Estudos Sociedade e Agricultura

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Maria José Carneiro

Política pública e agricultura familiar: uma leitura do Pronaf


Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997: 70-82.

Resumo: (Política pública e agricultura familiar: uma leitura do Pronaf). A partir da perspectiva da reprodução social discute-se algumas noções subjacentes aos princípios norteadores do Pronaf. Se a opção pela agricultura familiar como protagonista de um projeto de desenvolvimento rural representa um avanço em relação às ações públicas no campo, noções como “aumento da capacidade produtiva”, “verdadeiro agricultor” e “agricultura familiar em transição”, presentes no texto do Pronaf, alertam para riscos e possíveis efeitos nefastos desta política pública para a agricultura familiar.

Abstract: (Public Policy and Family Farming). In this article, some questions relating to the underlying principles of the Pronaf are discussed using the perspective of the social reproduction approach. While the choice of the family farm model as the protagonist of rural development policy represents an advance, it is argued that certain notions present in the Pronaf text, such as “increase in productive capacity”, “real farmer” and “family farming in transition”, point to risks and possible negative impacts of this policy for the family farm.

Palavras-chave: agricultura familiar; políticas públicas; desenvolvimento rural.

Key words: family farming; public policy; rural development.


Eleger a agricultura familiar como protagonista da política orientada para o desenvolvimento rural, apesar de todos os impasses da ação pública, não deixa de ser um indicativo de mudanças na orientação (ao menos no discurso) do atual governo em relação à agricultura e aos próprios agricultores. Ainda mais quando se pretende ampliar o conceito de desenvolvimento com a noção de sustentabilidade incorporando outras esferas da sociedade, além da estritamente econômica, tais como: a educação, a saúde e a proteção ambiental (Pronaf, 1996: 6-7).

Há décadas relegada a segundo plano e até mesmo esquecida pelo Estado, a agricultura familiar e a sua base fundiária –a pequena propriedade– têm sobrevivido em meio à competição de condições e recursos orientados para favorecer a grande produção e a grande propriedade – setores privilegiados no processo de modernização da agricultura brasileira. O aumento da produtividade, associado ao consumo de tecnologia, tem fundamentado a ação e o discurso modernizadores até aqui. É nesse sentido que a proposta de um programa de fortalecimento da agricultura familiar voltado para as demandas dos trabalhadores –sustentado em um modelo de gestão social em parceria com os agricultores familiares e suas organizações– representa um considerável avanço em relação às políticas anteriores. Tal tentativa de ruptura é intencional e explícita no próprio texto do Pronaf, quando ele chama a si o desafio de construir um novo paradigma de desenvolvimento rural para o Brasil, sem os vícios do passado (Pronaf, 1996: 14).

Alguns especialistas têm apontado importantes obstáculos à implementação desse Programa, seja no que se refere ao descompasso entre suas determinações político-institucionais e condições estruturais (Rosa, 1995), seja devido a inconsistências no uso de conceitos e na definição dos objetivos versus estratégias de ação, estrutura de gestão e metas (Corbucci, 1995).

A leitura do Pronaf sugere, além desses aspectos, outras questões que merecem discussão e cuidados para que se evite novas ameaças à reprodução da agricultura familiar. Sem nos referirmos às numerosas e complexas dificuldades operacionais que certamente surgirão na tentativa de viabilizar uma gestão social em contexto altamente estratificado e hierarquizado próprio das relações sociais no campo brasileiro, pretendo desenvolver aqui algumas reflexões a partir do que está efetivamente proposto no Pronaf, tendo como referência principal a situação do agricultor familiar e suas condições de reprodução social.

Nesse sentido, farei algumas considerações acerca de noções subjacentes aos princípios que nortearam a formulação desta política de intervenção na agricultura familiar. Para este fim, seleciono os seguintes temas: o modelo modernizador que informa as metas e ações previstas no Pronaf; o papel da agricultura familiar no desenvolvimento rural e a noção de agricultura familiar adotada na definição dos beneficiários do Programa (a questão da profissionalização do agricultor, inclusive). Certamente, a complexidade dessas questões não será aqui esgotada. O objetivo de meus comentários se limita a apontar problemas e alertar para os riscos e possíveis efeitos nefastos desta política pública.

Modernização e agricultura familiar

As diretrizes do Pronaf têm como referência experiências européias, principalmente a da França, que elegeram a agricultura familiar como a forma de produção sobre a qual se implementou, no pós-guerra, a modernização da produção agrícola e da sociedade rural.

