Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos & Luiz Flávio de Carvalho Costa

Camponeses e política no pré-64

Para Lyndolpho Silva e Francisco Julião


Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997: 83-117.

Resumo: (Camponeses e política no pré-64). Com a reconstituição que fazem de parte do pensamento agrário brasileiro, os autores pretendem chamar a atenção para as diferentes estratégias de ação agrária verbalizadas por alguns atores políticos mais atuantes no pré-64. O artigo realça controvérsias, notadamente as interpelações de Caio Prado Jr. à teorização feudalista e a dos comunistas ao agrarismo de Julião. Os autores traçam um perfil da evolução do PCB em direção a uma orientação de tipo “ocidentalista” que lhe teria conferido vocação para atuar preferencialmente junto ao sindicalismo agrário moderno, a despeito do seu envolvimento com o cenário camponês dos anos 50 e 60.

Palavras-chave: camponeses; agrarismo; política; reforma agrária.

Abstract: (Peasantry and Politics before 1964). This article is dedicated to the reconstruction of an area of Brazilian agrarian thinking –particularly regarding those aspects related to strategies of agrarian praxis– expressed by certain key political actors prior to 1964. The article gives particular emphasis to certain debates, such as Caio Prado’s argument against the feudalism theory and the communist opposition to Julião’s ideas. The authors outline the Brazilian Communist Party’s evolution towards a trade union agrarian praxis despite its strong roots in the peasantry during the 50’s and 60’s.

Key words: peasantry; agrarism; politics; agrarian reform.

Raimundo Santos e Luiz Flávio Carvalho Costa são professores da UFRRJ/CPDA.


Em meados dos anos 50, Celso Furtado interpelava o paradigma da modernização para teorizar –fecundando o ideário cepalino– a particularidade da formação social brasileira, como se sabe, traduzindo em terra latino-americana Keynes e a utopia do Welfare State (Furtado, 1954; 1959). Fruto da junção entre economia e história, o desenvolvimentismo proposto consistia num projeto de afirmação da nacionalidade sem o naturalismo neoclássico. O cenário furtadiano também evocava, à Mannheim, a proposição de uma “vontade política unificada” mediante “acordo voluntário entre agentes antagônicos” enquanto potência capaz de mobilizar o “planejamento democrático”, mas dependente dos intelectuais colocados diante da “heterogenei-dade da classe dirigente” despossuída de força para conduzir a industrialização. Diversamente da ensaística apressada que sempre o subsumiu ao mundo burguês, em Furtado seriam intelectuais mannheimianos os responsáveis, de um lado, pela tarefa de desenhar “os mapas de possibilidades do país” e, de outro (o mais decisivo), pela organização da opinião pública para que ela se manifestasse organicamente (sic), dando partida ao processo de desenvolvimento econômico-social.1

Com nuances, esse era o tom do nacional-desenvolvimentismo. A ânsia de Álvaro Vieira Pinto, ao exigir uma “concepção universalizadora” nas nossas ciências sociais como primeiro passo para superar o “descompromisso com a história”, também pode ser lembrado como testemunho da inquietação intelectual dos nossos anos 50. Bem expressa na famosa frase na qual ele dizia, à Lênin, que “sem ideologia do desenvolvimento não há (haveria) desenvolvimento nacional”. Vieira Pinto mostrava assim –e não por acaso em aula inaugural dos cursos do Iseb (publicado à época extrato na revista do Clube Militar)– o programa da inteligentsia de centro-esquerda desses tempos, intensamente engajada na missão de “compreender e resolver” os problemas nacional-populares (Vieira Pinto, 1956; 1959). [1]

Certamente o marxismo brasileiro, sobremaneira na sua expressão maior, o PCB, também fazia parte daquele mundo. Enquanto no ideário “cepalino”-isebiano privilegiava-se a inteligentsia mannheimiana, a dos comunistas, de versão leniniana, importava numa proposta modernizadora de revolucionarização da sociedade com base num maior protagonismo popular. Aqui, como na fórmula de O que fazer?, a externalidade própria da política generalista in vitro iria reconhecer o protagonismo dos representados num mosaico de muitas operações e manobras onde eles podiam, se sagazes e bem conduzidos, suplementar debilidades transitórias durante o processo de construção da sua força de classe. [2] A ciência-marxista-leninista, como também sugere a metodologia da tradição, materializar-se-ia em uma leitura da formação social com a qual o partido político haveria de tecer as redes de sociabilidade de uma subcultura que lhe daria vida prática, no caso brasileiro, como veremos adiante, através do exercício da chamada “grande política” praticada em cenários pluriclassistas. [3]

Desde tal ponto, entende-se melhor porque o PCB, partido de práxis vanguardista (que assume frente ao Outro o risco habermasiano da ação teoricamente orientada, Santos, 1994b), mesmo provocando e vivendo impasses e traumas (em 1928/29; 1956/57; 1960/61; 1976/83), não esmorece na sua busca de uma renovável imagem de Brasil (no dizer primeiro de Álvaro Vieira Pinto). Ao contrário do que às vezes se pensa (melhor seria avaliar o teto baixo da sua ideologia-marxismo-leninismo), nos anos 50 ele já sabia suficientemente que naquela procura radicavam todas as chances não só de se colocar no centro do debate público como sobremaneira para expandir a sua hegemonia sobre o conglomerado de centro-esquerda da então chamada frente nacionalista e democrática. Ou seja, como o ideólogo do Iseb, sabia que (aqui a seu modo) sem política, não haveria a transformação da sociedade.

Olhando aqueles anos, tem-se a impressão de que, com o passar do tempo, a interseção entre ação e previsão foi-se diluindo no fazer política, sugerindo até mesmo a idéia de uma página virada no protagonismo da mudança social. Conquanto seja prudente, sobretudo depois do fracasso do comunismo, acautelar-se das ilusões vanguardistas e do seu programa de construção demiúrgica da ordem social, a não-resistência e o quietismo intelectual diante do processo de enfraquecimento das “causas gerais” com certeza significam maior nível de abdicação à reinvenção da utopia democrática. Nestes tempos pós-modernos, cada vez mais se vem perdendo o hábito de avaliar as ações da política sob marco de um largo horizonte. Em boa hora concebida hoje à esquerda quase sempre sem o clássico “objetivo final” da tradição, a política de por si continua ineliminável, –se já não para construir um novo ordenamento social, como nos tempos do socialismo real e dos nossos anos 50–, mais do que nunca ela vive em seu elemento e constitui o meio de reforma e aperfeiçoamento da sociedade por excelência, para que as promessas da modernidade, ao que agora estamos assistindo, com cada vez melhores condições para, afinal, se concretizarem neste mundo aparentemente aos frangalhos.

Este texto pretende aludir a esses valores a partir da resenha que se propõe sobre um tema bem característico daquele tempo: a questão agrária; discutida então por alguns atores políticos com muita paixão, melhor dizendo, como “causa geral” e como uma das principais reformas de base, usando agora a expressão do governo João Goulart. A concentração no pensamento agrário pecebista resulta não só do fato do PCB encerrar à época os dilemas da esquerda e ter se tornado, até bem entrados os anos 70, ponto de referência da crítica historiográfica, como também, evidente, devido ao viés investigativo dos autores; razões pelas quais estas notas não aspiram ser mais do que um exercício de memória na oportunidade deste número temático da revista Estudos Sociedade e Agricultura.

Estamos supondo o trivial e quase não necessitaria lembrar que na maioria dos inúmeros ensaios sobre o Brasil urbano-industrial escritos àquela época a questão agrária sempre mereceu atenção privilegiada, sobremaneira na publicística de esquerda, para a qual, como dizia o PCB, “todo cuidado era pouco”.

A propósito, entre alguns marxistas brasileiros da fase do nacional-desenvolvimentismo talvez estivessem os últimos grandes ensaístas, espremidos entre o antigo ofício cultural-descritivista e a novidade do marxismo-leninismo da III IC. De dois deles proviriam as mais famosas dissertações sobre a feudalidade e o capitalismo agrário, como se sabe, pontas de uma discussão que se tornaria famosa entre nós. Pressupomos que a primeira, sobremaneira em Nelson Werneck Sodré, não se reduz a cópia simplificada da referência exógena (subtema ainda a ser devidamente esquadrinhado); nem a dissertação de Caio Prado Jr., a exagero de uma empiria incompleta, como algumas vezes se pensou.

Aliás, Caio Prado Jr. indica bem o caminho que aqui nos interessa ao interpelar o PCB tanto por sua “teoria da revolução brasileira”, quanto pelos (segundo ele, graves) erros políticos que, de uma perspectiva equivocada, estaria cometendo esse partido. Em A revolução brasileira assim ele resume o teor da sua crítica: “Obcecados pela idéia de uma revolução democrático-burguesa e antifeudal, proposta a priori, os elaboradores da teoria revolucionária brasileira ainda hoje (1966) consagrada, passam ao largo precisamente daquelas situações político-sociais do campo brasileiro onde se abrigam suas contradições mais profundas e revolucionariamente mais fecundas. Isso porque tais situações não se ajustam convenientemente nos seus esquemas teóricos. Tendem por isso a esquecê-las ou subestimá-las. Freqüentemente nem mesmo as notam. Numa revolução democrático-burguesa e antifeudal, o centro nevrálgico do impulso revolucionário se encontra na questão da posse da terra reivindicada pelos camponeses submetidos a jugo feudal ou semifeudal. É o que ensina o figurino europeu, e da Rússia czarista em particular. Assim, portanto, havia de ser no Brasil também. E essa conclusão apriorística faz subestimar, se não muitas vezes até mesmo oblitera por completo o que realmente se apresenta na realidade do campo brasileiro. A saber, a profundidade e extensão da luta reivindicatória da massa trabalhadora rural por melhores condições de trabalho e emprego.” (Prado Jr., 1ª ed., 1966; 1978: 53).

A respeito desse tema da desatenção para com o assalariamento, dirá mais Caio Prado Jr. : “No que se refere à questão agrária, o Programa de 1961 (sic) inclui dois itens, um relativo à ‘reforma agrária’, consistente na desapropriação das grandes propriedades incultas ou pouco cultivadas, abolição da meia e terça, entrega de títulos de propriedade aos posseiros, estímulo ao cooperativismo, assistência etc.; e outro item, colocado em passagem largamente apartada da primeira e com o mais variado sortimento de assuntos de permeio, referente à extensão da legislação trabalhista para o campo. A proposição dessas medidas não se apresenta, contudo, de forma sistematizada, ligada e articulada em conjunto que inspire uma interpretação adequada da realidade brasileira”. (Idem).

