Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Direito e mudança social na magistratura brasileira


Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997: 178-180.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA.


Quando no segundo ano 70 o chileno Eduardo Novoa Monreal chamou a atenção para a importância da institucionalidade e do direito na agenda da transição allendista, muitos dos que o lemos então, não sabíamos bem o que aquele gesto, a contrapelo da mentalidade das forças de sustentação do governo da Unidade Popular, estava expressando. Depois, em outubro de 1973, no informe do italiano Enrico Berlinguer sobre os acontecimentos do Chile, e logo em alguns ambientes intelectuais, é que esse tema começou a se centrar na democracia política como “a questão comunista” e a coabitar na cultura política das esquerdas com discursos de auto-suficiência substantiva, remanescentes depois daquela (interrompida) “revolução pacífica”.

No começo dos anos 90, a sociologia da decadência aqui mesmo já fazia o seu registro de um mundo repartido entre reverenciar a democratização da “década perdida” e prescrutar-se ante o muro de fim do século interposto ao futuro do continente. Reproposta a filosofia econômica dos anos 50 e 60, os seus paradoxos –modernização/autoritarismo, no tempo das ditaduras; às avessas, democracia/estagnação, na democratização– tinham tudo para nos tornar prisioneiros de uma visão sombria e circular. Alguns autores felizmente prosseguiram com a problemática da democracia política e começaram a falar em déficit institucional da modernidade latino-americana, tão ou mais desalentador (agora sem dúvida alvo de uma luta decisiva) quanto a impossibilidade estrutural do desenvolvimento nestes tempos de globalização.

O que vemos entre nós hoje? Tudo isso e mais –resumindo a história– o fato de nosso país já ter vivido no episódio Collor e nas CPIs as suas mani pulenti. Realce da cena pública nos nossos primeiros anos 90, a luta pela ética ora aprofundava a demanda pelo estado racional legal ora, recaindo na cultura política do passado, deixava os problemas substantivos à deriva e um tanto à margem da política. Mas este movimento não era um terreno movediço e, sempre que se via o “tirar o Brasil a limpo” como um lado da moeda, ele espelhava o que era – reflexo da democracia política, prova tangível do papel desta na reforma da sociedade.

É neste marco, e em boa hora, que chega ao público o livro Corpo e Alma da Magistratura Brasileira dos professores Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de Carvalho, Manuel Palácios e Marcelo Baumann Burgos, recém-lançado pela editora Revan e já em vésperas de uma segunda edição. Trata-se do segundo relatório –os primeiros resultados foram divulgados em 1995 no texto O perfil do magistrado brasileiro– de uma pesquisa que se desenvolve há mais de dois anos sob o patrocínio da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e do Iuperj e que já realizou 4.000 entrevistas com juízes brasileiros. A escolha da academia de Botafogo não esconde a preferência dos magistrados pelo recorte das ciências sociais e o desejo de ultrapassarem as fronteiras das disciplinas usualmente sobrepostas ao objeto de estudo — a sociologia do direito e a mais nova sociologia das profissões. Aliás, esta última encontra naquele estudo uma sugestiva abertura desde um laboratório lastreado por uma conhecida e instigante tradição marxista.

Lançando um olhar diverso sobre a chamada crise e a crescente demanda de reforma do Judiciário, Corpo e Alma nos fala de um novo protagonismo emergente na magistratura brasileira. Em lugar de reclamarem de um templo sem coordenadas –morosidade, vestucidade, acesso difícil etc.– os seus autores querem ver nelas a presença de uma interpelação não-voluntarista, mas nascida junto com uma novíssima esfera de direitos (nisso a democratização estaria nos dizendo a que veio), agora a exigir da institucionalidade uma súbita adaptação à contemporaneidade da sociedade brasileira. Embora retardatária e ainda sem identidade plena com o processo, a magistratura vem acompanhando a tournant aberta com a eleição de Tancredo-Sarney. Sem esperar amadurecimento organizacional e doutrinário, sem equipamentos adequados, os juízes viram-se alçados à condição de um ator cada dia mais influente na sociedade civil brasileira. Não haveria nada incontornável interposto a uma perfeita compatibilização da corporação com a transição democrática todavia em curso.

Sem embargo, o leitor verá que o livro não é toda a análise dos resultados da investigação. Mas apenas o momento analítico da sua primeira parte, faltando a interpretação dos dados sobre a estrutura e o funcionamento do Ju-diciário. Os pesquisadores do Iuperj se dispõem a realizar futuramente um levantamento de informações em processos sub judice, abrindo o caminho para aferir a destinação social da práxis dos magistrados.

Com certeza Corpo e Alma influirá na tradição das pesquisas brasileiras sobre o poder judiciário. Antes das instituições, os seus autores voltaram-se para o homem e a sua circunstância, enfatizando o processo de diferenciação cultural dos magistrados. Na introdução do livro eles inscreveram a problematização investigativa no contexto da tendência universal da convergência da civil law com os institutos da common law; aproximação que adquire um colorido mais vivo quando interpelam a literatura recente que vem incorporando genericamente o jurídico ao tema da mudança social. Ao testemunharem aqui aquela passagem da solidão judicante para uma nova vocação pública, apropriadamente eles expõem o perfil social, a trajetória profissional e o processo de recrutamento dos juízes — mostrando a marca sociológica do estudo, convidando assim o leitor a se afastar do senso comum e da simples visualização do Judiciário como um corpo avesso a este mundo, necessitado apenas de controle externo, por exemplo. A terceira parte chama a atenção para o tema das atitudes dos magistrados diante da relação Estado/sociedade, donde se segue um desenho das tendências e a explicitação (elas não têm clara aparência, a não ser no associativismo) do sistema de orientações dos juízes brasileiros. Os dados já evidenciam algumas clivagens em formação, marcadas ainda pela heterogeneidade, falta de socialização (diversamente, por exemplo, da corporação militar) e práxis nova que prefiguram um ator ainda plural, grosso modo repartido entre se envolver com a mudança social ou permanecer mainstream da civil law e da certeza jurídica conservando o status quo. O mais relevante desse jovem protagonismo estaria sendo vivido pela corrente do chamado –à americana– moderno constitucionalismo, em cuja ponta germina a novíssima tendência de composição do direito por meio de uma ratio extra jure, espelhando a busca dos brasileiros de relações mais produtivas entre um Estado e uma sociedade interpelados no difícil e prolongado processo da revolução democrática tocquevileana em marcha neste país.

Corpo e Alma da Magistratura Brasileira,
Luiz Werneck Vianna et al., Revan, 334p., R$29,00 – Fax 273 6873.