Estudos Sociedade e Agricultura

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Polan Lacki

O que pedem os agricultores e o que podem os governos: mendigar dependência ou proporcionar emancipação?


Estudos Sociedade e Agricultura, 14, outubro 1999: 181-180.

Polan Lacki / FAO - Santiago do Chile.


Nos países da América Latina existe um evidente e crescente desequilíbrio entre: as múltiplas e urgentes necessidades de milhões de agricultores (os quais, com todo o direito, exigem terra suficiente, irrigação, maquinária, insumos modernos, crédito, preços mínimos, subsídios etc.); b) as decrescentes pos-sibilidades dos debilitados, deficitários e endividados governos em satisfazê-las.

Como se isto fosse pouco, os escassos recursos que os governos destinam ao setor agropecuário tornam-se ainda mais insuficientes porque são destinados de maneira contraproducente, a alimentar burocracias improdutivas e a “dar o peixe várias vezes ao invés de ensinar a pescá-lo uma única vez”. Este pseudo paternalismo contribui a perpetuar a dependência que os agricultores têm do Estado e, desta forma, a agudizar ainda mais o referido desequilíbrio.

 

Os governos não querem ou não podem?

Devido a este crescente desequilíbrio entre “o que pedem os agricultores e o que podem os governos”, continuar formulando esgotadas propostas paternalistas –por melhores que sejam as intenções de quem o faça– é uma atitude que causa mais malefício que benefício aos agricultores. Tais propostas desorientam os produtores, estimulam a passividade e, na verdade, os enganam, ao sugerir-lhes que continuem esperando por recursos e decisões que os governos, mesmo que quisessem, não poderiam proporcionar-lhes. Este desequilíbrio é tão evidente que os “remédios” convencionais perderam a sua eficácia e vigência. O modelo chegou a tal grau de esgotamento que já não é possível recuperá-lo; simplesmente faz-se necessário substituí-lo por uma estratégia educativo-emancipadora.

Com tal fim os governos, conscientes de que “não estão em condições de fazer tudo por todos os agricultores sempre”, inexoravelmente terão que assumir um papel essencialmente emancipador de dependências. Para tanto, deverão delegar aos próprios agricultores a solução dos seus principais problemas, ao invés de fomentar a nova ilusão de que o mercado e as cadeias agroalimentares (agribusiness) o farão pelos agricultores; porque o mercado e o agribusiness estão preocupados em resolver os seus próprios problemas e não necessariamente os dos produtores rurais.

Para preparar esta progressiva emancipação, os governos deverão promover medidas simplificadas de organização empresarial dos agricultores e proporcionar-lhes os conhecimentos mínimos necessários para que verdadeiramente queiram, saibam e possam: a) assumir, de maneira gradual, atitudes e papéis mais protagônicos na eficiente solução dos seus próprios problemas; b) incrementar a baixíssima produtividade/rendimento de todos os fatores de produção que eles possuem, com o elementar propósito de que cada unidade de mão-de-obra, terra, insumo, crédito, animal ou trator –pelos simples fato de que é escassa, cara ou insuficiente– produza com mais eficiência uma maior quantidade de grãos, tubérculos, frutas, hortaliças, forragem, carne, lã ou leite e especialmente de renda.

Em outras palavras, o Estado moderno deverá proporcionar aos agricultores as competências para que eles possam “produzir mais e melhor com menos recursos, com menos auxílio do Estado e com menos vulnerabilidade aos fornecedores de insumos e aos compradores das suas colheitas”.

 

Primeiro o possível, depois o desejável

Com este propósito emancipador, os governos deveriam estabelecer, pragmática e realisticamente, duas grandes prioridades estratégicas.

