Estudos Sociedade e Agricultura

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Helmut Schwarzer

Previdência rural e combate à pobreza no Brasil – Resultados de um estudo de caso no Pará


Estudos Sociedade e Agricultura, 14, abril 2000: 72-102.

Resumo: (Previdência rural e combate à pobreza no Brasil – Resultados de um estudo de caso no Pará). A pesquisa investiga os impactos socioeconômicos das aposentadorias rurais no Brasil e, especificamente, na Amazônia Oriental. Efetuou-se uma pesquisa de campo em Igarapé-Açu (PA), a Nordeste de Belém.

Palavras-chave: Previdência rural, previdência social, pobreza rural.

Abstract: (Rural pensions and the struggle against poverty in Brazil. Some results of an inquiry in Pará). The paper examines the socio-economic impacts of the Brazilian rural pension scheme in the Eastern Amazon. The study is based on field research in Igarapé-Açu (PA), in northeast Belém.

Key words: Rural Pensions, Social Security, Rural Poverty.

O presente artigo é versão resumida do relatório de pesquisa “Impactos sócio-econômicos do sistema de aposentadorias rurais no Brasil – evidências empíricas de um estudo de caso no Estado do Pará”, a ser publicado como Texto de Discussão pelo Ipea. Os trabalhos contaram com financiamento do Programa Shift (do Ministério Federal da Educação e Pesquisa/Alemanha e do CNPq/Brasil). Agradecimentos especiais são devidos aos Professores Manfred Nitsch (FU Berlin) e Thomas Hurtienne (UFPA/Naea), bem como e Guilherme Delgado (Ipea).

Helmut Schwarzer é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea/Brasília-DF.


Introdução

A importância da percepção de um benefício da Previdência Rural por uma família de pequenos produtores, com claros impactos sobre o seu comportamento produtivo-econômico, reprodutivo-familiar e sociopolítico, foi repetidas vezes observada em trabalhos de campo de pesquisadores dos projetos Shift no Nordeste Paraense nos anos 90, mas muito pouco documentada na literatura (exceto por Delgado, 1994 e 1997). A partir de observações iniciais, das conclusões de Delgado (1994; 1997) e de outros indicadores, parece possível afirmar que o subsistema rural da Previdência Social brasileira é, entre os casos conhecidos em países em desenvolvimento, um programa social excepcional quanto ao significativo grau de cobertura, à alta precisão do targeting (embora a focalização nos mais pobres não seja intencional, uma vez que as regras referentes ao plano de benefícios e ao modo de contribuição são universalizantes) e, como resultante do anterior, parece formar um programa que tenha uma efetividade inédita no combate à pobreza no meio rural brasileiro. Estes fortes impactos socioeconômicos, tratados mais abaixo neste artigo, constituíram o objeto central de uma pesquisa efetuada no Estado do Pará em 1998, sob os auspícios do Programa Shift e enquadrada no Projeto ENV 44 – “Pequena Produção na Amazônia” (UFPA/Naea e FU Berlin).

A Previdência Social é uma instituição social muito complexa, fruto de uma longa evolução histórica, que fundamentalmente possui por objetivo substituir o rendimento monetário dos seus segurados no caso de serem acometidos por algum “risco social”. Os principais riscos sociais, normalmente cobertos pelos sistemas previdenciários, são a idade avançada, a viuvez/orfandade e a invalidez. A Previdência proporciona, então, ao seu segurado um benefício monetário e, eventualmente, tratamento médico e reabilitação (no caso de invalidez temporária e acidentes de trabalho). As regras concretas, que definem a habilitação de algum segurado a um benefício (idade de aposentadoria, grau de invalidez considerado etc.) e os parâmetros do benefício (base de cálculo, grau de reposição dos rendimentos prévios, valor mínimo e outros) são objeto de acordo sociopolítico em cada sociedade, podendo variar de país para país e de época para época, conforme os julgamentos de valor que a sociedade faça. Da mesma forma, a estrutura de financiamento do sistema varia muito no tempo e no espaço. Três são as fontes financeiras mais citadas: contribuições dos segurados, recursos tributários e rendimentos de um portfólio de investimentos, administrado pela instituição gestora do sistema. Usualmente os sistemas nacionais existentes utilizam um mix de fontes, com proporções variáveis, sendo que, em geral, os componentes redistributivos tendem a ser financiados com base em recursos tributários. Como mesmo um financiamento apenas contributivo também implica em uma transferência de renda entre duas gerações –a geração ativa e a geração dos inativos– e se os contribuintes e os beneficiários de um mesmo período majoritariamente pertencerem a grupos com características socioeconômicas diferenciadas ou residirem em regiões diferentes, há a possibilidade de que o processo de transferência de renda implícito na arquitetura do sistema previdenciário tenha impactos redistributivos interpessoais e interregionais significativos, o que, conforme será constatado, é o caso do sistema previdenciário rural no Brasil.[1]

O modelo previdenciário bismarckiano, adotado na América Latina e baseado em contribuições do segurado sobre seu rendimento para o financiamento do esquema e para a determinação do acesso aos benefícios, não dá conta da realidade rural. Este modelo foi desenhado em primeira linha para trabalhadores urbanos, primordialmente industriais, com emprego assalariado formal e rendimentos regulares. No âmbito agrícola, no entanto, os rendimentos apresentam-se em periodicidades diferentes das urbanas, com irregularidade de fluxos monetários, formas diferenciadas de trabalho além do assalariamento formal (posse, pequena propriedade com agricultura familiar, trabalho volante, parceria, arrendamento etc.) e, em especial no caso da América Latina, uma subordinação da dinâmica agrícola ao restante da dinâmica urbano-industrial dentro do modelo de desenvolvimento adotado nas décadas passadas, que, além de financiar investimentos com transferências de recursos do setor agropecuário ao industrial, deixou uma vasta extensão de agricultores familiares excluídos. Desta forma, a capacidade contributiva do setor rural para um sistema de previdência bismarckiano é extremamente limitada – o que se reflete em um histórico de baixíssimas taxas de cobertura entre a população ocupada na agricultura na quase totalidade dos países latino-americanos (vide Mesa-Lago, 1994). Conforme a experiência internacional indica, há a necessidade de estruturas de financiamento alternativas e/ou complementares à contribuição sobre o rendimento, a fim de universalizar a cobertura. Além disto, a maioria dos países com sistemas previdenciários especificamente voltados ao setor rural oferecem benefícios em um patamar inferior ao da previdência “urbana”, dentro da capacidade de financiamento local aos subsídios, que sempre serão indispensáveis.

A Previdência Rural no Brasil: origem e dimensão

O ano de 1923, quando a Lei Elói Chaves permitiu a criação das antigas Caixas de Aposentadorias e Pensões, sucessivamente reestruturadas até desembocarem no atual INSS, é tradicionalmente dado como o marco oficial da criação da Previdência em moldes atuais no Brasil. Embora já a Constituição de 1934 previsse que todo trabalhador possuiria direito à proteção previdenciária (Malloy, 1976), a extensão da proteção social aos trabalhadores rurais somente iniciou-se nos anos 60. O principal motivo para tal atraso parece ser que os trabalhadores rurais, não obstante a população rural constituir a maioria da população brasileira até então, não apresentarem capacidade de vocalização política suficiente a tal ponto que o Estado populista-paternalista nela visse um grupo social a ser integrado e cooptado por meio da expansão da cobertura de programas sociais. Este padrão histórico de expansão da cobertura previdenciária, em círculos concêntricos desde o núcleo de trabalhadores funcionalmente estratégico nos respectivos modelos de desenvolvimento, relegando os setores rurais e urbanos informais, é característico de quase toda a América Latina (Mesa-Lago, 1978).

