Estudos Sociedade e Agricultura

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Sergio Schneider

Camponeses, agricultores e pluriatividade


Estudos Sociedade e Agricultura, 11, outubro 1998: 202-206.

Peasants, Farmers and Pluriactivity


Nos anos 90, as ciências sociais que se ocupam do estudo do mundo rural e dos processos sociais agrários vêm alargando significativamente seu escopo temático reforçando o diálogo interdisciplinar. Não cabe aqui situar quais são os temas principais e inspirações teóricas predominantes, mas vale destacar que boa parte das obras ultimamente produzidas empenha-se no sentido de aliar a explicação teórica à experimentação empírica. E este esforço tem sido decisivo não apenas para ampliação da qualidade da produção mas, também, ao estímulo à interlocução entre sociólogos, economistas, historiadores e antropólogos.

Entre os temas que vêm ganhando espaço e contribuindo para a consolidação desta nova fase do conhecimento das ciências sociais sobre o mundo rural está o debate em torno da agricultura familiar. Ainda que em certos casos este tema seja focalizado a partir de abordagens teóricas de longa tradição, há que ressaltar o empenho de pesquisadores que vêm buscando novos aportes explicativos e, por que não dizer, uma renovação de enfoques já existentes.

Recentemente publicado, o instigante livro de Maria José Carneiro, Camponeses, Agricultores e Pluriatividade, insere-se nesta "safra" de estudos que pretendem conferir legitimidade à temática da agricultura familiar e mostrar que o mundo rural e as sociedades agrárias precisam ser repensados e reinterpretados neste final do século XX. Não se trata, obviamente, de voltar ao debate em torno do caráter camponês ou capitalista, tradicional ou moderno das relações sociais existentes nos espaços rurais e agrários onde é forte a presença das pequenas propriedades. Ao contrário, a tarefa que nos espera está relacionada à compreensão e análise das relações sociais e dos processos produtivos pós-revolução verde que alteraram profundamente as características da agricultura e do mundo rural.

O livro de Maria José Carneiro segue uma trajetória um pouco distinta da que usualmente conhecemos. O livro é resultado de sua tese de doutoramento na École des Hautes Études en Scieces Sociales, sob a orientação de Maurice Godelier, e tem como alvo a pequena aldeia dos Alpes franceses onde a modernização tecnológica e os efeitos do mercado de trabalho não agrícola das atividades de turismo de inverno têm alterado o modo de vida dos camponeses e estabelecendo uma nova dinâmica na reprodução das famílias locais. Ao contrário do que fazem a maioria dos etnólogos, que vem estudar o "exótico" em regiões pouco afetados pelo progresso urbano industrial e relativamente resguardadas dos padrões difundidos pelos meios de comunicação de massa, Maria José Carneiro impôs-se um duplo estranhamento: primeiro de si própria, uma brasileira, com a realidade e as vicissitudes da Franca, e depois, como pesquisadora, mulher e casada, em relação a um grupo de camponeses alpinos ("montagnards"), que, como ela mesmo diz, em quase nada se assemelham aos pequenos agricultores do interior do Piauí, onde realizara trabalhos anteriores.

Estas dimensões constituem-se em um pequeno exemplo dos dilemas que cercaram a pesquisadora frente ao seu objeto de estudo. Para enfrentá-los, Maria José Carneiro realizou um engenhoso percurso pelos métodos e técnicas de trabalho de campo das ciências sociais e logrou surpreendentes e, até certo ponto, inusitados resultados. Descobriu, por exemplo, alguns dos limites e possibilidades da etnologia como matriz analítica para estudar uma comunidade rural em um país altamente industrializado.

Mas o livro de Carneiro possui outros méritos que precisam ser adequadamente evidenciados. Se pudéssemos sugerir um itinerário de leitura, certamente dever-se-ia começar pelo capítulo seis de sua obra. Nele encontra-se uma das melhores e mais precisas revisões bibliográficas de língua francesa sobre o tema da pluriatividade focalizando tanto o percurso acadêmico quanto técnico-político desta categoria.  Além disto, nesta parte Carneiro é particularmente clarividente quanto ao estatuto teórico e heurístico do termo pluriatividade. Para Carneiro, "sua variabilidade histórica, sua heterogeneidade de formas, de significados e de contexto impede que possamos delimitar criteriosamente o nosso verdadeiro campo de estudos" (º 159). Assim sendo, "a falta de especificidade e de valor heurístico desta noção nos orienta para a construção de um objeto de estudo centrado não mais sobre um conjunto de ações individuais, mas sobre as condições de reprodução no campo" (idem). Portanto, o trabalho de Carneiro buscará perceber a trajetória destas condições de reprodução em uma aldeia dos Alpes onde a "rurbanização" transformou as condições sociais de reprodução dos camponeses, redefinindo sua identidade econômica e cultural.

