Estudos Sociedade e Agricultura

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Francisco Carlos Teixeira Da Silva

Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia


Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997: 119-156.

Resumo: (Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia). Este artigo dedica-se à análise das características básicas da pecuária sertaneja nos séculos XVII e XVIII, com ênfase nos mecanismos de formação do mercado interno de alimentos, bem como das crises de abastecimento. Destacamos, ainda, a estrutura de posse e uso da terra, em especial o uso comunal da terra e o uso intensivo de escravos na pecuária.

Palavras-chave: pecuária no Brasil colônia; mercado interno; alimentos; escravidão.

Abstract: (Cattle Farming and the Development of the Domestic Market in Colonial Brazil). This article analises the specific characteristics of cattle farming in the Brazilian interior in the XVII and XVIII centuries, with special attention being given to the development of the domestic food market and the phenomenon of food supply crises. The author highlights patterns of land ownership and use, especially in relation to communal lands, together to the resort to intensive slavery in cattle farming.

Keywords: colonial Brazil; domestic market; food; slavery.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva é professor da UFRJ/IFCS.


O regime de terras na pecuária sertaneja

A definitiva expulsão do gado para os sertões em fins do século XVII e, ao mesmo tempo, a abertura da fronteira (através da intensificação das guerras de extermínio e/ou escravização das populações indígenas), permitiram formação, por parte dos colonizadores, de uma vastíssima rede de propriedades: as fazendas de gado. As bases do novo rush fundiário, com seu ápice nos anos entre 1670/80-90, são as mesmas que moldaram a estrutura fundiária da plantation açucareira: as sesmarias. Tratava-se da doação de vastas extensões de terras recém-conquistadas ou por conquistar, principalmente em remuneração ao serviço militar prestado contra os índios concedidas com limites e extensão incertos. Repetia-se a preocupação já constatada na ocupação do Recôncavo da Bahia ou nos Sertões Cariocas, de promover a rápida apropriação dos recursos naturais. Dessa forma, eram os second comers, ou seja, todas aqueles que teriam chegado após o período de lutas e conquistas, forçados a um regime de dependência em relação aos sesmeiros, caso almejassem se estabelecer como produtores rurais.1

A generalização do sistema de arrendamentos foi a resposta encontrada para a questão da apropriação e monopolização precoce das terras.2

As grandes sesmarias serão doadas nas áreas de fronteira e quase sempre fazem menção direta e regular a pastos e campos. Em 1659 são doadas 10 léguas a Garcia D’Ávila, Padre Antônio Pereira, Francisco Dias e mais dois vizinhos, com a menção de serem “...10 léguas para cada um e... se ressalvarão também de sorte que as 10 léguas de cada um sejam de pastos, e terra, onde possam [1] criar [2] gado”. [3] Já na doação feita ao Alferes Manuel de Mattos, em 1674, estipula-se que “...não entram matos e caatingas e somente terras de pastos”. [4] Da mesma forma, três outras doações, feitas em 1690, falam em terras “...para pastos e logradouros de gados e currais...”. [5]

Nestes primeiros tempos, a maior parte das terras era apropriada sem qualquer referência concreta à área ou localização, muito especialmente quando se tratavam de terras dos sertões, não tão cobiçadas quanto as ricas e bem localizadas terras do litoral. Informações vagas, dadas pelos desbravadores e capitães de índios, serviam de base, em Salvador da Bahia –sede do poder metropolitano na nova colônia e principal núcleo do aparelho legal português–, para registros cartorários, que resultavam em virtual monopólio das terras recém-conquistadas. Assim, a carta de Manoel Velho, de 1653, se refere ao apossamento “...da terra que houver até‚ o rio de São Francisco”. Na doação de Domingos Affonso, o Sertão, de 1674, há uma clara admissão de que o próprio sertanista desconhecia a situação das novas conquistas: “...e estando, as ditas terras, já ocupadas serão dadas mais além‚ pelas cabeceiras [do rio]”. [6] Na doação de Felício Cypriano, de 1675, dá-se a entrega “...de toda a terra que se achar entre os rios Piagui, Araticuba e Guararema”, [7] enquanto outra carta, de 1697, nos fala das “...terras que se achar e descobrir pelo Sertão”.

Tal facilidade em se obter terras praticamente desconhecidas acaba por gerar uma forte tensão social. Conforme a frente pioneira avançava, encontrava, muitas vezes, as terras já apossadas juridicamente, com base nas doações feitas em Salvador. Assim, aqueles que, após duras fainas, chegavam às novas áreas deveriam se contentar em arrendar terras aos grandes sesmeiros, que de Salvador, controlavam através de mecanismos políticos e argumentos legais toda a fronteira.

Tais tensões, e choques daí decorrentes, levaram a Coroa a limitar as doações, tentando impor preceitos menos vorazes na ocupação da fronteira. A Carta Régia de 27 de dezembro de 1695 limitaria as doações as dimensões de 4 léguas por 1 e, em outra, de 7 de dezembro de 1697, estabelecer-se-ia o padrão de 3 por 1 légua, que perduraria largamente durante o período colonial. As Provisões Reais de 20 de janeiro de 1699 e de 19 de maio de 1729, com algumas alterações, confirmarão o padrão estabelecido em 1695. Mesmo assim, as tensões permaneciam: restava saber qual a situação legal dos grandes domínios constituídos no meio século anterior. Uma Carta Régia, de 23 de novembro de 1698, confirmava todas as doações anteriores, mesmo além do padrão estabelecido em 1695. Começava-se, entretanto, a estabelecer alguns limites. A Carta Régia de 1699, além de confirmar o padrão, estabelece que todos que, doravante, não cultivassem diretamente a terra, ou através de agregados e escravos, perderiam seus direitos; outra Carta, de 1702, obriga a demarcação clara e inequívoca das propriedades. Os sesmeiros, em especial os senhores dos novos domínios estabelecidos em Salvador, exercitam, entretanto, forte pressão visando a conservação de seus privilégios‚ e se negam a qualquer esforço de demarcação.

O auge das disputas se dá em torno de 1714 quando o ouvidor geral do Maranhão, mais próximo dos interesses dos novos homens da fronteira, declara devolutas todas as sesmarias do Piauí. Os interesses dos antigos sesmeiros são defendidos, em Salvador, pelo Marquês de Angeja, vice-rei do Brasil (1714-18). A Coroa, por Alvará de 11 de janeiro de 1715 reafirma a validade das sesmarias mas, transfere o Piauí para a jurisdição do Maranhão, tornando, assim, a justiça mais acessível aos homens da fronteira e menos manipulável pelos politicamente poderosos em Salvador da Bahia.

Quase no mesmo ano, 1711, Antonil dava notícia das relações entre sesmeiros e arrendatários: “...e nestas terras, parte os donos delas tem currais próprios; e parte são dos que arrendaram sítios delas, pagando por cada sítio, que é ordinariamente de uma légua, cada ano dez mil réis de foro”. [8] O autor do Roteiro do Piauí confirma, por sua vez, a existência do sistema de arrendamentos: “...que as partem [as terras] de meyas, tem nellas algumas fazendas de gado seus, as mais arrendam a quem lhe quer meter gados, pagando-lhes 10 mil réis de foro por cada sítio” (Anônimo, 1900: 88). Referindo-se aos senhores de grandes domínios, como Domingos Affonso Mafrense, o Sertão, ou a matriarca do Morgadio dos D’Ávila, nos afirma, ainda: “...vivem estes moradores de arrendamento destas fazendas de gados” (Anônimo, 1900: 45). Miguel do Couto, por sua vez, afirma que, por essa época, 153 senhores de fazendas de gado não eram donos de terras (Couto, 1938: 371-72).

A Coroa continua atuando de forma paliativa. Em atendimento a Carta Régia, de 28 de setembro de 1700, constituiu-se uma junta para estabelecer um foro uniforme a ser pago pela posse das sesmarias. O critério estabelecido não considerava a qualidade ou dimensões das terras mas, sua localização. Assim, até‚ 30 léguas do litoral pagar-se-ia um foro de 6$000 réis por légua possuída e, aquelas a mais de 30 léguas, pagariam 4$000 réis por légua. Da mesma forma, o padrão é confirmado; as doações, porém, não deveriam “...ser contíguas uma às outras, porque deve mediar entre elas ao menos uma légua de terra” (Barros, 1933: 198 e ss).

Se, a primeira medida nunca foi praticada, a segunda apenas confirmava uma prática já antiga. Fundamental na definição do sistema de uso da terra, a légua de mediação entre as fazendas –que muitas vezes foi considerada integrante do padrão– constituiu-se em uma área comunal, de uso coletivo, onde o gado de diversos criadores ficava à solta. .

Em 1743, a câmara da Vila do Mocha, a atual Oeiras no Piauí, dirigia uma representação ao Conselho Ultramarino, dando conta das tensões existentes no Sertão: “...deram por sesmarias neles e indevidamente grande quantidade de terras a três ou quatro pessoas particulares moradores na cidade da Bahia, que cultivando algumas delas deixaram a maior parte devolutas sem consentirem que pessoa alguma as povoasse, salvo quem a sua custa e com risco de suas vidas as descobrisse e defendesse do gentio bravo, constrangendo-lhes depois a lhes pagarem dez mil réis de renda por cada sítio em cada ano”. [9]

Após inúmeras idas e vindas, o Conselho Ultramarino reafirma os direitos dos sesmeiros, inclusive sobre as terras arrendadas a colonos ou cultivadas por feitores ou escravos, entretanto, fica proibido estender o sistema de arrendamentos às sesmarias tomadas de novo. Assim, embora fossem reconhecidos os inconvenientes do sistema de posse e uso de terras que se desenvolvia na Colônia, o governo real não se via em condições de reformá-lo profundamente. Em vez disso, propunha-se a estabelecer uma fronteira entre o velho sistema, hierárquico e aristocrata, e um novo sistema mais aberto e de maior acesso aos homens pobres, porém com ganas de conquistadores. [10]

Deu-se, aí, um amplo fracasso da política portuguesa.

Todas as informações e documentos posteriores mostram, contudo, a plena continuidade do sistema de arrendamentos nos moldes já praticados. Da mesma forma, o padrão 3 x 1 foi regularmente desrespeitado. Em pleno século XVIII, por exemplo, os domínios jesuíticos no Piauí, originalmente pertencentes a Domingos Affonso, o Sertão, são compostos por 33 fazendas, das quais 29 eram maiores que os 4.500 hectares médios desrespeitando as determinações régias (D’Alencastre, 1857: 48; Porto, 1974: 148-49).