Curiosamente foi o regime militar brasileiro (1964-1984), conservador e autoritário, quem expandiu, de forma inédita, o sistema previdenciário ao setor rural. Várias razões explicam esse comportamento aparentemente paradoxal (Malloy, 1976). Entre outros, a tecnocracia previdenciária identificava-se com o mainstream da época, orientado por princípios da OIT, que propunha a universalização da cobertura. Além disso, dado que os anos 60 e 70 caracterizaram-se por uma política de modernização do setor rural marcada pela mecanização e quimificação das técnicas de cultivo, expansão da grande propriedade e produção de commodities exportáveis, uma reestruturação que significou um alto custo social para a pequena produção rural, havia um temor em relação a perturbações sociais na área rural. Terceiro, interessava a possibilidade de, por meio de um programa social de cunho paternalista e centralmente administrado, aumentar a dependência individual em relação ao Estado e cooptar organizações sociais tais como os sindicatos de trabalhadores ou empregadores rurais. Quarto, o desejo de evitar a intensificação da migração rural-urbana ao disponibilizar assistência médica e benefícios monetários no campo. Por fim, a doutrina de segurança nacional do governo militar intencionava, com um programa de integração do setor rural ao projeto de desenvolvimento nacional, manter a “paz social” com a criação de “justiça social”.

Concretamente, é a Lei Complementar 11 de 1971 que viabiliza o sistema rural ao criar o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural), cuja administração ficou ao encargo do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (Funrural). Este cobriu os trabalhadores rurais, pescadores (a partir de 1972) e garimpeiros (a partir de 1975), bem como seus dependentes, oferecendo como benefícios a aposentadoria por idade aos 65 anos, a aposentadoria por invalidez, a pensão para viúvas e órfãos, auxílio-funeral e assistência médica. A aposentadoria por idade ou invalidez era devida apenas ao chefe de família e perfazia meio salário mínimo. A pensão equivalia a 30% do salário mínimo. A partir de 1974/75 foi incluída no plano de benefícios a Renda Mensal Vitalícia por invalidez ou para idosos a partir dos 70 anos de idade, para os que não completassem os requisitos estabelecidos para a aposentadoria/pensão, também no valor de meio salário mínimo, bem como o seguro de acidentes de trabalho rural. A assistência médica era administrada via convênios com organizações locais, em especial via sindicatos rurais, os quais estavam explicitamente previstos como parceiros na Lei do Funrural. O financiamento dos benefícios era feito com uma contribuição de 2,0% sobre o valor de comercialização da produção rural, a cargo do adquirente. Além disto, uma alíquota de 2,4% sobre a folha de salários urbana complementava a estrutura de custeio do Funrural. Em 1977, com a criação do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), o programa de benefícios monetários passou a ser administrado pelo INPS, os benefícios médicos pelo recém-criado Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e a instituição administrativa Funrural foi extinta. Apesar de mais de 22 anos terem passado desde a extinção da agência, a sua sigla continua sendo coloquialmente usada na área rural para denominar as aposentadorias rurais – um inequívoco indicador da extrema popularidade que o programa alcançou.

Saliente-se que o Prorural representou um duplo rompimento com os princípios do seguro social de padrão contributivo bismarckiano, que caracterizaram a história da Previdência Social na América Latina no século XX (Malloy, 1976). Em primeiro lugar, houve a ruptura com a noção de que a um benefício deve corresponder uma contribuição e, segundo, que o benefício resultante deve estar vinculado ao padrão de rendimentos pregressos do segurado. Outro elemento diferenciador consiste no fato de que há, no programa, uma redistribuição de renda no sentido urbano-rural, contrarrestando, ao menos parcialmente, o subsídio rural-urbano implícito na forma de financiamento dos sistemas urbanos mediante contribuição sobre a folha salarial, cuja parcela patronal geralmente é repassada para os preços dos bens consumidos também na área rural. (Oliveira/Bevilaqua s.d.; Malloy, 1976)

O programa previdenciário rural no Brasil possui sua atual configuração legal determinada pela Constituição de 1988 e pelas Leis 8.212 e 8.213, de 1991. Esta legislação significou uma alteração conceitual profunda para o sistema, pois extingüiu-se o tratamento administrativo-institucional separado dado até então ao setor rural na Previdência Social e incluiu-se os trabalhadores rurais e os segurados produtores familiares, chamados de “segurados especiais”, no plano de benefícios normal do Regime Geral de Previdência Social. As mulheres trabalhadoras rurais vieram a ter acesso à aposentadoria independentemente de o cônjuge já ser beneficiário ou não. A primeira especificidade de tratamento, no entanto, continuou residindo na forma de contribuição do segurado especial, onde, ao invés de contribuições sobre a remuneração percebida, manteve-se a contribuição sobre a produção comercializada, cujo recolhimento é encargo do comprador (em 1999 de 2,2% sobre o valor de venda, sendo 0,1% destinado ao seguro de acidentes de trabalho e outro 0,1% ao Serviço Nacional de Aprendizagem Rural - Senar). Em termos de plano de benefícios, tal qual para os segurados “normais” do INSS, o piso de benefícios para aposentadorias (pensões) dobrou (triplicou) e passou a ser de um salário mínimo, aplicável também aos benefícios concedidos antes de 1988. Outra especificidade de tratamento reside na idade de acesso à aposentadoria por idade mais baixa, fixada em 60/55 anos para homens/mulheres no meio rural (65/60 para homens/mulheres entre segurados urbanos). Uma terceira diferença de tratamento corresponde à carência, que, ao invés do período de contribuição mínimo previsto para os segurados urbanos, pode ser cumprida mediante comprovação de tempo de atividade rural de igual extensão, a ser feita, além das possibilidades elencadas para os trabalhadores urbanos, por documentação comprobatória do uso da terra (contrato de parceria ou arrendamento, termo de propriedade do terreno etc.), notas de venda da produção rural (bloco de notas do produtor rural) ou declaração expedida pelo sindicato rural e homologada pelo INSS.

Por meio da Lei 8.742/1993, a “Lei Orgânica da Assistência Social” (Loas), regulamentou-se a substituição da Renda Mensal Vitalícia, pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou amparo assistencial, de valor correspondente a um salário mínimo mensal. O BPC, nas suas modalidades idoso e pessoa portadora de deficiência (PPD), não mais diferencia entre a clientela rural e a urbana e independe de contribuição prévia, prevendo que a renda familiar mensal per capita do candidato ao benefício seja menor que ¼ do salário mínimo. Na modalidade BPC-Idoso, a idade de acesso é de 67 anos (para ambos gêneros, caindo a 65 anos em 2000) e na modalidade PPD inclui-se, além da invalidez já contemplada pela RMV, também as deficiências congênitas. O BPC passou a ser concedido a partir de janeiro de 1996, financiado por recursos orçamentários, sendo seu pagamento efetuado pelo INSS.

Gráfico 1. Brasil: Quantidade de Benefícios Rurais Mantidos, 1980-1999.

  Caixa de texto:

Com a implementação da nova legislação referente à Previdência Rural a partir de 1992, verificou-se um pronunciado aumento do número de benefícios mantidos (vide Gráfico 1), com um salto de um total de 4,11 milhões de benefícios (1991) para um pico de 6,48 milhões (1994) devido basicamente ao incremento do estoque de aposentadorias por idade. Isto se deu pois as novas regras universalizaram o acesso feminino ao subsistema, além de reduzirem a idade para a aposentadoria por idade em 5 anos.

A quantidade de 6,48 milhões de benefícios mensais representava mais que 1/3 do total de benefícios previdenciários mantidos no INSS. Desde 1994, o estoque de benefícios têm descendido lentamente, onde a maturação demográfica vêm determinando um leve aumento do número de benefícios por idade e de pensões mantidas até 1997, contrabalançado pela queda gradual do número de benefícios assistenciais (RMV) não mais concedidos desde 1995. Note-se que a estatística não capta os amparos assistenciais da Loas, contabilizados fora do subsistema rural.

