Estudos Sociedade e Agricultura

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Maria José Carneiro

Ruralidade: novas identidades em construção


Estudos Sociedade e Agricultura, 11, outubro  1998: 53-75.

Resumo: (Ruralidade: novas identidades em construção). O artigo discute a noção de ruralidade no contexto de intensificação das trocas entre campo e cidade. Sua proposta é pensar o "rural" e o "urbano" a partir de um ponto de vista dos agentes sociais que realizam essa interação, rompendo com a dualidade inerente a essas categorias.

Palavras-chave: campo-cidade; ruralidade; identidades; sociologia rural.

Abstract: (Rurality: new identities in construction). The article discusses the notion of rurality in the context of the intensification of countryside-urban exchanges. It proposes to think of the "rural" and "urban" from the perspective of social agents that are engaged in this interaction, breaking with the duality inherent in these categories.

Key words: Countryside-city; Rurality; Identities; Rural Sociology.

Texto publicado integralmente nos Anais do XXXV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia e Economia Rural, Natal, agosto, 1997.

Maria José Carneiro é professora da UFRRJ/CPDA.


O ritmo das mudanças nas relações sociais e de trabalho no campo transforma as noções de "urbano" e "rural" em categorias simbólicas construídas a partir de representações sociais que, em algumas regiões, não correspondem mais a realidades distintas cultural e socialmente. Torna-se cada vez mais difícil delimitar fronteiras claras entre as cidades e os pequenos vilarejos ou arraiais a partir de uma classificação sustentada em atividades econômicas ou mesmo em hábitos culturais. No entanto, tal processo não resulta, a nosso ver, numa  homogeneização que reduziria a distinção entre o rural e o urbano a um continuum dominado pela cena urbana, como já foi formulado no tocante à realidade européia (Lefebvre, 1972; Duby, 1984; Mendras, 1959; entre outros) e para a realidade brasileira (Graziano da Silva, 1996; Ianni, 1996, entre outros). "O desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo no campo generaliza e enraíza formas de sociabilidade, instituições, padrões, valores e ideais que expressam a urbanização do mundo" (Ianni, 1996:60).

Contudo, é importante considerar que o "campo" não está passando por um processo único de transformação em toda a sua extensão. Se as medidas modernizadoras sobre a agricultura foram moldadas no padrão de produção (e de vida) urbano-industrial, seus efeitos sobre a população local e a maneira como esta reage a tais injunções não são, de modo algum, uniformes, assim como tais medidas não atingem com a mesma intensidade e proporções as diferentes categorias de produtores. Nesse sentido não se pode falar de ruralidade em geral; ela se expressa de formas diferentes em universos culturais, sociais e econômicos heterogêneos.

Ainda que os efeitos da expansão da "racionalidade urbana" sobre o campo, provocada pela generalização da lógica do processo de trabalho e da produção capitalista intensificados pelos mecanismos da globalização, não possam, de forma alguma, ser tratados com negligência, é precipitado concluir que tal processo resultaria na dissolução do agrário, e na tendência à transformação uniformizadora das condições de vida no campo. "O tecido urbano prolifera-se, estende-se, consumindo os resíduos da vida agrária. Por tecido urbano não se entende, de maneira estreita, a parte construída das cidades, mas sim o conjunto de manifestação do predomínio da cidade sobre o campo" (Lefebvre, 1972:10; grifos do autor).  Afirmações como a de Lefebvre eram mais consensuais nas décadas de 60 e 70, quando a pujança do desenvolvimento capitalista apontava para esse caminho de forma exclusiva e inexorável. No entanto, os próprios limites do modelo produtivista no campo e da expansão industrial nas cidades, a partir dos anos 80, principalmente nos países capitalistas avançados, têm gerado formas alternativas de reprodução social no campo (e nas cidades), sugerindo aos pesquisadores a relativização do tom generalizador das interpretações anteriores, reconsiderando a relação entre tradições culturais e o processo de modernização na agricultura. O debate sobre a pluriatividade, sobretudo na Europa, é ilustrativo desse processo.1

Pesquisas em países desenvolvidos têm demonstrado dois fatos relevantes: a rápida adaptação do agricultor familiar ao processo de modernização, com técnicas avançadas e a contribuição da cultura do agricultor familiar (farming culture) na formulação de respostas à crise do modelo produtivista, como a pluriatividade. 

Ao invés de se pensar a cultura camponesa através do contraste com a cultura urbano-industrial, o que levaria a repetir o que já fora dito sobre o efeito generalizador do processo de "descampenização" do campo, alguns autores chamam a atenção para a necessidade de romper com a referência à cultura urbano-industrial para se avaliar as verdadeiras mudanças pelas quais essa categoria social ampla e genérica - o agricultor familiar2- estaria passando ao longo do tempo. Nessa linha, Pongratz, ao analisar a situação recente da agricultura na antiga Alemanha Ocidental, chama a atenção para a capacidade de a "cultura camponesa tradicional" formular saídas para a crise da economia e do ecossistema provocadas pelas medidas modernizadoras. Suas afirmações, baseadas em pesquisas antropológicas, são instigantes justamente por se tratar de um país que, consensualmente, teria concluído o processo de industrialização do campo. Elementos tradicionais da chamada "farming culture" não só persistiram como estão firmemente ancorados em largas camadas da população rural, até mesmo em pessoas empregadas em modernas empresas industriais (Pongratz, 1990). Rompendo com o paradigma que igualiza a cultura camponesa ao "tradicional", "passivo" e "oposto à mudança", Pongratz propõe  pensar a integração da "farming culture" à sociedade industrial moderna sem que isto resulte num processo simples de aculturação. Em suma, a manutenção de tradições culturais (as quais designa de camponesas) não seria incompatível com a modernização da sociedade que deve ser encarada apenas como uma nova fase, com novos objetivos, que pode incluir o que anteriormente era tido como "tradicional" e "atrasado".3

Essas contribuições são importantes, ao apontarem para a alternativa metodológica de não congelarmos o conceito de "camponês" no modelo medieval, como uma categoria social estática e universal, incapaz de absorver e de acompanhar a dinâmica da sociedade em que se insere e de se adaptar às novas estruturas sem, contudo, abrir mão de valores, visão de mundo e formas de organização social definidas em contextos sócio-históricos específicos. Ao chamar a atenção para a integração desses sistemas culturais em um país avançado como a Alemanha Ocidental, esses autores têm o mérito de nos alertar para a possibilidade de contribuirmos para a reorientação dos caminhos da modernização e das análises sobre os seus efeitos em um país que ainda não concluiu seu processo de modernização e de industrialização.