Estes amplos domínios não se constituíam uniformemente em fazendas de gado sob a forma de uma única exploração. Os grandes domínios eram arrendados ou estavam subdivididos em inúmeros currais. Era comum um só fazendeiro possuir vários currais: seu estabelecimento dependia, no Sertão do Piauí ou no São Francisco, como se vê nas referências existentes nas cartas de sesmarias, da existência de pastos e águas, bem como da qualidade dos campos e seus recursos naturais (como os refrigérios, isto é, um campo com abundância de cactáceas que pudessem servir de pastos de reserva nas longas secas). No Ceará, por exemplo, não se viam imensos domínios contínuos ou fazendas de muitas léguas. Aí a média das propriedades também menor do que normalmente consta de uma certa visão heróica do sertão: “...não se encontra na capitania uma fazenda que produza anualmente mil bezerros; as maiores, muito raras, são de quatrocentos, e as há até‚ de trinta” (Anônimo, 1900: 89). A fazenda do Brejo Seco, no sertão do Rio de Contas, Bahia, no seu melhor ano (1804) produziu 358 bezerros, e sua média até o início do século XIX, nunca ultrapassou 350 crias/ano (Santos Filho, 1956: 370). Ora, o solar da família Canguçu, os senhores do Brejo Seco, era um poderoso e próspero senhorio do sertão baiano!

Da mesma forma, a visão tradicional de fazendas perdidas no Sertão deve ser matizada. Um relato de 1697 nos dá uma idéia aproximada da distância entre uma fazenda e a seguinte, com o termo médio em torno de três léguas (Porto, 1974: 64). Tal constatação corrobora a informação sobre a existência de uma légua de terra de uso comunal entre uma fazenda e outra, como está no Roteiro... (Anônimo, 1900: 89) e que não deveriam ser objeto de apropriação privada.

A grande propriedade de origem sesmarial ou as terras arrendadas, no interior da sesmaria, não eram as únicas formas de acesso à terra nos sertões. Ao longo do Sertão do Rio de São Francisco constituíra-se, desde cedo, uma ampla área de terras indivisas, “possuídas em comum com outros eréus (sic)”. [11] Algumas doações, como da sesmaria de Antônio da Silva de Figueiredo, em 1674, falam de ...terras povoadas e muitos eréus”. [12] Neste caso, parece que a doação recobria terras possuídas anteriormente sem, contudo, titulação legal. Uma vasta área de terras, de Propriá até Canindé do São Francisco (Sergipe), tendo como centro Porto da Folha e Ilha do Ouro caracterizava-se pela posse e uso comunal, com o gado utilizando as terras em comum. Em alguns vales, como do rio Paraguaçu, a partir de Milagres, e do São Francisco, entre Penedo (Alagoas) e Porto da Folha e Garararu (Sergipe), criam-se à solta animais de pequeno porte: são cabras e porcos que vivem no comum, ao lado de muitas aves de terreiro. Tais áreas comunais estabelecem-se sobre superfícies cobertas de mata caatinga e utilizadas como pastagens naturais, sem cercas nem limites de propriedade, daí serem chamadas à época de indiviso. [13] No Sertão do Rio de Contas, conforme os livros da fazenda do Brejo Seco, pertencente a família Canguçu, criava-se gado à solta, em terras denominadas, também lá, de indiviso ou pastos comuns, da mesma forma que no curso médio do São Francisco. Esta era uma prática que se estendia não só entre camponeses pobres. Junto de muitas fazendas e currais permaneciam misturados os animais de vários proprietários, só separados por ocasião da junta, quando se recolhia o gado para formar as boiadas que seriam comercializadas. Durante as juntas, e em virtude do uso comum dos pastos, muitas vezes um vaqueiro levava animais de outros proprietários junto com os seus. Somente através da marca ou ferro podia-se reconhecer a posse de cada animal, o que durante as juntas era bastante difícil. Assim, estes animais eram anotados e objeto de posterior indenização, troca ou permuta, sendo ponto de honra para o vaqueiro o correto trato com o animal alheio, característica geral da sociedade agrária brasileira. [14] No Ceará, com seus amplos espaços vazios, as juntas englobavam, muito freqüentemente, um importante número de reses de vizinhos. Impunha-se, então, um grande encontro para a troca dos animais. Tais encontros de vaqueiros e suas boiadas darão origem às vaquejadas: momentos importantes de convívio social e mecanismo que assegura a correta posse dos animais. Era festa no sertão.

Na década de 1760, na capitania de Ilhéus‚ encontramos uma área de uso comunal junto da Vila da Barra do Rio de Contas, onde se podia tirar madeiras –embora não se pudesse cortar a mata–, utilizar as fontes d’água e ter pastos comuns (Silva Campos, 1981: 160).

Já no século XIX, Theodoro Sampaio –jovem engenheiro enviado em viagem científica através do rio de São Francisco–, se depara com uma vasta área em torno de Caetité‚ de uso comunal: “São nestas paragens as propriedades territoriais, no geral, indivisas, razão porque não alcançam melhores preços...” (Sampaio, 1955: 184). No comum, afirma o viajante, as terras não valem para negócio... afirma o jovem engenheiro, quase que se antecipando ao registro e elaboração, feita por José de Souza Martins, da distinção entre terra de trabalho e terra de negócio.

Outro exemplo de forma alternativa de apossamento da terra, muito próximo ao comum, eram as malhadas (maiadas no Médio São Francisco). Estas eram áreas de uso coletivo, como por exemplo, no Rio de Contas, local de reunião do gado para pernoite, ferra e/ou junta (também se denominava malhada, contudo com outros aspectos, o terreiro em face da Casa Grande da fazenda, bem como as áreas em que o gado se reunia para ruminar). Embora pudessem estar localizadas nas terras de algum fazendeiro –o que não era o caso do indiviso ou do comum, onde não se reconhecia um proprietário– as malhadas podiam ser usadas por todos, sem permissão ou cobrança de direitos.

A Malhada das Pedras, no Rio de Contas, ponto tradicional de reunião de boiadas, acabou por dar origem a um dinâmico arraial.

Aos poucos o Sertão vai se convertendo em um imenso pasto, onde, por largos trechos, a população consegue impor um regime de terras distinto daquele baseado na apropriação individual e privada da terra, como o sistema sesmarial supunha. Mesmo após 1850, com a nova Lei de Terras, não se deu qualquer mudança fundamental no regime de posse e uso da terra. Os efeitos da legislação parecem ter se limitado à área cafeeira, no eixo Centro-Sul do país, sem qualquer mudança de fundo nos demais regimes. Um bom número de trabalhos dos antropólogos e historiadores confirmam a resistência, ainda nos dias de hoje, dos mecanismos de uso comunal da terra. [15]

Boa parte da historiografia brasileira, entretanto, resiste fortemente a considerar outras formas de uso e posse da terra no país que não esteja nos moldes do direito napoleônico, oriundo de uma época e de uma forma social só muito tardiamente chegada (ou imposta) ao mundo agrário brasileiro. Mesmo o instituto sesmarial, complexo e multifacetado, gerado no bojo de uma sociedade tradicional, é entendido através dos conceitos do direito positivo iluminista, eliminando-se uma vastíssima riqueza de condições e apropriações específicas do texto legal. Assim, a diversidade de formas de apropriação da terra –mesmo diante dos evidentes conflitos atuais– é simplificada ou mesmo ignorada. Por sua vez, a leitura proposta por Martins para a relação terra/trabalho (já colocada por Domar, Nieboer, Kloosterboer, entre outros), com seu apanágio da renda escravista capitalizada, é ligeiramente generalizada por outros autores, para além do que autoriza a proposta do próprio Martins, “resolvendo” a questão da terra na História do Brasil através da simples leitura de um texto jurídico. O cadastro de terras, suas medições e as medidas coercitivas propostas na lei de 1850 jamais foram realizadas ou levadas a sério, como tantas outras leis do país. Assim, fazer História apenas através de leis publicadas pelo Estado, sem uma análise mais detalhada das condições locais –num país étnica, cultural e geograficamente multiforme– pode resvalar rapidamente para uma forma bem intencionada de etnocentrismo.

Muito mais importante, no caso do Sertão, do que a apropriação privada das terras era a questão envolvendo o uso dos recursos naturais raros. Se, as terras são indivisas, o mesmo não acontece com cacimbas, caldeirões ou olhos d’água. Recurso raro e frágil, a água é que desperta maior atenção. Normalmente se constrói um verdadeiro curral para controlar o acesso dos animais, como na região da caatinga que se abre em Serrinha, Bahia. Em algumas regiões do Sertão de Vitória da Conquista e na Chapada da Diamantina se adensam povoados (vilas e taperas) em torno de caldeirões ou poços, que conservam a água por todo o ano. Em outras regiões, como no Médio São Francisco, é o gado de pequeno porte, em especial os porcos, que devem ser eliminados. Impõe-se, ao pequeno produtor familiar e/ou escravista, a obrigação de construir cercas, que, com seus altos custos, muitas vezes impossibilitam a existência da pecuária de pequeno porte. A concorrência pelas cacimbas –ao lado da prática dos porcos em “sujar” a água– vai gerar uma permanente tensão entre criadores de gado de grande e de pequeno porte, muito especialmente no sertão semi-árido.

Nos tabuleiros do Sertão de Alagoas e Pernambuco, e na zona das cabeceiras dos rios Real e Vaza-barris, são as culturas que devem ser cercadas. São os japam ou japão, as terras mais ricas, com culturas de alimentos, que devem ser protegidas. Mas, mesmo aí, formas de uso comunal são utilizadas. O custo elevado das cercas –madeira, pedra ou macambira– impossibilitava o cercamento de cada campo; assim, é o conjunto dos campos que são cercados. Em Porto da Folha, Sergipe, as cercas são impostas pelos criadores, com requintes que nenhum roceiro poderia pagar. Os porcos devem estar presos, obrigando ao uso de forragem, enquanto os bois são criados à solta.

