Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Uma ciência política em Caio Prado Jr.?


Estudos Sociedade e Agricultura, 14, abril 2000: 129-172.

Resumo: O autor deste artigo sustenta o ponto de vista de que, além do seu lugar na historiografia, pela sua teoria do Brasil-colônia e a dissertação sobre o agrarismo de grande empresa, Caio Prado Jr. integra o pensamento social brasileiro também pelos elementos de ciência política que desenvolve nas análises de conjuntura que ele escreveu para a Revista Brasiliense, notadamente no período 1955-64.

Palavras-chave: Caio Prado Jr.; agrarismo, cultura política; pensamento social.

Abstract: (Is There a Political Science in Caio Prado Jr.?). The author defends the view that Caio Prado, in addition to an assured place in historigraphy based on his theory of Brazil-colony and his dissertation on the agrarianism of the large enterprise was also a major contributor to Brazilian social thought in the elements of political science which he developed in the conjunctural analyses written for the Revista Brasiliense, particularly in the period 1955-64.

Key-words: Caio Prado Jr.; agrarianism; political culture; social thought.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA


Mas é sol: espanta
Os fantasmas, e as sombras
Fogem de sob as coisas
Como ao meio dia.
(João Cabral de Mello Neto)

Bem oportuna para relembrar 10 anos sem Caio Prado Jr., neste ano de 2000, a leitura dos seus manuscritos memorialísticos, divulgados há pouco, e como deveria ser, pela sua histórica Editora Brasiliense. Em certo sentido, os seus diários políticos vêm realçar algumas conjecturas que insistem em que, além do seu lugar na historiografia, a obra de Caio Prado Jr. faz parte da cultura pecebista e, por conseqüência – aí a afirmação já não parece tão trivial –, de toda a esquerda, inclusive da esquerda atual, se esta considera importante construir sua identidade interpelando a cultura política nacional. Cultura pecebista, em tanto idéias sistematizadas por seus intelectuais para que o PCB lhes desse vida na política nacional, especialmente em momentos de crise e transição. Caio Prado Jr. é parte dessa subcultura política, uma vez que a sua obra não é um evento singular e existe no seu partido conquanto idéias de um “grupo” – embora ele jamais tenha admitido dissidência stricto sensu – com os seus mais conhecidos “membros”, isto é, o historiador e as editora e revista Brasiliense e o diretor-responsável desta última, o seu companheiro Elias Chaves Neto. Ao longo de sua obra, o comunista brasileiro desenvolveu uma teorização que ia muito além das “formulações” oficiais do PCB, como qualifica a bibliografia, sempre processadas como adaptações pragmáticas a conjunturas específicas que exigiam ajustes na práxis e lhe interpelavam a teoria. O partido que possuía Caio Prado Jr., como certa vez disse um isebiano, era um partido “péssimo na teoria”, mas de olhos abertos às mudanças (desenvolvendo o “empirismo das improvisações”, como o historiador dizia ser o principal defeito da política dos comunistas).

Mesmo que não digam que dele não descendem, no sentido mais essencial, o historiador será emblema para uma última geração de intelectuais comunistas, formada no imediato pré-64 e também portadores da “dupla face” de publicistas, ou seja, ao mesmo tempo que procuravam, como ele, uma interpretação de Brasil visando substantivar a política do seu partido, nele militavam quase como dissidentes. Depois, na segunda metade do decênio seguinte ao golpe militar, vários desses jovens intelectuais iriam conformar um grupo relativamente gravitante no PCB. Alguns tinham estado na empresa de “arejamento do marxismo” levada a cabo pela editora e revista Civilização Brasileira; outros, à altura dos primeiros anos 70, continuavam, digamos assim, buscando o Lukács que o general Nelson Werneck Sodré havia trazido da literatura para traduzir nas coletâneas do movimento de Ênio Silveira; havia ainda uns quantos que miravam a tática de resistência “antifascista” do seu PCB e começavam a perceber o valor mais universal das instituições. Provavelmente, daí eles iriam se interessar pelo conceito de prussianismo, já presente na sociologia da literatura de Lukács, porém, extraindo-o, como critério de interpretação, diretamente da tematização leniniana de O Programa Agrário da Social-democracia Russa. Ao passar os anos de chumbo, no processo de sua perfilação propriamente como grupo, entre 1976/81, quase todos aqueles intelectuais iriam transitar para Gramsci, mas, por conta daquelas trajetórias um tanto nuançadas, em modos diferentes: a) enquanto entre os primeiros, alguns iriam se notabilizar pelo uso do conceito de Estado ampliado e por colocar em discussão o tema da ocidentalização do país; b) outros, dentre os segundos, realizariam a abertura analítica explorando as possibilidades da noção de revolução passiva, associando-a, todavia, à problemática da assimetria entre economia e política em contexto de modernização, conforme a segunda bibliografia clássica da história comparada (cf. Santos, 1999a); c) havendo ainda uns poucos que, tendo chegado mais tarde àquela “batalha das idéias”, se propõem realizar uma biografia do pensamento político do PCB, com a intenção de aferir o valor, para os desdobramentos da transição que se iniciara em 1979, da “cultura política” de democracia política na esquerda brasileira. Pesquisa sugerida pelo ensaio eurocomunista aqui tentado por vários círculos pecebistas – alguns daqueles jovens intelectuais; diversos núcleos militantes e uns poucos dirigentes, em certo sentido, legatários da influência do PCI no PCB –; ensaio que, se não tivera força para se enraizar na política moderada do PCB, despertava interesse como um constructo que, procurando compreender o sentido dos movimentos de “revolução pelo alto” deste país, chamava a atenção para a importância e os impasses da transição que, afinal, iria se pactar com a vitória de Tancredo-Sarney no Colégio Eleitoral.