Para Caio Prado Jr., um dos erros induzidos por essa duplicidade consistiria justamente no fato desse partido não ter levado a sério o “cochilo” (tardio, pois se dera somente em 1960) dos redatores do V Congresso desse ano ao escreverem “corretamente” na sua resolução: “A fim de impulsionar a organização das massas do campo é necessário dar atenção principal aos assalariados e semi-assalariados agrícolas. Sua organização em sindicatos deve constituir a base para mobilização das massas camponesas.” Seria um “cochilo” porquanto logo em seguida vinha outra redação (“incoerente”) que desfazia a “réstia de bom senso no capítulo das normas de ação prática”: “A organização dos camponeses deve partir das reivindicação mais imediatas e viáveis como a baixa das taxas de arrendamento, a prorrogação dos contratos, a garantia contra os despejos, a permanência dos posseiros na terra e a legitimação das posses etc.” (Passagem citada pelo próprio Caio Prado Jr. no texto de 1966). As cursivas nas duas citações são dos autores. Voltaremos mais adiante a esta espécie de conservação do espírito camponês na mobilização a partir da força de trabalho assalariada.

Instigados por essa interpelação caiopradiana do agrarismo camponês pecebista a partir da valorização dos grupos assalariados, queremos relevar nestas notas dois pontos: primeiro, realçar uma leitura diferenciada do embate do historiador paulista com o seu próprio partido, matizando e realçando aspectos da práxis agrária comunista; e, em segundo lugar et pour cause, chamar a atenção para a publicística e os discursos aqui referidos como uma interessante problematização da questão agrária que, vista hoje à distância, não merece ficar esmaecida na história do pensamento social brasileiro. Descontados a rigidez do molde, o contorcionismo do argumento e as muitas ambigüidades, sem embargo, tal elaboração poderia ser considerada como uma operação intelectual em alguns aspectos bem rica em nuances e sutilezas seminais.

Em todo caso, enquanto arqueologia estas notas ainda pretendem relembrar o modo como aqueles cientistas sociais e publicistas, com um equipamento intelectual bem menor que o da academia que lhes sucederá após-64, [4] desenvolveram a intuição e a sagacidade políticas como leitmotiv da sua ensaística. Talvez, como se diz, estejamos “tirando leite de pedra”. No entanto, o exercício desta memória não constitui uso de tempo extravagante neste curioso país onde, como nos ensina o mesmo Caio Prado Jr., os historiadores podem assistir “pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado” (Prado Jr., 1942). Ou seja, esperamos que de algum modo essa volta a textos e a debates do passado, ao recordar aquela ensaística e aquela discursividade, reavive o interesse para a contribuição que elas trazem do passado para as atuais discussões sobre a questão agrária, aliás, e tal como com denodo se insistia naqueles anos, hoje uma questão já hegemônica, assumida por extensas camadas sociais e, de modo geral, muito bem aceita pela opinião pública brasileira.

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É consensual na bibliografia associar a consolidação da moderna rede sindical agrária (Forman, 1971) à retomada da atuação do PCB no campo no início da década de 50, após esse partido ter começado a superar, lentamente, a sua velha mentalidade e desenvolvido uma práxis associativa realista. [5] A longa evolução dos comunistas brasileiros em direção a um pensamento de referência democrática avançaria após a morte de Getúlio e mais ainda durante a crise ideológica da segunda metade dos anos 50. [6] De qualquer modo, aquela virada política importava exercitar a tática de frente única, remanescente dos tempos do antifascismo, de uma maneira permanente naqueles anos golpistas. Essa nova mentalidade emergira à proporção que o PCB fazia uma leitura positiva das resistências constitucionalistas (morte de Getúlio, 11 de novembro, posse de Juscelino) e, sobretudo, depois das discussões de 56/57, quando ela começaria a ser vista, pelo menos para os comunistas “mais estrategistas”, [7] como ponto de referência de uma, usando expressão atual, tática melhorista da sociedade.

No que se refere propriamente ao associativismo agrário, podemos registrar que então os sindicatos começavam a proliferar e o Engenho da Galiléia do advogado Francisco Julião já se havia transformado na semente das novas Ligas Camponesas. A mobilização assustaria o patronato rural. Muitos sindicatos seriam invadidos pela polícia e capangas dos fazendeiros. Com freqüência, sedes sindicais eram fechadas e há relatos de espancamento de trabalhadores. Muitos perdiam o emprego por causa do sindicato e tinham dificuldade para encontrar trabalho nas fazendas vizinhas, ocorrendo uma espécie de migração política que não deixaria de incidir na consolidação do sindicato. Todavia, essas não eram as únicas limitações interpostas ao associativismo rural. Estava-se apenas no início da sindicalização e inclusive não havia tradição na esquerda. Faltava experiência sindicalista e comunistas formados no cenário agrário. Um militante desse tipo certamente se movimentaria melhor do que os quadros da cidade que vinham cumprir tarefas em terreno desconhecido. Mas o recrutamento local já se iniciara e os protagonistas logo começariam a mudar de perfil com a presença do militante comunista na zona rural. Mas ainda há outra dificuldade. O conservadorismo sobrevivente no PCB constituía obstáculo nada desprezível. Um testemunho ex-post: “Nossa posição sectária e esquerdista contribuía para os ataques da reação. A nossa linha política naquele período nos levava a ver os sindicatos rurais mais como um instrumento de agitação para a luta armada, dentro da tese errônea da revolução a curto prazo. A preocupação principal, logo que surgia um sindicato, não era conseguir o seu registro nem lutar pela sua consolidação e educação das massas de assalariados, por suas reivindicações mínimas, imediatas ou parciais, de acordo com seu nível de consciência. Ao contrário, era marchar para exigências muito elevadas, para lutas violentas, armadas, inclusive, se fosse o caso, arrancar greve sem que a massa estivesse preparada, etc., o que nos levava a cometer aventuras sem conta que só causavam prejuízo” (Silva s/d). O ativista Nazareno Ciavatta também relembra o embaraço da duplicidade: “Os trabalhadores queriam as leis trabalhistas. Os sindicatos foram fundados para implantar as leis trabalhistas para o homem do campo e isso era um compromisso nosso com eles. Mas o partido, não sei se todo, ou em parte, não entendeu, ou não quis entender dessa forma. Eles queriam que eu levasse ao homem do campo o material do partido que pregava a derrubada do governo. Era estatutário. Isso prejudicava não só ao camponês, mas a todos. Não se podia abrir a boca que diziam que esse aí queria derrubar o governo. (...) Eu procurava seguir a orientação e dizia aos camponeses que os fazendeiros não pagavam, abusavam, a polícia prendia, e que só mesmo uma revolução podia resolver aquele estado de coisas. Um camponês disse para mim: ‘se nós não temos força para obrigar os fazendeiros a pagar os salários e cumprir as leis trabalhistas, que dirá tomar a fazenda dele!’ Daí eu percebi que o partido estava errado” (Ciavatta, 1990).

Essa práxis ambígua é assim associada à política geral: “Enquanto a gente pregava a derrubada do governo Vargas, a massa queria defendê-lo. Nossa posição não correspondia à posição do povo. Assim, nós tiramos dos nossos documentos a palavra de ordem derrubada de Vargas e deixamos a derrubada do governo. Isso tentava corrigir o Manifesto de Agosto. Ajudamos a eleger Juscelino Presidente da República e em nossos documentos continuava a luta pela derrubada do governo” (Silva, 1990). Resíduo da conciliação com a mentalidade antiga, tal diretriz ainda iria permanecer por muito tempo como estratégia implícita, embora evidente o seu descompasso em relação à correlação de forças. Inclusive o próprio PCB já se servia de uma análise de conjuntura bem diferente para sustentar o seu apoio aos “traços positivos” (e resistência aos “aspectos negativos”) do governo JK, apostando na sua transformação numa formação de tipo nacionalista e democrático.

Mas ele ainda se debatia entre a tradição terceiro-internacionalista e o experimento no laboratório da conjuntura daquilo que iria ser a sua marca posterior: o gradualismo político, pluriclassista e reformador. Entre a legalidade democrática como terreno favorável à mudança social e a tese da derrubada do regime “imposto pela aliança dos grandes capitalistas com os latifundiários liderados pelo imperialismo”, como ainda diziam alguns documentos. Mas já havia crescido em suas fileiras a convicção de que, quanto mais se afastava da tática de confronto e praticava a política de acumulação de forças e mais se envolvia com a estrutura sindical existente, tanto maiores os resultados positivos (Carvalho Costa, 1996). Compreende-se melhor essa evolução quando se adentra nos debates sobre o XX Congresso do PCUS de 56/57. Eles aceleraram as mudanças e terminaram levando à famosa Declaração de Março de 1958 com a qual o PCB consolidaria as mutações anteriores e definiria a chamada nova política de acumulação de forças no terreno da democracia política (Santos, 1988).

Diante da proliferação dos sindicatos e das Ligas Camponesas, por onde grandes contingentes pediam passagem para o sistema político e à cidadania plena, o PCB logo também se debruçaria sobre esses novos movimentos sociais. Há indícios [8] de que os comunistas brasileiros já percebiam a necessidade de traduzir a sua ciência-marxista-leninista numa leitura da formação social que os habilitasse intelectualmente no debate sobre as reformas de base, os projetos reforma agrária tramitando no Congresso Nacional, inclusive acerca das medidas parciais de reforma agrária, como as que, depois, adotaria o governo de João Goulart.

O foco destas notas estará voltado para a discussão no interior do PCB e dele com alguns interlocutores privilegiados, cenário onde se revelavam a diversidade das concepções sobre o problema camponês e a reforma agrária e as disputas que então tensionavam o associativismo rural. Mais especificamente: esta volta a textos e a debates do passado pode mostrar como a reflexão pecebista desse período não só espelhava a “aplicação da linha política geral do partido ao campo”, como já exibia teorizações que procuravam dar melhor conta do mundo rural. Exemplo desse pensamento agrário mais consistente seriam os textos publicados nos debates do V Congresso de 1960 escritos por Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Jr. e também o livro de Nelson Werneck Sodré Formação histórica do Brasil (1962).

