-meio ambiente para daí desenvolver sinergias produtivas e existenciais, os objetivos da agricultura biodinâmica se voltam para o produtor como centro de todo o discurso evolutivo dos indivíduos e das coletividades. Com efeito, essa modalidade pretende desenvolver métodos e técnicas que assegurem uma produção quantitativamente satisfatória, ao mesmo tempo incrementando a fertilidade do solo; procedimentos produtores de alimentos com ótima capacidade nutricional e que se oponham aos processos de degradação ambiental, da qualidade de vida e da relação do homem com a biosfera, entendida esta não apenas como um simples cenário ou mero suporte físico, mas como um ser vivo que tem um percurso evolutivo próprio (Catelli, 1990: 93-97).

Ao difundirem os seus fundamentos filosóficos e diretrizes práticas diferentes, essas correntes das agriculturas alternativas mesclam-se e assumem formas híbridas, ora enfatizando dimensões tecnológicas, ora aspectos ecológicos e/ou sociais. Canuto (1996), por exemplo, observa que boa parte da agricultura ecológico-familiar se baseia nos princípios da agricultura orgânica, apesar de não ser ainda claro quantos estilos diferentes ela poderia gerar. Esse autor chama a atenção para o fato de que nos últimos anos estão sendo experimentados outros sistemas, sobretudo a partir da agricultura familiar, ainda não bem definidos, mas que, com certeza, se afastam dos critérios da agricultura moderno-industrial. É interessante notar que tais experiências não são levadas a cabo por produtores "camponeses", mas por agricultores que já passaram por experiências de modernização e inserção no mercado. Estes casos não se identificam com as formas biológica, biodinâmica nem ecológica, porque no geral se mantêm distantes dos princípios fundamentais dessas agriculturas, embora incorporem alguns elementos práticos inspirados nelas (Catelli, 1990).

Outros estudos discutem a questão de se os agricultores alternativos constituem um movimento social ou se, de fato, apenas seriam produtores "institucionalizados". Almeida (1996), por exemplo, observa que eles poderiam se tornar um movimento político e social na medida em que consigam superar as suas atuais bases fincadas quase exclusivamente em critérios econômicos, culturais e técnicos e muito pouco em termos sociopolíticos. Hoje não se poderia afirmar se as agriculturas alternativas simplesmente buscam resolver a crise dos modelos produtivos com sinais de esgotamento, ou se elas poderão dar conta das diferentes formas de inserção da agricultura familiar no tecido socioeconômico local. Não estaria claro se estas modalidades representam mais um protesto do que um projeto social. Esse autor parece estar preocupado principalmente com a "institucionalização" desses agricultores. Para ele a sua incorporação os tornaria apenas um setor específico de produtores especializados, com características próprias e exigências dirigidas a determinados mercados, reivindicações de legislação etc. Em outras palavras, eles se tornariam um grupo social dotado de identidade e espaço na sociedade, isto é, estariam "inseridos", mas também congelados em seu próprio potencial transformador. Teriam desistido de um maior engajamento na luta pela mudança da sociedade a partir de inserção transversal em todos os seus setores, como uma espécie de revolução cultural. Neste caso, para o autor, as agriculturas alternativas poderiam se tornar simplesmente uma terceira via entre a forma moderna e a agricultura tradicional, somente reduzindo as diferenças entre todas essas modalidades agrícolas a questões de conveniência individual do produtor. Se, ao contrário, se convertessem em movimento social, os produtores deveriam demonstrar a validade geral de sua escolha e exibir uma clara definição ideológica, perante a qual os argumentos de conveniência econômica não teriam maior importância. Para serem um movimento social, os produtores alternativos deveriam se organizar não somente para obter espaço produtivo e mercado próprio, mas também para difundir suas idéias em todos os setores da sociedade, em um movimento de contestação que, ao mesmo tempo que econômico, também fosse produtivo, ambiental e social. Deveriam lutar para remover os obstáculos interpostos pelo mercado à difusão desses tipos alternativos (custos, preços e produtividade); mudar as estruturas produtivas tradicionalista (valores culturais e práticas antiquadas), de baixo nível de instrução e escassas condições econômicas. De qualquer modo, institucionalizados ou organizados como movimentos sociais, os produtores alternativos, não deixariam de ser agricultores profissionalizados.