Na Tabela 1 relaciona-se a população brasileira residente na área rural e de beneficiários da Previdência rural segundo as macrorregiões brasileiras e os estados com o maior contingente de população rural. Dado que o conceito censitário de população rural (relacionado ao local do domicílio) é divergente do conceito previdenciário de “rural” (relativo à ocupação exercida pelo segurado no passado), uma comparação entre ambas grandezas possui valor apenas limitado. Conforme a tabela, é na macrorregião Nordeste que estão localizadas pouco mais que 45% tanto da população, captada pela Contagem Populacional de 1996, quanto da população de beneficiários rurais mantidos pelo INSS. Além disto, é interessante destacar que a Região Norte e os estados do Pará e Maranhão, com áreas de ocupação recente e estruturas demográficas mais jovens, bem como grau de urbanização menor que os demais estados citados, apresentam participação no total de benefícios rurais emitidos no Brasil menor que sua parcela da população rural.

Tabela 1. Brasil: População rural residente, 1996, e benefícios rurais emitidos, 1999, segundo s Grandes Regiões e Unidades da Federação selecionadas.

 

População rural
(1996)

Benefícios rurais emitidos (Mar/99)

 

Absoluto

%

Absoluto

%

Brasil - Região

33.997.406

100,00

6.096.594

100,00

Norte

4.250.766

12,50

441.232

7,24

Nordeste

15.575.505

45,81

2.776.066

45,53

Sudeste

7.177.111

21,11

1.370.825

22,49

Sul

5.358.380

15,76

1.183.706

19,42

Centro-Oeste

1.635.644

4,81

324.765

5,33

Estados

 

 

 

 

Bahia

4.714.902

13,87

724.620

11,89

Minas Gerais

3.598.852

10,59

700.348

11,49

Pará

2.561.832

7,54

220.587

3,62

Maranhão

2.511.008

7,39

340.649

5,59

São Paulo

2.351.667

6,92

456.252

7,48

Ceará

2.096.483

6,17

432.469

7,09

Rio Grande do Sul

2.056.452

6,05

484.471

7,95

Paraná

1.991.814

5,86

472.940

7,76

Pernambuco

1.922.216

5,65

405.497

6,65

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil.

Impactos socioeconômicos das
aposentadorias rurais em Igarapé-Açu,
Estado do Pará

Caracterização socioeconômica da Bragantina e de Igarapé-Açu[2]

O município de Igarapé-Açu, na Microrregião da Bragantina foi escolhido como local de pesquisa devido à arquitetura do próprio projeto Shift ENV 44, que desde 1994 vem realizando um mapeamento socioeconômico local, com vários trabalhos correlacionados (evolução dos sindicatos da região, dinâmica da pequena produção agrícola, financiamento e comercialização da produção local, racionalidade e estrutura de decisões das famílias produtoras rurais, a economia do maracujá e outros; vide, por exemplo, Rogge, 1996; Kummer, 1999; Wander, 1999).

A Microrregião da Bragantina está localizada na Região Nordeste do Estado do Pará, próximo à costa atlântica, fazendo limite com o Estado do Maranhão a leste. Formada por 13 municípios, entre os quais os de maior número de habitantes são Bragança e Capanema, possuía em 1996, conforme a Contagem da População do IBGE, 301.558 habitantes. A ocupação da Bragantina deu-se inicialmente por migrações de curta distância provindas da região litorânea, navegando-se para tal pelos igarapés. Ao final do século XIX e princípio do século XX, a construção da ferrovia Bragança-Belém (1883-1908) trouxe novas ondas de migração do Nordeste para a Amazônia, principalmente conforme as grandes secas naquela macrorregião, além de alguns colonos de origem espanhola. Nesta época também foi fundado o município de Igarapé-Açu (1906), no qual foram abertas travessas paralelas e perpendiculares, formando quadrados de 2 quilômetros de lado, cada qual constituído por 10 lotes-pa-drão de 400 metros de frente por 1 quilômetro de profundidade. Essa estrutura quadriculada existe em grande parte ainda hoje e garante uma presença significativa da pequena propriedade: 94% dos agricultores do município tra-balham em propriedades de até 100 hectares de extensão (Arapiraca et. al., 1999).

Outro ponto de inflexão na história regional recente, igualmente marcado pela modificação estrutural da modalidade de transporte disponível na região (Hurtienne, 1999) é constituído pelo ano de 1965, quando foi desativada a ferrovia e concluída a construção da rodovia Belém-Brasília. A abertura de rodovias aprofundou o processo de despolarização da economia paraense oriental em relação a Belém. A Bragantina, que já possuía uma conexão comercial com os atacadistas do Sul-Sudeste e Nordeste via Castanhal, passou a estar definitivamente vinculada ao mercado nacional sem a intermediação de Belém. Este fato, no entanto, é paradoxalmente correlacionado na literatura com um enfraquecimento do dinamismo econômico da região e prejuízo de qualidade de vida desde então (Aragón Clérigo, 1996, Maia Gomes/Ver-golino, 1997), com estagnação nos anos 80. A conseqüência, no período como um todo, é um crescimento comparativamente fraco do PIB per capita, o qual, no caso da Bragantina, estimava-se estar, em 1993, em nível semelhante ao de uma década e meia atrás.

Sua economia é basicamente agrícola, não obstante a existência de alguns estabelecimentos industriais – em especial agroindustriais. A economia agrícola local é fortemente marcada pela pequena produção, cujo produto de cultivo mais freqüente é a mandioca. A produção é vendida sob a forma de farinha a intermediários de Belém, que passam aproximadamente de forma quinzenal.[3] A pequena produção é basicamente realizada com mão-de-obra familiar, havendo pouco assalariamento. O algodão, a pimenta e o maracujá constituem outros produtos locais, mas requerem dos agricultores um maior grau de capitalização, pois pressupõem investimento em infraestrutura (estaqueamento) e financiamento da compra de mudas e outros insumos.

Em uma avaliação da situação social com base nos Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) e de Condições de Vida (ICV),[4] é possível afirmar que a Bragantina e Igarapé-Açu são regiões comparativamente mais pobres e vulneráveis do Brasil e do Estado do Pará. Em comparação com todos os municípios do Brasil, o município de Igarapé-Açu localiza-se aproximadamente no topo do terço inferior em termos de IDH-Municipal. Desdobrando-se o IDH-M por subáreas, o melhor desempenho social do município passa a ser na área Educação e o pior, quase no final do ranking nacional, nas variáveis referentes à área Longevidade (vide Tabela 2). No tocante à renda familiar per capita média (componente do IDH-Renda), com 0,51 salário mínimo mensal Igarapé-Açu estava em 1991 expressivamente abaixo da média brasileira de 1,31, próximo mesmo da linha de pobreza (0,50 salário mínimo) utilizada como linha de corte no estudo do IDH-M. Os valores componentes do ICV-Longevidade, com uma expectativa de vida ao nascer de 57,8 anos e uma taxa de mortalidade infantil de 69,8 por mil crianças nascidas vivas em 1991, muito aquém das médias nacionais (63,3 anos e 49,5/1000), fazem com que o município situe-se, respectivamente, entre os 500 e os 1000 piores do país.

Tabela 2. Igarapé-Açu: Indicadores de desenvolvimento humano e
condições de vida, 1991.

Indicador

Valor para o
Brasil

Valor para
Igarapé-Açu

Posição do município no ranking nacional*

IDH-Municipal

0,742

0,472

2.890

IDH-Renda

0,942

0,348

2.706

IDH-Longevidade

0,638

0,547

3.998

IDH-Educação

0,645

0,521

2.679

ICV-Infância

0,747

0,571

3.049

ICV-Habitação

0,758

0,432

3.871

Fonte: PNUD/Ipea/FJP/IBGE (1998a).

Os indicadores foram calculados para 4.491 municípios, com base nos resultados do Censo 1991.

Tabela 3. Igarapé-Açu, Bragantina, Pará, Brasil e Sul Urbano: Indicadores da Estrutura Populacional, 1991.