 

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No Brasil, pesquisas recentes têm apontado para a ocorrência de dois conjuntos de fenômenos, em algumas regiões do meio rural brasileiro, que nos ajudam a pensar a questão da ruralidade hoje.

Em   primeiro lugar, o espaço rural não se define mais exclusivamente pela atividade agrícola. Como já foi observado , é significativa a redução de pessoas ocupadas na agricultura, dado que se associa ao aumento do número de pessoas residentes no campo exercendo atividades não-agrícolas e ao aparecimento de uma camada relevante de pequenos agricultores que combinam a agricultura com outras fontes de rendimento (Graziano da Silva, 1996). Esse fenômeno - a pluriatividade -, ainda que antigo, adquire novas dimensões no campo brasileiro, chamando a nossa atenção para a possibilidade de novas formas de organização da produção virem a se desenvolver no campo ou de antigas práticas assumirem novos significados. Sem querer reduzir a compreensão desse fenômeno, ainda pouco estudado,4  à tendência ao desaparecimento do agricultor em tempo integral ou a mais uma forma de exploração da mão-de-obra rural, atentos para o fato de estarmos presenciando um movimento de reorientação da capacidade produtiva da população residente no campo, que se expressa em novas formas de organização da atividade agrícola como uma alternativa ao êxodo rural, ao desemprego urbano, e ao padrão de desenvolvimento agrícola dominante. 

O segundo conjunto de fenômenos refere-se à procura crescente de formas de lazer e até mesmo de meios alternativos de vida no campo, por pessoas vindas da cidade. Esse movimento, que se inicia de forma tímida no Brasil na década de 70, expande-se e encontra a sua legitimidade na divulgação do pensamento ecológico nos anos 90. Entre os seus efeitos destacam-se a ampliação das possibilidades de trabalho para a população rural, até então dedicada quase exclusivamente à agricultura, e a maior aproximação e integração de sistemas culturais distintos.  Novos valores sustentam a procura da proximidade com a natureza e com a vida no campo. A sociedade fundada na aceleração do ritmo da industrialização passa a ser questionada pela degradação das condições de vida dos grandes centros. O contato com a natureza é, então, realçado por um sistema de valores alternativos, neo-ruralista e antiprodutivista. O ar puro, a simplicidade da vida e a natureza são vistos como elementos "purificadores" do corpo e do espírito poluídos pela sociedade industrial. O campo passa a ser reconhecido como espaço de lazer ou mesmo como opção de residência. 

Essa busca da natureza e o desejo dos citadinos em transformá-la em mais um bem de consumo toma a forma de turismo, alternado o ritmo de vida local. Pequenas pousadas são construídas e tendem a substituir, em grau de interesse e em rendimento, a unidade de produção agrícola que nela funcionava. A agricultura, nesses casos, passa a ser um complemento, muitas vezes voltada para a manutenção da família e dos hóspedes, e um bem de consumo ao garantir o clima "rural" almejado pelos turistas.

Essas experiências, já conhecidos na realidade européia há algumas décadas, transformam o "campo" - como categoria genérica - em  um lugar de vida, mais que um espaço de produção agrícola (Mendras, 1988), o que certamente contribuiu para a formulação de abordagens críticas à visão dualista que opunha o "rural" ao "urbano" como duas realidades empiricamente distintas e normalmente definidas uma em negação da outra, com base em critérios meramente descritivos informados pelo paradigma que associa o "rural" ao agrícola e ao "atrasado" e o "urbano" ao industrial e ao "moderno". É a partir do desenvolvimento do capitalismo na agricultura concomitante à interiorização das indústrias e à modernização da sociedade urbana e rural que a teoria da urbanização passa a ser formulada, colocando a ênfase na integração dos dois espaços através das trocas cada vez mais intensas entre a sociedade urbano-industrial e as pequenas aldeias rurais. Auxiliado pelo êxodo rural de grande parte da população jovem, atraída pela oferta de trabalho nas indústrias em expansão e pelos valores urbanos, esse processo de urbanização do campo se realizaria através da difusão de técnicas e de hábitos de origem urbana que resultaria na perda de distinção entre a cidade e a aldeia. A diferença, como afirmaria Mendras já em 1959, passaria a ser  de intensidade e não de constrastes e não mais centrada em sistemas, mas em indivíduos que se ocupariam de atividades de um ou de outro tipo em um civilização única. A dicotomia entre o rural e o urbano seria diluída em um continuum.5 

Em contraposição tanto à visão dicotômica quanto à do continuum, alguns autores sustentam a necessidade de proceder a análises mais específicas do rural, centradas nas relações sociais que se desenvolvem a partir de processos de integração das aldeias à economia global. Nesta visão, esse processo, ao invés de diluir as diferenças, pode propiciar o reforço de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade. Essa âncora territorial seria a base sobre a qual a cultura realizaria a interação entre o rural e o  urbano de um modo determinado, ou seja, mantendo uma lógica própria que lhe garantiria a manutenção de uma identidade (Chamborredon, 1980 e Rambaud, 1969 e 1981).

Nessa perspectiva, as transformações na comunidade rural provocadas pela intensificação das trocas com o mundo urbano (pessoais, simbólicas, materiais...) não resultam, necessariamente, na descaracterização de seu sistema social e cultural como os adeptos da abordagem adaptacionista interpretavam.  Mudanças de  hábitos, costumes, e mesmo de percepção de mundo, ocorrem de maneira irregular, com graus e conteúdos diversificado, segundo os interesses e a posição social dos atores, mas isso não implica uma ruptura decisiva no tempo nem no conjunto do sistema social. Rambaud, em seu estudo sobre Albiez-le-Vieux, uma aldeia dos Alpes franceses, verifica que as mudanças no espaço agrário, estimuladas pela expansão da exploração do turismo, não abalaram a identidade aldeã. As novas experiências engendradas contribuíram para criar uma diversidade social e cultural que é também condição de existência da sociedade na medida em que alimenta as trocas ao enriquecer os bens (culturais e simbólicos) e ampliar a rede de relações sociais. A heterogeneidade social, ainda que produza uma situação de tensão, não provoca obrigatoriamente a descaracterização da cultura local. Quando aceita pela comunidade, a diversidade assegura a identidade do grupo que experimenta uma consciência de si na relação de alteridade com os "de fora". Estaríamos, então, diante apenas de uma releitura da abordagem dualista sustentada na oposição entre urbano e rural ?