Concluindo

Se, de fato, certas ocupações adquirem o estatuto de profissão porque se fundam em atividades especializadas, pressupõem conhecimentos organizados segundo corpos teóricos e assim exigem preparo e tirocínio, então, podemos dizer que grande parte dos produtores rurais, tradicionais e modernos, são profissionais. No entanto, se além desses requisitos, uma profissão requer que suas atividades sejam reconhecidas úteis à sociedade e exercidas de acordo com um código de ética que regule as relações entre profissionais e clientes; e, se for preciso que ela tenha que conferir uma "autoridade profissional", o poder de estabelecer o que é bom e o que é mau para os seus usuários, neste caso, só uma minoria de produtores rurais, justamente os agricultores alternativos, podem ser considerados profissionais. Geralmente, a atividade desses produtores é rica em considerações ideológicas e morais, postas no mesmo plano dos valores agronômicos. Esses agricultores falam de uma ética e visão de mundo que os teriam levado a escolher tal tipo de cultura como busca de um equilíbrio universal que começaria nas relações entre o homem, a natureza e os animais. Usam uma linguagem que procura unificar práticas diferentes; suas organizações nacionais, por sua vez, buscam difundir técnicas codificadas a partir de uma teoria científica e mobilizada como uma ideologia através de símbolos.

Em tese esses agricultores estariam melhor preparados do que qualquer outro tipo de produtor, tradicional ou moderno, que apenas sabe controlar a combinação de três ou quatro elementos (solo, água, cultura, calendário agrícola) a partir de conhecimentos das ciências naturais. Ao contrário, os produtores alternativos baseiam-se em conhecimentos de ecossistemas mais complexos, a partir de teorias que combinam saberes provenientes de áreas que as ciências modernas (biologia, botânica, zoologia, geologia, física terrestre etc.) têm mantido separados. Além disso, os agricultores alternativos têm uma perspectiva de vida que os distingue de forma clara dos produtores modernos, já que para eles a atividade agrícola não significa somente uma maneira de produzir, mas também, e talvez sobretudo, um modo de vida. Por isso, é comum se observar, juntamente ao seu empenho na atividade produtiva, um engajamento proselitista, pelo qual eles buscam convencer produtores e consumidores acerca dos grandes benefícios que essa agricultura pode trazer para a melhoria da qualidade de vida. Esse tipo de perspectiva se formou em contraposição ao processo de modernização e se desenvolveu entre agricultores com experiência desse processo e que passaram a adotar práticas alternativas recuperando saberes dos sistemas tradicionais, combinando-os com os conhecimentos das ciências naturais e agronômicas.

Não por acaso, os métodos e as técnicas das agriculturas alternativas fundam-se em princípios que constituem todo um sistema que se pretende coerente no plano econômico-produtivo e filosófico-cultural. Além disso, a medida que se intensificam os intercâmbios entre esses agricultores e o conjunto da sociedade e esta também se torna mais sensível à questão ambiental, tais procedimentos agrícolas alternativos estão sendo introduzidos aos poucos nos sistemas de agricultura moderna, empresarial ou familiar. Nestes casos, a generalização não responde somente a intuitos simbólicos ou demonstrativos de "atitudes politicamente corretas" para ganhos de marketing, mas, na grande maioria deles deve-se à lógica econômico-produtiva e de aumento da produtividade e lucros. Em suma, as agriculturas alternativas têm nos mostrado a possibilidade de termos um sistema produtivo capaz de satisfazer, simultaneamente, as necessidades humanas e conservar o meio ambiente.

Teríamos, assim, diferentes modelos de agricultura, dotados de profissionais com diversos perfis, distribuídos num continuum cujos pólos vão da agricultura moderna aos diversos estilos de agricultura alternativa. Nesse continuum, os produtores familiares estariam sendo socialmente pressionados e atraídos ideológica e economicamente para aderirem a um dos dois extremos. No entanto, hoje, a chave para abrir as portas a uma profissionalidade completa reside na relação que os produtores rurais possam conseguir estabelecer entre as suas atividades, a conservação do meio ambiente e a elaboração de produtos sadios. As questões profissional e ambiental estão profundamente inter-relacionadas.

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