 

Igarapé-Açu

Bragantina

Pará

Brasil

Sul
Urbano

% população em cada faixa etária

- 0-14 (Jovens)

44,5

45,0

42,5

34,7

31,5

- 15-64 (População ativa)

50,7

50,6

54,3

60,5

63,6

- 65+ (Idosos)

4,8

4,4

3,2

4,8

4,9

Taxas de dependência demográficas

Jovens/População ativa

0,88

0,89

0,78

0,57

0,49

Idosos/População ativa

0,09

0,09

0,06

0,08

0,08

Jovens+Idosos/Popul. ativa

0,97

0,98

0,84

0,65

0,57

Fonte: IBGE (Censo Demográfico, 1991).

Conforme o Censo de 1991, residiam em Igarapé-Açu 27.307 pessoas, 51% homens e 49% mulheres. Em 1991, encontravam-se nas faixas etárias aptas a solicitar aposentadoria rural por idade (60+/55+ para H/M) 1.045 homens e 1.221 mulheres. Na Tabela 3 estão dispostos alguns indicadores da estrutura demográfica do município de Igarapé-Açu e da Bragantina, comparados às médias do Estado do Pará, do Brasil e das áreas urbanas da Região Sul do país. É possível verificar que tanto Igarapé-Açu, quanto a Bragantina estão em estágios relativamente iniciais do processo que os demógrafos chamam de “transição demográfica”, ao longo do qual a população em estudo modifica seus perfis epidemiológicos e a distribuição da população por faixas etárias. Em Igarapé-Açu e na Bragantina em geral a participação da população jovem (definida como sendo a população de até 14 anos de idade completos) é alta, quando comparada com as médias das demais regiões e do Brasil.

O mercado de trabalho formal de Igarapé-Açu, conforme os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho, é bastante restrito, com apenas 376 vínculos empregatícios declarados no mês de dezembro de 1995. O maior empregador é a Prefeitura Municipal. A massa salarial paga no mercado de trabalho formal de Igarapé-Açu foi de 815,5 salários mínimos. Embora os dados da RAIS não representem o mercado de trabalho total do município e possivelmente estejam subdeclarados, transparece a grande importância do sistema de benefícios rurais para a dinamização da economia municipal de Igarapé-Açu ao comparar a massa salarial com a média de 2.660 benefícios rurais mensais emitidos pelo INSS em Igarapé-Açu em 1995. Ou seja, a Previdência Rural injetou em 1995 na economia municipal de Igarapé-Açu uma soma equivalente a mais que três vezes o valor da folha salarial formal. Ao comparar-se a massa de transferências efetuadas pela Previdência Rural com o valor de produção das lavouras segundo o IBGE, mostra-se que, em 1997, este último correspondeu a R$ 19,3 milhões ou 13.407,6 salários mínimos mensais, isto é: o valor transferido pelos benefícios rurais corresponde a pouco mais de um quinto (21,5%) do valor da produção de lavouras de Igarapé-Açu.

Resultados da pesquisa de campo

A pesquisa de campo foi efetuada em duas etapas. Um dos dois levantamentos foi realizado com base nos dados administrativos disponíveis no Posto de Benefícios de Castanhal, consistindo na montagem de uma amostra com dados caracterizadores do benefício e do beneficiário no caso de 10 por cento dos cartões individuais dos 3.401 benefícios mantidos. Na Tabela 4 está a estrutura do estoque de todos os benefícios mantidos pelo INSS em Igarapé-Açu em maio de 1998, incluindo os benefícios urbanos. Ressalta-se que mais que 4/5 dos benefícios pagos em agências bancárias de Igarapé- Açu correspondem ao subsistema rural, com destaque para a aposentadoria por idade. Por fim, cabe sublinhar na Tabela 4 ainda o volume expressivo de benefícios de caráter assistencial (Rendas Mensais Vitalícias e Amparos Assistenciais-LOAS), onde principalmente os amparos assistenciais para pessoas portadoras de deficiência têm-se expandido fortemente desde a sua implantação em 1996.

Tabela 4. Igarapé-Açu: benefícios de prestação continuada mantidos pelo INSS, por clientela e gênero do segurado beneficiário, maio 1998.

 

 

(em % do total geral)

 

Clientela

Feminino

Masculino

Total

Benefícios Urbanos

2,4

7,4

9,7

Benefícios Rurais

48,5

32,4

80,9

      Aposentadoria por Idade

34,4

26,5

60,9

      Aposentadoria por Invalidez

0,3

4,7

5,0

      Pensão por Viuvez/Orfandade

13,5

1,2

14,7

RMVs e Amparos

4,4

4,7

9,1

Gênero desconhecido

-

-

0,3

Total

55,3

44,4

100,0

 

Fonte: Amostra construída com base nos registros administrativos do INSS (Posto de Benefícios de Castanhal).

Obs.:Eventuais diferenças na somatória de linhas e colunas devem-se a arredondamentos.

A distribuição dos benefícios por gênero também difere entre os dois subsistemas: enquanto no urbano são muito mais freqüentes os beneficiários masculinos (explicado pela inserção predominantemente masculina no mercado de trabalho formal), o subsistema rural mantém muito mais prestações a mulheres do que homens. Além de ser explicado em parte por as mulheres poderem aposentar-se 5 anos mais cedo e terem expectativa de sobrevida maior, este último fato demonstra que o acesso feminino aos benefícios pelos critérios de atividade laboral definidos para a aposentadoria rural por idade é mais igualitário e universalizado.

O tempo médio decorrido desde a concessão dos benefícios rurais em manutenção é de 9,0 anos para benefícios femininos e de 11,2 anos para benefícios masculinos. Estes valores ainda estão influenciados pela extensão bastante recente do acesso aos benefícios para as mulheres, cujo tempo médio desde a concessão deve tender a superar o tempo médio relativo aos benefícios percebidos por homens. No tocante à idade média dos beneficiários rurais, os valores já se apresentam mais de acordo com a realidade demográfica: as beneficiárias femininas têm, em média, 68,8 anos de idade e os beneficiários masculinos 68,1 anos. Certamente a idade média feminina só não é mais distanciada da masculina pelo fato de as mulheres terem acesso à aposentadoria a partir dos 55 anos de idade.

Em uma segunda parte da pesquisa de campo, entre os meses de março e maio de 1998, foram realizadas entrevistas com beneficiários rurais e beneficiários do amparo assistencial (Benefício de Prestação Continuada –BPC– da Lei Orgânica de Assistência Social). Optou-se por entrevistas porque as pesquisas socioeconômicas regulares de abrangência nacional e regional (tal como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD) não permitem um nível de desagregação que diferencie benefícios previdenciários urbanos de rurais[5] e tampouco cobrem a região rural da Amazônia. As entrevistas foram baseadas em um questionário padronizado e efetuado com um grupo de beneficiários, escolhidos aleatoriamente a partir dos registros administrativos do INSS em Castanhal (Posto de Benefícios que administra os beneficiários do município de Igarapé-Açu), um pouco superior a 1% do total de benefícios creditados pelo INSS em agências bancárias do município. De uma lista com 50 nomes de beneficiários, entrevistou-se 36 pessoas ao longo dos meses de março a maio de 1998. Os benefícios abrangidos na amostra foram aposentadorias rurais por idade, por invalidez, pensões rurais, rendas mensais vitalícias e amparos assistenciais.

O questionário apoiou-se em modelo desenvolvido pelo Ipea, Fundação Joaquim Nabuco e Ipardes para a realização da pesquisa “Avaliação Sócio-Econômica e Regional da Previdência Rural”, efetuada nas Regiões Sul e Nordeste do Brasil em 1998. Ao manter-se várias perguntas-chave de teor semelhante (com algumas adaptações para os propósitos específicos do estudo em Igarapé-Açu), tencionou-se conservar a possibilidade de que os resultados de ambos trabalhos possam vir a ser comparados futuramente.[6] O roteiro de entrevista procurou, primeiro, localizar o entrevistado geográfica e familiarmente, bem como indagar sobre a origem migratória do entrevistado, dos seus pais e sobre se é responsável pela criação de netos, questões que mostraram-se relevantes a partir das histórias orais, contadas espontaneamente pelos entrevistados. Posteriormente procurou-se caracterizar o benefício recebido, mapear a história de acesso ao benefício e fatores intervenientes na relação segurado-INSS, e, por fim, identificar alguns impactos sobre a situação socioeconômica e o comportamento dos beneficiários, relacionados à percepção de um benefício.