Assim como na Europa, o padrão de organização da produção privilegiado pelo Pronaf e a sua função social no desenvolvimento econômico do país estão sustentados, implicitamente, nas noções de produtividade e na rentabilidade crescentes, o que resultaria, segundo os formuladores desse programa, em uma contribuição do setor para a competitividade da economia nacional e, em conseqüência, na melhoria da qualidade de vida da população rural (idem: 15). Na França, a “revolução agrícola” se realizou com o esforço de vários setores da sociedade interessados em transformar o campesinato –a base social histórica da agricultura francesa– em um setor produtivo dinâmico, ao mesmo tempo produtor e consumidor (Lamarche, 1993).

Quando se trata de importar modelos adotados em outros países, é importante lembrar as especificidades das conjunturas e os contextos históricos de cada realidade. No caso da França, a política sustentada na modernização da agricultura familiar foi implementada quando o chamado “Estado-previdência” se afirmava (Servolin, 1989; Abramovay, 1992). Nessa conjuntura foi possível investir somas consideráveis em políticas sociais que garantiam as transformações desejáveis no campo. Assim, implementou-se uma política orçamentária que contemplava, por exemplo, um sistema de prestações sociais destinadas a financiar a proteção social do agricultor, semelhante ao sistema de seguridade social dos assalariados. Além disso, outras fontes de financiamento, a fundo perdido, foram colocadas à disposição do produtor médio com o objetivo de garantir a sua reprodução social e, ao mesmo tempo, manter um certo controle sobre os mercados francês e europeu (Alphandery et al., 1988). Naquela conjuntura de pós-guerra, a ação do Estado brasileiro orientou-se para a modernização econômica e tecnológica da grande produção, consolidando os negócios da empresa capitalista no campo com políticas de subsídio, como, por exemplo, a de crédito agrícola. Agora o momento é outro e a situação do Brasil difere totalmente da economia européia do pós-guerra, tornando duvidoso o êxito de uma política pública de apoio à agricultura familiar em um contexto de restrição da participação efetiva do Estado nos processos de desenvolvimento econômico e social.

O acesso às inovações tecnológicas e ao mercado é, simultaneamente, critério para seleção do público-meta –a agricultura familiar de transição– e objetivo de medidas a serem implementadas pelo Pronaf (idem: 9). Isso nos leva a identificar nessa política uma lógica produtivista, sustentada na tecnificação e na realização de um rendimento para o agricultor que lhe possibilite não apenas melhorar o seu padrão de vida mas, sobremaneira, reembolsar os investimentos públicos. [1] É o que nos sugerem algumas das diretrizes gerais que orientam as ações do Pronaf, tais como: “investir na viabilização de condições de produção e na melhoria da qualidade de vida das famílias de agricultores familiares, fortalecendo a infra-estrutura física e social no meio rural; adequar o retorno dos investimentos à capacidade do pagamento dos agricultores familiares” (idem: 14).

Além disso, cabe ressaltar as diferenças estruturais da composição social da produção agrícola em um e outro país. Ao contrário do que ocorreu no Brasil, onde a modernização da agricultura se sustentou nas grandes empresas e no benefício da acumulação do capital privado, na França a agricultura repousa historicamente na produção familiar, seja na geração de valores, seja em relações sociais de produção, o que justifica a decisão política de se processar a chamada “industrialização” da agricultura sobre as bases de uma força de trabalho e de um capital essencialmente familiar e de médio porte (Lamarche, 1993: 99).

Ainda que a idéia de desenvolvimento contida no Pronaf associe o aumento da capacidade produtiva à melhoria da qualidade de vida e à ampliação da cidadania no meio rural, a noção de sustentabilidade que o acompanha não implica, ao menos explicitamente, a opção por tecnologias alternativas ao padrão que vem sendo adotado até então. Ao assumir o compromisso com a democratização de informações (“gerenciais, de mercado e tecnológicas”), o governo não enfatiza a necessidade de implementar (e pesquisar) tecnologias apropriadas à forma de exploração familiar que possibilitem a redução de custos monetários de produtos, como, por exemplo, os de “qualidade natural”, em um contexto de megamercados e de alta competitividade. O estímulo do Pronaf ao “uso racional de fatores ambientais” não parece se sobrepor ao objetivo, este sim constantemente reforçado, de aumento da capacidade produtiva e da renda. Além disso, não se define claramente o conteúdo dessa racionalidade que, no texto, parece estar restrita à questão da “proteção ambiental”. Torna-se, portanto, difícil reconhecer a real possibilidade do governo em romper efetivamente com as práticas desenvolvimentistas do passado, pautadas na tecnificação, para se orientar na direção de um “novo paradigma de desenvolvimento rural”.

