Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Trajetórias contemporâneas


Estudos Sociedade e Agricultura, 9, outubro 1997: 199-207.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA


Está acontecendo algo com a intelectualidade brasileira neste tempo de globalização, justo quando se cumpre o vaticínio de universalização do mercado daquele que pronunciou a frase mais radical sobre a práxis crítica; a quase meio século do laboratório econômico de 29, quando a Europa conheceu o tipo sociológico de inteligentsia e inclusive aqui emergiu uma importante geração de pensadores demiurgos? Agora postos novamente à prova, estaríamos assistindo ao declínio dos nossos "últimos intelectuais" de vocação pública? O desconforto com as alianças táticas de Fernando Henrique Cardoso e a integração às vezes parecendo "risorgimentista" de muitos intelectuais ao governo denunciam um enfraquecimento dos modelos da tradição de reforma social? Estaria em curso um processo de transformismo da "inteligentsia" brasileira para um novo status, mais pragmático, aquém do reformismo mannheimiano, sem muitas energias utópicas?

Nossa tradição oferece uma galeria de gerações e trajetórias modelos: os primeiros republicanos jacobinos, os ensaistas da nacionalidade e os intelectuais-consultores do Estado Novo; os publicistas tardios do nacional-desenvolvi-mentismo e a nova intelectualidade de profissionalização universitária pós-64. Depois da morte de Vargas, boa parte dos intelectuais do nacional-popular se movimentaram à esquerda como uma verdadeira inteligentsia, principalmente em torno do Iseb e do PCB. Uns de matriz leniniana (por exemplo, Caio Prado Jr., Werneck Sodré, Passos Guimarães), outros de inspiração mannheimiana (Vieira Pinto, Furtado, Guerreiro Ramos, Paulo Freire), eles publicitaram o tema do subdesenvolvimento e mudança social e estiveram próximos, quando não participaram, de governos pluriclassistas, deixando aos sucessores o enigma da democracia como instrumento de melhoria social. Quase todas as vertentes destes últimos iriam ter no laboratório do MDB a melhor sociabilidade para se aperceberem de uma identidade já dúplice. Herança comunista, dureza do engajamento político, em algumas áreas com alto custo, lembrando a face russa de inteligentsia; interdição do acesso nacional-popular à estrutura de governo, resistência à ditadura desde a política – afirmando a reforma social como processo de sociedade civil, onde inclusive, em parte sindicalizada, a intelectualidade pós-64 passa a estar entre iguais, como já anotou Daniel Pécaut no seu texto sobre os intelectuais brasileiros (Pécaut, 1990).

Certamente o livro da jornalista francesa Brigitte Hersant Leoni –Fernando Henrique Cardoso: o Brasil do possível– não continua a tematização de Pécaut. Mas a despretensão analítica não diminui a sedução da narrativa quase toda ela feita dos testemunhos de mestres, colegas de universidade e exílio, ex-alunos, amigos e críticos, homens da política e a voz do próprio biografado. Longe de biografia-simples história, a leitura do livro de Hersant Leoni permite revisitar a nossa história política através do perfil ilustre e leva um grande público a se colocar diante desse tema, hoje mais do que nunca crucial, dos intelectuais na política, oxalá ensejando a comparação sempre proveitosa entre trajetórias e marcas que os personagens recolhem e deixam em suas passagens pelo terreno da história política do passado.

O livro pode ser relatado desde o tópico sobre a paisagem sartreana –primeiros anos 60, "furacão sobre Cuba"– à vitória do PSDB-PFL de 94; e/ou na chave do prefácio de Touraine, a partir das três grandes escolhas do biografado: a do momento em que Fernando Henrique emerge à cena pública, quando abraça uma teoria moderada da dependência e se diferencia da visão estagnacionista e da radicalização política (Touraine); a segunda, quando ele acompanhou no começo dos anos 70 a Ênio Silveira, Moacyr Félix, Cavalcanti Proença, Dias Gomes, Werneck Sodré, Mário Lago, Ferreira Gullar e os articulistas da revista Civilização Brasileira (que vinha resistindo à ditadura desde 1965 e chegou a ter uma tiragem de 20 mil exemplares), Barbosa Lima Sobrinho, Houaiss; Antonio Cândido, Ianni, e muitos outros, na tarefa de "despertar a consciência democrática e o espírito de liberdade"; e a última escolha, "nem intelectual nem política", mas de tipo "histórico", ao abandonar o modelo de Estado Nacional do pós-guerra para aceitar, à Felipe González, "a abertura de mercados mundiais e lutar para manter ou restabelecer a integridade da sociedade" (idem).