Os beneficiários entrevistados são, na sua maioria, do sexo feminino (53%), aposentados por idade (75%) e possuem idade média de 61,4 anos, sete anos a menos que o valor médio constatado nos registros administrativos do INSS. Entre os beneficiários adultos (excluindo-se também os portadores de deficiência), o número médio de filhos e filhas vivos declarado foi de 7,2. O número médio de netos e netas vivos declarado foi de 12,3. Ambos valores apontam para o fato de que entre as famílias rurais há (ou havia até recentemente) um papel relevante para um elevado número de filhos nas estratégias de reprodução econômica das famílias.

A escolaridade média declarada pelos entrevistados é bastante baixa, de 1,8 séries escolares completas. Muito provavelmente também é, por sua vez, conseqüência destas estratégias produtivas familiares do passado. Em 13 casos (mais que 1/3), os entrevistados não possuíam nenhum ano de freqüência escolar. Percebeu-se, no entanto, ao longo das conversas espontâneas surgidas na entrevista, que parece haver uma reversão dos estímulos causadores da baixa escolaridade, onde um maior número de anos de estudo por parte dos descendentes e a possibilidade de um emprego melhor remunerado em um núcleo urbano próximo também passam a ser opções atraentes para as estratégias familiares.

O número médio de pessoas moradoras no domicílio do/a entrevistado/a, incluindo o próprio, é de 4,8 pessoas, abrangendo filhos, netos e, em alguns casos, outros parentes. Chamou a atenção o número de idosos responsáveis pela criação de netos: 19 disseram ser responsáveis em tempo integral pela criação de ao menos um neto/a, ao passo que 11 (17 entrevistados menos 2 pensionistas menores de idade e 4 receptores de amparo assistencial) não o são. Possivelmente este fato é conseqüência da circunstância de que os idosos, ao receberem um benefício previdenciário, possuem um patamar de renda monetária por vezes superior aos filhos, assumindo ônus na criação dos netos, para permitir aos filhos/as a procura e o exercício de trabalho remunerado com maior facilidade, inclusive naquelas ocupações que exijam deslocamentos geográficos crescentes.

Embora os entrevistados tivessem declarado, na média, como dependentes exclusivamente da renda monetária proporcionada pelo benefício 3,9 pessoas entre aquelas moradoras do domicílio, pode-se argumentar que todos os moradores do domicílio são beneficiados direta ou indiretamente pelo benefício previdenciário. A diferença de 0,9 representa o número médio de pessoas moradoras do domicílio do entrevistado que possuem outra fonte de renda regular (pelo trabalho próprio), a qual, ao final, também passará a alimentar o orçamento doméstico junto com o benefício recebido. Vale lembrar ainda que em pouco mais da metade das entrevistas (58,3%) havia a percepção de dois (em um caso de três benefícios) no domicílio de residência do entrevistado, sendo a ampla maioria dos casos constituídos por mais uma aposentadoria por idade do respectivo cônjuge ou, na minoria, por aposentadas por idade percebendo pensão devido ao marido falecido. Não apenas é possível que, além do entrevistado, o seu cônjuge ou outro morador possa estar recebendo benefício, mas também a circunstância de que é permitido, por exemplo, que uma aposentadoria por idade ou invalidez seja acumulada com uma pensão por uma mesma pessoa.

Tabela 5. Igarapé-Açu: Entrevistados conforme a proporção entre o valor do(s) benefício(s) recebido(s) e as outras fontes de renda monetária familiar.

Percentual da renda familiar equivalente ao(s) benefício(s) recebido(s)

Absoluto

Percentual

Acumulado

Igual a 100%

14

38,9

38,9

Entre 66,6 e 99,9%

11

30,6

69,5

Entre 50,0 e 66,5 %

4

11,1

80,6

Aproximadamente 50%

3

8,3

88,9

Entre 33,3 e 49,9%

3

8,3

97,2

Entre 0 e 33,2%

1

2,8

100,0

 

A Tabela 5 é crucial para avaliar-se o impacto do sistema de benefícios rurais da Previdência Social (bem como dos amparos assistenciais) sobre a renda monetária das famílias. A hipótese original deste trabalho – a saber: de que os benefícios monetários possuem um peso significativo na disponibilidade de renda monetária das famílias receptoras na área rural de Igarapé-Açu – pôde ser plenamente constatada. Para 38,9% dos domicílios dos entrevistados, o valor do(s) benefício(s) recebido(s) constitui a única fonte de renda monetária dos moradores e, no acumulado, para 88,9% dos domicílios, o sistema de aposentadorias rurais perfaz cerca de 50% ou mais da renda monetária familiar. O caso do entrevistado, que declarou que a aposentadoria representa uma parcela muito reduzida da sua renda monetária familiar, é o de um agricultor capitalizado, que somente não aposentou-se por tempo de serviço devido a um descuido no seu histórico contributivo. Os outros três entrevistados, que responderam ser a aposentadoria uma parcela inferior a 50% da sua renda monetária, possuem grandes famílias e os seus filhos, tendo freqüentado a escola por períodos mais longos que a média local, estavam empregados no mercado de trabalho urbano de Igarapé-Açu ou Castanhal e transferiam pequenos montantes de renda às suas famílias de origem. O resultado obtido nesta amostra, portanto, corrobora a hipótese de que o sistema de aposentadorias rurais no Brasil parece atingir, com poucas exceções, parcelas populacionais que se encontram entre as mais vulneráveis e dão motivos para acreditar que ele pode estar entre os mais eficientes programas de redistribuição de renda da América Latina.

Tabela 6. Igarapé-Açu: Entrevistados por condição de prestação de ajuda financeira a outras pessoas.

Auxílio a

 

Motivo principal

Gênero do benef.

Filhos/netos

16

Desemprego

8

8

Parentes de 2° grau

2

Desemprego

1

1

Empregados

1

Empréstimo

1

-

Vizinhos

1

Empréstimo

-

1

Não ajuda

16

-

7

9

 

A Tabela 6 originou-se da hipótese de que os aposentados rurais pudessem ser uma fonte de crédito informal nas suas comunidades. Esta hipótese parece poder ser plenamente descartada, uma vez que os dois únicos casos de um empréstimo são o de um agricultor, que faz adiantamentos de salário para os seus funcionários, e o de uma aposentada, que ajuda com pequeníssimas quantias sua vizinhança a “fechar a conta” da “taverna” (compra de alimentos). Em ambos casos não se constatou cobrança de juros ou equivalente. O que surpreendeu, no entanto, foi o elevado quociente de entrevistados que afirmou ajudar filhos, netos e outros parentes com dinheiro em caso de desemprego.

Há, no Brasil, pouco ou quase nenhum conhecimento sobre a evolução e a dinâmica do desemprego na área rural, já que as principais pesquisas estão restritas aos grandes centros metropolitanos. Possivelmente o desconhecimento acerca deste fenômeno seja também um motivo para o fato de que o sistema de seguro-desemprego, existente nos centros urbanos, nunca tenha se tornado um objeto de reivindicação política das representações de trabalhadores rurais. Em Igarapé-Açu, conforme o depoimento dos entrevistados, o desemprego tem aumentado nas atividades agrícolas. É comum que os pequenos produtores em regime familiar dediquem parte do seu tempo de trabalho também à complementação da renda monetária familiar mediante trabalho assalariado temporário nas plantações de pimenta, maracujá ou outros produtos com característica de commodities. Um dos entrevistados relatou que estaria em expansão a prática da subcontratação de mão-de-obra pelos fazendeiros junto a “gatos” de outras cidades, pressionando o nível de remuneração de Igarapé-Açu. Pode estar havendo também uma grande pressão de oferta de mão-de-obra, na medida em que a volumosa população infanto-juvenil, identificada no Censo de 1991, ingressou na força de trabalho ao longo dos anos 90. Estas circunstâncias fazem os desempregados recorrerem, na ausência de alguma forma específica de seguro-desemprego rural, à renda monetária proporcionada pela aposentadoria rural aos idosos existentes na sua família. Com isso pode-se explicar o número extremamente elevado de entrevistados (18 pessoas ou 50%), que auxiliavam filhos ou parentes em caso de desemprego, uma situação que permite supor que a transferência monetária representada pelos benefícios previdenciários rurais acaba, no caso do município de Igarapé-Açu, assumindo parcialmente a função de um seguro-desemprego familiar.