Neste processo, os camponeses passaram de produtores polivalentes (entre 18990  1930) a duplo-ativos (de 1930 até 1970) e depois a pluriativos (1970 a nossos dias), ainda que a situação atual seja entendida como um retorno ao "ser camponês", porém dotado de uma nova identidade. Esta trajetória é descrita como um processo de "urbanização dos campos" ou de "rurbanização", que é concebido como uma reestruturação dos elementos da cultura local incorporando novos valores, hábitos e técnicas. "Este processo possui uma dupla direção: de um lado ocorre uma reapropriação de sua cultura pelos habitantes da aldeia a partir de uma reinterpretação de seus componentes informada pela emergência de novos códigos. No sentido inverso a população urbana se apropria  de bens materiais e simbólicos do mundo rural, produzindo uma situação que não se traduz necessariamente pela destruição da cultura local, mas que pode contribuir para alimentar a sociabilidade rural" (Carneiro, 1998: 175).

Entre nós brasileiros, talvez seja a primeira oportunidade em que nos deparamos com um livro que parte de  uma perspectiva histórica, recuperando a trajetória de diferentes gerações, para abordar os efeitos da pluriatividade sobre as estratégias de reprodução familiares focalizando-as, ao mesmo tempo, pelos aspectos econômicos relacionados ao processo produtivo e pelo caráter simbólico que elas engendram como um traço marcante de sua identidade social.

Mais do que captar a importância das rendas não-agrícolas para a reprodução social destes membros, Maria José atribui um peso decisivo aos aspectos subjetivos, que motivam os indivíduos de uma família a buscar uma atividade rentável fora da propriedade rural ainda que nela permaneçam residindo. Desse modo, demonstra que a pluriatividade e a busca das atividades não-agrícolas por indivíduos que moram no meio rural pode ser considerada uma estratégia de adaptação dos indivíduos à crise, gerada pela abrupta modernização tecnológica ou algum outro tipo de mudança no ambiente externo. Carneiro acredita que a natureza do trabalho externo escolhido pelos indivíduos está diretamente vinculada aos laços e valores que se estabelecem entre os membros de uma família.

Esta interpretação da pluriatividade está em consonância com seu ponto de partida teórico definido como " a análise do papel da família na elaboração de estratégias - de adaptação ou de transformação - em face das mudanças das condições de produção" (p. 8). Neste sentido, Carneiro empreende uma "análise microssociológica da família que permitirá esclarecer a multiplicidade de papéis exercidos por seus membros e as tensões resultantes de seus objetivos opostos", tomando o parentesco e o trabalho como variáveis para perceber como se articulam e estruturam os indivíduos na família e na sociedade (p. 0). Esta matriz teórica lhe permitirá analisar as estratégias intergeracionais dos membros das famílias de camponeses da comunidade de Theys e perceber as especificidades da identidade familiar que variam segundo o tipo de ocupação nas atividades não-agrícolas e de acordo com o membro da família que as executa fora da propriedade.

Cabe ainda mencionar que o livro de Maria José Carneiro constitui-se em excelente referencial para os interessados em conhecer os efeitos práticos, sociais e econômicos, da política de modernização e transformação da agricultura francesa, colocada em vigor a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Ao contrário do que muitos brasileiros  já escreveram sobre este tema, o processo de modernização da agricultura francesa também foi seletivo e excludente, ainda que não possa ser comparado ao processo verificado no Brasil. Neste aspecto, Carneiro demonstra como as regiões de montanha foram praticamente esquecidas pela política agrícola "produtivista", vigente desde o final da Segunda Guerra até o final dos anos 70, e como estas áreas foram transformadas em zonas desfavorecidas a partir da década de 80. Com a reforma da política agrícola européia, concluída em 1992, as regiões onde predominava a chamada agricultura de montanha passaram a ser alvo das políticas de desenvolvimento rural, transformando os camponeses em "jardineurs de la nature".

Além destas referências, a melhor parte da obra de Maria José concentra-se nos capítulos três e quatro onde a autora discute o papel da família e as formas de transmissão do patrimônio e de sucessão. Nestas seções, as relações intrafamiliares entre os indivíduos que convivem "em torno do mesmo fogo" são abordadas em suas mais variadas dimensões e as estratégias de reprodução abordadas em suas mais variadas dimensões e as estratégias de reprodução do núcleo doméstico aparecem como um intrincado jogo no qual cada membro desempenha uma função particular e coletiva ao mesmo tempo. Este papel de coerção e distensão que informa as relações entre os indivíduos de uma mesma família é que leva Carneiro a concluir que, no período recente, a pluriatividade, além de se constituir em uma estratégia de reprodução familiar dos pequenos agricultores que vivem nos Alpes, na pequena aldeia de Theys, também traduz os anseios e as vontades dos membros que compõem as famílias. Assim, mais do que uma resposta à crise e às pressões econômicas externas, o exercício de uma atividade fora da propriedade também deve ser entendido como uma busca de autonomia e de constituição de uma identidade própria dos indivíduos que efetivamente exercem esta pluriatividade.


Por estas razões, o livro de Maria José Carneiro certamente contribuirá ao debate ainda insipiente que se trava no Brasil acerca do papel e das características da pluriatividade em áreas onde a forma familiar de produção e de organização do trabalho convive em proporções cada vez mais significativas com a emergência das atividades rurais não-agrícolas.

Carneiro, Maria José. Camponeses, Agricultores e Pluriatividade. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 1998, 228 p.