De fato, a origem do "publicista" Fernando Henrique Cardoso –as aspas para referir uma diferenciação entre os intelectuais dos anos 50, notáveis pelos seus livros, e os novos, de notoriedade americana (papers, conferências etc.)– a sua geração é lembrada como a geração mertoniana da USP de Florestan e do Seminário sobre O Capital, lócus de acolhimento de uns, como ele, de passagem pelo PCB, e de outros, também insatisfeitos com o marxismo pecebista. O próprio Fernando Henrique recorda que naqueles últimos anos 50 se partilhava a "dificuldade com a prática esquerdista populista da época" (p. 88). As primeiras obras pretendiam "verificar a tese do Iseb" (p. 99), e parece terem mesmo o endereço adicional do PC (como registra Pécaut em seu depoimento a Hersant Leoni). Na obra de 1962, o escravismo brasileiro é mostrado como um recurso moderno-instrumental e serve a um argumento contraposto ao da dissertação feudalista. Por sua vez, a pesquisa sobre os empresários, de 1963, desautoriza o progressismo do "endeusamento" burguês (Cardoso, idem).

Já no exílio chileno, trabalhando na Cepal, Fernando Henrique Cardoso refaz, à moda da economia política do século XIX, o caminho cepalino dos anos 50. O próprio Furtado relembra em seu testemunho à biografia que era o sociólogo quem agora devia explicar o processo já bastante avançado da industrialização latino-americana, referindo-se ao livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito em 1967 em parceria com Enzo Falletto (p. 125). Largamente influente, o ensaio de Cardoso e Falletto abre a discussão sobre o novo ciclo do desenvolvimentismo dependente, sinalizando o rumo que um pouco depois tomarão Conceição Tavares e José Serra (1970); e interpela o catastrofismo (fascismo ou socialismo) de olho (também...) na batalha ideológica com a esquerda "moderada" ("abrir o espírito contra a visão comunista-populista e a Cepal", como chega a afirmar ex-post, p. 130). (De que PC estaria falando?...). Do Chile da via política de Allende e do PS-Partido Comunista, Fernando Henrique se desloca para a França de Maio de 68, de onde vai preparar a volta à vida acadêmica no Brasil.

Neste ponto crucial, e como a história não cabe toda numa biografia, convém olhar para outras trajetórias e ver se nelas não há outros "acontecimentos intelectuais" igualmente desconstrutivos do estruturalismo do imediato pós-64 que, por entre as noções de "esgotamento da substituição de importações", "obstáculos estruturais", "contradições explosivas"; "causalidade estrutural", "desenvolvimento do subdesenvolvimento" etc., subsumia a política à economia (Pécaut, 1990), rebaixando a eficácia da resistência antiditatorial na primeira década do autoritarismo (Santos, 1996a).

De momento, o PCB seria um dos exercícios possíveis. Com efeito, submerso, seguindo a reação da classe política derrotada em 64, ele logo retomava da sua trajetória energias para realizar um movimento (nem sempre intelectualmente conhecido) de reabilitação da política, sobremaneira da política institucional, chave na montagem da frente democrática. Praticando uma "sociolo-gia de modernização" meio às avessas, desde maio de 1965, esse partido vai procurar associar (dada a tradição, penosamente) economia e política valorizando arenas onde os atores sociais e políticos não seguiam lógicas simples. A apenas três anos do golpe, quando o novo "modelo econômico" ainda não se perfilara de todo, pela intuição os comunistas brasileiros já registravam algumas mudanças pós-64. O Informe do Comitê Central ao VI Congresso de 1967, por exemplo, dizia ser obrigatório atentar para a nova marcha do crescimento das forças produtivas nacionais (PCB, 1967). Com o golpe de 64, a estratégia anterior, de polarização entre o par estagnacionista status quo agrário/forças estrangeiras e os (até então minoritários) grupos moderno-indus-trialistas, devia ser repensada. O novo ciclo econômico mostrava que o projeto autonomista de substituição de importações (... em xeque) havia cedido a vez a alternativas modernizadoras, de resolução no campo da política.