Aí começa a trilha desta “arqueologia”.

O artigo de Alberto Passos Guimarães dá pistas para esclarecer o surgimento de um novo pensamento no PCB na segunda metade daquele qüinquênio. Com efeito, se se examinar a sua presença na hora imediata à crise de 56/57, é possível ver como ele insiste numa questão camponesa ao modo clássico, a partir de uma ortodoxia econômica “contraposta” ao circulacionismo caiopradiano (só para transmitir a idéia, pois não dispomos de indícios dessa intenção) expressa bem a mentalidade típica dos comunistas brasileiros que, precisando atualizar a política, vêem-se então obrigados a incorporar parte das idéias dissidentes da sua mentalidade antiga, mas não lhes permitem livre passagem, chegando ao paradoxo de estimular a marginalização de seus autores do próprio partido.

Embora no texto de Alberto Passos Guimarães circule a noção de “restos feudais e semifeudais”, este parece não ser o ponto. Chama a atenção o modo como a sua argumentação esvazia o velho agrarismo avesso ao Brasil mais moderno do segundo Vargas e JK. Ali o autor de Quatro séculos de latifúndio introduz a “grande política” na discussão agrária e põe em dúvida a subsunção do problema camponês a uma mera oposição a restos feudais num país condenado à estagnação, como seria a tradição na IC. Ao defender “três frentes da luta de classes” no campo, e não apenas duas (vale dizer, a dos camponeses contra o latifúndio feudal e a dos assalariados e semi-assalariados contra o patronato “capitalista”), Alberto Passos Guimarães equaciona o tema pecebista do pouco desenvolvimento do movimento camponês (comparado à mobilização nacionalista) a partir da dimensão amplificante da estratégia de frente única (Passos Guimarães, 1960; in Santos, 1996b). [9] Donde viria o passo seguinte de ter que conferir novo estatuto à questão agrária, de modo que ela já não podia mais ser vista como uma questão per se diretamente interpelável por um ente voluntarista externo (classe operária, partido comunista). Ao contrário, requeria encaminhamento dependente do conjunto da vida política nacional. Essa seria a conexão dos conflitos agrários com a “primeira frente de luta” em oposição aos monopólios internacionais.

Nossa proposição é a de que, desde o “desenvolvimentismo” da Declaração de Março, o PCB começaria a afastar-se da influência “orientalista” do passado e da sua derivação residual: a política de curto prazo inclusive alimentada pela sobrevalorização das lutas camponesas (fragmentadas e “subversi-vistas”, como diria Gramsci) do começo dos anos 50 ainda ressoando na memória comunista. Teria havido uma espécie de deslocamento da questão nacional-camponesa do recorte da “teoria” da aliança operário-camponesa terceiro-internacionalista para uma redefinição em torno da questão nacional-antiimperialista num país em processo de modernização. A partir desse entendimento da questão nacional mais como desenvolvimento e industrialização (na Declaração de Março; nas Teses do V Congresso de 1960; e depois em Nelson Werneck Sodré) não havia como a formulação da política pecebista desconhecer o poder mobilizatório do nacionalismo e a debilidade e isolamento das lutas camponesas dos primeiros anos 50. Sem concessão ao agrarismo capitalista caiopradiano à esquerda e resistindo à revisão do chamado princípio da hegemonia operária à direita (próprio da geografia pecebista), Alberto Passos Guimarães estaria propondo, como se fosse um outro (ao lado da aliança operário-camponesa?) processo universalizante e suplementar (também no sentido de Laclau) à constituição dos “camponeses” como ator político, justamente esta formulação que tanto desgostara Caio Prado Jr.: “A frente da luta de classes dos assalariados e semi-assalariados (que muito freqüentemente aliam à condição de assalariados a condição de camponeses) terá uma especial preponderância sobre as demais. Por intermédio dessa frente será possível montar as correias de transmissão que irão ligar o proletariado e o movimento democrático das cidades aos camponeses e ao movimento democrático do campo” (Passos Guimarães, 1960; in: Santos, 1996b). Também aqui as cursivas são nossas.

De qualquer modo, com esse tipo de argumento, em Alberto Passos Guimarães e no PCB, começava-se a redimensionar o problema agrário à revelia da tradição segundo a qual os camponeses constituíam ex-ante a “questão central da revolução”, como ainda se insistia (Vera, 1960; in Santos, 1996b). Essa trilha apontava para uma compreensão daqueles grupos agrários mais como uma dentre as classes emergentes na cena política –burguesia nacional, proletariado, classes médias urbanas, assalariados, semi-assalariados e camponeses– concebidas como pilares da construção da frente única. Daí a resistência da ortodoxia dentro do PCB (levando o V Congresso de 1960 à polarização, embora os partidários da Declaração de Março tenham dele saído vitoriosos), recusando o deslocamento do eixo das alianças para atores efetivos na cena pública –vale dizer, frente única da burguesia nacional com o proletariado e outros setores nacionalistas– com a transferência do cumprimento programático das mãos de uma formação de molde revolucionário para o gradualismo dos governos pluriclassistas (Santos, 1991). Processo reformador por certo indefinido em muitos pontos, mas pensado para se constituir no plano da política através de mediações, descontinuidades e gradualismo. [10]

Caio Prado Jr. comparece a esse debate com uma teorização que vinha de longe mas que permanecerá, latente, à margem, sem curso livre e, inclusive, sem merecer uma tematização como por exemplo a que, apesar de tudo, experimentara o pensamento dissidente de 56/57. [11] O ponto do historiador paulista consiste na interpelação do PCB para que este recusasse a tese da revolução agrária antifeudal. No livro de 1933, já está presente o argumento de que o “caráter geral da colonização” particularizava o caso brasileiro, ao ter havido aqui uma grande mobilização de recursos e mão-de-obra vindos de fora para tocar a grande empresa voltada para o mercado externo (Prado Jr., 1933). Esse capitalismo agrário consagrar-se-ia mais ainda em Formação do Brasil contemporâneo (1942) no qual inclusive o historiador paulista revela o seu circulacionismo de referência. Tal deslize –parecido ao de Gramsci que minimizara a economia para chegar à teoria política– também constituíra um “erro fecundo” capaz de dar conta da sociedade colonial “mais externamente determinada” (equívoco cobrado por alguns marxistas-leninistas brasileiros) e lhe permitira elaborar uma teoria do Brasil Colônia hoje considerada definitiva. Ademais, no primeiro texto, Caio Prado Jr. ainda teria coincidido com Gramsci ao descrever traços de revolução “pelo alto” na modernização brasileira da segunda metade do século passado. [12] Repare-se que no prefácio da primeira edição de Evolução política do Brasil, ele se propõe fazer historiografia da ótica das classes subalternas. Não por acaso o ensaio se concentra no período inicial de formação do Estado nacional (1808-1848) –durante o qual os movimentos populares (realçados pelo autor em dissidência com o tradicionalismo) foram neutralizados e não puderam levar adiante a “revolução da independência” de que tanto falara Mariátegui–; traço que daria inteligibilidade à fase subseqüente de modernização, caracterizada por “arranjos por cima” entre elites oligárquicas e exclusão popular dos processos políticos.

Caio Prado Jr. persiste em desqualificar a revolução agrária antifeudal, para a qual não encontrava amparo nos estudos sobre a agricultura brasileira. Cabe anotar que, em larga “experimentação analítica”, ele procuraria trilhas diferenciadas. Já na Tribuna de Debates do IV Congresso de 1947 (adiado e só realizado em 1954), Caio Prado Jr. voltaria ao tema da origem da economia agrária estruturada para o sistema produtor da grande empresa mercantil. [13] Num dos textos escritos para o V Congresso de 1960, a sua problematização assume um viés “mais diretamente político”. Por conta da sua apreciação da correlação de forças que não permitia avançar mais, ele então defende a tese de que a libertação da terra (das travas à “livre mercantilização”) mediante tributação poderia vir a ser (mutatis mutandis, como a nacionalização em Lênin) o “passo inicial e preliminar” de uma reforma agrária (sic) que tanto favoreceria as massas de sem-terra como estimularia a economia agrária, melhorando a oferta de empregos e as condições de trabalho para o grupo social estratégico: os assalariados e semi-assalariados rurais (Prado Jr., 1960; in Santos, 1996b). Embora o argumento diluía fronteiras em relação a Alberto Passos Guimarães e a textos mais flexíveis do PCB, o ponto da controvérsia se mantém: Caio Prado Jr. continuava insistindo no agrarismo capitalista e no valor estratégico da força de trabalho assalariada para a mobilização rural.

Por fim, na última obra importante, a de 1966, como já adiantamos, o autor da História econômica do Brasil retoma o argumento, agora desde a denúncia do “apriorismo conceitual” usado pelo PCB para construir a sua imagem de Brasil e se serve da conceituação leniniana de antifeudalismo –economia camponesa, extração não-econômica do excedente, ocupação efetiva da terra, empresariamento da produção etc.– que, claro, não tinha correspondência no país. O que se pareceria mais à economia camponesa –a pequena produção– restringia-se a áreas de pouco peso econômico. E isso, segundo ele, não poderia sustentar uma reforma agrária de tipo camponês. O ponto: parcela esmagadora do trabalhador rural vinculava-se aos principais setores produtivos como vendedores de força de trabalho (Prado Jr., 1966). O historiador paulista, no entanto, não conseguiria transcender a dissertação do agrarismo capitalista até uma teoria sobre o conjunto da formação social, para daí formular uma estratégia política de alcance nacional. Como se sabe, o seu programa mais original consistia na generalização da lei trabalhista para varrer do mundo rural os resíduos pretéritos, observava ele ainda, mais de origem escravista.

De outra parte, Caio Prado Jr. rejeitava o que ele chama de “pecebismo político das improvisações da tática da frente única” –quem sabe, essa teria sido a grande barreira e a esquina do desencontro do publicista com o seu partido. Assim, contrapondo-se a uma teoria da revolução brasileira à Oriente que atribuía ao PCB, Caio Prado Jr., concluindo o argumento, em 1966 mostrava ilusório o antiimperialismo burguês –a outra peça da teorização pecebista–, inclusive causa da derrota; e, mais, denunciava a fragilidade do “industrialismo artificial”. À propósito, relembre-se que depois ele se recusaria a atribuir importância ao desenvolvimentismo da “internalização do mercado interno” pós-64, [14] vendo sempre como traço da formação brasileira contemporânea a contradição entre o que ele chama de formas remanescentes do Estatuto colonial e a construção inconclusa de uma economia voltada para as necessidades da população, através de um Estado verdadeiramente nacional (Sousa Freitas, 1993).