Já no Recôncavo da Bahia, área de povoamento antigo e dominância da plantation, a norma é inversa: os códigos de posturas, até‚ 1785, afirmam a obrigação de cerca para o gado. Aí, as relações de poder são diferentes: não se trata de pequenos produtores familiares e/ou escravistas e, sim, da grande propriedade açucareira, o engenho ou a fazenda. Poderosos, senhores de engenho ou plantadores de cana, conseguem, bem ao contrário do pequeno produtor sertanejo, defender seus campos e afastar o gado. Estes homens aproveitam-se, ainda, das crises de fome para melhor controlar o uso dos recursos naturais e sob o pretexto que o gado ocupa muito espaço criam uma área agrícola privilegiada junto ao litoral e ao curso navegável dos rios. O próprio governador-geral, Dom Rodrigo da Costa (1702-1705) autoriza, em 1705, a se matar o gado que entrasse nas plantações. Nestes anos de penúria e fome, entre os fins do século XVII e o início do século XVIII, o poder central não admite qualquer estorvo à produção de mandioca, milho e feijão. Repetia-se, é bem verdade, as posturas de 1700, consoantes com a proibição do gado junto ao litoral. Quase ao mesmo tempo, em 1716, o Senado da Câmara de Salvador estabelece, através de postura, que os currais deveriam produzir seus mantimentos, evitando, naquela conjuntura crítica, comprar farinha no mercado. [16]

A denominação malhada indicava, ainda, uma outra forma de acesso à terra e de organização do trabalho: os campos de cultivo do tabaco. Não sem motivo. A denominação indica, como em Cruz das Almas e nas vilas de “baixo” (ao sul da cidade de Salvador da Bahia), um sistema de rotação de cultivos praticado nas capoeiras: no primeiro ano a terra é deixada ao gado, que tem aí sua malhada, para estrumar; depois planta-se o tabaco, dependendo da fertilidade alcançada, um ou dois anos seguidos; no terceiro ano (ou quarto) planta-se mandioca, voltando-se, então, para o gado.

A associação gado-tabaco-mandioca é um exemplo único de uso sistemático de adubação na agricultura colonial. Ao sul de Salvador, nas vilas ditas “de baixo”, tal sistema perdurou até‚ a expulsão do gado. Os reclamos e pedidos insistentes da câmara da vila de Boipeba, para manter um pasto comum de meia légua em quadra, era o esforço direcionado para a conservação uma área comum de aprovisionamento de estrume. Tais demandas, que perduram por todo o século XVIII, darão origem a um murmúrio permanente de desagrado por parte das câmaras e, de outra parte, atos de profunda rispidez por parte das autoridades de Salvador.

Por fim, acaba-se por permitir a existência de pastos comunais, administrados pelas câmaras, com meia-légua em quadra, para o gado de tiro, fundamental para os engenhos e o transporte da farinha de mandioca.

A forma dominante, entretanto, de posse da terra era, sem dúvida, o arrendamento. Malgrado as pressões da Coroa o sistema não só se manteve, como ainda, adquiriu quase universalidade. Um dos domínios mais típicos do Sertão baiano, as terras de Antônio Guedes de Brito, a Casa da Ponte, apresentava, no Tombo de Terras, feito em 1809, nada menos que 110 sítios pagadores de renda e 64 sob exploração direta. [17] O foro oscilava, em média, entre 2 e 3% do valor do sítio, em função principalmente de sua localização e da existência de recursos naturais adequados. Também as ordens religiosas arrendavam suas terras, como a Irmandade de Nossa Senhora da Lapinha, que de suas 24 propriedades, possuía apenas duas exploradas diretamente. Os jesuítas, por sua vez, possuíam em suas terras centenas de foreiros, além de alugarem pastos. [18]

Em Sergipe, a política de arrendamentos decai na mais aberta exploração. Os poderosos locais “...obriga os lavradores a pagarem-lhes altas porcentagens pelo arrendamento das terras onde habitam, e como resposta a qualquer protesto contra tal extorsão, mandam incendiar-lhes as choupanas e derribar-lhes as plantações...” (Barros, 1933: 56; Bezerra, 1952: 66). Em nenhum outro ponto do Sertão o conflito tornou-se tão agudo como na área do São Francisco sergipano. A maior parte das terras de Sergipe D’El Rey, então fronteira móvel, ficaram em mãos de pequenos plantadores e vaqueiros de gados, na qualidade rendeiros de grandes sesmeiros absenteístas. Coube a estes, o verdadeiro trabalho de desbravamento e valorização das terras. Os conflitos repetiam-se aí com grande freqüência, quase sempre com o recurso, por parte dos sesmeiros, ao poder político sediado em Salvador. João de Araújo, que ocupara a Ilha do Ouro, no Sertão de Porto da Folha, ao retornar de uma campanha, em 1655, encontra suas terras ocupadas pelo capitão-mor que arrancara as páginas do livro de sesmarias, o que origina um longo e sangrento conflito. Algumas vezes previa-se, acintosamente, o assenhoreamento de terras já ocupadas, como na sesmaria doada, em 1670, ao poderoso Bernardo Vieira Ravasco, que estabelece suas 20 léguas “...com todas as águas, campos, pastos, testadas e mais logradouros úteis, tomando dellas posse, não obstante embora algum podendo as haver nos lugares devolutos...” (Freire, 1977: 224).

No Ceará, por sua vez, o forte absenteísmo dos grandes fazendeiros favorecia um certo relaxamento nas relações entre proprietários e arrendatários: “...alguns donos vivem em suas terras mas a maioria é propriedade de homens de ampla prosperidade que residem nas cidades litorâneas”. [19]

A maioria dos senhores do Piauí também viviam em vilas e cidades, particularmente em Salvador. Daí a importância, para os arrendatários, da autonomia política da capitania ou sua vinculação ao Maranhão.

Podemos delinear, assim, quatro grandes formas de posse e uso da terra na área de dominância da pecuária sertaneja: a. a grande propriedade, de origem sesmarial, com exploração direta e trabalho escravo; b. sítios e situações, terras arrendadas por um foro contratual, com gerência do foreiro e trabalho escravo; c. terras indivisas ou comuns, de propriedade comum –não são terras devolutas, nem da Coroa–, exploração direta, com caráter de pequena produção escravista ou familiar, muitas vezes dedicada à criação de gado de pequeno porte; d. áreas de uso coletivo, como malhadas e pastos comunais, utilizados pelos grandes criadores e pelas comunas rurais.

Vemos, assim, as bases de uma paisagem agrária diversificada e menos homogênea do que aquela normalmente descrita pela historiografia tradicional. Da mesma forma, poder-se-ia compreender melhor as origens e multiplicidade dos conflitos sociais existentes, muito especialmente em torno do acesso à terra, bem como a explosão de violência que marca o Sertão.

O trabalho: vaqueiros, cabras e escravos

Talvez seja este o item pertencente ao tema pecuária sobre o qual mais se tem escrito. Muitas das vezes, de forma idealizada e impressionista, compondo uma mitologia do vaqueiro, com seu gibão e sua montaria. Heroísmo, perseverança e um toque de brutalidade compunham os traços de um personagem histórico extremamente popular no imaginário brasileiro (Girão, 1986: 134). Aos poucos, e em grande parte em função dos trabalhos de Capistrano de Abreu, se matiza e amplia este mesmo quadro. Tanto a literatura, com Euclides da Cunha, como o cinema novo (o ciclo do cinema do cangaço) enalteceram e heroicizaram o vaqueiro e sua vida, criando um certo sucedâneo brasileiro do cowboy. A realidade começou, entretanto, a surgir muito diferente do mito romântico. Novos trabalhos ocupam-se com as condições de vida, a extração social e as formas de remuneração, constituindo-se em temas básicos da sociologia do vaqueiro. Porém, só muito recentemente pode-se aprofundar os conhecimentos sobre o trabalho nas fazendas de gado do Sertão. Coube a Luís Mott a contribuição mais efetiva neste campo. Foi ele, através do uso sistemático de arquivos portugueses e brasileiros, que comprovou, contra toda a historiografia tradicional, a participação dominante da escravidão na vida econômica do Sertão bem como os traços fundamentais do cotidiano sertanejo. Até‚ então, afirmava-se a dominância do trabalho livre, com certas características aventurosas que atrairia a mão-de-obra indígena para a pecuária. Duas causas fundamentais eram apontadas: a) o baixo rendimento proporcionado por um gênero de mercado interno e b) as condições de “liberdade” existentes, atrativo para o índio (por corolário, inepto para o trabalho agrícola). Ora, tratava-se, em grande parte, de manifestação explícita da velha obsessão, dependentista, pelo mercado externo como o único gerador de renda no Brasil colonial, além‚ claro, de um viés romântico, e preconceituoso, em relação ao índio. Em um trabalho de 1979, Mott faz a análise da demografia das fazendas de gado do Piauí, lançando por terra uma das mais arraigadas visões da historiografia brasileira. Na análise do conjunto da população do Piauí, o autor nos oferece o seguinte quadro:

Composição da população do Piauí por etnia e cor 1697-1723

 

1697

%

1772

%

Brancos

155

 35,3

3.205

16,7

Índios

59

13,5

1.131

5,9

Negros

210

48,0

6.343

33,0

Mamelucos

-

 -

1.354

7,0

Mulatos

4

0,9

4.050

21,1

Mestiços

10

2,3

3.108

16,3

Total

438

 100

19.191

100

            Fonte: Mott (1979: 68).

Destaca-se, no quadro acima, o peso da população negra: 48%, em 1697 e 33%, em 1772, contra 13,5% e 5,9%, respectivamente, de índios. É evidente tratar-se, aqui, de índios “mansos”, sob domínio branco, colocados à serviço ou aldeados em missões e, não do “gentio bravo”. São exatamente os primeiros que nos interessam. Estes são notavelmente reduzidos frente à população negra. Se somarmos a esta a população de mulatos, 0,9% e 21,1%, a dominância “negra” torna-se absoluta. Da mesma forma, pudemos constatar no Sertão do São Francisco uma reduzida população índia e, muito claramente, um esforço de sesmeiros e seus capatazes em expulsar, e mesmo chacinar, tribos inteiras.

Eis uma história que, ainda hoje, não se encerrou!

Num quadro seguinte, Mott apresenta a população das fazendas:

Composição da população das fazendas do Piauí - 1762

Tipo

Valor

%

Brancos

882

36,7

Índios

101

4,2

Negros livres

49

2,0

Mamelucos

4

0,1

Mulatos livres

 15

0,6

Mestiços livres

31

1,3

Escravos

1.324

55,1

Total

2.406

100

            Fonte: Mott (1979: 71).