Após o Ato 5, outro texto mostra o exercício intramuros de uma sociologia política instigante. Agora se propunha correlacionar na reflexão sobre o regime de 64 o curto termo –as marchas e contramarchas na montagem do Estado autoritário (cassações, repressão etc.)–, com o médio prazo, ou seja, os sintomas do processo de esgotamento das potencialidades da ditadura. A noção de "processo de fascistização", intuitivamente próxima ao conceito de "fascismo pelo alto", mais do que cautela para referir uma tendência inconclusa, procurava expressar uma idéia capaz de captar o sentido político dos traços não-clássicos da experiência brasileira – apoio na corporação militar e na tecnocracia, atomização das massas, Congresso consentido etc. A questão política consistia em abandonar o "primarismo" (sic) do cálculo "unicamente no caos e na catástrofe da política econômica das classes dominantes" (PCB, 1970). De conseqüências plurais, aquela modernização induzia uma "lógica do social" de efeito multiplicador dos "focos políticos de resistência", criando uma possibilidade de ruptura com a passividade e de se "passar da defensiva à ofensiva". A arquitetura da política de resistência se alicerçava no cotidiano, e se devia valorizar tanto as miudezas e as ações parciais, quanto as eleições ("momentos altos da luta") e os acordos de cúpula, fazendo com que "aquele sentimento passivo (pós Ato 5) vá tomando forma, pouco a pouco, até se transformar num grande movimento nacional, em frente única, que englobe os sindicatos, o movimento estudantil, a Igreja Católica, os partidos e os políticos da Oposição..." (Idem). Neste texto, a política se afirmava como previsão e perspectiva, na medida em que, à Gramsci, combinava-se uma análise de conjuntura (o endurecimento político pós-68) com a consideração dos "fatores de tipo mais permanente" (dificuldades, crises, conflitos na base política do regime etc.) – permitindo pensar e desenvolver iniciativas de resistência.

De volta ao país em 68, Fernando Henrique Cardoso não iria continuar na USP; a aposentadoria compulsória em 1969 o levará ao engajamento político. É o tempo do Cebrap, "exílio" de onde parte da intelectualidade de Oposição iria fazer a denúncia multidisciplinar do regime e do "milagre", exemplar no estudo, feito a pedido da Igreja, São Paulo, 1975: crescimento e pobreza. Também é o tempo da militância de Fernando Henrique Cardoso e de alguns desses intelectuais na imprensa alternativa paulista, especialmente após 72 (Opinião, que chegou a ter 40 mil exemplares; Movimento, 80 mil; a revista Argumento, com apenas alguns números) e da fundação da Editora Paz e Terra, da qual ainda é sócio. Foi essa sociabilidade que levou parte do grupo cebrapiano a sair à superfície da política institucional. Não por acaso, o último grande livro Democratização e Autoritarismo se compõe de ensaios de conjuntura, nos quais inclusive Fernando Henrique Cardoso oferece uma sociologia política da modernização contraposta à economia política da "economia a qualquer preço" e contra a sua ideologia de "racionalização do imobilismo burocrático-repressivo" (Cardoso, 1974: 237), cuja pesquisa mostrava um processo de fortalecimento da sociedade civil a partir da incorporação de novos contingentes de operários e de classe média, e a fratura no bloco no poder – sendo possível pensar no "degelo da situação". A depender mais da política do que de fatores estruturais (idem).

Francisco de Oliveira e Roberto Schwarz vêem a incorporação de Fernando Henrique Cardoso (e de outros cebrapianos) ao MDB como um movimento sagaz de quem enxergava no fim do túnel (Schwarz: 171). Arrematava-se aí a travessia das primeiras obras acadêmicas para a ensaística do "pensador de situação de crise" (cf. Weffort), privilegiado pela visibilidade do Cebrap, dos jornais alternativos e da SBPC, não lhe sendo difícil transitar para o mundo do pragmatismo. Não por acaso, o deputado estadual Pedro Simon e depois Ulisses Guimarães, às vésperas da eleição de 74 o puxam para dentro do MDB. O primeiro levou-o para fazer conferência a 2 mil pessoas no sul; o segundo rondou o Cebrap até convencer o grupo a escrever o programa do partido para o pleito. Depois: os 1,3 milhões de votos do candidato ao Senado em 78; a participação na origem dos novos partidos (parte do grupo cebrapiano e sindicalistas de São Paulo, primeiro, pensaram num partido popular, depois é que veio a idéia de um partido de trabalhadores de tipo inglês). Fernando Henrique terminou optando pelo partido omnibus ("de assalariados", lato sensu), para viver no MDB os lances ulteriores do processo de redemocratização (Diretas, Tancredo, Sarney; PSDB, 1989; Collor, Itamar etc.).