A contribuição do modelo de Placide Rambaud ao debate originário sustentado em dualidades espaciais genéricas reside na ênfase atribuída à heterogeneidade social, cultural e econômica de um sistema complexo entrecortado por relações sociais flexíveis e carregadas de conflitos que se definem a partir dos interesses dos agentes sociais com capacidades de negociação distintas. Nesse processo de integração plural da aldeia à economia e à sociedade global está presente tanto a possibilidade de o núcleo rural sucumbir às pressões e interesses externos, mais potentes, como a possibilidade de se consolidar a identidade local, o que contribui também para perfazer a identidade urbana dentro ou fora da mesma localidade. Não se trata, portanto, de um processo inexorável de descaracterização dos núcleos rurais, mas da sua reestruturação a partir da incorporação de novos componentes econômicos, culturais e sociais. Como diz Rambaud, "os habitantes [da aldeia] realizam inovações agrárias, turísticas, culturais, lhes permitindo se adaptar às necessidades econômicas domesticando as técnicas a sua disposição sem colocar em causa a profundeza de sua lógica de existência e o sistema de valores" (1981:273).

Para compreender a complexidade desse processo de decomposição e recomposição de um sistema social, importa identificar a lógica desse sistema que reside nos jogos de interesses e nas relações de força entre os agentes sociais. Recusando-se a operar com as oposições binárias, propõe-se pensar em espaços socialmente definidos, ocupados por grupos sociais diversos que mantêm relações distintas entre si e com os "outros". Orientar o foco de análise para os agentes sociais deste processo e não mais para um espaço geográfico reificado possibilita, por exemplo, que a distinção entre "cidade" e "aldeia" ou "urbano" e "rural" desapareça ou torne-se inútil como questão sociológica. Isso porque cada espaço contém em si contradições e conflitos resultantes da relação entre sistemas de valores e interesses distintos, quer sejam eles tidos como de origem "urbana" ou "rural".

Nesses termos, não podemos entender a ruralidade hoje somente a partir da penetração dos mundo urbano-industrial no que era definido tradicionalmente como "rural", mas também do consumo pela sociedade urbano-industrial, de bens simbólicos e materiais (a natureza como valor e os produtos "naturais", por exemplo) e de práticas culturais que são reconhecidos como sendo próprios do chamado mundo rural. Nesse sentido, importa mais do que tentarmos redefinir as fronteiras entre o "rural" e o "urbano", ou simplesmente ignorar as diferenças culturais contidas nessas representações sociais, buscar, a partir do ponto de vista dos agentes sociais, os significados das práticas sociais que operacionalizam essa interação e que proliferam tanto no campo como nos grandes centros urbanos, tais como a pluriatividade , os neo-rurais, a cultura country etc. Várias questões nos são sugeridas de imediato. Por exemplo:

Quais os significados, para a população autóctone e para os "de fora", das festas "caipiras" realizadas em vilarejos rurais que mobilizam um significativo número de pessoas de grandes centros urbanos não só no Brasil como em outros países da Europa, como a França, e que transformam a vida da população local que passa a organizar as festas não apenas para o autoconsumo mas prioritariamente para os turistas ? Quais os significados das grandes exposições agropecuárias que reúnem diversos segmentos da sociedade e políticos de diferentes matizes, do vereador ao presidente da República ? Que valores são reforçados e transmitidos nos eventos e manifestações da camada cultura "country" organizados em torno de leilões de bois ou cavalos, rodeios, exposições e feiras agropecuárias que ocorrem tanto em espaços "rurais" como "urbanos"?   Como observa De Paula, "no âmbito da feira [agropecuária] a cidade ' vai para o campo', se ruraliza; a cidade adota uma performance country ou então ainda "joga" / "desempenha" um certo jogo/script que estiliza a ruralidade" (1994:18). Na análise de De Paula, a cultura country promove uma inserção singular do rural no mundo em geral, através de um reelaboração simbólica do rural desvencilhado da noção que o associava ao tradicional. A cultura country se desenvolve, portanto, coo afirmadora da integração do mundo rural com o mundo urbano como expressão de modernidade e de modernização do rural. A autora enfatiza ainda o fato de os adeptos desta cultura no Brasil serem habitantes das cidades, diferentemente dos norte-americanos, que residem em seus ranchos e freqüentam esporadicamente a cidade.6

Como vemos, as noções de "rural" e de "urbano", assim como a de "ruralidade" e a dualidade que lhes é intrínseca são representações sociais que expressam visões de mundo e valores distintos de acordo com o universo simbólico ao qual estão referidas, estando, portanto, sujeitas a reelaborações e a apropriações diversas. Integrantes da elite agrária brasileira recorrem à práticas e hábitos tidos como "rurais" mas que ressemantizados em outros contextos culturais servem à intenção de exibir e ao mesmo tempo instituir a sua face moderna. Enquanto isso, os "neo-rurais" brasileiros, motivados por valores próprios do antigo mundo rural (autodeterminação, contato com a natureza, tranqüilidade, simplificação das relações sociais, reproduzem na racionalidade produtiva e tecnológica valores urbanos, como bem observa Giuliani (1990). Para este autor, diferentes dos neo-rurais franceses que se instalam no campo seguindo o modelo de produção familiar, os "neo-rurais" brasileiros não realizam uma ruptura com o modo de produção capitalista. Ainda que possam ter as mesmas motivações iniciais que os franceses, os nossos "neo-rurais" reproduzem aqui a arcaica e surrada ideologia burguesa (...) e exigem de seus trabalhadores uma 'racionalidade urbana" na organização do trabalho e no processo produtivo, porém lhes impõem condições rurais 'tradicionais' quando se trata de salário, moradia ou jornada de trabalho" (Giuliani, 1990:65). Os mesmos valores privilegiados pelos "neo-rurais" franceses, ao serem recontextualizados nas estruturas sociais e históricas brasileiras, acabam por reproduzir a ideologia burguesa e um estilo de vida próximo aos padrões urbanos, só que em um outro cenário.