A agricultura familiar é valorizada também como “segmento gerador de emprego e renda de modo a estabelecer um padrão de desenvolvimento sustentável” (idem: 5), o que resultaria na fixação de parte da população no campo. Nestes termos, ao “atacar grande parte dos problemas sociais urbanos derivados do desemprego rural e da migração descontrolada na direção campo-cidade” (idem: 11), esta forma de produção é reconhecida, no discurso governamental, como alternativa “economicamente produtiva” e “politi-camente correta”. No entanto, não se explicita, no contexto da heterogeneidade própria da agricultura brasileira, qual a forma de produção familiar que teria a capacidade de realizar absorção de mão-de-obra, mantendo ao mesmo tempo a competitividade na economia. Parece contraditório atribuir ao produtor a meta de aumentar a produtividade esperando, simultaneamente, que ele amplie a oferta de emprego, o que nos leva a algumas indagações.

Qual o limite dessa tecnificação que, aplicada à unidade familiar de produção, não gere um excedente de mão-de-obra que certamente alimentará o êxodo rural, tal como aconteceu nos países europeus? O exemplo da França é ilustrativo neste ponto. Visando conferir competitividade internacional à agricultura francesa, o governo adotou como modelo a unidade de produção familiar de duas UTH (unidades de trabalho-homem), ou seja, o casal (hoje reduzida a um indivíduo). Paralelamente se implementou políticas sociais com o objetivo de diminuir a população rural e aumentar o padrão de vida do agricultor visando a igualdade com os índices do trabalhador urbano. Dentre essas, destacam-se um programa educacional para orientar os filhos de agricultores a setores econômicos não-agrícolas; programa de controle da natalidade, além da criação da aposentadoria rural e de uma série de estímulos à tecnificação a ser comandada pelas gerações mais jovens. Selava-se, assim, um pacto entre o poder público, a sociedade e o setor agrícola que, ademais, visava neutralizar os costumes da chamada “França profunda”, diluindo as marcas e o peso da tradição, inaugurando um processo modernizador da sociedade rural intrinsecamente associado à tecnificação da agricultura. Os resultados econômicos, rapidamente alcançados, melhores que os esperados, ocasionaram, porém, um novo problema social e ambiental: a desertificação do campo e o inchamento de algumas cidades, incapazes de absorver a mão-de-obra dispensada pelo novo padrão de produção agrícola.

A partir dessa experiência, cabe perguntar: que tecnologia aplicada à agricultura familiar permite aumentar a produção numa situação de limite da área de exploração sem expulsar mão-de-obra? Existe, no Brasil, pesquisa tecnológica para tais fins? É possível conciliar, num programa de apoio à agricultura familiar, as metas de melhoria das condições de vida e do aumento da capacidade produtiva fora de um processo de reforma agrária de modo a absorver o excedente de mão-de-obra já acumulado na agricultura, sobretudo a dos jovens? O que pretende exatamente o Pronaf ao definir como um de seus objetivos “adequar a infra-estrutura física e social para melhorar o desempenho produtivo e a qualidade de vida da população rural”? Será que se está pensando em realizar uma reforma agrária consistente para com ela ampliar a capacidade produtiva recorrendo-se, não apenas, à inovação tecnológica mas também ao aumento do número de estabelecimentos?

É hora de lembrar que esse tipo de política pública, cuja eficácia é medida fundamentalmente pelo desempenho produtivo, pode gerar efeitos inusitados e indesejados. Chegamos, então, ao segundo ponto.