Quanto à estrutura de gastos dos domicílios dos entrevistados, a grande maioria das despesas domésticas, conforme declarações dos beneficiários, dirige-se à aquisição de alimentos na “taverna”. Em termos de gastos especiais, verifica-se que, além das recorrentes despesas com algumas melhorias na qualidade da habitação ou da compra de material de construção durável, sobressai o gasto privado com a saúde. Quase dois terços dos entrevistados (21 casos) afirmaram que medicamentos, alimentos especiais e tratamentos médicos específicos, não acessíveis na (modesta) rede local de saúde, consomem parcelas significativas do seu orçamento doméstico. Embora fosse de se esperar que a clientela específica dos benefícios analisados –idosos, inválidos e portadores de deficiência– apresentasse uma demanda acima da média para produtos e serviços relacionados à sua saúde, o resultado acima demonstra, também, que o sistema de aposentadorias rurais substitui parcialmente as carências do sistema público de saúde (falta de tratamentos específicos, falta de medicamentos), auxiliando a manter, mesmo que em alguns casos de forma apenas precária, um mínimo de qualidade de vida dos beneficiários e fazendo acessíveis os medicamentos e serviços de saúde comerciais.

Na Tabela 7 estão mapeadas as respostas dos entrevistados quanto à sua origem migratória antes de obter o benefício, bem como quanto à origem migratória dos seus pais, considerando-se como migrante aquele que houvesse nascido em município diferente de Igarapé-Açu. Apenas 1/6 dos entrevistados (condições h e i) não possuem uma origem migratória de primeira ou segunda geração. Um desdobramento mostra algumas nuances importantes entre os migrantes de primeira e de segunda geração. Enquanto as migrações dos pais dos entrevistados em geral são interestaduais –com destaque para os Estados do Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte como origem–, as migrações dos entrevistados propriamente restringiram-se a movimentações dentro do Estado do Pará e, em especial, à “Velha Fronteira”, com poucos casos nos quais a origem aponta para municípios a distâncias maiores do que cerca de 150 a 200 quilômetros de Igarapé-Açu. Pode-se identificar, a partir destes indicativos, uma tendência a um perfil demográfico dos beneficiários rurais cada vez menos marcado por imigrantes de longa distância, uma vez que em Igarapé-Açu, a ocupação da terra está consolidada.

Tabela 7. Igarapé-Açu: Entrevistados por condição de migrantes de primeira ou segunda geração.

Entrevistados  

Pais dos entrevistados

Condição

Absol.

%

Condição

Absol.

%

a. Foi migrante

21

58,3

d. Foram migrantes

8

22,2

 

 

 

e. Não foram migrantes

9

25,0

 

 

 

f. Não respondeu/ não soube

4

11,1

b. Não foi migrante

14

38,9

g. Foram migrantes

9

25,0

c. Não respondeu

1

2,8

h. Não foram migrantes

5

13,9

 

 

 

i. Não respondeu/
não soube

1

2,8

Total

36

100,0

 

36

100,0

 

Tabela 8. Igarapé-Açu: Entrevistados conforme mudaram de casa após passar a receber o benefício.

 

Quantidade

Observação

Mudou

9

Motivos principais: acompanhar filhos e procurar melhorar a própria infra-estrutura pessoal.

Não mudou

27

Muitos construiram uma casa de material durável no mesmo local em que residiam.

 

Na Tabela 8 são destacados os movimentos migratórios após a concessão da aposentadoria. Exceto uma das entrevistadas, todos os demais já residiam no município antes de solicitarem o benefício. Percebe-se também, entre os entrevistados, uma tendência a permanecer no seu lote rural ou no seu local de residência anterior à aposentadoria, ao menos enquanto as condições de saúde dos entrevistados permitirem. Esta hipótese é corroborada pelo fato de que, conforme depoimento de ex-vizinhos ou parentes, dos nomes constituintes da relação original obtida no INSS (50 nomes), a maioria das pessoas não mais encontradas em Igarapé-Açu mudou-se para municípios maiores (Castanhal, Ananindeua e Belém) quase exclusivamente por motivo de saúde, à procura de medicina especializada ou quando os filhos haviam deixado o município. Poder-se-ia supor que, se os serviços de saúde do Município de Igarapé-Açu fossem mais completos (no momento restritos a quatro postos de saúde rurais e um hospital para casos de emergência e de maternidade), possivelmente uma parte dos idosos (com renda), que deixaram o município, ali teriam permanecido.

É também interessante relatar que, ao encontrar-se na área rural um grupo de casebres, praticamente sempre os beneficiários procurados para a entrevista eram os proprietários da casa feita de material de construção durável, em meio a residências de palha, barro ou taipa. Este fenômeno é atribuível à circunstância de que é o benefício da Previdência que proporciona aos aposentados rurais os recursos monetários necessários para a aquisição dos materiais duráveis (telhas, tijolos, cimento), antes fora do alcance do orçamento doméstico dos agricultores, sob a permanente restrição de fluxos monetários irregulares. Reforça o argumento acima o fato de que muitos dos entrevistados responderam, quando perguntados se a aposentadoria viabilizou alguma aquisição antes não financiável, que a percepção do benefício permitiu-lhes construir uma casa nova. Desta forma, as aposentadorias rurais proporcionam, ao menos na área rural de Igarapé-Açu, aos beneficiários um salto qualitativo nas suas condições de habitação.

A Tabela 9 cruza informações de várias questões dirigidas aos entrevistados. Por um lado a metade dos entrevistados afirmou que não teve dificuldade para conseguir o acesso ao benefício na época do requerimento. Por outro lado, no entanto, entre estes dezoito entrevistados, quatorze disseram que necessitaram de ajuda para poderem aposentar-se. É possível afirmar-se que a “dificuldade de obtenção do benefício” refere-se a eventuais obstáculos representados pelos procedimentos administrativos no INSS, onde o grupo dos que respondeu que não enfrentou dificuldade esperou em média 4,7 meses desde o requerimento até a concessão do benefício, enquanto o grupo que enfrentou obstáculos afirmou que o benefício demorou em média 7,1 meses para ser concedido. Além disso, as pessoas que dizem ter enfrentado obstáculos são, com apenas uma exceção, beneficiários que, para a obtenção do benefício, tiveram que providenciar documentação abrangente e/ou realizar várias viagens à “rua” (centro municipal), a Castanhal (ao Posto de Benefícios do INSS, para entrevistas e perícias médicas) e a Belém (para a obtenção de documentos ou a realização de perícias muito especializadas), o que representa considerável esforço financeiro, dado que o custo de documentos e o preço das passagens de ônibus (mais a alimentação na cidade) é bastante elevado, quando comparado com a renda monetária familiar disponível. Afora isso, o tempo de trabalho dispendido para estas viagens (sempre acompanhado de cônjuge e/ou filho/a) implica sensível perda de tempo de trabalho na lavoura, além do desgaste físico para os idosos e portadores de deficiência.

Tabela 9. Igarapé-Açu: Entrevistados conforme experimentaram dificuldade de acesso ao benefício e necessitaram de ajuda para a sua obtenção.