Nessa complexidade de universos culturais que se interpenetram, parece-nos impossível delimitar as fronteiras culturais entre o "rural" e o "urbano". Como fica, então, a questão da ruralidade no Brasil hoje?

Em uma abordagem comparativa internacional, Wanderley e Lourenço (1994) discutem o sentido da localidade na vida dos agricultores no contexto da integração à sociedade nacional e à agricultura de mercado. Seus dados apontam para os limites dos conceitos de meio rural ou sociedade rural e de sociedade englobante para explicar a sociabilidade desses agricultores.  "De fato não se trata mais de englobar um microcosmo, relativamente autônomo, em um macrocosmo socioeconômico, mas de ultrapassar as fronteiras entre o 'local' e o 'global', pela experiência de uma cidadania concreta vivida pelos agricultores" (1994:25).

Esse conjunto de reflexões nos leva a pensar a ruralidade como um processo dinâmico de constante reestruturação dos elementos da cultura local com base na incorporação de novos valores, hábitos e técnicas. Tal processo implica um movimento em dupla direção no qual identificamos, de um lado, a reapropriação de elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada pela emergência de novos códigos e, no sentido inverso, a apropriação pela cultura urbana de bens culturais e naturais do mundo rural, produzindo uma situação que não se traduz necessariamente pela destruição da cultura local mas que, ao contrário, pode vir a contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar os vínculos com a localidade. Desse encontro, como observa Rambaud, nasce uma cultura singular que não é nem rural nem urbana, com espaços e tempos sociais distintos de uma e de outra (Rambaud, 1969:32).

Com a expansão dos meios de transporte e de comunicação, sobretudo da mídia com a sua reconhecida força formadora e divulgadora de valores, no contexto da inserção plural do agricultor e do trabalhador rural no mercado de trabalho fica cada vez mais difícil pensar na noção de ruralidade para definir a natureza das relações sociais num espaço determinado. Contudo, essa dificuldade não nos parece invalidar a noção de localidade, já que esta denota apenas a referência espacial como qualificadora de um universo de relações sociais específico. Em outras palavras, a noção de localidade não define, de forma alguma, a natureza rural ou urbana do grupo ou das práticas e relações sociais que ele desenvolve. Além disso, o sentido de localidade não estará presente em todo e qualquer espaço, ele será tão mais forte quanto mais consolidada fora a identidade do grupo, ou seja, quanto mais forte for o sentimento de pertencimento a uma dada localidade. Para tal, supõe-se que a lógica de existência do grupo se sustente em um conjunto de valores tidos como identitários e que serve para distingui-los dos demais. É na possibilidade de se estabelecerem relações de alteridade como os " de fora" que reide a capacidade do grupo de definira a sua identidade sustentada no pertencimento a uma localidade.

Cabe sublinhar que o reconhecimento de um determinado espaço como próprio ao indivíduo, à família e ao grupo mais amplo, é informado pela memória coletiva herdada de gerações anteriores. Os marcos ou pontos de apoio dessa memória são os próprios componentes da paisagem: rios, morros, montanhas, árvores..., que persistem mesmo que transformados ou destruídos pela ação do homem.7 A memória coletiva 8 informa também as mudanças adaptativas do grupo ao sugerir respostas aos novos estímulos ou obstáculos: "um grupo que não tem memória de seu passado teria, sem dúvida, alguma dificuldade de desdobrar a imaginação de seu futuro através de tomadas de consciência sucessivas" (Rambaud, 1981, 274). Nesse sentido, o movimento de resgate de determinadas práticas do passado, cujo registro pertence somente aos mais velhos, pode oferecer, como veremos adiante, saídas alternativas à crise do modelo produtivista na agricultura sem contudo expressar um "retorno à tradição" ou uma "volta ao passado". Essa recontextualização do passado, ou se quisermos, da "tradição", que tem ocorrido em vários países da Europa Ocidental, aponta para respostas concretas e viáveis (não apenas no âmbito da economia mas também da sociedade) para a crise da modernização agrícola.

 

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Para desenvolvermos a presente reflexão nos sustentamos em informações resultantes de pesquisas realizadas em duas realidades distintas: uma aldeia nos Alpes franceses e duas localidades "rurais" no município de Nova Friburgo, RJ. Em ambos universos a expansão de atividades relacionadas à exploração do turismo têm introduzido novas possibilidades de trabalho, complementares ou alternativas à agricultura, e ampliado a rede de sociabilidade desses vilarejos que durante muito tempo permaneceram fechados sobre si mesmos. Para ilustrarmos nossa argumentação faremos uma breve exposição de algumas situações significativas.

Pretende-se discutir até que ponto estamos diante de um processo de construção de novas identidades sociais que não podem ser traduzidas simplesmente pela centralidade na atividade agrícola e nem pelo exercício exclusivo de uma única atividade econômica. Na França, em estudo realizado entre os agricultores de uma aldeia dos Alpes, constatou-se uma revitalização da sociabilidade local e da própria aldeia, no que se refere aos serviços ofertados e à diversidade das atividades econômicas de seus habitantes, a partir da intensificação das relações com os "turistas" (cf. Carneiro, 1993) . Como expressão dessa situação, as festas na aldeia são bastante significativas, merecendo ser abordadas mais de perto.9

Estimulados pelo poder local a organizarem festas e atividades de lazer orientadas para atraírem turistas, boa parte da população local se vê envolvida na promoção anual de eventos desse tipo. Um grupo de pessoas reunidas em uma associação cuja criação foi motivada pela intenção em promover formas de arrecadar recursos que complementariam a renda familiar, acabou se transformando, no decorrer de aproximadamente vinte anos, em uma ampla rede de sociabilidade que reúne, além de agricultores e pluriativos da aldeia, alguns duplo-ativos de vilas vizinhas e até mesmo turistas parisienses que passaram a freqüentar com regularidade a região.

A organização de festas "à antiga" - "à camponesa" - tornou-se a marca dessa associação possibilitando um rendimento acima do permitido para um grupo que não é autorizado legalmente a estimular esse tipo de atividade. Suas festas atraem um grande número de turistas promovendo a integração do ethos urbano ao ethos rural pela inversão das posições sociais, permitindo que "pessoas da cidade" se divirtam com as brincadeiras "camponesas", jocosas e rústicas, e que os agricultores subam ao palco como atores do espetáculo. Aqui, não há separação entre o antigo e o moderno, entre o público e o espetáculo: os chamados "camponeses"10 fazem o espetáculo e eles mesmos o consomem em conjunto com os demais habitantes das aldeias e os turistas ali hospedados.