Outrossim, essas controvérsias envolvendo camponeses e assalariamento apenas antecipavam a discussão pública, como se pode ver, por exemplo, na disputa que iria tensionar o congresso camponês de 1961. Iniciativa dos comunistas brasileiros através da sua União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), o encontro de Belo Horizonte fora concebido para afirmar como ator político a nova força social emergente na cena pública. Além disso, a tramitação no Congresso Nacional de um projeto de reforma agrária mantendo a cláusula da indenização em dinheiro também teria levado a Ultab a partilhar a reunião com as Ligas Camponeses e o Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Rio Grande do Sul (Master) sob influência do ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, como cenário para o lançamento de um projeto alternativo de reforma agrária representativo da mobilização emergente no mundo rural (Carvalho Costa, 1994a).

Das várias comissões do congresso, a da reforma agrária por certo iria nuclear os debates. Integrada, entre outros, por Francisco Julião e os dirigentes comunistas Armênio Guedes, Dinarco Reis, Alberto Passos Guimarães, Heros Trench e Nestor Vera, foi dela que saiu a Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o caráter da Reforma Agrária (in: Carvalho Costa, 1994a). Ali também se discutiu a questão dos contratos de arrendamento e de parceria, aliás, ponto-chave da controvérsia de Julião com o PCB. Armênio Guedes então esclarecia as diferenças: “Travou-se na Comissão de Reforma Agrária uma discussão em torno de uma tese da Ultab. Alguns dos participantes da Comissão viam na tese uma contradição entre o sentido geral a favor de uma reforma agrária radical e um de seus itens que dizia respeito à necessidade de se lutar pela regulamentação em lei do arrendamento e da parceria, como medidas capazes de fortalecer a luta pela reforma agrária radical. Os companheiros que assim pensavam –entre os quais estava o deputado Julião– achavam a medida inoportuna e inócua e mesmo reacionária, de vez que significaria o reconhecimento legal da parceria e do arrendamento. Os que defendiam a medida, entre os quais os comunistas, o faziam partindo do ponto de vista de que não há contradição entre a luta por determinadas reivindicações imediatas das massas camponesas enquanto não é conquistada uma transformação total no campo brasileiro e a luta pela reforma radical do regime de propriedade latifundiária da terra e das relações de produção pré-capitalistas que caracterizam a vida rural de nosso país nos dias de hoje. Argumentam que tais medidas aumentam a área de atrito entre as forças camponesas democráticas e o latifúndio, dinamizam a luta de classe no campo, ajudam, enfim, a elevar a consciência e o nível de combatividade das massas trabalhadoras rurais pela reforma agrária radical” (Guedes, 1961). As posições do líder das Ligas Camponesas prevaleceram: “Conclusões (da comissão): não se deve e nem se deverá recomendar ou propor medidas paliativas de novas formas de contratos de arrendamento, porque quaisquer que elas sejam, dentro da estrutura atual de predomínio do latifúndio, seriam uma imoralidade.” “Proposta: propõe-se a pura e simples extinção, por lei do Congresso Nacional, de todas as fórmulas de arrendamento ou de parceria, com a anulação dos contratos existentes e a distribuição das terras arrendadas aos arrendatários, que as cultivarão com o apoio financeiro e técnico do Governo da República; que as terras distribuídas sejam resgatadas pelo Governo, com apólices da Dívida Pública, pelo preço exato que se calculou para o pagamento do imposto territorial —se ele existir— ou pelo preço do custo histórico.” (In: Carvalho Costa, 1994a).

Como se sabe, a declaração final do congresso de Belo Horizonte consagrou a chamada tese da reforma agrária radical: “A reforma agrária que defendemos e propomos diverge e se opõe frontalmente, portanto, aos inúmeros projetos, indicações e proposições sobre as pretensas ‘reformas’, revisões agrárias e outras manobras elaboradas e apresentadas pelos representantes daquelas forças cujos interesses e objetivos consultam sobretudo o desejo de manter no essencial e indefinidamente o atual estado de coisas. A reforma agrária pela qual lutamos tem como objetivo fundamental a completa liquidação do monopólio da terra exercido pelo latifúndio, sustentáculo das relações antieconômicas e anti-sociais que predominam no campo e que são o principal entrave ao livre e próspero desenvolvimento agrário do país.” (In: Carvalho Costa, 1994a).

Como tanto o PCB quanto Julião usualmente são interpelados por ideologização dos “camponeses”, talvez resulte proveitoso diferenciar discursivamente a mentalidade comunista do agrarismo de Julião. Desde logo o PCB via os movimentos rurais sob o visor da ideologia da aliança operário-camponesa, malgré tout, uma “teoria” da relação moderno/pretérito agrário (aliás, seria esse um dos alcances do conceito leniniano de hegemonia proletária) que lhe estaria informando uma leitura “modernista” da realidade e cimentando o seu mundo cultural nacional-popular, [15] donde afinal se forjaria a práxis política orientada para a modernização. Vale dizer, ao atribuir principalidade à emancipação nacionalista (fazendo a questão agrária pendente da vida política nacional), o PCB, digamos assim, redimensionava o seu referente teórico e cada vez mais se distanciava do Oriente da IC. Mais ainda: ao definir a nova política de 58 a partir da democracia política, os comunistas brasileiros começavam a cancelar de jure a tese da “derrubada do governo”, à qual uma ideologização do camponês como sujeito histórico determinante inegavelmente servira. Não por acaso nesse momento teve lugar um debate interno sobre a “tática” de acesso às massas, “insinuando-se”, com a valorização da mobilização nacionalista na formulação da política, um enfoque diverso da priorização nacional-camponesa da tradição (mas não se descartava a importância histórica do camponês). Esses passos revelam uma elaboração que já se instalara no PCB, sinalizando que o agrarismo camponês, se permanecia, o seu substractum de aliança operário-camponesa havia sido substantivamente redimensionado.

Assim, enquanto o próprio PCB com o seu modelo identificava e hierarquizava contradições na formação social; começava, contracorrente, a ver na democracia um instrumento de mudança social e perscrutava, contra a sua própria mentalidade, o enigma de como seria a engenharia política indispensável à “revolução nacional e democrática”; noutra ponta, a saga cubana, também lida como modelo, começou a influenciar as Ligas Camponesas, empurrando-as nos primeiros anos 60 para uma direção diversa da sua primeira época de movimento social dinamizado pelo advogado trabalhista Francisco Julião. [16] Sem o contorcionismo do constructo pecebista (responsável, enfim, por uma política mais afinada com a mobilização de centro-esquerda à volta de Jango), aquele modelo levantado alternativamente projetava a imagem de um processo político “do campo para a cidade” liderado por um agrupamento suficientemente preparado para interpelar os camponeses a partir da emergência de uma formação sociopolítica de outro tipo.

Certamente esse outro imaginário político importava romper com o gradualismo político do PCB. Minimizando o nacional-desenvolvimentismo como “fator da revolução brasileira”, Francisco Julião, então requerido de um discurso nacional, distanciado daquela “teorização” pecebista, terminaria fazendo do campesinato mobilizado nas Ligas um protagonista decisivo em seu discurso, desqualificando a força de trabalho assalariada como ator de elevado poder mobilizatório. [17] Alegando que aqui não tínhamos as condições da França e da Itália, que haviam realizado suas revoluções às custas das colônias africanas, Julião negava o caráter democrático-burguês do processo em curso. Segundo ele, num país subdesenvolvido como o Brasil, seria possível queimar etapas e caminhar de modo mais rápido para o socialismo. Logo após o congresso de Belo Horizonte, Julião afirmara que “o capitalismo não tem mais nada a oferecer ao povo. A luta pela reforma agrária deve orientar-se no sentido da implantação de métodos coletivos de trabalho” (Julião, 1962a; in: Carvalho Costa, 1994a).

O artigo de Giocondo Dias Francisco Julião, os comunistas e a revolução brasileira  resume bem o sentido da controvérsia que a direção pecebista iria manter com Julião cuja influência se estendia, cada vez mais, não só no Nordeste, mas também na esquerda, inclusive no próprio PCB. Não por acaso, Giocondo Dias organiza um argumento generalista para interpelar as conseqüências das teses de Julião. Uma delas seria a substituição dos objetivos da fase revolucionária –antiimperialismo, eliminação do latifúndio– pela idéia de confronto com a burguesia como classe que ele enxergava no discurso de Julião, cancelando a política de frente única e levando ao isolamento. Nas suas palavras: “1) Estreitaríamos o campo revolucionário, submetendo-o a uma radicalização artificial e simultaneamente alargaríamos o campo inimigo; 2) Imporíamos à revolução brasileira tarefas que não se acham ainda suficientemente maduras e que, portanto, estão acima de suas forças no momento, como a imediata socialização de todos os meios de produção fundamentais; 3) Teríamos de concentrar o fogo num alvo que não é, atualmente, o principal, deixando, portanto, de convergir o ataque contra aqueles inimigos que são, de fato, os mais importantes” (Dias, 1962; in Santos, 1996b). No curto prazo, a lógica desse agrarismo estimularia três subestimações, segundo o dirigente comunista, “de caráter esquerdista”. Primeiro, porque levava a minimizar a organização e o legalismo camponês cuja importância sempre frisara Julião. Depois, porque subordinava a solução das pequenas demandas (melhores condições de arrendamento e melhores contratos de parceria, aumento de salários etc.) à realização prévia da reforma agrária radical. Aliás, ao considerá-la único meio capaz de abolir a exploração, Julião então tendia a abandonar a tática da articulação das reivindicações parciais com a mobilização mais ampla da reforma agrária (segundo Dias, enfraquecendo mais ainda aquele legalismo). Além disso, o agrarismo de Julião subestimava os grupos assalariados urbanos e rurais e desconhecia a direção do PCB no processo revolucionário (Carvalho Costa, 1996).