Agricultura familiar e desenvolvimento econômico

Em mente o novo modelo de desenvolvimento sustentado, o governo, através do Pronaf, atribui à agricultura um papel central na promoção do desenvolvimento econômico nacional e na melhoria das condições de vida da população (“contribuir para a redução das desigualdades espaciais e sociais; gerar renda de forma desconcentrada; criar ocupações produtivas nos setores situados antes, dentro e depois da porteira; reduzir a migração campo-cidade; gerar divisas; contribuir para uma maior competitividade da economia nacional...”). Neste contexto, a agricultura familiar se sobressai em alguns setores produtivos superando a agricultura patronal, segundo o próprio Pronaf e de acordo com dados do Censo Agropecuário de 1985. Ainda que tal desempenho seja discutível, o governo reconhece, com essa afirmação, a capacidade da agricultura familiar de se adaptar a situações diversas e de contribuir para o desenvolvimento econômico em condições de competitividade, ainda que sem lucro e renda. [2] Isso implica avaliar a viabilidade econômica das unidades produtivas, exclusivamente, pela sua capacidade de responder favoravelmente às demandas do mercado, e medir a eficácia das medidas enunciadas pelo Programa para incremento da produtividade. Ainda que se chame a atenção para a diferença desta nova política em relação às anteriores, criticadas como produtivistas, ou seja, com ênfase na dimensão quantitativa do crescimento econômico em detrimento da dimensão qualitativa do bem-estar social, as metas anunciadas nos remetem à velha fórmula desenvolvimentista: aumento da produção = diminuição de preço no mercado = competitividade.

Acerca deste aspecto é importante retomar experiências anteriores e lembrar o que é de amplo conhecimento dos especialistas (inclusive dos que realizaram estudos preliminares do Pronaf): os efeitos nefastos da ortodoxia na aplicação do modelo produtivista que construiu a “Europa Verde”. Acompanhar a competitividade do mercado acarretou uma rápida queda dos preços dos produtos que, em alguns casos, ficaram aquém do custo da produção. Para neutralizar os efeitos sociais negativos de tal crise, o governo francês foi obrigado a investir somas cada vez maiores no setor agrícola, desenvolvendo, de fato, uma política protecionista de alto custo social. Apenas, recentemente, o modelo adotado de forma homogênea para o conjunto da agricultura francesa está sendo objeto de crítica e revisão (Alpahndery et al., 1989; Lamarche, 1993).

Essa experiência, aplicada à atual conjuntura, conduz obrigatoriamente à contradição entre a adoção de um modelo de intervenção na agricultura familiar atrelado à lógica do mercado e centrado no aumento da capacidade produtiva e à meta de melhoria das condições de vida dos agricultores. Como garantir estabilidade para essa categoria social em uma situação de mercado auto-regulador de preços e uma demanda de produtividade crescente? Sob tais condições, como evitar a crise de superprodução, queda dos preços e as conseqüências nefastas para a reprodução social do agricultor? Torna-se, portanto, indispensável a implementação de medidas que organizem o mercado e garantam preço para a agricultura familiar; caso contrário, ela permanecerá à margem do processo de desenvolvimento econômico, em situação extremamente desfavorável devido à incapacidade de competir em espaços sociais sob a hegemonia da grande empresa e dos grandes negócios agroindustriais. É neste sentido que “rever e redirecionar a política de preço mínimo para a realidade dos agricultores familiares, transformando-a num instrumento de justiça social e de garantia de renda mínima para o agricultor” constitui um dos grandes desafios do Pronaf. Ao frustrar interesses de grupos econômicos influentes no âmbito local e que certamente terão assento no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (CMDR), a realização desses objetivos implica medidas que podem acarretar altos custos políticos ao governo. Em virtude da composição do CMDR –uma representação paritária de agricultores familiares e de outros segmentos da sociedade civil– é sério o risco de transformar tais órgãos em mais um campo de disputa entre forças políticas altamente desiguais, onde certamente o agricultor familiar irá enfrentar os mesmos obstáculos do tradicional sistema de crédito agrícola. Ainda mais quando se exige que a elaboração dos PMAF (Plano Municipal de Fortalecimento da Agricultura Familiar) “compatibilize as propostas da agricultura familiar com as prioridades dos governos municipal, estadual e federal” (Pronaf, 29).

Na tentativa de implementar uma gestão descentralizada, a criação desses Conselhos –com a atribuição de emitir pareceres sobre o PMAF e de fiscalizar a aplicação dos recursos do Pronaf no município– visaria agilizar a implementação das linhas de ação do Programa respondendo também às diversidades das demandas oriundas de um contexto extremamente heterogêneo no âmbito nacional e mesmo regional. [3]

O modelo de agricultura familiar e o verdadeiro agricultor

Outro aspecto relevante se refere ao caráter excludente dos critérios de identificação do tipo de agricultor familiar beneficiário desta política.