Patenteia-se, assim, a dominância do trabalho escravo, com 55,1% da mão-de-obra nas fazendas de criação. As afirmações de Simonsen, Furtado e Caio Prado Jr., sobre a pecuária, deveriam ser revistas, face às novas evidências.

Uma outra generalização abusiva existente na historiografia tradicional refere-se à indistinção do termo vaqueiro, como todo aquele que trabalha na fazenda. O vaqueiro é homem livre, de prestígio e posição única na fazenda ou curral, tratado nos documentos por senhor, e se distingue claramente de seus homens. Estes, camaradas, cabras ou fábricas ocupam uma posição subalterna, inferior, e não tratam diretamente com os proprietários. Assim, o vaqueiro –rústico, forte e melancólico– não deve ser confundido com seus cabras.

O vaqueiro é o gerente das atividades econômicas da fazenda de criação e, nesta condição é, ainda, capataz. É pago através do sistema de partilhas ou sortes. Na Descrição do Sertão do Piauí, do Padre Miguel do Couto, aparece a seguinte informação: “...de 4 cabeças que crião lhe toca [ao vaqueiro] ha ao depois de pagos os dízimos, são obrigados quando fazem a partilha ao entregarem ao senhor da fazenda tantas cabeças como acharão nellas”. [20]

O meio de pagamento era a própria rês, uma a cada quatro crias nascidas por safra –o sistema de quarta (embora houvesse também ao quinto; a sorte que animal caberia ao vaqueiro era tirada no local) uma malhada– na hora da partilha, marcando com seus ferros os animais recebidos. Possui, ainda, o direito de criar seu gado, com livre acesso aos recursos, naturais ou não, da fazenda.

Neste sentido, o sistema de sortes representa quase um arrendamento do gado do fazendeiro, que coloca seus animais (usa-se o termo entrega) sob responsabilidade de um vaqueiro. Este deve, de qualquer forma, entregar o plantel com o mesmo número de cabeças que recebeu e o excedente‚ dividido, pela quarta parte, entre proprietários e vaqueiro. Assim, era como arrendar os animais e o trabalho de criação, contra o direito do arrendador tirar daí sua paga. O gado representava um pecúlio sobre o qual o vaqueiro aplicava seu trabalho, retirando em troca 1/4 do gado excedente e entregando ao criador um rebanho ampliado.

Muitos vaqueiros –mas, não os cabras ou fábricas– conseguiam, desta maneira, arrendar um sítio ou comprar uma situação e, assim, criar seu próprio gado. Outros, como na fazenda do Brejo Seco, vendiam suas sortes aos próprios fazendeiros, tornando-se, então, credores de quantias em dinheiro. O vaqueiro dos Canguçus (os senhores do Brejo Seco), Bernardo José da Silva, mereceu o seguinte registro: “...devo ao senhor Bernardo Sá das sortes 100$400”. O mesmo Bernardo criava animais seus e também de vizinhos, que lhe pagavam por isso. Da mesma forma, o Canguçu comprava a sorte dos vaqueiros das fazendas vizinhas, viabilizando a longa travessia dos rebanhos através dos sertões, o que seria menos garantido com pequenos lotes de animais (Santos Filho, 1956: 223); uma das anotações do senhor do Brejo Seco nos permite visualizar a teia de relações existentes: “...dinheiro q’ vou dando a Francisco... vaqueiro de Cacolé a conta das sortes q’ tenho com elle...” (Santos Filho, 1956: 226).

O vaqueiro trabalha, na maioria das vezes, com escravos; é assim, por exemplo, no Brejo Seco e no Piauí: “...em cada hua [fazenda] vive hum homem com hum negro e em algumas se achão mais negros, e também mais brancos mas no comum se acha hum homem branco só”. (Anônimo, 1900: 86). Além do vaqueiro, e seus homens, existe uma larga variedade de homens livres que prestam serviços aos currais e fazendas. Havia o passador, condutor das boiadas até as feiras; os tangedores e os guias, homens que asseguravam o contato permanente entre o Sertão e as feiras, nas bordas da Zona da Mata. Em algumas fazendas, dirigidas pessoalmente por seus proprietários, treinavam-se escravos que (como nos engenhos) iam substituindo os homens livres. Em Brejo Seco, o Canguçu empregou o escravo Luís como passador, para levar suas boiadas, e mesmo de vizinhos, até‚ as feiras (Santos Filho, 1956: 225). Também cavalos e jumentos eram tangidos por escravos, como o molato Isidro, da fazenda da Serra, em 1799. Outra característica era o emprego de jovens livres, de qualidades, filhos de fazendeiros, como vaqueiros de um lote de bois ou de animais de montaria. Da parte dos jovens livres tratava-se da possibilidade de amealhar um pecúlio que se constituiria em uma base para seus próprios sítios e/ou para a preparação do casamento, o enxoval do rapaz (Santos Filho, 1956: 302).

Um ponto original, ainda não destacado pela historiografia tradicional, refere-se às possibilidades dadas aos escravos de terem seus próprios animais. Numa versão sertaneja da brecha camponesa, vemos que os fazendeiros e sesmeiros não exerciam qualquer controle sobre a criação miúda: galinhas ou cabras podiam ser criadas e comercializadas livremente. Contar ou pedir contas de criação repugnava um vaqueiro ou criador, por envolver-se com sobejos de escravo, criança ou mulher. Porém, há um ponto ainda mais original: um número significativo de escravos criava cavalos. Estes, animais caros e nobres, comprovam uma fantástica capacidade de prover-se de um fundo ou pecúlio (um bom animal de sela, no final do século XVIII, valia, na Bahia, cerca de 30$000, enquanto uma rês valia cerca de 5$000).

Em Brejo Seco, os escravos Felix, João, Salvador, Luiz Courano e Francisco Crioullo aparecem como criando éguas. O negro Felix possuía, em 1760, 3 potros e 2 potras, enquanto os demais possuíam dois animais cada. Também escravos de vizinhos deixavam seus animais para criar no Brejo Seco, como a “creoulla Ana, escrava de Manuel Gomes que possui uma égua no rebalho da fazenda”; negros forros, como João de Sá e Francisco da Rocha entregavam seus animais para criar junto, no Brejo Seco. [21]

Vemos, assim, no seu conjunto, uma grande circulação de recursos –animais, dinheiro, sortes– na empresa sertaneja. As possibilidades, senão de enriquecimento, mas, de autonomia econômica no interior do sistema, eram grandes e não dependiam de investimentos próprios; é verdade, que o fato de ser filho d’alguém de qualidades, como os jovens vaqueiros do Sertão do Rio de Contas, ajudava, deixando entrever uma rede de compadrio (onde a ajuda na feitura do enxoval do rapaz era prova inigualável de amizade) que servia de base e amparava as relações de trabalho que se estabeleciam. Contudo, poucas vezes, no Brasil colonial, um jovem, forte e corajoso, tinha tantas chances de plantar as bases da sua própria autonomia. É bem verdade que abriam-se os caminhos, no máximo, de um sítio ou situação, posto que a fazenda ou o curral, com escravos e as matrizes, exigiam recursos e investimentos próprios. Na pequena produção escravista de alimentos, em torno de Salvador ou nas vilas “de baixo”, os jovens filhos dos roceiros, já com 12 ou 13 anos, eram virtualmente “catados” para servir na infantaria ou na marinha. Temerosos, os pais escondiam regularmente os filhos homens no mato. A diferença de possibilidades era notável, e caracteriza um universo bem mais nuançado que na agricultura de alimentos (Teixeira Da Silva, 1990: 123; Röhrig Assunção, 1993).

Da mesma forma, a amplitude da circulação de recursos permitia que escravos e forros tivessem um rendimento próprio, reconhecido e respeitado pelo senhor (como no Livro Razão do Brejo Seco), infinitamente superior aos rendimentos alcançados por seus congêneres no plantio de alimentos e criação de aves de terreiro –atividades características da brecha camponesa. Aqui, a autonomia do escravo se expressava na posse, criação e comercialização de animais nobres e caros –as montarias–, enquanto na plantation nunca se tinha acesso às culturas nobres como o açúcar. Aí, restringia-se a autonomia da economia própria dos escravos aos mantimentos, o que poderia integrar-se bastante bem ao cálculo do senhor na gestão dos recursos do engenho. É verdade, também‚ que as montarias não competiam com a atividade principal –o gado–, e via-se, de certa forma, como animais de estimação.

De qualquer forma, o mundo da empresa sertaneja surge mais aberto, menos hierarquizado e mais variegado do ponto de vista social. Mas, se as hierarquias do trabalho eram menos rígidas do que no mundo da plantation, os códigos de honra e as noções de ofensa estão à flor da pele. Os relatos de crimes e conflitos, quase sempre envolvendo famílias e clientelas, são comuns. Ao longo do vale do São Francisco tornou-se popular, até hoje, o uso da locução justiça-do-rio-de-baixo para nomear o bacamarte, expressão maior da defesa da honra.

Vaqueiros, camaradas, cabras e fábricas; passadores, tangedores e guias; negros, escravos e forros; caboclos quase todos; muitos mamelucos; e mulatos, em grande número, formam um universo próprio, com dinâmica original e constituem-se em elementos de uma cultura rústica, que ainda hoje resiste à modernidade dissolvente.

A fazenda de criar: uma análise da empresa sertaneja

A maioria das análises da fazenda de criação sertaneja refere-se, de imediato, às grandes sesmarias distribuídas pela Coroa. Assim, os imensos latifúndios, de dezenas de léguas, são tomados como sendo, em si, as fazendas. Da mesma forma, a descrição fornecida, em 1711, por Antonil, assume um caráter normativo da análise: “...há currais de duzentas, trezentas, quatrocentas, quinhentas, oitocentas e mil cabeças; assim, há fazendas, a quem pertencem tantos currais, que chegam a ter seis mil, dez mil, quinze mil e mais de vinte mil cabeças de gado...” (Antonil, 1955: 271).