Mesmo apontando exagero no revolucionarismo que Giocondo Dias lhe atribuía, em sua réplica nesse debate Julião confirmava a linha de separação: “Quando a luta se inicia no campo ela toma, imediatamente, caráter político, o que não ocorre com a classe operária, cuja dinâmica é o aumento de salário. O campesinato desatará o processo revolucionário brasileiro e conseguirá influir para que a classe operária se associe à luta. (...) Os sindicatos rurais e outras associações não têm as mesmas condições, porque, enquanto nosso objetivo é político, eles lutam por reivindicações nos setores onde a classe operária é reduzida.” (Julião, 1962b; in: Carvalho Costa, 1994a).

Por certo o diferendo se qualificaria melhor se pudéssemos reconstituir os contornos de algumas práticas e recorrer a outros discursos complementares. Em todo caso, no que concerne ao PCB, há suficientes evidências daquela preocupação com o sentido que nesse momento Julião conferia à relação do camponês com a política. Repensando ex-post, Giocondo Dias (1979) assim rememoraria aqueles tempos: “... qualquer força política, qualquer cidadão que apoiasse as reformas de base era nosso aliado. Depois que se conseguem as coisas, mudam-se as contradições. Eu acho que não se fez o empenho necessário (no estabelecimento de alianças) por causa do nosso esquerdismo (seria uma referência à conduta política de setores da frente de centro-esquerda que teriam contribuído para o isolamento do governo Goulart às vésperas de 64 – nota dos autores). No partido o sujeito se orgulha de ser sectário porque tem medo de que o chamem de direitista. Então, quando chega um homem como o Brizola naquela época e faz um discurso inflamado, impressionava certos companheiros da direção. Quando chega o Julião... o que víamos eram vários dirigentes do partido entusiasmarem-se. Eu fui obrigado a escrever um artigo polemizando com o Julião para colocar os pingos nos is. Mas o Julião era um aliado. Relendo hoje o artigo, acho que muita coisa eu não diria, mas...”. [18]

Doutra parte, o constructo que Nelson Werneck Sodré apresenta em seu livro Formação histórica do Brasil (1962) pode ser visto como interface teorizante do processo de construção da imagem de Brasil do PCB, chegando a ser naqueles anos uma das principais peças do modelo da revolução democrático-burguesa, no dizer Guido Mantega (1990).

Em 1957, no ensaio As classes sociais no Brasil, [19] Nelson Werneck Sodré alega a forma de “capitalismo colonial” como o país se inserira no sistema mercantilista e igualmente recusa a tese feudalista. O escravismo também é referido como teto de rebaixamento da formação do mercado de trabalho, burlando (sic) a transição do trabalho servil para o trabalho a salário. Na obra de 1962, porém, as instituições agrárias trazidas à Colônia lhe pareciam de uso instrumental e o processo pós-abolição retorna agora como ponto nuclear do argumento feudalista. Teriam sido as noções “desenvolvimento desigual” e “contemporaneidade do não-coetâneo” que levaram o militar historiador a se voltar para o tema da transplantação dos elementos fundadores da sociedade dos descobridores e sobretudo o da questão da diversidade de uma formação continental sob o impacto da industrialização; e a se alinhar definitivamente contracorrente com uma dissertação da feudalidade brasileira (Sodré, 1990).

O feudalismo brasileiro propriamente dito, cujos restos ainda perduravam no Brasil contemporâneo, teria se originado sobremaneira durante o processo de constituição do mercado de trabalho livre. O argumento nelsonwernekiano procurava mostrar que, na ausência de uma estrutura econômica que absorvesse a força de trabalho, teria ocorrido uma evolução regressiva de vastas áreas escravistas para um regime de servidão e semi-servidão. Possível graças à disponibilidade de terras, esse fenômeno por ele chamado de “regressão feudal” assumiria a forma de uma “invasão formigueira” de milhares e milhares de pequenos lavradores e pequenos criadores que estabeleceram suas roças de mera subsistência nos grandes vazios, ausentes, porém, do mercado. Ademais, a vigência prolongada do escravismo onerara e retardara o assalariamento com conseqüências culturais de toda ordem, configurando “um quadro inequivocamente feudal”. [20] Todavia, é preciso considerar que, em Nelson Werneck Sodré, tais restos pretéritos parecem constituir um “mundo-remanescente-obstáculo” a ser removido para dar curso pleno ao industrialismo, como se tentara em 1930 (uma “revolução burguesa antilatifundiária”); e sobremaneira se vinha tentando durante a “revolução brasileira”, como ele chama o tempo das transformações aceleradas e do crescimento rápido dos movimentos nacional-populares dos anos 50 em diante (Sodré, 1962).

O ponto de Nelson Werneck Sodré em Formação histórica do Brasil consiste na ênfase no atraso particularizante de uma ordem sob impacto modernizador; na referência a um pretérito rural em declínio desde uma aposta numa lógica progressivo-industrialista necessitando cancelar o tradicionalismo econômico transverso à formação social. [21] Como a Declaração de Março de 58, Sodré também vê todos os movimentos da sociedade brasileira sobredeterminados pela contradição “entre a Nação e o imperialismo e seus agentes internos, que se desenvolve paralela e intimamente associada à contradição entre as forças produtivas em desenvolvimento e o monopólio da terra que as entrava” (idem: 401). Uma lógica que impactava a estrutura social, opondo novos grupos sociais (sobremaneira burguesia nacional e proletariado) a velhas classes (latifundiários, setores exportadores etc.); ou seja, o “povo” (proleta-riado lato sensu, campesinato, parte da alta e média burguesia, a burguesia nacional, classes médias) ao imperialismo e seus agentes internos (a chamada “reação interna”) – gerando uma mobilização sociopolítica avaliada por ele ainda muito fraca mesmo naqueles anos do imediato pré-64.

Sem dúvida Nelson Werneck Sodré se referenciava pelo paradigma usual da modernização burguesa. No entanto, resulta interessante acompanhar dois fios que percorrem Formação histórica do Brasil: a) em muitas e muitas páginas ele se reporta ao Mariátegui que considerara o atraso feudalista no contexto em que a burguesia latino-americana não des­envolvera o ímpeto revolucionário clássico durante as lutas da independência; b) o fato instigante: após esboçar a sua imagem do Brasil moderno-industrial ao final do livro, Sodré cita um “estudioso” (seria Lênin de O programa agrário da social-democracia) que lhe sugere avaliar a particularidade da modernização brasileira de modo não-clássico, à maneira prussiana, como chega a dizer textualmente, sem, porém, daí extrair maiores conseqüências analíticas (Sodré, 1962: 357). [22]

*

Revisar hoje esses debates –Caio Prado Jr. com o PCB, a discussão nesse partido, deste com Julião e a tese “ortodoxa” de Nelson Werneck Sodré– é relembrar como os “camponeses”, melhor dito, camponeses, assalariados e semi-assalariados etc. constituem “classes agrárias”-chave no curso da modernização (Moore Jr., 1983); ou ponto através do qual a tradição marxista lia a formação social e onde estaria o seu calcanhar de Aquiles, como define Lênin.

Faria sentido, então, ver a dissertação caiopradiana como uma teoria de capitalismo agrário, pendente, sim, saber como nela se consegue valorizar o moderno na agricultura sem se afastar dos paradigmas comunistas – aí talvez (prosseguindo em nosso esboço do perfil pecebista-intelectual do historiador-pesquisador) a raiz de suas ambigüidades quando ele interpela o agrarismo camponês pecebista. Igualmente se poderia avaliar o modo como o PCB propriamente dito, por sua vez, disputava a mobilização agrária daqueles anos.

Anteriormente sugerimos a idéia de que esse partido, na elaboração do seu agrarismo, partira da tese da aliança operário-camponesa. E que ela, também sugerimos a idéia, teria funcionado ora como mero “orientalismo” da velha cultura política prevalecente até o começo dos anos 50; ora como uma espécie de parâmetro modernizador com o qual seria possível antever a direção do mundo pretérito rural interpelando os seus setores mais dinâmicos, como lhe teria sugerido a leitura da dissertação agrária leniniana. Depois, já na elaboração “mais sofisticada”, após a adoção da “grande política” de frente única, mesmo de modo ambíguo, aquele partido teria passado a operar pragmaticamente com uma tática “mais apropriada” para encarar o problema camponês, concebendo-o como uma questão complexa e de resolução gradual, não sem ter de enfrentar resistências em suas próprias fileiras, às vezes lhes dando combate, noutras com elas conciliando.

Por certo, tanto a trajetória sindical-agrária do PCB como o agrarismo de Julião não passaram desapercebidos em alguns autores. Por exemplo, a singularidade dos comunistas brasileiros, segundo Fernando Azevêdo (1982: 87), encontrava-se justamente “na prioridade que o PCB concedia e levava à prática, através da ação da Ultab e das várias uniões e associações rurais sob seu controle, na mobilização dos assalariados do campo e na tentativa de criação de organizações legais, através da sindicalização rural. Tal prioridade, por outro lado, expressava-se na absorção das lutas salariais e por melhores condições de trabalho, devendo-se constituir em conquistas parciais, dentro da política de acumulação de forças que o partido preconizava para os movimentos sociais.” Forman (1979: 236)  também coincide com o ponto: “É importante ressaltar que o partido comunista se estava organizando entre o proletariado rural, e não entre os camponeses. Este fato o colocava em competição sobretudo com a Igreja Católica, e não tanto com Julião”. Aliás, essa última observação –aqui quase com gosto pelo paradoxo– instiga voltar a um ponto anteriormente referido e agora indagar o sentido da mudança na trajetória de Julião ao alborear os anos 60, como está registrado em Fragmon Borges (1962). [23] Poderíamos procurar indícios para ver se o agrarismo de Julião assumira aquele caráter diretamente político e “radical” também como resultado de uma interpelação que ele fazia do sindicalismo amarelo católico. Mutatis mutandis o olhar em perspectiva de Giocondo Dias, Julião, com espírito autocrítico, [24] igualmente registra ex-post a sua avaliação daqueles anos, especialmente sobre a mobilização agrária reorientada no começo dos anos 60 pela tese da reforma agrária radical, como um processo cuja vocação era a de dar passagem aos “camponeses”, “sem ultrapassar as fronteiras da democracia. Daí nossa insistência em consumar a reforma agrária radical sem quebra da legalidade, consubstanciada na Carta Magna então vigente” (Julião, 1994; in: Carvalho Costa, 1994a: 24).