Como é mencionado no próprio texto do Programa, 2.330.000 estabelecimentos são classificados como inviáveis economicamente ou inadequados em termos da infra-estrutura disponível. A integração produtiva desta categoria, chamada de periférica, depende de outras ações não-previstas pelo Pronaf tais como: “um forte e bem estruturado programa de reforma agrária e de atividades econômicas não-agrícolas compatíveis com sua condição de agricultura de tempo parcial” (grifo da autora) (idem: 9). Nestes termos, são considerados beneficiários, os agricultores familiares reconhecidos como em transição –aqueles que, “ainda não consolidados como empresa, possuem amplo potencial de viabilização econômica” (idem: 9) – e que respondam os seguintes requisitos: “utilização do trabalho direto seu e de sua família, com possibilidade de utilização de empregado permanente ou de ajuda de terceiro quando a natureza sazonal da atividade agrícola exigir e que tenha, no mínimo, 80% da renda familiar originada da exploração agropecuária e/ou extrativa (idem: 15). Se, realmente exigidas, tais condições resultariam a exclusão de uma população de aproximadamente 11 milhões de pessoas que compõem as 2.330.000 unidades familiares classificadas como periféricas.

Os critérios de exclusão estão fortemente sustentados na noção, em construção, do “verdadeiro agricultor” – profissional com capacidade empresarial apto para encontrar na atividade agrícola a fonte da quase totalidade da renda familiar. Estão, portanto, excluídos os agricultores que, por motivos variados (natureza sazonal da atividade agrícola, impossibilidade de aproveitar, na produção, a totalidade da mão-de-obra familiar disponível, oferta de emprego na região em situação mais favorável que a agricultura, redirecionamento dos projetos familiares ou individuais de forma a incorporar novos rendimentos e ampliar a capacidade de consumo, entre outros) são levados a desempenhar atividades não-agrícolas de caráter complementar.

Nesta perspectiva, a incapacidade da unidade familiar de se sustentar exclusivamente da agricultura é vista como evidência de impossibilidade desse tipo de produtor de assimilar as demandas e a própria lógica do mercado e de incorporar as inovações tecnológicas. Por conseguinte, o seu enquadramento em uma categoria social periférica, acaba por reforçar e cristalizar a marginalização desse grande contingente da população rural que terá a sua sobrevivência dependente das políticas sociais sem que lhe seja atribuída a oportunidade de participar do desenvolvimento rural, aprofundando mais ainda o abismo entre as camadas sociais no campo.

Transformar o agricultor em um cidadão moderno ou “buscar garantir aos que estão no meio rural condições semelhantes àquelas que outros segmentos produtivos têm no meio urbano” (Pronaf, 1996: 5) é uma escolha que, como ocorreu em alguns países europeus, orienta a atual intervenção pública na agricultura familiar. Tal opção, porém, se sustenta na generalização da noção de trabalhador que não se molda na especificidade das condições de trabalho e de produção rurais.

Associando progresso técnico ao aumento da capacidade produtiva e à imagem do agricultor viável, essa política assegura um enquadramento técnico-ideológico do agricultor familiar que se torna referência para a implementação das metas e, sobretudo, em critério para a avaliação da eficácia das medidas adotadas e do desempenho do próprio agricultor. Ademais, a consolidação desse modelo pressupõe uma percepção evolucionista (e dualista) de mudança social opondo tradição à modernidade, com o agravante de instituir a primeira onde ela não existe. Pensar o agricultor como um “profissio-nal como outro qualquer”, enquadrando-o em um modelo único, calcado nos mesmos parâmetros do trabalhador urbano, de fato, implica negar ou não levar na devida consideração os componentes culturais dos estilos de vida dos agricultores familiares que normalmente se associam às práticas econômicas. Justamente, a especificidade em conjugar as atividades produtivas às relações familiares resulta na plasticidade dessa forma de organização da agricultura e lhe confere a capacidade de se adaptar a situações regionais distintas incorporando na dinâmica de sua reprodução as potencialidades locais, quer de trabalho extra-agrícola, quer da diversificação produtiva e até mesmo da oferta de serviços. Neste sentido, instituir o “bom” agricultor como aquele que aufere a renda familiar quase exclusivamente da atividade agrícola, implica excluir as possibilidades de combinar a agricultura com outras fontes de renda que, em alguns casos, são indispensáveis à continuidade da própria atividade agrícola e, portanto, fundamentais para a retenção da mão-de-obra no campo.