Tal descrição, ao lado da caracterização dos dois grandes domínios mais conhecidos –a Casa da Torre, dos Ávilas, e a Casa da Ponte, dos Guedes de Brito– tendem a promover uma generalização da idéia da fazenda de gado como um imenso latifúndio. Trata-se, aqui, de um notável equívoco, confundindo-se o grande domínio (configurado pela jurisdição, ou seja, o exercício de direitos de senhorio) e a exploração direta (o uso dos recursos econômicos da terra). Um grande domínio não configurava uma exploração, seja ela direta ou indireta. Embora o senhor da grande sesmaria pudesse cobrar direitos (foro e alguns outros, como na sucessão), não explorava diretamente toda a área. A unidade básica de exploração poderia ser uma área arrendada como um sítio, uma situação ou uma fazenda do próprio sesmeiro. Contudo, no caso das sesmarias gigantes, nunca era o conjunto das terras doadas que se constituía em exploração. [22] Nenhum dos grandes sesmeiros, mesmo os conquistadores das novas terras, como Domingos Affonso, o Sertão, exploraram diretamente a totalidade produtiva de suas terras (evidente que ao falar em totalidade não nos referimos a áreas inóspitas). As terras deste desbravador, por exemplo, aparecem logo após a sucessão jesuítica, com mais de 50 sítios arrendados. Muitos sesmeiros, é verdade, mandavam prepostos, livres ou escravos, para montarem currais no Sertão. Continuamos, neste caso, face a uma forma de exploração direta. Mas, a maioria preferia –e este é o elemento novo que queremos destacar–, arrendar as terras recebidas ou recém-conquistadas. Este era o objetivo básico dos desbravadores ao lutar por imensas sesmarias: arrendar as terras recebidas. Cabe aqui, portanto, uma distinção fundamental no regime de terras. Imensos tratos de terras não implicavam em grandes explorações. Muitas das grandes sesmarias, na Bahia, Sergipe, Ceará e Piauí, foram retomadas e redivididas, posto que ao fim de um certo tempo nenhuma atividade fora encetada, inclusive de poderosos, como os Ávila, da Casa da Torre.

Grandes domínios, a Casa da Torre é o melhor, compunham-se de inúmeros sítios, denominação usual das terras arrendadas no Sertão. Nos domínios da Torre são 120 sítios, fazendas ou logares arrendados, com garantias tais que a expulsão dos ocupantes era rara e moralmente condenável. [23] Estas unidades menores (sítios, currais ou fazendas) no interior da sesmaria, aqui considerada como domínio, eram as empresas produtoras e, deveriam, assim, ser a base da análise do sistema pecuarista, bem como de qualquer outro sistema agrário. Se, tomarmos, por exemplo, as fazendas componentes da doação, no Piauí, de Domingos Affonso aos jesuítas podemos produzir o seguinte quadro:

Dimensões das fazendas – tombo de terras de 1811

Módulo (hectares)

Freqüência

1-10.000

2

10.001-15.000

9

15.001-20.000

1

20.001-25.000

8

25.001-30.000

6

30.001-35.000

1

35.001-40.000

1

40.001-50.000

1

+ de 50.001

2

Sem ref.

4

TOTAL

35

O uso de outro critério, como o número de reses por fazenda, também‚ obriga a revisar a idéia de imensas explorações. No Tombo de Terras de 1811, as 35 fazendas acima contavam com 50.760 cabeças de gado, algo como 1.450 animais por fazenda. Em outro Tombo, de 1852, aparecem 61.170 animais, com uma média de 1.747 reses por fazenda, muito aquém das imensas cifras oferecidas por Antonil. [24] Hoje, os dois municípios fundados pelo Mafrense, Oeiras e Floriano, com os recursos modernos e novos métodos de manejo do gado, possuem cerca de 40 e 35 mil cabeças, respectivamente. É de estranhar que no século XVII ou XVIII os rebanhos fossem maiores e a capacidade de carga dos pastos superior, como uma generalização das informações de Antonil permitiria supor. Mott analisando os mesmos dados produz o seguinte quadro:

Número de animais por fazenda (século XVIII)

N. de cabeças

Freqüência

até 1.000

8

1.001 a 2.000

 8

2.001 a 3.000

10

3.001 a 4.000

 3

4.001 a 5.000

 1

5.001 a 6.000

 1

            Fonte: Mott (1979: 363).

Mott conclui que “...aparentemente não há correlação direta entre o número de léguas e o número de cabeças efetivamente possuídas”. (Mott, 1979: 72). Uma boa comprovação disso é o fato de que a maior das fazendas, dita do Julião, com seus 252.000 hectares ter apenas 1.200 cabeças e, a do Castelo, com poucos 14.400 hectares criar 6.000 animais! Devemos, assim, insistir na ausência de qualquer relação direta entre dimensões e capacidade de sustentação do plantel.

Resta esclarecer, então, a ânsia por terras manifestada por sesmeiros e desbravadores. A resposta deveria basear-se na escassez dos recursos naturais, fundamentais para a pecuária. A terra era, sem dúvida, o elemento básico. A existência, contudo, de outros recursos adequados à criação é que tornava uma terra apta, ou não, para a pecuária. A presença permanente de água, como rios, lagoas perenes, poços ou cacimbas, bem como os famosos lambedouros, jazidas de sal, qualificavam as terras e permitiam o estabelecimento de uma unidade de exploração.

Um número significativo de sesmarias requeridas no Piauí, Ceará e Sergipe fazia clara menção ao fato das léguas doadas deverem ser contadas por terras boas, pastos e campos, para completar a área solicitada. Assim, constituíam-se muitos domínios descontínuos, onde as terras por demais áridas, montanhosas ou de caatinga suja eram “puladas”. A sesmaria de 10 léguas dada a Bernardo Vieira Ravasco, em 1655, marcava sua extensão a partir das terras do Padre Antônio Pereira “...e caso não sejam capazes de cultura as 10 léguas serão tomadas em qualquer parte da serra e campos que junto a elas se acharem”. [25] Já a sesmaria de Garcia D’Ávila, no mesmo livro de sesmarias, e doada em 1659, fala “...que se ressalvarão também de sorte que as 10 léguas de cada um [sesmeiros] sejam de pastos e terras, onde possam criar gados...” A data de Francisco de Brá, doada no mesmo ano, fala em 20 léguas “...todas juntas ou separadas no caso das serras ou penedos proibirem a reunião”. [26]

Além de uma certa dispersão dos domínios assim estabelecidos, surgiam também, em seus interstícios, terras maninhas, por onde infiltravam-se posseiros.

Imensas sesmarias, reunindo vastos tratos de terras, podiam significar, o que não é detectado pela historiografia tradicional, o esforço em se apropriar de recursos naturais raros, e não exatamente de terras. A menção freqüente nas cartas de sesmarias de terras para criar, pastos bons ou terras úteis confirma essa afirmação. O mesmo Antonil, por exemplo, nos fala que as fazendas “...se situam aonde há largueza de campo, e água sempre manente de rios ou lagoas”. Teodoro Sampaio descreve com detalhes a formação e exploração, pela pecuária, dos lambedouros do Médio São Francisco, como ainda os grandes trabalhos de irrigação e construção de cacimbas nos tabuleiros secos da Chapada da Diamantina. [27]

Sítios e fazendas no interior dos domínios acompanham, assim, os recursos naturais existentes, insuficientes para transformar toda a extensão de terras em uma só exploração aptos, contudo, para manter uma unidade mais restrita.

Longe de qualquer noção de prestígio como elemento explicativo da grande propriedade pecuarista, e em geral da grande propriedade agrária no Brasil-colônia, as imposições ecológicas determinaram, desde cedo, os traços fundadores da paisagem sertaneja. De certa forma, os grandes domínios sertanejos assemelhar-se-iam a desertos pontilhados de oásis de alta concentração populacional, humana ou não. Assim, cálculos sobre a relação animal/hec-tare, e daí a capacidade de carga dos campos, teria pouco significado, se tomarmos o conjunto da superfície possuído, sem dar conta que a existência de recursos naturais raros impunham dimensões bem mais restritas para a exploração de fato.

Devemos, além deste suposto ecológico, aliar a esta explicação um outro elemento fundamental: o sistema de arrendamentos. A sua universalidade, inclusive em outros setores, como açúcar, tabaco e a mandioca, demonstraria a existência, no escravismo, de um mecanismo de apropriação do sobretrabalho, para além da renda originária do trabalho escravo, baseado no monopólio da terra e de seus recursos. Assim, a renda da terra surgia como um mecanismo de enriquecimento do grande senhor, sem qualquer investimento prévio necessário como, por exemplo, na compra de escravos. Na questão da terra, e para auferir as rendas derivadas do seu arrendamento, bastava influência política e um certo uso da força, o que garantia o monopólio de vastos tratos de terras.

Nem todas as fazendas são iguais. Algumas são somente currais, onde o gado é reunido e se faz a ferra ou a marca. Aqui, curral é sinônimo de pasto. Em alguns outros encontramos a tapera do vaqueiro e seus cabras, com as atividades concentradas na malhada mais próxima. Uns –os currais– são como satélites distantes de uma grande fazenda; outros, são estabelecimentos de senhores residentes em Salvador ou em engenhos do Recôncavo da Bahia. A maioria, entretanto, é constituída de estabelecimentos autônomos, caracterizados pela baixa inversão de recursos financeiros, quase sempre restritos apenas à compra de matrizes e dos escravos. Matrizes e escravos são, em conjunto, os investimentos básicos de um curral, a sua parte mais onerosa, sendo que, de longe, o escravo é mais caro e as reses podem ser conseguidas por mecanismos de pagamento de trabalho, de compadrio ou outros laços de clientelismo. Em sua quase totalidade são currais foreiros, ora chamados de curral ou por qualquer outra denominação sinônima (curralinho, malhada, brejo, campos, tapera, fazendinha, cafundó, manga, cercadinho, aguada, olho d’agua são algumas das variadas e pitorescas designações existentes nos inventários e registros de terras); ora, eram chamados de sítios. A grande maioria possuía 4.356 hectares, longe, portanto, do gigantismo médio das primeiras sesmarias. Pagavam de foro, no início 10$000 réis, mas, como vimos, o valor tendia sempre a variar, de região em região, em torno de 2 ou 3 % do preço da terra.

Relação entre o valor do foro e do sítio, por ocorrência

0,1-0,9%

1-2%

2,1-3%

3,1-4%

4,1-5%

5,1-6%

S. Ref.

2

29

29

15

2

1

28

Fonte: Tombo das Terras e Prédios que pertencem a Casa do Senhor da Ponte... 20 de janeiro de 1819. Anais do Archivo Publico da Bahia, v. XI, p.122-130.