Outro tipo de festa, as organizadas pelo escritório de turismo local, assume mais a forma de um espetáculo voltado para atrair os turistas e transmitir o que é genericamente tido como "rural" ou "próprio da aldeia". Os jogos aqui são diferentes dos realizados nas "festas camponesas", pois obedecem ao esforço da coletividade de exibir uma imagem "moderna", onde as atrações burlescas e grotescas não têm lugar. Na sua representação de "ruralidade" que, no caso francês, se traduz por um estilo de vida "aldeão", tentam também manter uma face "urbana" para não chocar em demasiado os turistas e permitir que se sintam à vontade. É preciso antes de tudo atraí-los para que possam retornar ou divulgar a aldeia como lugar privilegiado de lazer e assim garantir  o rendimento dos comerciantes locais e dos donos de pousadas, na sua maioria velhos camponeses aposentados. Nessa festa combinam-se de formas distintas o "antigo", o "atrasado" - vivido pelos protagonistas da "festa camponesa" - e o "novo", "moderno", e "urbanizado", representado na figura do próprio organizador da festa, o presidente do escritório de turismo local. Herdeiro de uma família proprietária de uma grande extensão de terras, esta pessoa transformou sua fazenda em camping e abriu uma loja de aluguel de material de esporte de inverno na estação de esqui administrada pelas municipalidades locais. Ele encarna assim a imagem do empresário moderno que vê no turismo uma alternativa para a economia local.

Interessante sublinhar eu neste evento, diferente do que ocorre na "festa camponesa", os representantes da Associação dos Camponeses dos Sete Lagos, aparecem fantasiados de camponeses, exibindo roupas rústicas e instrumentos antigos marcando uma ruptura temporal e enfatizando a distinção entre o "velho" e  o "novo" de maneira a privilegiar a passagem para a nova era - a da modernidade - onde imperam os valores urbanos, do consumo e não mais da produção. Por isso, a presença dos "camponeses" tem de ser marcada de forma folclorizada e estigmatizada, reforçando o lugar marginal, restrito, dos elementos culturais do passado - a chamada "tradição camponesa" - na nova identidade aldeã em construção, demonstrando que esta identidade recriada não está protegida das contradições resultantes das transformações por que tem passado o mundo rural. O mesmo não ocorre nas "festas camponesas", onde a integração entre os dois universos é acentuada na participação coletiva nos jogos e brincadeiras.

A "festa da aldeia" tem uma importância fundamental para a reestruturação da sociedade aldeã. Trata-se de um ritual eu promove articulação entre a representação social do "moderno" associado à imagem do "urbano" e a do "tradicional" vinculada à imagem do camponês, numa espécie de síntese dos conflitos entre interesses e visões de mundo distintas. As "festas da aldeia" assim como as "festas camponesas" expressam a crise dos valores do passado ligados à produção agrícola, mas revelam também a outra face da moeda. A primeira, mais do que a segunda, proclama, ao  mesmo tempo, o fim do que entendem por "cultura camponesa" e a retomada de certos elementos desta mesma cultura, mas num outro contexto, num outro sistema de reconstrução da identidade aldeã quando faz emergir a dominação da lógica capitalista sobre os valores da tradicional sociedade aldeã. Esta festa divulga a disponibilidade da aldeia em receber elementos culturais "de fora" num movimento de "aculturação livre", nos termos de Rambaud, ou seja, sob o controle da própria comunidade, mantendo a sua autonomia sobre a forma de os limites das mudanças. Esse tipo de festa, ao contrário da outra, não se desenvolve nos moldes da autoprodução, ela se organiza como uma pequena feira que enfatiza a apropriação mercantil - através da exploração turística - de elementos de uma cultura e do espaço onde esta cultura se realiza e do consumo como forma de lazer. É importante sublinhar que nesse tipo de festa os jogos e brincadeiras são sempre individuais sendo o seu objetivo ganhar um objeto, enquanto nas festas camponesas os jogos são coletivos e não mercantilizados.

O outro tipo de festa, conhecido como "dos camponeses", resgata a tradição mas sem isolá-la num nicho próprio, como numa "reserva de camponeses". Esta festa aproxima, separa, distingue e identifica pessoas numa pequena aldeia dos Alpes, aparentemente bastante homogênea. No entanto, a rede de sociabilidade assim construída ultrapassa as fronteiras da família e mesmo da aldeia integrando pessoas e elementos culturais da chamada "sociedade urbana" sem, contudo, marginalizar o lado camponês, tradicional.

A participação no processo de autoprodução liderado pelo Grupo dos Camponeses dos Sete Lagos permite reunir pessoas de localidades distintas, sejam da planície ou da montanha, operários-camponeses, agricultores aposentados ou em atividade, e mesmo funcionários da administração municipal desde que sejam filhos de agricultores. O único referencial comum a essas pessoas é a existência de um vínculo com a atividade agrícola, mesmo que seja de origem - a condição única para a associação ao grupo.

Apesar dessa diversidade social, a "autoprodução" 11 das práticas de sociabilidade dos "Paysans des Sept Laux" possibilita resgatar ou reelaborar uma identidade cultural que ultrapassa as fronteiras de classe ou de categorias sociais e que é reconhecida localmente como "camponesa". Mas, não é menos verdade que tal "identidade" é manipulada pelos aldeãos "urbanizados" como pretexto para se criar ou recriar formas de sociabilidade numa aldeia que, caso contrário, ou seja, se seguisse a mesma trajetória das suas vizinhas, teria se transformado num deserto social.

Na mesma aldeia, a crise da superprodução de leite decorrente da aplicação, pelo governo, do modelo produtivista, resultou em várias tentativas de diminuir a produção o que, consequentemente, gerou novas crises, desta vez de fundo social, que se refletiram diretamente nas formas de vida da população de pequenos agricultores das aldeias de montanha. Ameaçados de perderem a função social e econômica, como produtores de leite, esses agricultores se recusaram a aceitar a marginalização social decorrente das políticas voltadas para o encerramento das unidades produtivas consideradas inviáveis. Rejeitando a perspectiva de serem transformados em "jardineiros da natureza", essa população recria um conjunto diversificado de formas alternativas de reprodução social voltadas para uma nova realidade ode a produção agrícola deixa de ser fonte de renda exclusiva como também deixa de ser orientada totalmente para o mercado nacional e internacional. Novos produtos são estimulados pelo incremento do turismo local, tais como: o queijo e outros produtos chamados "da fazenda", tidos como "naturais" por sua forma de fabricação - artesanal - e sem agrotóxicos (geléias, iogurtes, patês, frangos e mesmo refeições congeladas). Essa criatividade em novas formas de produção é sustentada, em parte, pela recuperação de um saber "tradicional" que teria sido negado e "esquecido" pelo processo de modernização maciça a partir dos anos 60.