A biografia termina com o governo Fernando Henrique Cardoso, após ele aceitar o "clima liberal com objetivos sociais" (Touraine). Ida sem volta (Fer-nando Gasparian); único caminho, mas que importava alianças "da esquerda para a direita" (Antonio Cândido). "Será instrumento de suas alianças ou ator?" (Florestan). Ao período provisório seguir-se-á uma fase de mudanças? (Maria Victoria Benevides). Homem de modernização, se o crescimento à Vargas e à JK não vier para a melhoria social, "a sua chegada ao poder terá sido a subversão das alianças e o enfraquecimento da centro-esquerda, que se tinha construído na oposição à ditadura" (Schwarz: 353).

Aí o ponto, no comentário de Schwarz. Confirmado um cenário como aquele –não revertido o distanciamento do Presidente da centro-esquerda– será possível avaliar até onde a escolha "histórica" aludida por Touraine já expressa a tendência risorgimentista de os intelectuais, para se porem à altura destes tempos de globalização, se verem obrigados a abandonar a vocação de publicização dos problemas nacionais e se tornarem apenas experts, por exemplo, de uma nova "racionalização imobilista", como dizia o intelectual em 1974 (Cardoso, 1974). Ou seja, se não houver um movimento reativo, com participação de uma parte expressiva da intelectualidade, e não surgir uma nova configuração pluriclassista de reforma social, a "identidade de inteligentsia" certamente se exporá a um processo transformístico, ao qual uma fração de intelectuais sem dúvida vai reagir, radicalizando-se, sendo provavelmente mais forte, porém, a derivação para uma espécie de insulamento mertoniano.

Se da globalização ninguém escapa e é preciso ir em frente, isso não quer dizer aceitação da idéia de que já vivemos uma nova "revolução passiva" e que nada mais se possa fazer diante do americanismo globalizado, "menos contido e disciplinado por supra-estruturas e pela ação de intelectuais extrínsecos ao mundo da produção", como caracteriza essa ideologia Luiz Werneck Vian-na, aludindo ao movimento já intuído por Gramsci como "uma nova cultura" e "um novo modo de vida" e que agora concederiam "um protagonismo inédito aos ‘fatos’" (Vianna, 1995; 1997). Isto é, nada mais restaria senão se render a uma espécie de "revisionismo econômico" de inteligentsia, aquilo que Norberto Bobbio lembra de Benedecto Croce como uma abdicação dos intelectuais quando se deixam levar pela primazia dos "valores empíricos" sobre os "valores da cultura" (Bobbio, 1997).

Se refeita aquela sociabilidade político-intelectual, não haverá motivo "estru-tural" –à Pécaut, à pós-64, à globalização– que impeça pensar as tarefas econômicas como um "campo de teste e não como um templo", sob inspiração do "compromisso entre Estado e sociedade" e da utopia da modernidade inacabada, como na recomendação habermasiana. Os nossos intelectuais, bem entendido, parte expressiva deles, têm raízes culturais que os impele –e isso nada tem a ver com o bizantinismo que dizem atributo dos eggheads– a continuarem olhando o seu que-fazer público na nossa melhor tradição de pensamento de "frutos em tempos longos"... Aliás, o momento não é ruim. Não por acaso as eleições em curso discutem o tema da unidade da esquerda com o centro político sem as ambigüidades do passado como revival de certo tipo de "partido da política-longe do poder", partido "sem economia", como certa feita disse um sociólogo carioca, que um dia fora o "MDB" (com a devida abstração), vale dizer, política criativa quando muita coisa parece impossível; agora em 1998, como factibilidade de um reformismo de coalizão bem mais forte. "Pluriclassismo" político, como sempre, necessitado de intelectuais que, à semelhança dos dos velhos tempos, contribuam para a cultura política dos brasileiros, sem a qual não se poderá associar a democratização social tocquevileana em marcha com a mobilização da democracia política no campo da política, único encontro capaz de melhorar esta nossa sociedade.

Referências bibliográficas

Bobbio, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Editora da Unesp, 1997.

Cardoso, Fernando Henrique. A questão democrática (1974). In: Autoritarismo e democratização. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

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Pécaut, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990.

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Vianna, Luiz Werneck. O ator e os fatos: a revolução passiva e o americanismo em Gramsci (1995). In: A revolução passiva. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

Brigitte Hersant Leoni. Fernando Henrique Cardoso: o Brasil do possível. Um perfil biográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 360 p.