É claro que aqueles autores atribuem a marca sindical ao PCB de um ponto de vista bem distante da interpelação caiopradiana (mais sofisticada) sobre o agrarismo camponês que coabitava naquele partido. Na verdade, eles estavam captando a relação tensa que sempre existira entre um pensamento político de inspiração operária (e o que isso significava na mentalidade comunista da época) e uma práxis sob influxo do mundo agrário efetivo.

Recolhendo pontos sugeridos anteriormente, podemos dizer desde logo que o “cochilo” pecebista referido por Caio Prado Jr. significava que a vocação sindical dos comunistas brasileiros não importava desinteresse ante o problema propriamente camponês nem que o PCB já tivesse superado de todo o seu antigo agrarismo. Inclusive há indícios sugerindo que eles se enraizaram, muito mais do que se pensa, entre os não-assalariados (Carvalho Costa, 1996). Seria essa ambivalência situacional que se espelha nesta passagem das Teses para discussão do V Congresso (sublinhado também por Caio Prado Jr.) onde se lê: “Em virtude de sua condição social de proletários ou semiproletários, como também de seu grau de concentração, os assalariados rurais são mais suscetíveis de organizarem-se em sindicatos, que podem constituir as bases iniciais para a mobilização das massas camponesas” (PCB, 1960). (Cursivas dos autores). Agora, seria o momento de esclarecer se o espírito deste discurso reiterado assinala com relativa clareza se é o grupo moderno quem abre passagem para os “camponeses” –nisto o PCB espelhando opção por uma postura de Ocidente (recorrendo aqui mais uma vez à conceituação instigante) [25] – ou se são estes quem, em última instância, ainda iriam protagonizar a revolução/reforma agrária de tipo camponês? Mas então o que significa o embate no congresso de Belo Horizonte quando o PCB (setores deles?) resistiu à tese da reforma agrária radical de inspiração camponesa? E o diferendo de Giocondo Dias com Julião em 1962? Seriam tão-somente desencontros no plano da tática política?

É possível supor que constrangimentos “não-estruturais” ainda estivessem influenciando áreas ativas daquele associativismo, evidenciáveis nos exemplos: a) a inscrição dos assalariados e não-assalariados em uma mesma estrutura organizacional talvez estivesse criando uma situação em que esses últimos, de experiência comercial e instrução maiores, terminassem controlando a entidade mesmo de formato sindical; b) a concepção de reforma agrária da época empurrava o PCB mais ainda para perto deles (Carvalho Costa, 1996); c) o agrarismo dos anos 40 e início da década de 50 ainda constituía uma memória de apelo em algumas áreas daquele partido, como sugeria Giocondo Dias na sua entrevista de 1979 e José Antonio Segatto em seu livro (1995). Entender-se-ia, assim, porque não era nada discreta a presença pecebista em muitas regiões onde o assalariamento não tinha grande peso. [26] Aliás, nisso o Estado do Rio de Janeiro é exemplar. Na época, afora a região canavieira de Campos de Goytacazes, em quase todo o Estado predominava o trabalho não-assalariado. Ali a presença do PCB justamente era forte entre os pequenos lavradores em cujas entidades e diretorias invariavelmente estavam comunistas (Pureza, 1990). A Associação dos Lavradores Fluminenses e depois a Federação das Associações dos Lavradores do Estado do Rio de Janeiro tiveram como fundadores e presidentes quadros comunistas. Demais, essa influência pode ser avaliada através da leitura do jornal Terra Livre e sobremaneira das memórias camponesas de José Pureza (1982) nas quais se sobressai a rica história de resistência de Xerém e Imbé.

Agora seguindo a tradição, –sem o gosto para o paradoxo–, poderíamos supor um outro marco de referência: a penetração capitalista na agricultura e a conseguinte pressão para que se respeitasse a lei trabalhista teriam concorrido num primeiro momento, digamos, para que a base comunista tivesse o traço camponês. É como se, em lugar da “proletarização” pré-64 tornar mais aparente a conflitividade e logo estimular o moderno associativismo, a lógica “estrutural” desse processo relativamente novo de um capitalismo “desigual e combinado” ainda se manifestasse refratária, provocando efeitos descompassados. Por certo em algumas áreas a mecanização, a pecuarização intensiva, a lavoura canavieira e o avanço da fronteira agrícola aguçavam e criavam novas contradições e em geral provocavam importantes fissuras na dominação tradicional, como já observou Leonilde Medeiros (1982). Porém, tendência não-desenvolvida, no curto prazo talvez a modernização ainda não tivesse repercutido fortemente no comportamento político-organizacio-nal de alguns atores sociais agrários. Poderíamos, então, adiantar a idéia de que se, em fase inicial, a “proletarização” tensiona muito mais intensamente a conflitividade dos grupos envolvidos diretamente na questão da terra, seria compreensível, então, supor que os arrendatários e os posseiros configurassem o cenário camponês posto à frente dos protagonistas políticos da época.

Enfraquecidas as relações clientelistas, [27] a força de trabalho já residindo fora dos domínios rurais, daí não derivava que o moderno sistema sindical se afirmaria, naturalística e imediatamente, em todas as partes. Há registros de que os “camponeses” que deixavam o campo nesse período, tornavam-se mais arredios à política do que quando moravam na fazenda. O assalariado até diminuía a sua freqüência ao sindicato, quando dele não se desligava: “Quando o sindicato conseguia resolver o problema de um assalariado, você podia contar com a perda daquele associado. Quando o trabalhador recebia um benefício, férias de dois anos, salário mínimo atrasado de dois anos, o esforço do sindicato produzia um efeito contrário ao esperado no que se refere à capacidade de atração: ele pegava o dinheiro e ia embora, e nós perdíamos o associado.” (Silva, 1991). Esse tipo de argumento “responsabiliza” as novas condições sociais a que era submetido o recém-assalariado. Se antes, nas fazendas, já não era trabalhador puro, de única relação trabalhista, fora delas multiplicavam-se-lhe os relacionamentos. Agora, os contatos se davam entre indivíduos fisicamente desligados da produção, longe do local de trabalho. Inclusive a sua família já não era exclusivamente constituída de trabalhadores rurais. Em geral força de trabalho temporária, quando não se integrava no mercado industrial, ele terminava por se constituir numa categoria de difícil organização (Carvalho Costa, 1996). Em suma, se seria próprio das formas capitalistas induzir relações sociais de menor teor patrimonial e clientelístico, claro que por si só elas não provocariam mudanças na consciência de modo que viessem a transformar o novo assalariado num ativista político. Mesmo de larga maturação, o capitalismo agrário certamente haveria de estimular o associativismo sindical, contando, claro, o ambiente sociohistórico e o quadro das intervenções dos atores políticos; aliás, como irá acontecer depois de 64 quando a modernização da agricultura se torna tendência de maior impacto político-organizacional, emblematicamente evidente com o desaparecimento das Ligas Camponesas e nos anos subseqüentes com a progressiva resistência dos sindicatos rurais ao regime militar.

Como aludimos páginas atrás, a marca identitária do PCB com a tese da aliança operário-camponesa –classe universal, melhor dizendo, o partido operário como direção avançada das classes aliadas– lhe exigia, além de uma teoria generalista, ter qualidades pedagógicas suficientes para convencê-las da sua razão contemporânea – de que somente a política de frente única as podia levar a um patamar favorável, no caso dos camponeses, às medidas parciais de reforma agrária e à própria realização desta, e assim por diante. Mas, enquanto a direção sobre  os aliados agrários não se concretizava cabalmente... o mundo real limitava a preferência “modernista” do condonttiere pelo associativismo sindical puro e o colocava diante dos grupos tensionados por uma lógica de conflitividade extrema. Ou seja, além de expressar a conciliação com a sua raiz antiga, a insuficiência de uma teorização agrária –à Caio Prado Jr.– e a concorrência de outros atores, aquele persistente agrarismo camponês pecebista era reflexo notável do influxo da lógica conflitual. O discurso de um partido já por excelência empirista e pragmático “não tinha” como não terminar submetendo-se à imediatez do real, isto é, entrar na disputa e envolver-se com a camada social onde se conformava um cenário significante para operações políticas de grande radicalidade. [28] O problema, recorrente, ainda permanecia: com que política?

Em todo caso, tentemos resumir o ponto: enquanto teria sido fácil ao PCB reconhecer na formulação da sua política a industrialização e o novo dinamismo da vida nacional, a frente única existente etc., parece que, pelo menor grau de desenvolvimento do movimento camponês em relação à extensão mobilizatória do nacionalismo (como era equacionado no PCB esse problema), resultava-lhe “mais difícil” decifrar a questão agrária brasileira dos anos 50. De qualquer modo, parece que aquele relançamento (ideológico e/ou político) do “fim último camponês” (realçado em nossas cursivas em algumas citações anteriores) subsumido na tese da mobilização agrária a partir dos grupos assalariados –vale repetir, com base numa operação tática junto a um ator mais moderno–, àquela altura da evolução do PCB, já não iria conter a compulsão desse partido à política melhorista e de defesa (estratégica...) das reivindicações parciais. Talvez se possa dizer que, com todas as suas indecisões, transitando, sobremaneira a partir dos debates de 56/57, da teoria geral da aliança operário-camponesa em direção a uma orientação de tipo “ocidentalista”, os comunistas brasileiros iriam trilhar um caminho que, cedo ou tarde, os levaria a privilegiar os grupos agrários modernos, o sindicato e a “política geral” enquanto locus de resolução do problema camponês.

Em suma, retornando às primeiras páginas destas notas: a interpelação de Caio Prado Jr. do agrarismo e da reforma agrária camponeses por ele atribuídos ao PCB mede bem a aporia desse partido sempre situado entre as dissertações feudalista e de capitalismo agrário – uma ambigüidade, segundo o historiador paulista, “que só freiava” a mobilização do grupo estratégico às mudanças no mundo rural e no próprio país. Sem embargo, se, por um lado, o autor de A revolução brasileira põe à frente do seu partido o tema da “dialética econômica” (sic) de assalariamento do campo brasileiro, de outro, a sua proposição não valoriza o significado dos traços “ocidentalistas” favoráveis ao sindicalismo moderno já então delineados, sem dúvida por linhas tortas, no discurso do PCB; nem procura ter com eles uma maior convergência. Haveria um “determinismo político” ex-ante impeditivo, inclusive já ex-presso na recusa do frentismo pluriclassista? Teria sido útil para o próprio argumento caiopradiano uma aproximação com o sentido geral –aí, sim, ambíguo [29] – que tinha a formulação pecebista sobre os camponeses desde a ótica do “moderno” a partir (convém insistir) da tese da aliança operário-camponesa enquanto significante, numa ou noutra direção, por demais influente na mentalidade comunista.