Vindo de muito longe, o historiador havia feito outro caminho. Ele não se pronunciara no tempo neomarxista de Ênio Silveira e inclusive, até em 1966, não incluíra em seus escritos nenhum autor expressivo da questão da “renovação comunista”. Sem ampliação formal e explícita do marxismo, a originalidade de Caio Prado Jr. não iria ultrapassar, por muito tempo, os limites da historiografia; só aparecendo como tal quando se começou a especular sobre o significado dos “deslizes” do historiador. Assim é que foi notado o circulacionismo anunciado pelo próprio autor em seu Formação do Brasil contemporâneo como critério de interpretação e redefinido, à luz da reflexão clássica sobre a “grande transformação” de 29, em Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira (1954), como tema ineliminável de Teoria Econômica, passando a ser visto como uma das facetas características do marxismo caiopradiano, posto a serviço do PCB pelo menos desde o texto partidário de 1947 (Prado Jr., 1947). Para seguir com essa “descoberta”, seria preciso abandonar a idéia daquele “deslize juvenil” como mero “desvio” (para usar o termo oficial da época), e considerar não só aquele erro “ontológico”, como ainda o “pecado original” da “opção” que, em seus textos filosóficos, Caio Prado Jr. fizera pelo positivismo lógico do Círculo de Viena (cf. Gorender, 1989), como movimentos constituintes da obra caiopradiana. Eles estariam indicando que o comunista brasileiro, não apenas produzira a teoria (definitiva) do Brasil Colônia (cf. Bresser Pereira, 1989) e uma dissertação agrarista, setorial, polêmica e fecunda, como se aprecia, mas também desenvolvera em sua ensaística elementos inconfundíveis de ciência política. A reconstituição da unidade entre a obra básica e os textos propriamente políticos não só mostraria como os últimos não são meros opúsculos para consumo em pequenas querelas intramuos; mas trazem teses para a reformulação da própria idéia de política socialista, qual Lukács, em sua tentativa de conceitualizar uma segunda via à 1917 a partir das experiências de “democracias populares” do pós-guerra (cf. Konder, 1980).[1]