 

Quan-tidade

Motivo da
dificuldade

Necessidade de ajuda para
obtenção do benefício

 

 

 

Sim

Fonte da ajuda

Não

Teve
dificuldade

18

Documentação incompleta (9), Comprovar invalidez (2), Outros (7)

16

STR (6), Vereador (1), Prefeitura (1), Outros (8)

2

Não teve
dificuldade

18

-

14

STR (6), Vereador (2), Prefeitura (2), Juiz (1), Outros (3).

3*

* Um entrevistado não respondeu se precisou de ajuda para a obtenção do benefício.

Entre os entrevistados que responderam não terem enfrentado dificuldades de obtenção do benefício há a concentração de muitos benefícios concedidos nos anos 1992 a 1994, quando a nova legislação para as aposentadorias rurais foi implementada. Já o grupo que diz ter sofrido maiores obstáculos possui sobretudo pessoas de períodos de concessão mais distantes, no início dos anos 80 e bem recentes, quando o INSS começou a atuar com mais rigor na concessão de benefícios, onde passou-se a exigir a documentação do terreno, cuja expedição custa R$ 8,50 no cartório local e que, conforme a proprietária do cartório, “pouquíssimas pessoas possuem”.

Mesmo entre os beneficiários com pouca ou nenhuma dificuldade de obtenção da prestação, no entanto, 14 dizem ter sido necessária a ajuda de alguém para poder vencer os diversos passos do procedimento necessário, incluindo a obtenção de informações, a compilação da documentação requerida e o preenchimento dos formulários respectivos. A entidade/pessoa mais citada entre todos os entrevistados como fonte de auxílio foi o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (12 casos), seguido da Prefeitura Municipal via Serviço de Assistência Social (3 casos), um determinado vereador (3 casos) e outros (11 casos), incluindo um juiz, o agente de correio, familiares, vizinhos, conhecidos ou professores/as das escolas locais.

Os benefícios têm sido pagos de forma extremamente pontual. O saque ocorre nas duas agências bancárias existentes na sede municipal com o uso de cartões magnéticos por todos os beneficiários. Esta conta com cartão magnético, específica para movimentações relativas a benefícios do INSS, é criada automaticamente no momento da concessão do benefício. Em um dos dias da escala de pagamentos, organizada conforme o número final do benefício, o beneficiário ou seu representante dirige-se à agência bancária respectiva, onde o horário das 8:00 às 10:00 horas (antes do expediente normal do banco) é destinado exclusivamente ao atendimento de beneficiários do INSS. O saque do benefício é feito no caixa eletrônico, havendo para tanto a necessidade da presença de um funcionário do banco para auxiliar os idosos a operar corretamente o equipamento. Os beneficiários, em função dos horários de ônibus que os trazem da área rural, chegam à praça central da cidade a partir das 5:30-6:30 horas da manhã, retornando, após a realização do saque e feita a “feira” (compra de mantimentos nos mercados da “rua”) a partir das 11:00 horas aproximadamente, quando é o horário de retorno dos ônibus. As empresas de ônibus têm orientado os seus motoristas a permitir o embarque de aposentados com grandes volumes de bagagem, em especial nos dias do saque do benefício (por exemplo, botijões de gás).

A distância do domicílio até o local de pagamento –as duas agências bancárias existentes na sede municipal– é, na média, de 17 quilômetros para aqueles que residem na área rural ou nas agrovilas. O tempo de deslocamento médio para estas pessoas, para poderem vir a sacar o benefício, é de 5,7 horas. O caso mais extremo verificado foi o de um aposentado que, residindo a 24 quilômetros da sede municipal, precisava gastar cerca de 11 horas para realizar o saque do benefício e retornar à sua casa.

Na Tabela 10 analisa-se mais detalhadamente o perfil dos entrevistados conforme sua resposta à pergunta de se o beneficiário continua trabalhando. Percebe-se, inicialmente, que, após feita a subtração dos dois menores de idade beneficiários de pensão por morte e dos quatro perceptores de benefício assistencial a portador de deficiência, há um equilíbrio entre as respostas positiva e negativa à questão. Procurou-se verificar se os dois grupos de respondentes diferenciavam-se pela sua idade média, mas não parece que a resposta seja devida a uma idade média significativamente mais avançada do grupo que não prossegue trabalhando. Tampouco parece haver diferenciação relevante quanto ao número de dependentes do benefício, o que poderia ter imposto uma maior pressão sobre o beneficiário de prosseguir trabalhando. Também não há praticamente nenhuma diferença entre ambos grupos quanto à proporção que as aposentadorias perfazem da renda monetária da unidade doméstica em questão, o que poderia ser o contra-teste da afirmação anterior.

Tabela 10. Igarapé-Açu: Entrevistados segundo continuação da atividade de trabalho e outras condições.

 

Sim

Não

Prossegue trabalhando

15

15*

Idade média do beneficiário

69,5

70,4

N° de dependentes do benefício

3,8

4,4

Proporção aposentadoria/renda monetária familiar**

2,3

2,5

Ajuda financeiramente filhos/netos

9

7

Ajuda financeiramente outras pessoas

3

0

Não ajuda financeiramente outras pessoas

3

8

Homens

10

2

Mulheres

5

13

* 21 entrevistados responderam que não trabalham. Destes foram subtraídos dois menores beneficiários de pensões e 4 beneficiários de amparo assistencial (BPC) para pessoas portadoras de deficiência.

** Numa escala de 1=100% para 6 = 0 a 33%, conforme os segmentos de impacto dos benefícios sobre a renda monetária domiciliar da Tabela 5.

Quanto à prática de conceder ajuda financeira para fora do domicílio, houve uma diferença significativa apenas entre os que não auxiliam alguém. Por fim, a diferenciação mais precisa foi obtida ao cruzar-se as respostas com o gênero dos entrevistados: houve uma clara maioria de homens entre os que afirmam continuarem a trabalhar, enquanto as mulheres disseram na sua grande maioria não mais trabalharem. No entanto, a partir da observação dos hábitos cotidianos das unidades domésticas em análise, permanece a suspeita de que estas respostas por gênero possuem um viés cultural, conforme a auto-definição do seu papel produtivo que cada gênero faz de si mesmo. Eventualmente as mulheres, embora tenham respondido que não prosseguem trabalhando, continuam cumprindo jornadas de trabalho tão pesadas quanto os homens, executando tarefas auxiliares na produção da unidade agrícola, no trabalho reprodutivo da família e na criação de netos.

Uma pergunta final solicitou aos entrevistados uma avaliação subjetiva quanto aos efeitos do benefício sobre a sua vida em geral. Das 34 pessoas que responderam à questão, cinco foram enfáticas ao dizer que a sua vida “melhorou muito”, a absoluta maioria (28) afirmou que a vida “melhorou um pouco” e apenas um disse que “ficou igual”. Nenhum dos entrevistados declarou ter sentido uma piora nas suas condições de vida. Do grupo que disse que a vida “melhorou um pouco” percebe-se, pelos comentários espontâneos dos entrevistados, justificando a gradação dada à resposta, que são as condições extra-benefício, principalmente a deterioração das condições de saúde pessoais, que fazem com que a “vida atual” seja considerada apenas “um pouco melhor”. Muitos entrevistados disseram, explicitamente, que julgavam que o fator de melhoria em relação a antes devia-se ao fato de o benefício do INSS ser regular e mensal, ao contrário do resultado da produção agrícola. Desta forma, a aposentadoria parece cumprir com sua função de oferecer a estes beneficiários uma maior “segurança” social, tornando-os menos dependentes do ciclo agrícola e dos seus filhos na velhice.

Conclusões

O município de Igarapé-Açu, no Nordeste Paraense, é um dos casos no Brasil, onde os significativos impactos do sistema de previdência rural parecem ser mais claramente identificáveis. O resultado de um conjunto de entrevistas com beneficiários do INSS no município parece fornecer evidências bastante concretas da significativa repercussão socioeconômica do programa.