Às vésperas da derrota do governo Goulart, o PCB oscilava entre cumprir um papel de esquerda positiva, na expressão do trabalhista Santiago Dantas bem relembrada por Gildo Marçal Brandão (1995); ou se deixar levar pelos resíduos da sua antiga cultura política. A Declaração do Comitê Central de dezembro de 1962 (PCB, 1962), por exemplo, testemunha a dúvida então introduzida na política das “soluções positivas” e do gradualismo das reformas parciais e abre a porta para o chamado combate à “conciliação de direita” de Jango, inclusive acenando com a idéia da formação de um outro governo mais disposto a realizar as reformas estruturais. Esse giro também pode ser percebido em alguns artigos publicados na imprensa pecebista (Segatto, 1995). O texto O povo exige reformas de base (PCB, 1963) [30] também revela como a direção partidária ainda procurava compatibilizar a inclinação à tese da reforma agrária radical com a tradição gradualística do pecebismo contemporâneo. A rigor, o PCB se debatia entre uma cultura política de revolução e o experimento reformista de “Ocidente” praticado a partir de meados dos anos 50. As indecisões e os matizes na práxis política tornavam mais nítida a sombra da antiga mentalidade sobre a clarividência de certas áreas desse partido que, como Santiago Dantas e a sua tese da frente ampla para dar continuidade ao reformismo goulartiano, também reclamavam realismo e prudência diante da marcha da conspiração golpista.

Mas retornemos ao nosso ponto. É possível revalorizar a experimentação analítica caiopradiana; cum grano salis realçar a “politização” da questão agrária em Alberto Passos Guimarães; a compreensão do associativismo rural da ótica “desenvolvimentista” da Declaração de Março e do V Congresso de 1960 como de certo modo o faziam o PCB e o próprio Nelson Werneck Sodré; e considerar essas três interpelações como “pontos descontínuos” de uma mesma linha de ressignificação no sentido que, por exemplo, a esta categoria lhe dá Roberto Moreira (1995). Embora a elaboração “ocidentalista” propriamente dita só repercuta bem mais tarde, [31] pode-se assegurar que, nesse período, o PCB não só não radicalizou o seu agrarismo camponês, como no pós-64 os “cochilos” intermitentes para valorizar o assalariamento e o sindicato serão mais freqüentes (ver textos do VI Congresso de 1967 etc., in: Nogueira, 1980) e parecem se tornar cada vez mais argumento da sua práxis propriamente agrária, como a tempo queria Caio Prado Jr.

Abrindo-se a uma engenharia política complexa (mesmo tortuosa), o PCB, afinal, caminhara rumo a uma abordagem política da questão agrária – a partir da “grande política” pluriclassista, gradualística e reformadora. “Na dúvida” quanto aonde deveria conduzir os “camponeses”, tentara levá-los para dentro da vida política nacional. Vista à distância, a trajetória contemporânea desse partido se afigura bem diferenciada de uma dissertação in nuce (é nossa primeira impressão, acompanhando a grande imprensa, lendo articulistas internacionais) que parece sobrevalorizar em alguns movimentos sociais agrários latino-americanos deste fim de século uma nova pedagogia de constituição do social contraposto à política, dificultando que se veja e se valorize a dramática procura dos “camponeses” de uma relação mais produtiva (parodiando o boliviano René Zavalleta) com a política. Malgrado a dimensão do ponto, que exigiria revisar cuidadosamente aquela bibliografia e estudar o debate pós-marxista, não podemos evitar a lembrança dos ensaístas brasileiros com a qual iniciamos estas notas. A sua demiurgia, mais matizada no social-democrata Celso Furtado e mais radical em Vieira Pinto e em alguns companheiros seus do Iseb, à esquerda o PCB e o seu socialismo incluídos, lá naqueles anos 50, já nos ensinava que não se podia (e não se pode) resumir “a solução dos problemas nacional-populares” nem a um enfoque monotemático nem a uma invenção arbitrária, fora da heterogeneidade do mundo e da complexidade da política, em nome de uma utopia ex-machina. Em todo caso, a seu modo, aqueles nossos publicistas nacional-desenvol-vimentistas e aquele partido “desenvolvimentista” procuraram decifrar a lógica da nossa formação social e o enigma agrário brasileiro, apressados que estavam em não adiar o problema da urgente incorporação –à Habermas– dos continentes grupais “devastados” ao sistema político (a melhor tradição socialista dirá depois sempre renovável) para que eles alcançassem a autonomia da cidadania plena; lugar indiscutivelmente de modernidade, sobremaneira quando sob processo de democratização, como naqueles anos 50.

Em perspectiva ziguezagueante, o velho PCB teria atravessado o caminho do tempo por uma rota diversa da que agora parece nos sugerir aquela dissertação pós-moderna – indo de uma práxis de marca abstrato-doutrinarista (do que se lhe acusou durante anos), passando a crer cada vez mais na política stricto sensu desde aquele famoso qüinquênio dos 50; evoluindo do seu (sumamente problemático, como se sabe) projeto de nova sociedade para chegar in extremis, e com a ajuda de parte de sua última geração intelectual, à fronteira dos primeiros elementos (se se quer, com exagero da expressão) de uma nova cultura política. Aliás, hoje –e ainda ao modo daqueles nossos “clássicos” da ideologia e da política, não-comunistas e comunistas“– uma decorrência da concepção falibilística da mudança social pós-1989 consiste em ajudar a explicitar ou contribuir para que se consolide no país uma cultura política democrática, questão decisiva nestes tempos de aparência fragmentária e sobremaneira de perigoso descrédito na política. Inclusive recolhendo do melhor pecebismo um número maior ou menor de pontos da sua agenda, mas desde logo ineliminável a sua interpelação. [32]

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Notas

[1] A última interpretação pertence a Reginaldo de Moraes (Moraes, 1995). Rastreando filiação mannheimiana em Furtado, Moraes chega a apontar não só a menção à “dupla tarefa dos intelectuais” (cf. Furtado, 1962) como também a noção do intelectual-“demiurgo”, “o único elemento dentro de uma sociedade que não só pode, mas deve sobrepor-se aos condicionamentos sociais mais imediatos” (cf. Furtado, 1964). (Mo-raes, 1995).

[2] Relembre-se que o conceito de hegemonia aparece (em Marx, Lênin e Gramsci) cumprindo função supletiva, bem evidente no exercício de desconstrução do marxismo realizado por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe em seu livro Hegemony and socialist estrategy: toward a radical democratic politics (Laclau e Mouffe, 1985).

[3] Esse viés da cultura política no estudo do pecebismo constitui o propósito da pesquisa “Política e cultura política: um estudo sobre o MDB” (Santos, 1996d).

[4] Daniel Pécaut tematiza muito bem o ponto quando estuda a passagem dos ensaistas-demiurgos para o status da profissionalização universitária, quando eles, deixando de lado a cultura política do passado, põem-se ao mesmo nível dos demais atores da sociedade civil, sobremaneira depois de 1968 (Pécaut, 1990).

[5] A Resolução Sindical aprovada pelo Comitê Central do PCB em 1952 registra essa virada. Por trás da “couraça ideológica” de que nos fala Moisés Vinhas, referindo-se ao dogmatismo desse partido (Vinhas, 1982) e que dois anos antes se traduzira no conhecido Manifesto de Agosto (in Carone, 1982), os comunistas deixavam passar a nova orientação de “volta ao trabalho de massas” nas entidades legais (PCB, 1952).

[6] A respeito das suas mutações ideológico-políticas após 54, sobretudo durante a discussão pecebista sobre o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) nos anos 56/57, ver Carvalho Costa (1976) e Santos (1982; 1988). Daí em diante, a imagem de Brasil do PCB iria mudar progressivamente à medida que ele reconhecesse o industrialismo, a subordinação da lógica da formação social à chamada contradição antiimperialista e conferisse importância às liberdades públicas que vinham se afirmando desde 54.

[7] Osvaldo Peralva em seu livro O retrato relata que uma parte dos aliados de Agildo Barata –o membro do Comitê Central que no início daquela controvérsia referenciara os renovadores da época– passado o impacto do informe Kruschev, se alinharam em torno da direção do PCB (Peralva, 1960), influindo na reformulação da política pecebista após o encerramento do debate sobre o estalinismo.

[8] Por enquanto registramos apenas fatos sintomáticos dessa compulsão como, por exemplo, a disputa durante a discussão sobre o estalinismo, quando alguns comunistas renovadores procuraram levá-la para temas substantivos em vez do debate doutrinário; a criação, imediatamente depois, das revistas Novos Tempos (de curta duração) e sobremaneira Estudos Sociais, bem diferentes da publicação oficial dos PCs Problemas/Revista Internacional/Problemas da Paz e do Socialismo que ocupavam a quase totalidade de suas páginas para reproduzir material de formação ideológica e traduções.

[9] Durante os debates de 56/57, Agildo Barata mostrara aquele descompasso como um dado a sugerir que o “processo revolucionário” da época devia ser compreendido como uma fase inicial de acumulação de forças, o que implicava, por sua vez, em dar maior atenção ao problema da formação de uma ampla frente única. Só o surgimento de um governo nacionalista e democrático, que introduzisse democratismo na vida política, poderia criar condições para uma mobilização popular em grande escala (Barata, 1957).

[10] Isso fica sugerido grosso modo na Declaração de Março de 58 (Nogueira, 1980) e nas Teses para discussão do V Congresso, texto que pode ser considerado também veio oficial daquela elaboração (PCB, 1960).

[11] É só ver como tais idéias, primeiro, foram denunciadas como heterodoxas (revi-sionistas e direitistas, como se dizia então); depois, acolhidas parcialmente como base para a Declaração de Março.

[12] A interpretação é de Carlos Nelson Coutinho que compara aquela descrição com os conceitos de “via prussiana” e “revolução passiva”, embora lamente a acentuação caiopradiana no tema do atraso, impedindo-lhe ver o intenso desenvolvimento das forças produtivas nacionais após-64 e a importância da questão democrática (Coutinho, 1990).