Existiam, ainda, as fazendas de engorda ou invernadas, localizadas estrategicamente nas bordas do sistema. Umas ficavam junto às grandes feiras, como Capoame ou Feira de Santana, outras junto às grandes charqueadas, como em Aracati. Não criam, no seu sentido pleno; compram o animal vindo do Sertão –no mais das vezes cansado e magro– sem opções de venda para os passadores, estes tão cansados e magros quanto o seu gado. É aí que se engordam as boiadas, em pastos plantados e cuidados e, só então, revendem o gado para os marchantes. Assim, o boi magro, e algumas vezes estropiado pela viagem, é vendido barato nas invernadas e depois, já gordo, revendido a bom preço.

Poderia acontecer, entretanto, que algumas das invernadas, e ao que parece eram poucas, constituírem-se em verdadeiras fazendas: com uma Casa Grande e um senhor residente que administra seus negócios, como os Canguçus do Brejo Seco. Possui suas roças e “miudezas”, que sustentam a casa, escravos e empregados. Um traço fundamental, entretanto, distinguia os currais e invernadas das fazendas: a dedicação a outras atividades que não exclusivamente a pecuária bovina. Muitas fazendas possuem campos de cultivo, a maioria de fumo, como nos tabuleiros úmidos e brejos da Bahia, ou de algodão, já no Sertão seco da Bahia, Piauí e Ceará.

Muitos senhores de gado farão fortuna, no final do século XVIII, com o comércio do algodão. Fazendeiros do Ceará e do Sertão baiano mesmo plantando muito pouco algodão eles próprios, comprarão, porém, o produto dos vizinhos menos capitalizados, em especial dos pequenos produtores escravistas, e dominarão a intermediação do comércio algodoeiro.

Em fim, a fazenda de criar, e suas variações, era o ponto nodal de uma paisagem aberta, destituída de cercas, onde predominam os campos e caatingas. Do alto das Chapadas do Piauí e do Ceará , e dos tabuleiros da Bahia até o norte das Minas Gerais, podia-se vislumbrar os pontos de condensação de um amplo sistema de criação extensiva. Roças de alimentos; a criação de pequeno porte e as lavouras comerciais do algodão e do fumo complementariam o cenário da pecuária sertaneja.

Feiras: os mecanismos de comercialização da pecuária

O abastecimento de carnes-verdes aos centros urbanos em expansão, como Salvador e Recife, bem como as áreas rurais extremamente populosas e ricas, como o Recôncavo, era feito por boiadas. O boi-em-pé‚ deveria vir dos Sertões do Piauí, do São Francisco e do Rio de Contas em direção à Salvador, enquanto do Ceará e Rio Grande do Norte as boiadas demandavam o Recife. As longas viagens, as condições precárias dos pastos existentes pelos caminhos, levavam a uma forte depreciação do rebanho, vendido, quase sempre, por preços aviltados. Surgem aí as primeiras crises de abastecimento centradas no comércio das carnes-verdes, com um formato próprio, como em 1702 a crise de abastecimento de carne em Salvador (Teixeira Da Silva, 1990: 189). Nas reclamações feitas então fica claro que o gado chegava ao Recôncavo, em especial às vilas de Água-fria e Socós e não continuava a viagem em direção à Salvador. Davam-se, aí, duas ordens de fenômenos. De um lado, a concorrência –freqüente ao longo do século XVIII– entre os mercados da cidade de Salvador e os mercados do Recôncavo; por outro lado, tinham se estabelecido em tal região fazendas de engorda ou invernadas, onde o gado deveria recuperar seu peso, evitando o prejuízo do abate do boi magro. Ambos os mecanismos acabavam por reter o boi nas vilas do Recôncavo, originando sua desaparição dos mercados da cidade de Salvador.

Um dos mais antigos caminhos de gado, já praticado em 1669, serve de exemplo das longas marchas do gado: do São Francisco até Jeremoabo e, então, em direção a Ribeira do Pombal, Alagoinhas e, daí, até Salvador.

A Estrada Real do Gado ligava, por sua vez, os Sertões do Piauí, através de Bonfim, Queimadas, Coité, Serrinha e, ainda uma vez, Alagoinhas à Salvador.

Ao longo de tais caminhos surgem as grandes feiras de gado, como Capoame, ou Feira Velha, e a de Aramari. Da mesma forma, surgem ranchos, rodeados de pequenas roças, onde se compram as reses estropiadas, alberga-se e alimenta-se os vaqueiros e viajantes. Algumas vilas chegam a florescer, no século XVIII, com esse papel de suporte ao longo das rotas, como Serrinha, Ribeira do Pombal e Jeremoabo.

Em Serrinha, por exemplo, onde reúne-se uma grande quantidade de invernadas, o gado comprado passa um período de até seis meses de engorda, e só então é colocado à venda. Em muitas dessas regiões começou-se, em data não definida, a plantar capim (o sempre-verde e o de angola) como garantia para os campos de engorda. Dado o volume do movimento anual não se deveria mais confiar na bondade da natureza, impondo-se assim a necessidade de pastos artificiais.

A feira de Capoame foi, sem dúvida, o mais importante mercado colonial de alimentos, ao lado de Nossa Senhora de Nazareth das Farinhas. Coube, ainda uma vez, a Mott a melhor análise dos mecanismos de comercialização de Capoame, com o levantamento da documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino. Situada a 8 léguas de Salvador, tornou-se, por bastante tempo, o principal centro de comércio de gado na colônia, controlando em especial, as fazendas do São Francisco e do Piauí. [28]

Em São João da Mata organizou-se, ainda no século XVIII, uma outra feira de gado, voltada para o abastecimento do Recôncavo. A vila de Goiana, junto a Cruz das Almas, Pernambuco, reunia o gado dos Sertões de Fora, em direção ao Recife. No Sergipe, Laranjeiras, centro açucareiro, reúne uma imensa feira de gado, abastecendo os engenhos da capitania, enquanto a feira de Porto da Folha concentrava, à beira-rio, os artigos do Sertão.

As grandes feiras da Bahia, como Nazareth, Capoame, Jequié e São João da Mata, foram pouco a pouco substituídas, no alvorecer do século XIX, por Feira de Santana. Esta, transformou-se em um poderoso ponto de articulação entre duas zonas distintas: os tabuleiros, mais ricos e agriculturáveis, e o Sertão, mais seco e pastoril. Santana articula com Salvador a região da Chapada da Diamantina, os sertões de Vitória da Conquista e Itambé, criando na sua periferia, uma forte região de invernadas. Em pouco tempo, estenderá sua região de influência ao Piauí, Sergipe, Alagoas, Goiás e o norte de Minas Gerais. No seu mercado o gado é o principal gênero de comércio, bem como seus derivados e o artesanato do couro.

O gado mais magro, de qualidade inferior, criado no Sertão mais árido do São Francisco se dirige, por sua vez, para a feira de Arcoverde –centro de comercialização da pecuária da caatinga.

As boiadas chegavam nas feiras conduzidas por um passador, contratado pelo criador e pago, ao tempo de Antonil, com um cruzado por rês entregue. Na verdade, o pagamento era variado, estabelecido previamente, por acordo falado. O senhor da fazenda do Brejo Seco utilizava um escravo de confiança, “o meu Lucas”, mulato, como passador. Nestas ocasiões, o escravo Lucas conduzia, também, bois dos vizinhos e animais criados por outros escravos.

Por volta de 1740, todo o sistema de comercialização sofreria uma mudança radical. Fazendeiros e comerciantes de gado do norte do Piauí e do Ceará , sempre prejudicados pela concorrência dos Sertões da Gurguéia, Piaugui e São Francisco –mais próximos dos centros consumidores– passaram a salgar e secar as carnes. Secas, conservadas com sal, as carnes ampliavam enormemente seu raio de comercialização. As salgadeiras, também chamadas fábricas ou charqueadas, expandiram-se rapidamente na vila de Santa Cruz do Aracati. Aí, reuniam-se as condições ideais para a nova indústria: o sal abundante, a ligação direta com o interior através do rio Jaguaribe, a situação portuária da vila. Sua ação estende-se em direção a Icó e Inhamuns, no Sertão. O exemplo é seguido nas vilas vizinhas: Parnaíba, Acaraú, Açu e Mossoró formam importantes charqueadas.

Mesmo os mercados mais distantes, ao sul da Bahia, recebem a carne-seca do Ceará, bem como o abastecimento de naus e tropas, o comércio atlântico, constituir-se-iam rapidamente em mercados cativos. Em pouco tempo, as boiadas que vinham dos sertões de fora para o Recife, começaram a rarear, em virtude da demanda das charqueadas. Sucessivas crises no abastecimento das carnes-verdes no Recife levarão as autoridades coloniais a proibir as charqueadas do Rio Grande, tornando esta capitania cativa dos interesses do abastecimento de Pernambuco. Aracati e Parnaíba continuarão, ao longo do século XVIII, a dominar o mercado de carnes-secas, até o Rio Grande de São Pedro constituir-se em um centro especializado de produção.

Caracteristicamente a pecuária constituía-se em um sistema cujos mecanismos de comercialização não se encontravam sob seu controle. Característico no sentido de ser próprio da economia de tipo colonial (no seu todo e em seus subsistemas) a dominação dos mecanismos de comercialização por segmentos de comerciantes especializados, no caso do gado, os marchantes.

As boiadas levadas para as feiras não eram, de imediato, abatidas. Deveriam, como vimos, permanecer um tempo variado nas fazendas de engorda, onde se garantia o aumento do peso dos animais e, conseqüentemente, um ganho marginal. Um outro elemento interveniente desempenhava um papel importante: a associação, e mesmo a simultaneidade, na ação entre donos das invernadas e os marchantes. Estes últimos, desta forma, conseguiam um fantástico poder de barganha e de pressão. Não só obrigavam o passador da boiada a vender pelo preço que impunham, como ainda poderiam reter os animais no pasto para pressionar os preços do varejo, no mercado consumidor. Já em 1636, o relato do holandês Adrian Verdonck, nos fala que os marchantes que compravam o gado em Goiana “...conservavam lá o gado por causa de uma muito bela e grande pastagem” (Verdonck, 1981: 36); a situação era muito parecida na área de Capoame.