1a. Prioridade. No curto prazo, formar, capacitar ou recapacitar agentes de assistência técnica e extensão rural (ATER), a fim de que tenham maior capacidade de contribuir para uma rápida correção das ineficiências tecnológicas, gerenciais e organizacionais que ocorrem nas distintas etapas do negócio agrícola – porque é necessário que tenhamos a honestidade e a humildade profissional de reconhecer – são as distorções lá existentes (e não tanto a falta de políticas, leis, créditos e subsídios) as principais causas da falta de rentabilidade na agricultura. No entanto, a formação e capacitação deste novo agente de ATER não poderá continuar sendo teórica, urbana nem desvinculada dos problemas reais e concretos que os agricultores enfrentam na sua vida cotidiana. Será necessário realizar esta formação diretamente no campo e de maneira mais prática, de modo que, seguindo o método de aprender a produzir produzindo, adquira a engenhosidade e a competência para formular e executar soluções pragmáticas que sejam compatíveis com as circunstâncias dos países da América Latina real. E o que caracteriza a estes países reais?

Seus governos estão debilitados e empobrecidos com mínimas possibilidades de subsidiar e de financiar a modernização do setor agropecuário pela via convencional.

Os seus agricultores estão endividados que não têm acesso ao crédito para aliviar as suas severas restrições produtivas, e produzem com baixíssimos rendimentos e estão expostos a uma permanente extração de renda que lhes é imposta por vários segmentos do agribusiness, quando lhes compram os insumos ou quando lhes vendem a sua produção.

Este novo extensionista dotado de sólidas e vivenciadas aptidões técnico-empresariais terá que ser capaz de inventar soluções aos problemas dos agricultores “do jeito que eles são e com os recursos que eles realmente possuem”. Terá que ser capaz de ensinar às famílias rurais a ganhar dinheiro, através do caminho que, no contexto da globalização, é o único possível, ou seja, comprando, produzindo, administrando, investindo, transformando e comercializando com maior eficiência tecnológica, gerencial e organizacional. Fora desta via realista nenhum artificialismo –seja político, tarifário, creditício, tributário ou cambial– será capaz de tornar os agricultores economicamente viáveis.

Frente a um Estado que, mesmo que não o diga, envia-nos claríssimos sinais de que não vai financiar, nem adotar medidas de proteção à agricultura, o bom senso e o realismo nos impõem, como um requisito absolutamente imprescindível, promover um grande fortalecimento e melhoramento da assistência técnica e da extensão rural. A ATER tem que ser capaz de profissionalizar os agricultores e de organizar as suas comunidades – já não com o arcaico propósito de fazer proselitismo político, mas sim com o claro e explícito objetivo de que tais associações prestem serviços e solucionem aqueles problemas que, por razões de escala, os produtores não podem e não devem enfrentar de forma individual.

A extensão rural, que historicamente nos ofereceu extraordinários exemplos de mística e de competência profissional, necessita melhorar ainda mais a sua produtividade, a sua eficácia e a sua capacidade de obter resultados e de solucionar problemas. Deverá ser capaz de mudar as aptidões e as atitudes dos agricultores, transformando cada família em protagonista de um autodesenvolvimento progressivo. Esta gradualidade deverá permitir-lhe que os recursos necessários para tecnificar a agricultura sejam gerados no interior das próprias propriedades.

Em virtude da escassez e do alto custo do crédito rural, o desenvolvimento deverá estar sustentado principalmente na correta aplicação de soluções que sejam compatíveis com os recursos existentes nas propriedades e não com os inexistentes, que os mistificados ou ingênuos continuam dizendo aos agricultores que estão disponíveis nos cofres dos governos. Este é o novo agente de ATER, público e privado, que os agricultores têm o pleno direito de exigir e que as universidades e as escolas agrotécnicas têm a obrigação de formar.

2a Prioridade: A médio prazo, fazer uma profunda “revolução educativa” nas escolas fundamentais (1° ao 8° ano) existentes nas zonas rurais, incluindo em seus currículos temas úteis e práticos sobre produção agrícola, organização comunitária, associativismo, administração rural, educação familiar etc.