Ampliando as atividades e os produtos (transformação e inovação) experiências de outros países revelam que muitos estabelecimentos têm demonstrado viabilidade econômica mas à margem dos padrões homogêneos e externamente estabelecidos pelo modelo adotado pela política modernizadora (Alphandery et al., 1988).

No Brasil, dados da PEA agrícola e rural apontam para a insuficiência dos rendimentos provenientes da produção agrícola na manutenção dos trabalhadores. Em contrapartida, observa-se a tendência à ampliação de alternativas de emprego não-agrícolas nas zonas rurais de São Paulo, contribuindo para a retenção da população rural nos seus locais de moradia e para o aumento do seu nível de renda (Graziano da Silva, 1995 e 1996).

 A idéia de municipalizar a implementação do Pronaf tem de ser vista, portanto, de forma mais ampla e não limitada ao mero mecanismo de operacionalização de metas e objetivos definidos global e uniformemente para todo o país. Ao contrário, a chamada descentralização deve ser pressuposto da política e considerada na definição dos tipos de agricultores a serem beneficiados. Levar em conta as potencialidades locais (da natureza, do mercado de trabalho e da cultura) implica ampliar a noção de agricultor de maneira a incorporar também aqueles que combinam a agricultura com outras atividades. Integrando o social e o cultural ao econômico é possível conceber uma política pública que vá além da simples implantação de novos arranjos tecnológicos e que incorpore os hábitos e os costumes locais ainda que estes sejam considerados “tradicionais”. Combinar “modernidade” e “tradição” significa ampliar o raio de ação das políticas intervencionistas de modo a assimilar práticas próprias da sociabilidade local contribuindo, assim, para o enraizamento “sustentável” da população rural e a formulação de soluções específicas para cada situação em que se encontram as diferentes formas de agricultura familiar.

Em suma, é importante considerar a pluriatividade como uma condição para manter a população no campo e também para viabilizar as pequenas unidades produtivas que não conseguem, por motivos vários, responder integralmente às demandas do mercado, sustentando-se exclusivamente na atividade agrícola. Assim, o apoio à agricultura familiar tem que ser pensado no âmbito do desenvolvimento local no qual os aspectos econômicos, sociais, ecológicos e culturais devam ser igualmente levados em conta na busca de soluções não excludentes.

É importante não esquecer, tampouco, que a especificidade da produção agrícola implica distinguir o tempo de trabalho do tempo de produção, o que atribui outros significados ao trabalho não-agrícola exercido no quadro da unidade de produção familiar. A sazonalidade da produção agrícola pode dispensar parcialmente ou integralmente trabalhadores que estarão disponíveis para exercer outras atividades econômicas sem que isso signifique, necessariamente, uma ameaça à continuidade da atividade agrícola nem uma tendência ao desaparecimento de tais unidades produtivas. No Brasil, vários estudos têm analisado processos produtivos que combinam, em uma mesma unidade familiar, a agricultura e atividades não-agrícolas como um mecanismo das estratégias de reprodução social. [4]

Referências bibliográficas

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Notas

[1] Esse objetivo explicaria o fato de que 90% dos recursos do Pronaf para 1996 tenham sido investidos na região Sul e Sudeste, conforme informação divulgada pela Contag na mesa-redonda O agricultor familiar como objeto de políticas públicas: uma avaliação da Pronaf, realizada pelo Grupo de Análise de Conjuntura Agrária e Agrícola do CPDA/UFRRJ em dezembro de 1996.

[2] Estudos de diversos autores demonstram que a renda da agricultura familiar não se diferencia, ou é inferior, ao salário de um trabalhador com um mínimo de qualificação. Abramovay (1992: 222) ressalta que este é o caso inclusive nos países capitalistas avançados. Moreira (1995 e 1997) tem insistido em uma interpretação que aponta para a impossibilidade da retenção de lucros pelas formas da agricultura familiar no contexto competitivo do capitalismo contemporâneo.

[3] Sobre as críticas ao sistema de gestão descentralizada previsto no Pronaf, ver Rosa (1995).

[4] A bibliografia aqui é extensa, a título de ilustração me limitarei a citar a Garcia Jr. (1989); Anjos (1995); Lovisolo (1989); Schneider (1994); Seyferth (1983), entre outros.