As autoridades coloniais procuraram, através de bandos e posturas, impedir o monopólio dos marchantes, da mesma forma como controlavam o comércio da farinha de mandioca, reprimindo violentamente os chamados atravessadores. Ora estabeleciam pastos comuns, como no Rio Vermelho, ora abriam os talhos municipais aos criadores para o abate de seus animais. Nenhuma das medidas, contudo, resultava em benefícios imediatos. Tanto os pastos comuns como o acesso aos talhos supunham a permanência dos boiadeiros por longo tempo fora de suas fazendas e currais; no caso dos talhos, impunha-se, dado as características do trabalho, a utilização de ampla escravaria, o que evidentemente encareceria o conjunto das atividades. [29]

A solução encontrada, como no caso da farinha de mandioca, foi o tabelamento dos preços, então denominado de taxa. O Senado da Câmara da Bahia, seguido de demais vilas do Recôncavo, como também no Recife, tabelam permanentemente os preços da carne-verde no varejo. Quando foi permitido um aumento, em 1756, faziam mais de 100 anos que o preço da arroba da carne-verde não variava no varejo!

A plena liberdade de preços da carne, como da farinha, só foi tentada na administração de Dom Fernando José de Portugal, já no final do século XVIII e no bojo de uma série de medidas reformadoras influenciadas pelo Iluminismo tardio.

Mesmo não sendo o preço do boi-em-pé tabelado, o controle do preço no varejo refletia-se, obviamente, de imediato no processo de comercialização das feiras, sob o domínio dos marchantes. Estes, na maioria das vezes, arrendavam os talhos e açougues municipais completando, assim, sua ação monopolista. Desta forma, os criadores de gado –como os roceiros da mandioca– sofreram um processo constante de subvaloração de seu produto em favor dos comerciantes que atravessavam o gado. Todo o processo de comercialização ficava, desta forma, sob controle do capital comercial, de pequeno porte porém eficiente na monopolização das atividades ligadas ao abastecimento. Da mesma forma, lucravam todos aqueles que compareciam ao mercado como consumidores, em especial senhores de engenhos, com suas escravarias, bem como o poder público, com suas obrigações com soldados e a matalotagem das naus.

Os mecanismos de comercialização não discriminavam apenas alguns segmentos em favor de outros, como no caso dos produtores face aos comerciantes e consumidores. Regiões inteiras, como a capitania do Rio Grande do Norte, eram também duramente atingidas, já que nesta região era suprimida qualquer opção de comercialização que não o boi-em-pé, com preços tabelados, para o mercado do Recife e dos ricos engenhos de açúcar da Zona da Mata. Também lucravam os produtores e exportadores de tabaco que usavam os couros para acondicionar o seu produto durante as viagens atlânticas. Assim, grande parte do valor gerado na empresa sertaneja era apropriada pelo setor exportador, por meio de mecanismos extra-econômicos: tabelamento e requisições ao preço oficial.

Contrariamente, as mercadorias compradas pelos criadores –escravos, ferros, cravos, tachos, armas, sal fino, etc.– eram praticadas em preços livres ou do mercado colonial, quase sempre protegidos pelo monopólio colonial de fornecimento, no caso extremamente favorável aos comerciantes portugueses que controlavam a importação atlântica. Dava-se, assim, o típico mecanismo de contato entre atividades voltadas para o mercado interno e aquelas voltadas para o mercado externo, subsidiadas por ações da Coroa e dos poderes locais. Transferia-se uma parte do sobretrabalho da pecuária para as atividades ligadas à plantation e, ao mesmo tempo, impunha-se preços elevados aos produtos consumidos pela fazenda.

A inter-relação entre os dois sistemas produtivos, a pecuária sertaneja e a plantation, concretizava-se, assim, através de mecanismos de circulação da renda, favorecendo e subsidiando os setores exportadores. Os criadores, entretanto, na sua condição de homens de qualidades –ao contrário dos roceiros de mandioca, no mais, homens livres pobres– conseguiam uma situação um pouco melhor. O boi-em-pé não era tabelado –a mandioca era tabelada na roça– e seus criadores possuíam a liberdade de vender “na porteira”, enquanto os roceiros eram proibidos de ir às feiras locais ou vender ao longo das rotas, acabando, por fim, sujeitos ao regime único, corrupto e caro, do Celeiro Público da Bahia. [30]

De qualquer forma, ambos os seguimentos foram alvos de políticas que garantiam a reprodução das condições coloniais, em especial da grande lavoura exportadora, sempre em detrimento dos segmentos subalternos, no caso, os produtores de alimentos em uma economia de tipo colonial.

Flutuações e crises: o funcionamento do sistema

A prosperidade e, apesar da rudeza da vida, a rapidez com que a pecuária trazia riquezas incentivavam o surgimento de novas áreas de criação. A entrada no mercado de novos criatórios, como da Ilha de Marajó, provocavam flutuações no ritmo de crescimento e alterações significativas de preços do boi-em-pé. Os núcleos de povoamento da Amazônia, por exemplo, foram tradicionalmente abastecidos por Parnaíba, que comandava os sertões ocidentais do Piauí, muito distantes de Salvador e do Recife. Quando, a partir de 1765, Marajó se torna apta a abastecer Belém inicia-se uma forte crise nos criatórios ao longo do rio Parnaíba. Já em 1767 tanto as fazendas como as charqueadas deixam de comercializar seus produtos nos mercados tradicionais da Amazônia.

Era a crise.

O domínio absoluto do alto sertão sobre o mercado de carnes-verdes foi, regularmente, limitado e circunscrito pelo surgimento de núcleos produtores diretamente vinculados aos mercados consumidores vizinhos. Belém, com seus núcleos abastecedores de caráter local, ilustra bastante bem um dos mecanismos básicos das flutuações do mercado, inclusive com a possibilidade de evoluir em direção a uma crise. A diminuição da procura de um determinado alimento, no caso as carnes, mesmo em áreas relativamente pequenas, como Belém, promovia alterações acentuadas no mercado, quando este se apresentava de forma especializada. Quando a concorrência era causada pelo advento de um novo centro produtor claramente local (como Marajó), as áreas tradicionalmente fornecedoras deveriam, com graves prejuízos, buscar novas saídas, visando, assim, compensar a mercada de um mercado até então consolidado. Muitas das perdas de mercados, ou de suas reorganizações, não eram definitivas. Existia, é bem verdade, a possibilidade, cíclica, de retomar o velho mercado, em virtude de crises de produção no novo criatório, principalmente em razão de pestes ou epizootias. Uma fonte única, como Marajó, tornava todo o sistema de abastecimento vulnerável. Assim, os invernos rigorosos, por exemplo, inundavam as “terras baixas” na Ilha, o que provocava forte morticínio do gado. Nestas ocasiões a Parnaíba voltava a ocupar seu lugar de fornecedor, inclusive elevando seus preços, num evidente mecanismo compensatório.

 A este elemento aleatório na recuperação de mercados devemos somar um outro fator: o crescimento demográfico. Nem sempre os novos criatórios conseguiam acompanhar a expansão demográfica local, como em Belém no início da exploração intensiva da borracha. No século XIX o Pará, agora com Belém tornada metrópole de toda a Amazônia, voltará a ser abastecido por Parnaíba, que complementa o gado de Marajó (Lima, 1987: 120).

Em ambas as situações, a grande experiência acumulada pelas antigas áreas de criação, bem como a abundância de fatores de produção, permitiriam uma rápida reocupação das velhas funções abastecedoras.

Uma situação diversa se dá quando surge um centro produtor de caráter regional ou inter-regional. Enquanto Marajó era apenas um núcleo local, a entrada do Rio Grande de São Pedro, entre 1777-80, no mercado representa uma alteração estrutural permanente. Núcleo de criação já tradicional, o Rio Grande –ao lado dos Campos de Coritiba– mantinha-se, entretanto, por demais afastado dos mercados tradicionais da pecuária sertaneja, em virtude das dificuldades de transporte e de manipulação, para constituir-se em alternativa real. Assim, mantinha-se como núcleo abastecedor das capitanias do centro, o Rio de Janeiro e Minas Gerais, através de São Paulo.

A concorrência com os criatórios do Nordeste era quase nula. Porém, a organização das charqueadas gaúchas, em torno de Pelotas, altera profundamente a participação de cada centro produtor nos diversos mercados regionais. O Rio Grande se organizava como centro especializado, com capacidade de atender mercados de bom porte, distantes e em expansão. Nestas condições instaurava-se uma real concorrência entre os centros produtores. Qualquer alteração, mesmo leves flutuações, na demanda ou nas condições de produção poderia acarretar mudanças profundas na participação de cada um nos mercados.

Ora, o elemento aleatório existia, em detrimento do Sertão. Enquanto o gado do sul contava com melhores pastos e manejo mais adequado, o gado do Sertão estava sujeito às secas periódicas.

Um levantamento das principais secas da região, entre 1605 e 1915, nos mostra que os anos de 1705, 1711 e 1715 foram anos de seca; em 1723-25 houve uma grande seca atingindo os sertões da Bahia, Pernambuco e Piauí; em 1777-89, outra grande seca, seguida de verdadeira calamidade, como a seca de 1790-94, que atingiu todo o Nordeste; mais uma vez deu-se o flagelo em 1805-1807. Descrições coevas nos falam da perda dos pastos em 1711 e 1728, com criadores sendo obrigados a liquidar o que restava dos rebanhos, para evitar a perda total. A maioria não conseguia realizar a travessia até‚ as feiras, que, por sua vez, feneciam por falta do que vender.

No mais das vezes, os currais eram totalmente esvaziados. Studart, ao descrever a seca de 1777-78, nos fala que “...nesse ano manifestou-se uma seca, em conseqüência da qual ficou reduzido a um oitavo o gado da capitania [Ceará] e suas vizinhas” (Studart Filho, 1937).

Em três ocasiões, no século XIX, as secas destruíram os plantéis de forma a quase impossibilitar a retomada das atividades. Após a seca de 1824-25 inúmeros currais no Sertão do Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí tornaram-se baldios; outras fazendas, como na Bahia, com a produção/ano de 1000 bezerros ficaram reduzidas a 20 (Santos Filho, 1956: 227). Na seca de 1861, no Ceará, inúmeros currais e fazendas deixaram de existir.