Os seus conteúdos educativos deverão responder às necessidades de vida e de trabalho imperantes no campo e não mais continuar entediando as crianças com a memorização de datas e nomes que não lhes interessam, com a história do Império Romano e dos Faraós do Egito, ou com outros temas longínquos, abstratos e totalmente divorciados dos problemas cotidianos que eles vivem e sofrem nos seus lares, propriedades e comunidades rurais; problemas que eles não podem e não poderão solucionar, entre outros motivos, porque a escola não ensinou a fazê-lo, nem a eles nem aos seus pais. A sociedade rural, ao invés de mendigar subsídios, deve exigir do governo que as referidas escolas rurais contribuam para desenvolver as enormes potencialidades latentes das crianças, elevar a sua autoconfiança, dar-lhes uma sólida formação valórica, estimular o seu desejo de superação e proporcionar-lhes conhecimentos úteis que eles possam aplicar na solução dos seus próprios problemas.

Essas duas medidas, de um enorme e duradouro efeito transformador, contribuiríam a emancipar os agricultores da dependência do pernicioso e retórico paternalismo do Estado, em vez de perpetuá-la. Em virtude da sua simplicidade e menor custo relativo, qualquer governo poderia adotá-las.

 

Formar reivindicadores de soluções ou solucionadores de problemas?

Os créditos e os subsídios, por mais desejáveis ou desejados que sejam, são perpetuadores de dependências porque é necessário concedê-los hoje, amanhã e depois de amanhã; e é por este motivo adicional que são insuficentes e excludentes. Em sentido contrário, o efeito de uma educação instrumental que forme cidadãos capazes de solucionar os seus próprios problemas de forma mais autônoma se perpetua no tempo não sendo preciso repeti-la às mesmas pessoas todos os anos. Os primeiros são uma despesa reiterativa que pereniza uma dependência que o Estado não tem capacidade de sustentar durante muito tempo e a segunda (educação) é um investimento que se faz uma única vez e que constrói a emancipação. Diante destas evidências, não há necessidade de continuar promovendo longas discussões, porque a segunda opção se impõe por si mesma. A agricultura latino-americana está necessitando e exigindo um imediato e estratégico investimento no recurso humano rural, através de uma educação formal e não-formal de excelente qualidade. Numa primeira etapa, talvez não necessariamente com mais educação e mais investimentos em edifícios e computadores, mas sim com melhor educação, com conteúdos mais úteis, práticos e pertinentes, que os egressos possam utilizar na solução dos seus problemas cotidianos.

Graças a esta educação emancipadora, um menor número de agricultores necessitará solicitar ao Estado uma menor variedade e quantidade de fatores de produção e o fará cada vez com menor freqüência. Uma educação que ajude as pessoas a solucionarem elas mesmas os seus problemas. É a única alternativa realista para reduzir o desequilíbrio mencionado no início deste artigo. Esta opção permite que o Estado deixe de alimentar frondosas burocracias que beneficiam alguns e utilize estes recursos para cumprir com a sua obrigação de oferecer uma educação construtiva, útil e emancipadora para todos.

Definitivamente, a necessária profissionalização dos agricultores requer uma imprescindível revolução na qualidade, na utilidade e aplicabilidade dos conteúdos educativos. Os “tratoraços e caminhonaços” que os agricultores fizeram em frente ao Congresso Nacional, Ministério da Fazenda e ao Banco Central no Brasil não produziram e dificilmente produzirão resultados. Os agricultores deverão buscar as soluções nos Ministérios de Agricultura e de Educação e nas respectivas secretarias estaduais e municipais. É lá que as lideranças rurais deverão exigir a formação e capacitação de extensionistas e de agricultores adequados aos desafios da globalização, os quais, graças a sua maior autoconfiança pessoal e auto-suficiência técnica, sejam mais solucionadores de problemas que reivindicadores de soluções.

Em resumo, por mais justo e legítimo que seja tudo o que atualmente pedem os agricultores, eles terão muito mais êxito se concentrarem as suas reivindicações naquilo que podem e devem fazer os governos.