Como exemplo dessas novas formas de exploração da agricultura, cabe citar uma iniciativa das esposas dos agricultores. Recorrendo à memória dos antigos participantes das alpages - onde se fabricava um tipo de queijo específico da montanha - foi montada uma pequena associação com o objetivo de fabricar e comercializar esse tipo de queijo. Com a permissão do governo para utilizarem a produção excedente do leite de suas fazendas, essas mulheres criam todo um sistema de produção coletiva de queijo que envolve até um fabricante de uma cidade vizinha, finalizando com a comercialização do produto nas estações de esqui e em lojas de "produtos naturais" das cidades vizinhas. Além de contribuir para aumentar a renda familiar, essa atividade estimula, ao mesmo tempo, o convívio social entre os vizinhos, fortalecendo os laços de solidariedade local e reforçando o sentimento de pertencimento à aldeia. 

 

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No outro universo de pesquisa, na região serrana do Rio de Janeiro, a expansão da exploração turística abre novas possibilidades de trabalho para o conjunto da mão-de-obra familiar, contribuindo para o aumento da renda e para uma visível melhoria das condições de vida de parte da população rural que, ao ter garantida uma renda fixa e razoavelmente estável em sua própria localidade de origem, passa a relativizar o projeto de migração em busca de emprego e salário na cidade. As condições no campo tornam-se realmente mais atraentes: salário para um ou vários membros da família; benefícios sociais garantidos com a carteira assinada; possibilidade de se dedicar a várias atividades remuneradas, já que as atividades de prestação de serviços aos turistas os ocupam basicamente nos finais de semana; uma rede de solidariedade apoiada nos laços de parentesco, amizade e vizinhança e, o que contribui definitivamente para diminuir as despesas em relação à alternativa da migração para a cidade, a possibilidade de poder contar com um local de residência sem pagamento de aluguel já que sempre se mantém um pequeno lote com a casa de morada. Esta, muitas vezes, passa a ser o símbolo da nova condição social, tomando mais importância que anteriormente, quando a atividade agrícola era a fonte exclusiva de renda. Assim a residência vai, pouco a pouco, se transformando e assumindo características definidas como "urbanas", num processo longo, e talvez interminável, de reformas. Externamente, a antena parabólica e a fachada azulejada com esquadrias de alumínio são as marcas de distinção que sugerem a adoção dos novos padrões. Internamente, o conjunto de estofados, os móveis da sala de jantar e os aparelhos eletrodomésticos complementam a distinção para aqueles que "melhoram de vida". 

Conscientes de que a hora de trabalho consagrada às atividades não - agrícolas é melhor remunerada que a ocupada pela produção agrícola, pequenos proprietários sem condições de investir em alternativas mais rentáveis são levados a vender suas propriedades, que são transformadas em sítios e lazer, e a se assalariarem nas funções de jardineiro ou de caseiro, freqüentemente na sua ex-propriedade.

A procura por terras para a construção de "casas do campo" reorienta as estratégias familiares de transmissão do patrimônio. Ao se desassociar da produção agropecuária e do valor simbólico ligado à família, a terra assume o valor exclusivo de mercadoria, sendo facilmente  repartida e vendida aos turistas, muitas vezes, no mesmo ato de partilha da herança, "para economizar as despesas de cartório". Assim, a terra passa diretamente do pai aposentado, ou da mãe viúva, para um "de fora", sendo que o rendimento da transação é apropriado pelo filho herdeiro que não experimenta mais a posição de agricultor independente.

Apesar da proximidade entre o município de Nova Friburgo e a cidade do Rio de Janeiro, grande mercado consumidor de hortifrutigranjeiros, os distritos de São Pedro da Serra e Lumiar apresentam uma longa história de esforço de seus agricultores pela manutenção da atividade agrícola, atualmente centrada no cultivo do inhame - principal produto - e de outros em menor quantidade como banana, couve-flor, batata doce, repolho, pimentão, tomate, feijão, milho... que são produzidos por cerca de 530 famílias.

Grosso modo, é possível reconhecer três tipos de agricultores na região. O agricultor tradicional que encontra no baixo índice de mecanização associado à baixa qualidade dos solos, às áreas reduzidas, à topografia acidentada e à ausência de créditos, motivos suficientes para o desestímulo. Mantendo uma produção em escala bastante reduzida, tem sua reprodução social constantemente ameaçada pela falta de competitividade de seus produtos, mesmo no mercado regional mais próximo (o de Nova Friburgo), orientando-os para o consumo doméstico e para o mercado local. Parte desses agricultores está abandonado a atividade agrícola, o que tem sido estimulado pela expansão do turismo na região. Sem condições para aumentar a produção, vendem seus pequenos lotes para se tornarem jardineiros ou caseiros. Outros complementam a renda agrícola com a prestação de pequenos serviços à população de turistas: os homens como auxiliares de pedreiros ou jardineiros, as mulheres como lavadeiras ou domésticas.  Dadas as suas condições de produção, suas propriedades não são vistas como um capital produtivo de onde poderia se tirar um rendimento financeiro, mas como uma reserva de capital que será utilizada assim que chegar a hora e se encontrar um comprador , o que dependerá, nas condições atuais, não mais na qualidade da terra para a produção agrícola mas do que é valorizado pelos turistas? Facilidade de acesso por carro, proximidade do centro da aldeia e natureza exuberante. Para os que têm algum capital, a construção de casas de aluguel tornou-se uma alternativa significativa.12

A agricultura tradicional também é exercida por não-proprietários que exploram um lote na terra de outros na condição de meeiros. Alguns desses investem o que recebem na atividade agrícola na construção de "casas de aluguel". Das famílias de meeiros (conhecidos localmente como "colonos") sai o maior contingente de jovens que irá responder à demanda de trabalho gerada pela exploração turística. Para esses, o projeto de futuro não passa mais pela agricultura, o que se deve muito menos à vontade do que ao reconhecimento das dificuldades existentes:

Trabalhar de pedreiro dá mais dinheiro. É o seguinte, eu tô trabalhando a R$ 30,00 a diária. Aí eu trabalho 10 dias, dá R$ 300,00. Na lavoura eu tenho que trabalhar 20 dias,  30 dias prá ganhar isso, só que o trabalho da lavoura é mais gostoso, eu acho melhor. Você trabalha à vontade, não precisa ter tanta ciência no trabalho, você não precisa tomar tanta atenção como é na obra (duplo-ativo: meeiro-pedreiro, 25 anos)13

A categoria dos pluriativos, como em todo lugar, é ambígua e heterogênea em sua origem e conformação. Aqui ela inclui aqueles que, por ausência de meios ou de vontade, não adotaram o modelo de agricultura modernizada, optando por manter uma agricultura articulada a outras atividades que lhes possibilitam uma renda superior à renda agrícola. O que distingue essa categoria dos agricultores tradicionais é muito mais uma visão empreendedora voltada para a explorações dos recursos e das novas oportunidades locais cuja renda pode ou não reverter para um investimento futuro na agricultura. Alguns desses produtores podem abandonar a atividade agrícola conforme o sucesso de suas atividades extra-agrícolas que estão normalmente relacionadas ao turismo, tais como: pequenas pousadas ou restaurantes, prestação de serviços para os novos proprietários rurais de origem urbana, pequeno comércio...

Cabe registrar que a exploração do turismo praticada pelos agricultores reproduz a mesma lógica familiar que organiza a produção agrícola. A pousada é construída com o próprio capital familiar recorrendo aos saberes polivalentes dos membros da família. A manutenção e o atendimento aos turistas também fica a cargo da mão-de-obra disponível na família sendo controlada e regulada pelo parentesco. A produção do lucro é dependente das potencialidades familiares não sendo necessariamente o objetivo principal do empreendimento que, ao menos nessa fase inicial em que se encontra a exploração turística local, está mais orientado para a constituição de uma atividade econômica alternativa à agricultura que responda às necessidades de reprodução dos membros da família -sobretudo dos jovens-  respeitando o valor da auto-determinação da cultura camponesa. Mesmo as raras iniciativas de capital vindo de fora se subordinam, por enquanto, às dimensões e formas de organização dominantes na região.

As características da industrialização e das oportunidades do mercado de trabalho da cidade de Nova Friburgo influenciam também o tipo de atividades complementares exercidas nos distritos, sobremaneira para as mulheres. A existência de um grande número de indústrias têxteis, principalmente de roupas íntimas, fez com que a cultura local se adaptasse ao novo mercado. Apoiadas no costume antigo, comum às mulheres de algumas famílias, da costura como uma forma de complementação de renda, ainda que restrita ao círculo de vizinhos, desenvolveram-se, no local, pequenas confecções de roupas íntimas, sob diferentes tipos de contratos, articuladas a intermediários ou comerciantes não apenas de Nova Friburgo mas de cidades mais distantes. Entre elas destaca-se um pequeno número de confecções  independentes que fornecem diretamente para o comércio local favorecido pela presença de turistas.

O contingente de agricultor modernizado ou em vias de modernizar-se é em número bem menor nessas localidades. Os poucos produtores nessa categoria se sustentam, como os demais, na mão-de-obra familiar auxiliada por alguns poucos trabalhadores sob o sistema de parceria. É fundamental, portanto, a existência de filhos homens na composição do grupo doméstico. Esses produtores se destacam dos demais sobretudo pela íntima relação com o mercado regional - o que pode ser observado  no volume e na qualidade da produção - pela mecanização e pela utilização de técnicas aprimoradas. Além disso se distinguem pela posse de meios de transporte, o que viabiliza não apenas a comercialização de seus produtos como também garante um suplemento de renda na comercialização da produção de vizinhos. Destacam-se também por dominarem razoavelmente o cálculo financeiro e por terem um contato mais íntimo com os agentes financeiro ainda que a resistência ao crédito seja muito forte.

A observação de Pernet para o caso francês pode ser útil para entendermos a lógica de inserção desses agricultores na economia e na sociedade. Para Pernet, a forma de inserção de cada tipo de agricultor à economia e à sociedade global define uma racionalidade e uma lógica de funcionamento específica para a agricultura que se desenvolve, o que se expressa na maneira como se relacionam com o trabalho, com a propriedade dos meios de produção e com o progresso técnico (Pernet, 1990). Esse autor reconhece espaços econômicos e sociais diferenciados para cada tipo de agricultor que são seus espaços de atuação e de articulação com o sistema social e econômico global ( mercados, aparelho do Estado, aparelho agroindustrial...).

Essa noção de esferas de reprodução, estruturadas social e economicamente de formas distintas, ajuda-nos a pensar a ruralidade e a localidade hoje Dentro desses territórios encontram-se redes de sociabilidades que se sobrepõem, mas não se confundem. Para o agricultor tradicional esse espaço pode ser reduzido à "localidade", ou seja, ao círculo da vizinhança, do comércio e das relações políticas mais próximas em termos geográficos, confundindo-se com as redes de amizade e de parentesco. Já os agricultores modernizados, assim como parte dos pluriativos, mantêm relações mais diversificadas e mais freqüentes com instâncias de territórios mais amplos: rede de comercialização, sistemas de informações técnicas e de financiamento de amplitude regional, no primeiro caso, e pessoas de classe média urbana, no segundo caso.

 

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Difícil  de ser atribuir à ruralidade uma definição uniforme, a noção hoje nos remete ao antigo debate sobre a transformação, e a decorrente extinção, da tradição cultural fundada na prática agrícola de um tipo de produtor específico - o agricultor familiar ou o camponês. Tradição esta que, segundo alguns autores, estaria sendo destruída pelo desenvolvimento capitalista, dando lugar a padrões culturais  urbanos que tenderiam a predominar em espaços até então definidos como "rurais", acarretando uma homogeneização do estilo de vida e dos valores urbanos em toda a extensão territorial  sob a interferência da sociedade urbano-industrial. Por homogeneização não se entende a uniformização dos padrões de vida, mas a reprodução das heterogeneidades das cidades no campo.