[13] A revista Cadernos do Nosso Tempo do Ibesp (depois, Iseb) publicou no seu n. 2 de jan./jun. de 1954 uma resenha daquele debate (“Três etapas do comunismo brasileiro”, sem autoria, in: Schwartzman, 1982).

[14] Para Luiz Carlos Bresser Pereira a resistência provinha do uso da categoria de circulação como critério definidor do capitalismo na fase “ainda juvenil”. A partir daí o historiador pecebista não conseguiria entender o processo de constituição da ordem burguesa-industrial e nunca mais se afastaria da imagem sombria de Brasil (Bresser Pereira, 1993). A proposição precisaria ser matizada porquanto, como se sabe, na produção contemporânea Caio Prado Jr. aceita sem problemas a ontologia econômica marxista-leninista. Uma hipótese alternativa sublinharia para a natureza terceiro-mundista do próprio marxismo da época. É como se a originalidade dos primeiros textos se transfigurasse num simétrico economicismo para caracterizar o Brasil urbano-industrial à hora que o econômico esquecido é reposto no marxismo-leninismo pleno da obra madura. A hipótese seria a de que, sem diversificar o seu marxismo, ele haveria de encontrar grande dificuldade para dar curso a intuições de uma fase inicial e chegar a uma teoria da “modernização conservadora” brasileira.

[15] A expressão é sugerida por Daniel Pécaut, para quem a noção de cultura política só tem utilidade na medida em que se articulam discursos diversos, como nos seus exemplos do humanismo marxista dos ex-integralistas no ISEB, o queremismo no PCB, a recuperação comunista do getulismo no pós-54, o encontro dos estudantes com o marxismo etc. No pré-64, teriam sido percursos em sentido contrário como esses que asseguraram aos esquemas nacional-populares o caráter de uma verdadeira cultura política, deixando o caminho aberto para as mais variadas práticas políticas, assegurada a coesão relativa de um meio que se estendia muito além dos ativistas propriamente ditos (Pécaut, 1990).

[16] Fragmon Borges registra à época: “A partir de 1960, principalmente em conseqüência de uma avaliação falsa do nível de consciência das massas camponesas e da sua organização e de uma apreciação incorreta da experiência da revolução cubana, o deputado Francisco Julião passou a adotar posições que o levariam, num processo, a se isolar do movimento camponês e a perder a sua liderança efetiva”. Fragmon Borges considerava decisiva a contribuição de Julião mas lamentava que ele tivesse se desligado “materialmente das origens e bases de sua liderança” (Borges, 1962; in: Santos, 1996b).

[17] Segundo Fernando de Azevêdo, o seu menor grau de conflitividade “levaram as Ligas a subestimar o papel desse importante contingente no movimento social agrário, e a dar prioridade absoluta à organização do campesinato. Essa posição tática já estava definida desde o final da década de 50, conforme se pode concluir da leitura do artigo de Julião, ‘Organizam-se os arrendatários’, publicado em O Estado de São Paulo de 9/12/59”. Cf. Azevêdo (1982: 83). Azevêdo cita o próprio Julião: “Logo cedo eu me convenci de que o caminho de libertação do campesinato deve ser aberto pelos arrendatários e colonos, os únicos que têm condições de lutar pela fixação à terra. Por isso, ao invés de cuidar da sindicalização rural que não existe, praticamente, ainda, no Brasil, entendo que se devem criar associações de foreiros e colonos, com a configuração das Ligas Camponesas de Pernambuco”. (Idem).

[18] Em seu livro Reforma ou revolução. As vicissitudes políticas do PCB, José Antônio Segatto (1995) faz um balanço detalhado dessa identificação de alguns dirigentes do PCB com a tese da reforma agrária radical.

[19] Publicado como primeiro opúsculo da série “Textos de História do Brasil” do Iseb (Sodré, 1957).

[20] Nessa passagem Sodré se apóia em Mariátegui, aliás, uma presença (junto com Celso Furtado para o tempo contemporâneo) recorrente ao longo do texto (Sodré, 1962). O tópico deste livro onde o autor apresenta a sua teoria feudalista encontra-se em: Santos (1996b).

[21] Para Sodré, o monopólio da terra (“condenado a desaparecer”) era a causa do atraso agrário (“só com a sua eliminação as forças produtivas poderão desenvolver-se na medida das necessidades da população”) (Sodré, 1962).

[22] No texto de 1990 também aparecem várias menções ao “caminho prussiano” brasileiro sem constituírem propriamente um quadro de referência (Sodré, 1990).

[23] Essa mudança teria sido fruto da conjuntura pré-64. Ainda especulativa, a rigor a hipótese é sugerida pela biografia de Julião no final da década de 40 e nos primeiros anos 50, quando o advogado camponês à época teria exercido (ainda não podemos confirmar esse registro de veteranos militantes com fontes documentais) um papel moderador diante do campesinismo radicalizado do próprio PCB. Uma pista para averiguar o ponto seria consultar o jornal comunista pernambucano Folha do Povo, depois substituído por A Hora. Ademais, seria interessantíssimo encontrar e confrontar a conjectura com o folheto de Julião, Cartilha do camponês (redigido um pouco antes desse momento e publicado em 1959) e também com o seu romance Irmão Joazeiro, escrito “de uma só pancada”, como se soube na época, como narrativa dramática da luta de um grupo de eiteiros contra o latifúndio (Julião, 1960).

[24] Num texto de 1994, Julião procura retirar do termo “radical” do lema da reforma agrária o que ele insinua ser uma de distorção atributiva de sectarismo, conferindo-lhe o sentido histórico radicalmente antilatifundiário. Não deixa, porém, de registrar: “Houve, não podemos negar, passos mais acelerados na marcha pela consumação de uma reforma agrária radical, mas nunca deixamos de assumir essa responsabilidade convencidos de que a história não é obra somente dos acertos, senão também dos erros cometidos por um povo no seu afã de conquistar mais liberdade e independência” (Julião, 1994).

[25] Referimo-nos ao ensaio de Luiz Werneck Vianna (1988a) “Vantagens do atraso, vantagens do moderno”. E ainda a “Questão nacional e democracia: o Ocidente incompleto do PCB” (1988b) onde este autor faz uma leitura da trajetória comunista contemporânea sob a chave Oriente/Ocidente.

[26] Os “camponeses”, digamos assim, pontilhavam todo o país. Maria Isaura Pereira de Queiroz registra esse quadro: “Enquanto as grandes monoculturas de exportação não cobriam senão quatro milhões de hectares em 1950, as pequenas culturas de subsistência se estendiam pelo menos por quatorze milhões de hectares, no país. (...) Embora ultrapassados, estes dados dão uma noção clara da grande importância numérica de tal categoria rural no país.” (Queirós, 1976: 49). Como um pequeno ponto alusivo a uma tendência, quem sabe, mais relevante, poder-se-ia lembrar que alguns sindicatos criados em estados de capitalismo agrário sumamente débil às vezes recebiam dos próprios “cam-poneses” o nome de “Ligas Camponesas”, aqui registrado o caso do Piauí entre 1962-63 em Rascunho memorialista (Santos, 1967).

[27] Otávio Ianni em 1968 já fazia a seguinte observação: “Enquanto o universo social e cultural está predominantemente impregnado dos valores e padrões comunitários e patrimoniais, os trabalhadores não podem formular as suas reivindicações em termos propriamente políticos. Em condições de existência marcadas pela situação comunitária e patrimonial tradicional, impera o voto de cabresto, a política de campanário, o coronelismo, a tocaia, as técnicas do engano, o misticismo, o mutirão, as relações de compadrio, inclusive com os proprietários das terras e dos instrumentos de produção. Nesse universo, as tensões sociais desdobram-se no misticismo ou na violência individualizada e anárquica. Nessa situação, o trabalhador não dispõe de recursos naturais e intelectuais para definir o proprietário ou o capataz como outro. Todos participam do mesmo nós” (Ianni, 1ª ed., 1968; 1971: 78).

[28] Caberia aqui um esclarecimento sobre a sucessão de figuras (posseiros, camponeses, semi-assalariados, arrendatários, pequenos proprietários, eiteiros etc.) ao longo deste texto. Usamos as várias categorias seguindo a ordem do seu aparecimento nos diferentes discursos.

[29] Se nesse diferendo, a direção partidária e os publicistas pecebistas, que chegaram a comentar Caio Prado Jr., sempre procuraram rebater a dissertação de capitalismo agrário e o antifrentismo (para citar os mais conhecidos: Assis Tavares, 1967 e Paulo Cavalcante, s/d ), nunca manifestaram abertura diante da sua teorização, disponível para ser interpelada discursivamente, e de muita valia para o desenvolvimento do pecebismo contemporâneo.

[30] A parte agrária desse texto “Reforma agrária e medidas parciais em benefício dos camponeses” encontra-se em:  Santos (1996b).

[31] Em meados dos anos 70, uma reflexão de parte da intelectualidade pecebista produziria uma releitura não-clássica da formação social, lançando um outro olhar sobre o papel das classes agrárias na constituição do capitalismo (Ribeiro, 1975; especialmente Vianna, 1976); e iria chamar a atenção para a complexidade da reforma agrária e a incorporação dos “camponeses” ao sistema institucional como atores políticos, especialmente Ivan Ribeiro (1983). O que antes era intuitivo na reflexão dos “clássicos” (e naqueles textos) pecebistas  vai ser tematizado à luz da interlocução com a melhor tradição no estudo da modernização do mundo rural (Lênin, Gramsci, Lukács, Gerschenkron, Barrington Moore etc.). Diferente de Caio Prado Jr., a nova vertente intelectual teria mais êxito na produção de uma imagem de Brasil capaz de ressignificar o pecebismo requerido que estava pela complexificação do país. De trajetória similar aos renovadores de 56/57, esse grupo também se marginalizaria do PCB, após os debates do seu VII Congresso em 1983 (Santos, 1996a).

[32] Guiseppe Vacca observa que o aggiornamento de uma tradição intelectual (como a da esquerda) implica interpelar, da forma mais crítica possível, o seu passado como condição para formular as novas tarefas do momento, ademais, donde se poderia extrair não poucos instrumentos analíticos do presente (Vacca, 1996).