Verificou-se que, em 1995, o sistema de previdência rural injetou na economia municipal um volume de recursos aproximadamente três vezes superior ao valor da folha de todos os empregadores formais de Igarapé-Açu ou de mais que um quinto do valor da produção agrícola municipal. Comerciantes locais declararam que as compras realizadas pelos beneficiários da Previdência Social representam uma parte pronunciada do faturamento dos respectivos estabelecimentos. Além disto, com base em dados sobre a situação social de Igarapé-Açu, situada no terço inferior do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), é possível dizer que o expressivo volume de pagamentos de benefícios previdenciários no município constitui um elemento de redistribuição interregional progressiva da renda.

A proporção que os benefícios previdenciários rurais perfazem da renda monetária domiciliar dos entrevistados também é extremamente significativa. No caso de quase 9/10 (88,9%) dos entrevistados, os benefícios recebidos representavam cerca de 50% da renda monetária domiciliar ou mais. Este dado também demonstra que, apesar de se tratar de uma política social de acesso universal, o programa de benefícios previdenciários rurais no Brasil atende sobretudo pessoas pobres e muito pobres, um grau de “focalização” que dificilmente é igualado em casos de outros programas sociais de porte comparável à Previdência Rural em outras partes do mundo. Cabe salientar que, no caso de Igarapé-Açu, no domicílio dos beneficiários rurais residem em média mais outras 3,8 pessoas, que se beneficiam indiretamente da transferência monetária.

Descobriu-se, também, que no município de Igarapé-Açu o sistema de benefícios rurais parece funcionar como um substituto parcial para o sistema de seguro-desemprego, o qual, por sua vez, não existe na área rural brasileira. Entre os beneficiários da Previdência Rural entrevistados, a metade afirmou ajudar com dinheiro parentes ou filhos em caso de desemprego. Outro efeito positivo sobre a qualidade de vida local é que o acesso a renda monetária permite que os beneficiários adquiram serviços médicos e medicamentos não disponíveis na rede pública de saúde. A percepção de benefícios da Previdência Rural, por fim, parece efetivamente fixar os idosos nos municípios rurais, ao menos até que algum problema de saúde surja ou ocorra a mudança dos filhos, dos quais os idosos dependem para cuidados ou devido ao seu papel social (no caso da mulher), para o meio urbano.

À parte as conclusões da pesquisa de campo, também é possível arriscar alguns comentários para subsidiar o processo de discussão da reforma da Previdência, ora em curso. Neste, por vezes, há a sugestão de reintroduzir os elementos bismarckianos da contribuição individual e da correspondência entre contribuições pessoais efetuadas e benefício auferido também no campo. O argumento fiscal –de que o subsistema rural arrecada apenas 10% do volume de gastos com benefícios rurais e causa um déficit de aproximadamente R$ 9 bilhões (correspondendo à quase totalidade do déficit do INSS previsto para 1999)– é sério, uma vez que o déficit contábil gerado é resultado da ausência legal de uma estrutura de financiamento consensualmente estabelecida e sua não-resolução pode ameaçar a continuidade um programa social do porte e impacto redistributivo da Previdência Rural.

No entanto, não é a pequena agricultura familiar, principal clientela da Previdência no campo, que possuirá a capacidade contributiva esperada e os valores arrecadados –a um custo administrativo bastante elevado– seriam de reduzida monta. Cabe assinalar, ademais, que não há nenhum país do mundo, no qual o setor da pequena produção rural esteja integrado ao sistema previdenciário e no qual, simultaneamente, apresente-se na área rural arrecadação maior que o volume de gastos. A Alemanha e a Polônia, países com sistemas de previdência rural bastante desenvolvidos, apresentam déficits que alcançam, respectivamente, cerca de ¾ e mais que 9/10 do seu gasto em benefícios.

A opção de “assistencializar” os idosos rurais ao instituir a cobrança de contribuição individual em patamares que comprometam parcela significativa da renda familiar, poderia vir a representar um grave retrocesso, inclusive em relação ao ex-Funrural, onde não se exigia contribuição individualizada. Concretamente, a partir dos resultados da pesquisa de campo no Pará, é possível imaginar um cenário “worst case” com recrudescimento da migração rural-urbana, em especial em momentos de ciclos conjunturais descendentes ou transformações estruturais da pequena agricultura, formando novas ondas de inchaço populacional incoordenado de regiões urbanas e metropolitanas; com um empobrecimento dos pequenos municípios, dependentes de transferências previdenciárias para a dinamização da sua economia; com uma queda de qualidade de vida (habitação e acesso a serviços em geral) na área rural, bem como a deterioração de indicadores de saúde no campo entre os idosos e os seus parentes, que com eles compartem o mesmo domicílio e são beneficiários indiretos do sistema.

Caso, ao contrário, a opção seja por conservar o significativo impacto socioeconômico que o programa da Previdência Rural possui para o país, o ajuste financeiro necessário teria que ser efetuado por meio de recursos de origem tributária, o que é plenamente justificável, uma vez que –economicamente falando– há significativas “externalidades positivas” para a totalidade dos contribuintes. Além disto, como há uma tendência histórica de redução da população rural em curso, a idéia de criar um regime contributivo de qualquer forma estará fadada a padecer sob uma deterioração de longo prazo da relação contribuinte-beneficiário, traduzindo-se em crescentes desequilíbrios financeiros. Certamente, há também a possibilidade de requerer-se algum esforço do segurado, como, por exemplo, a manutenção de registro atualizado junto à Previdência Social, ou uma contribuição de valor não mais que simbólico, o que, por si, já possuiria algum impacto negativo sobre o grau de cobertura. Contudo, a economia fiscal, gerada pela eliminação de grande parte do contingente populacional rural da cobertura do programa previdenciário, pode acabar sendo mais do que perdida pelos maiores gastos nas rubricas saúde, estrutura urbana, assistência social e outros programas de combate à miséria rural e urbana, que seriam demandados pela clientela recém-excluída da Previdência Rural.

 

Referências bibliográficas

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Notas

[1] Ressalte-se, entretanto, que as conclusões extraídas desta pesquisa referem-se basicamente ao Estado do Pará e ao Município de Igarapé-Açu (PA), onde foi feita a pesquisa de campo, somente podendo ser generalizadas após cuidadosa comparação com resultados de pesquisas similares realizadas em outras regiões do país.

[2] Neste trecho o texto apoia-se principalmente em Aragón Clérigo 1996, Arapiraca da Silva et. al., 1999 e Maia Gomes/Vergolino, 1997, complementados por declarações de informantes na região.

[3] Vale registrar a existência de uma controvérsia acadêmica, a saber sobre a característica da pequena produção na Bragantina e em outras regiões do Nordeste Paraense: aqui conflita a idéia de uma produção que está centralmente voltada à subsistência com a interpretação de que, apesar de uma parcela não desprezível de auto-consumo, os pequenos produtores estão fortemente integrados ao mercado (Sawyer, 1979, Costa, 1989, Santana, 1990, Hurtienne, 1999).

[4] Trata-se de indicadores sociais compostos, desenvolvidos por IBGE, Ipea e Fundação João Pinheiro a partir da metodologia adaptada do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Variando de 0,0 (mínimo) a 1,0 (máximo), o IDH-M é calculado a partir de um conjunto de 15 indicadores de longevidade, educação e renda. Já o ICV, que também oscila na mesma faixa de valores, incorpora ao cálculo maior número de variáveis nas três dimensões sociais citadas acima para o IDH-M, bem como ainda indicadores da situação da infância e do saneamento/habitação na respectiva localidade.

[5] Vale repetir que os conceitos de “rural” censitário (relacionado ao local do domicílio) e previdenciário (relacionado ao histórico laboral) não coincidem e dificultam comparações. Vide, para uma discussão mais detalhada, Delgado (1999).

[6] Cabe agradecer, mais uma vez, a generosidade do apoio recebido dos colegas do Projeto Ipea-Ipardes-Fundaj, em especial na pessoa de Guilherme Delgado.