O desaparecimento da fronteira entre o "rural" e o "urbano" estaria, portanto, diretamente associado à idéia de descaracterização do que poderíamos chamar de "cultura camponesa" ou "racionalidade camponesa". Nesse sentido, as relações sociais e as organizações sociais se disporiam em um continuum entre dois eixos que variariam apenas de intensidade (do mais ao menos urbano) e não mais de natureza. No entanto, as considerações aqui apresentadas nos encaminham para o questionamento dessa abordagem. Os argumentos levantados nos orientam na direção de considerar a ruralidade não mais como uma realidade empiricamente observável mas como uma representação social, definida culturalmente por atores sociais que desempenham atividades não homogêneas e que não estão necessariamente remetidas à produção agrícola.

Nessa perspectiva, entende-se que a expansão da sociedade urbano-industrial e as transformações por ela engendradas no campo não implicam obrigatoriamente a descaracterização das culturas locais, ou tradicionais, mas a redefinição ou reelaboração de práticas e códigos culturais, a partir da relação de alteridade com o que é reconhecido como "de fora", de maneira a poder consolidar a identidade local com base no sentimento de pertencimento a uma dada localidade. Caberia, talvez sustentar as observações e análises na noção de localidade como expressão das múltiplas possibilidades de interação dos agentes sociais à sociedade e à economia global. Nesse sentido, reconhecer espaços de sociabilidade e de articulações econômicas distintos dentro de uma mesma localidade pode ser útil para romper com as oposições binárias e dar conta das inserções plurais dos indivíduos socialmente posicionados na sociedade urbano-industrial. Como sustentamos, a ruralidade não é mais possível de ser definida com base na oposição à urbanidade. O rural e o urbano corresponderiam, portanto, a representações sociais sujeitas a reelaborações e ressemantizações  diversas de acordo com o universo simbólico a que estão referidas. A ruralidade se expressa de diferentes maneiras como representação social - conjunto de categorias referidas a um universo simbólico ou visão de mundo - que orienta práticas sociais distintas em universos culturais heterogêneos, num processo de integração plural com a economia e a sociedade urbano-industrial.

Finalmente, arriscaria sugerir a possibilidade de que "culturas camponesas" possam se manter, modificadas é claro, e mesmo ser reforçadas no processo de modernização que, de maneira alguma, segue um caminho único e homogeneizador. Nesses termos assumo como hipótese de trabalho, inspirada em Giovanni Lévi (199) e em Pongratz (1990), que a "racionalidade camponesa" pode persistir no contexto de predominância da sociedade urbano-industrial desde que ela não seja percebido como um modelo cristalizado, uniforme e a-histórico, no sentido de uma cultura específica e universal, mas no sentido de uma visão de mundo pautada em relações sociais específicas e que se expressa ativamente, de forma a transformar e a recriar o seu mundo social e natural. É nesse contexto que, acredito, devemos produzir novos conhecimentos sobre o chamado "mundo rural" e entender a transferência de informação tecnológica e de valores em um espaço socialmente ocupado. É nesse contexto que devemos entender também o fenômeno da pluriatividade como uma forma alternativa de explorar a agricultura e, em conseqüência, como uma possibilidade de reelaboração de identidades sociais.

 

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Notas

1 O debate sobre a pluriatividade foi inaugurado na França com o colóquio organizado pela Association Ruraliste Française (ARF), cujos trabalhos foram publicados sob o título La pluriactivité dans les familles agricoles, Paris, ARF, 1984; destaca-se também o colóquio organizado pela Arkketon Research, Inra & IAM (1987); para uma revisão do debate francês, ver Carneiro (1996). Ver ainda: Fuller, Gasson (1988), entre outros.

2 As categorias "camponês" e "agricultura familiar" seguem trajetórias distintas, recebendo tratamentos diferenciados quanto aos elementos definidores. Enquanto a primeira destaca o componente cultural - o camponês como "modo de vida" correspondente a um contexto "não capitalista"-, a segunda é formulada com ênfase na relação com o mercado capitalista. Contudo, como será defendido no decorrer deste artigo, tal distinção acaba por reduzir a compreensão da dinâmica de reprodução social desses agricultores. A bibliografia sobre esse tema é vasta, cito apenas Neves (1995) e Abramovay (1992).

3 O debate sobre a "descampenização" do campo europeu ocupou muitos autores durante muito tempo, dentre eles, destaco: Mendras (1976); Rambaud (1969); Kayser (1990).

4 Ver Schneider (1994) e Anjos (1995); para uma revisão do debate francês sobre a pluriatividade nos anos 80, ver Carneiro (1996). Outros autores, ainda que não recorram à noção de pluriatividade, descrevem a analisam sistemas de reprodução social que combinam atividades agrícolas com não-agrícolas; ver, entre outros, Garcia Jr, (1989) e Lovisolo (1989).

5 Para uma síntese das diferentes vertentes desse debate na Europa, ver Kayser (1990).

6 Para um outra abordagem analítica das exposições agropecuárias ver Neves (1996).

7 Bragatto (1997) observa, entre antigos moradores de uma dada localidade, a presença de uma orientação espacial referida a elementos geográficos já destruídos pela ação de um grande empreendimento turístico.

8 Na compreensão de Halbwachs (1990), a memória coletiva encontra sua força e duração no fato de ser sustentada por um conjunto de indivíduos cuja lembrança do passado é referida a sua condição de membros do grupo.

9 Para um estudo mais detalhado dessas festas, especificamente, ver Carneiro (1995). Para a análise de outras festas do mesmo tipo no campo francês, ver Champagne (1977) e Collomb (1980).

10 Esse grupo é conhecido como "Les Paysans des Sept Laux".

11 Estamos usando a noção de "autoprodução" sugerida por Pinçon (1986).

12 Em 1996, o aluguel de uma casa de dois quartos variava entre um salário mínimo e meio a dois salários mínimos mensais. Os contratos de locação são sempre verbais e por tempo indeterminado dependendo, portanto, das relações pessoais que se estabelecem entre locador e locatário.

13 Essas observações foram colhidas em 1995 pelas bolsistas de IC do CNPq Patrícia Ribeiro da Silva e Vanessa L. Teixeira. Comunicação de pesquisa Turismo e pluriatividade entre pequenos agricultores da Região Serrana, RJ, apresentada por esta última no Workshop "Agricultura e meio rural fluminense", UFRRJ, UFRJ, UFF e Apipsa, 1996.