O Livro do Gado, da fazenda do Brejo Seco, no Rio de Contas, nos dá uma perfeita visão do impacto da seca nas condições de produção:

Bezerros nascidos na fazenda do Brejo Seco, Bahia

Anos

 Bezerros

Anos

 Bezerros

1792

12

1802

220

*1793

 22

1803

291

1794

29

1804

358

1795

150

1805

198

1796

 207

1806

 52

1797

 253

*1807

72

1798

195

1809

84

1799

 325

1810

96

1800

233

1811

68

 1801

316

   

* Anos de seca.

A seca de 1806-7 produz uma violenta queda no número de crias nascidas, marcando o início da decadência do Brejo Seco (a variação de ano para ano é devida ao longo período de gestação das vacas). O poderoso Canguçu anota, com parcimônia e estoicismo sertanejo, no seu Livro de Gado: “...perdy 300 cabeças de gado de criar com a seca”. A permanência da seca, que dura até 1808, irá compelir inúmeros fazendeiros a se desfazer das reses que restam, cerca de 150 animais no Brejo Seco, que são vendidas na feira de Maracás e, outros 183 bois, em Salvador.

Com a seca, quase se extingue a criação nos Sertões do Rio de Contas.

Para recuperar o rebanho comprava-se animais novos, seja em Minas Gerais, seja no Piauí. Para os grandes senhores, com fazendas diversificadas e créditos, havia sempre a possibilidade de recompor o plantel. O Parnaíba desempenhava um papel de monta como reservatório capaz de fornecer matrizes nos momentos de crise, graças a perenidade dos campos e pastos ribeirinhos (o folclore registra: meu boi morreu! – manda buscar outro lá no Piauí).

Entretanto, para um número significativo de unidades especializadas, em especial os produtores mais humildes, a seca representava pura e simplesmente, a desaparição enquanto agentes econômicos.

Tal como nas crises de subsistência que no Agreste e na Zona da Mata atingiam as roças de mandioca, as secas eram um fator estrutural de crise; eliminavam periodicamente um certo número de unidades produtivas, as mais frágeis, de recursos mais escassos e, ciclicamente, atingiam o próprio coração do sistema produtivo, provocando, então, mudanças inesperadas. Nestas condições, a capacidade de poupança, acumulação e reinvestimento no interior do sistema eram seriamente limitadas.

A grande seca de 1790-94 foi um destes momentos. Ao atingir fortemente os criatórios cearenses, em especial o Jaguaribe e Icó, deixam as charqueadas de Aracati sem fornecimento de carne, paralisando inteiramente suas atividades. Ocorre, que neste momento as charqueadas gaúchas estão plenamente organizadas e ocupam rapidamente os mercados de Salvador e do Recife. Mesmo Parnaíba, aproveitando-se da crise no Ceará, ampliará, em direção a São Luís e Belém, seu raio de ação.

Quando em 1795 recomeçam, timidamente, os abates em Aracati, os mercados tradicionais do charque cearense já estão ocupados. A produção gaúcha chegar ao próprio Ceará. [31] Por fim, a concorrência gaúcha se fará sentir na Parnaíba, com o fechamento de charqueadas entre 1820 e 1827, também após uma série de duras secas.

As fazendas do Sertão do Jaguaribe, de Icó e de Inhamuns, bem como ao longo do Parnaíba, jamais se recuperarão do golpe.

Poderíamos, assim, falar em duas formas de flutuações causadas pela ampliação da oferta: a) uma circunscrita a pequenos mercados locais, que poderiam, eventualmente, continuar comprando marginalmente nos velhos centros fornecedores; b) uma concorrência especializada, de porte inter-regional, resultante do surgimento de outro centro produtor de grande raio de atuação.

A interveniência de secas, ou fortes invernos, poderia favorecer um dos núcleos produtores, eliminando provisória ou permanentemente várias unidades produtivas do núcleo concorrente. Sem este fator aleatório a concorrência se daria, muito provavelmente, em termos de qualidade e preços (vinculados aos custos e técnicas de manejo e transporte). Com as secas, a retirada temporária de núcleos atingidos poderia representar a perda permanente dos mercados tradicionais. No caso de Aracati e Parnaíba, em função do baixo nível técnico e a reduzida capitalização das fábricas não existia a possibilidade de uma retomada técnica do mercado (modernização, investimentos). Novamente a pecuária nordestina, no alvorecer do século XIX, restringir-se-á às carnes-verdes.

O sistema, que chegou a ter porte quase continental, envolvendo o amplo comércio atlântico (inclusive com a África), será, assim, reduzido às suas dimensões regionais, perdendo, desta forma, a oportunidade de integrar-se aos mecanismos inter-regionais de produção de renda. Flutuações de mercados e secas continuarão como mecanismos básicos da crise da pecuária nordestina, agora reduzida a um complexo regional, sofrendo a concorrência de outros centros em suas próprias áreas produtoras.

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Notas

[1] Para um debate das condições originais da escravidão colonial ver Domar (1970: 18-32); Nieboer (101-122); Kloosterboer (1960), em especial Introduction. Os autores aqui citados exercem uma larga influência sobre os trabalhos de história agrária desenvolvidos no Brasil.

[2] Para uma discussão sobre a formação da malha fundiária colonial, seus mecanismos e funções na apropriação da renda da terra, ver Teixeira Da Silva (1990: 318 e ss).

[3] Sesmaria concedida a Garcia D’Ávila e outros... Bahia, 1659: Livro Primeiro de Sesmarias, f.123, Códice 155, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

[4] Sesmaria concedida a Garcia D’Ávila e outros... 1659: idem.

[5] Sesmaria concedida ... 1690: idem.

[6] Sesmaria concedida a Domingos Affonso, o Sertão... em 1674: idem.

[7] Sesmaria concedida a Alfonso de Meyra... 1697: idem.

[8] Antonil, 1955: 244. Como repertório de ordens, provisões e cartas régias aqui tratadas ver Barros (1933).

[9] Citado em Santana (1964: 32).

[10] Ver Barros (1933: 201) para constatar a importância da correspondência entre as autoridades metropolitanas e coloniais sobre o tema. A melhor análise para a expansão da rede de poder político pelo Sertão foi proposta por Schwartz (1979, principalmente p. 104 e ss). Podemos, neste texto, perceber claramente a atuação do Estado colonial na guerra contra negros e índios, abandonando sua tradicional posição de delegar poderes a particulares. Neste caso o estado toma para si a tarefa de criar condições para a ocupação do Sertão.

[11] Livro de Assentamentos do Registro de Terras da freguesia de São Pedro do Porto da Folha, 1856-1857. Acervo Geral, Arquivo Público do Sergipe; Apontamentos tirados de Livros de Notas e de Sesmarias sobre factos diversos qe. respeitão (sic) à Província de Sergipe, 19 fls., Manuscritos, Biblioteca Nacional, 22, 2, 33-34; Carta do Capitão Mor do Sergipe d’El Rey datada de 10 de julho de 1718 e dirigida a SM dando conta da sua posse e do estado da mesma Capitania; Manuscritos, Biblioteca Nacional, I-31, 30, 75 e Anais do Arquivo Público da Bahia, vols. XII, p. 20 e ss e XIV, p. 73 e ss.

[12] Para a discussão do uso regional do termo heréu ou eréu ver Teixeira Da Silva (1981: 121 e ss).

[13] Para uma discussão ampla dos conceitos de terra indivisa veja-se: Martins (1981); Mourão Sá (1975); Prado (1975); Berno de Almeida e Esterci (1979); Berno de Almeida (1995a e 1995b).

[14] Ver Garcia Jr. (1990: 103 e ss). As mesmas informações, quanto aos riscos para a honra existentes no trato com animais alheios, foram prestadas ao autor na região de Poço Redondo e Canindé do São Francisco (SE).

[15] Um ótimo balanço sobre o tema foi feito por Berno de Almeida (s/d: 43-48); o autor procedeu, ainda, a um repertório bibliográfico das chamadas terras de preto, terras de índio, terras de santo e terras da igreja no Brasil, destacando alguns dos melhores trabalhos. Ver também Berno de Almeida (1995a: 213-239).

[16] Ver Leis e Ordens Régias, Arquivo Público do Estado da Bahia.

[17] Union Géographique Internationale. XVIII Congrés Internacional de Géographie. Bahia, Rio de Janeiro (1956: 197).

[18] Carta dos Oficiais da Câmara da Vila de Boipeba... Bahia, 1/1/1705; Carta do Vice-Rey para Nicolau da Fonseca Tourinho sobre o gado que se cria no termo da Vila de Boipeba, Bahia, 30/1/1705. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. XXI.

[19] Livro Régio de Sesmarias... Op. cit. Arquivo Nacional.

[20] Ver Abreu (1968); e Cunha (1975); para as análises que se seguem ver: Mott (1979, 1976a e 1976b).

[21] Santos Filho (1956: 228 e 302); para uma discussão mais geral ver Cardoso (1988, especialmente p. 54 e ss).

[22] Para uma discussão sobre os conceitos de domínio e exploração ver: Kula (1974, especialmente p. 46-70). Para a empresa agrícola moderna ver Slicher van Bath (1978: 353-440). Já num estudo prático de funcionamento de uma empresa no âmbito de um domínio ver Duby (1976). Para a aplicação no caso brasileiro ver Linhares (1983: 745-762).

[23] Tombo das Terras da Casa da Torre. Annaes do Archivo Público da Bahia. Anno III, vols. IV, p. 56-92. Ver também Calmon (1958: 135 e ss); e o testamento de Garcia D’Ávila citado por Calmon: 222.

[24] Livro de Tombo das Terras da Bahia, Biblioteca Nacional, Mss. II-33, 26, 12.

[25] Livro Régio de Sesmarias, Arquivo Nacional, op. cit.

[26] Idem.

[27] Sampaio (1955: 233). Para uma análise das relações entre recursos naturais e a empresa econômica ver Godelier (1984).

[28] Ver Mott (1979: 91) e, para a feira de Nazareth das Farinhas, Teixeira Da Silva (1990).

[29] Código de Posturas da Cidade de Salvador, 1700; 1705; 1716. Arquivo Municipal de Salvador, Prateleira “Posturas”.

[30] Para a análise de tais mecanismos nas sociedades agrárias ver Meillassoux (1975, em especial p. 58-77).

[31] Para um debate sobre a noção de crise nas sociedades agrárias tradicionais, em especial de Antigo Regime, ver Abel (1978: 13-27).