Vários autores, comunistas e não-comunistas, já tinham chamado a atenção para o marxismo estranho do historiador brasileiro. Dentre os mais antigos, o próprio Prestes no texto que, em 1954, escreveu para advertir a Revista Brasiliense pelo seu envolvimento naquilo que ele chamava de “nacional-reformismo”, ou seja, os novos tempos que anunciavam a Cepal (Furtado antecipara o argumento de Formação Econômica do Brasil, com a publicação de A Economia Brasileira neste ano) e a inteligentsia do Iseb. Hélio Jaguaribe, então o militante-fundador do Ibesp, também escreve sobre Caio Prado Jr., chamando-o de “o único teórico marxista do Partido Comunista Brasileiro”, justamente valorizando a exposição que, a contrapelo da sua tradição, o historiador fizera de sua obra nos debates da primeira convocatória do IV Congresso pecebista de 1947.[2] Em 1957, um articulista da revista Estudos Sociais publicou os textos “O revisionismo econômico que revive...” e “O Sr. Caio Prado Jr. e a falsa tese dos ‘capitalistas sóbrios’”, pondo o acento no desvio da superestimação da categoria de consumo no marxismo de Caio Prado Jr.. Para não ir tão longe nesta arqueologia preliminar, baste considerar mais de perto a observação de Jacob Gorender, a seu tempo um dos teóricos de maior trânsito ao interior do PCB, sobre o “problema idealista” de Caio Prado Jr.. Com efeito, em sua nota para o Colóquio da Unesp de 1989, Jacob Gorender aponta naquela sua filiação ao positivismo lógico um segundo “deslize” de Caio Prado Jr., que não seria nada discreto, assim comentando A Revolução Brasileira: “A primeira parte do livro afirma não ser necessário classificar a revolução que se fará no Brasil. A tarefa consistiria em fazer uma teoria para a conjuntura. Daí poderíamos avançar numa progressão, que nos levará ao socialismo”. Avançando a idéia de que o “relacionalismo em filosofia” não era um daqueles desvios freqüentes em trajetórias sob tensão militante: “Tem sua raiz no trabalho filosófico de Caio Prado Júnior, registrado em dois livros: Dialética do Conhecimento e Notas Introdutórias à Lógica Dialética. A meu ver, as idéias filosóficas contidas nas obras mencionadas procedem de um teoria de caráter subjetivista e pragmática, fortemente influenciada pelo positivismo lógico de Bertrand Russel e do Circulo de Viena, que teve em Carnap um dos expoentes” (idem). Como que lembrando o affaire estruturalista (o historiador não se omitira no debate althusserianista), Gorender faz a indicação mais precisa: “Caio extraiu do positivismo lógico a idéia de que só há processos e relações, configurando um relacionalismo que ele pretendeu fosse a formulação mais correta da dialética. Por conseguinte, não há objetos, não há isso que chamamos coisas. A mente humana organiza os processos e relações através de conceitos, que também devem ser tão fluídos como os próprios processos es relações. Sendo assim, não adianta fazer classificações, que pertencem ao âmbito da lógica formal. O que importa é a apreensão do acontecer, do conjuntural. Se o conseguimos, poderemos agir acertadamente em direção a uma revolução que se classificará a posteriori, com a certeza, porém, de que, afinal, chegaremos à meta do socialismo. Caio aplicou à teoria política os postulados do positivismo lógico assimilados em seus livros Dialética do Conhecimento e Notas Introdutórias à Lógica Dialética (Gorender, 1989: 261-62).

Esse tipo de colocação do “problema do idealismo” em si já estimula a leitura da obra caiopradiana como uma historiografia política vis-a-vis do pensamento social, com resultados nos modos de interpelação do legado do historiador. Por exemplo, poder-se-ia trabalhar a idéia de que o livro de 1933 tem uma segundo sentido, além do objetivo de romper com a historiografia oficial. Como um dos primeiros ensaios de “interpretação materialista da história brasileira”, a pequena obra não apenas narra, de modo dissidente, a evolução política até a República, como também, movido por outras intenções, disserta sobre a revolução de “1848” brasileira; já por aí podendo se situar o autor entre os pensadores sensíveis à idéia das “revoluções abortadas” dos movimentos da Independência, de que falava Mariátegui. Por sua vez, o primeiro volume de Formação do Brasil contemporâneo seria lugar inicial onde o autor já buscava – para definir uma política para o seu partido? – a especificidade da formação social, pondo diante do destino brasileiro, como Marx ao divisar na Europa a rota dos países atrasados, a “colônia de povoamento” americana, justamente para formar da diferença a idéia do “sentido” da “colônia de produção” brasileira (Prado Jr., 1933; 1942). Mas, diferentemente dos primeiros clássicos, em sua teoria do Brasil Colônia ele mobilizava a teoria social marxiana resumida no famoso Prefácio de 1859 (Prado Jr., 1942); coisa que, depois, a seu modo, e diferentes daqueles, também irão fazer quase todos os isebianos. Aliás, já no texto de 1933, Caio Prado Jr. iria fazer deste cânone marxiano o eixo fundamental das suas dissertações sobre o Brasil: “Al llegar a una determinada fase de desarollo, las fuerzas productivas materiales de la sociedad entran en contradicción con las relaciones de producción existentes, o, lo que no es más que la expresión jurídica de esto, con las relaciones de propiedad dentro de las cuales se han desenvuelto hasta allí. De formas de desarrollo de las fuerzas productivas, estas relaciones se convierten en trabas suyas. Y se abre así una época de revolución social” (Marx, 1843; 1977: 344). Chame-se a atenção para o fato de que, na obra de 1942, esse dualismo aparece precedido da (reiterada até no livro de 1966) proposição circulacionista que encabeça o tópico “Comercio” do capítulo “Vida material”: “A análise da estrutura comercial de um país revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores particulares da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização. Encontramos aí uma síntese que a resume e explica.” (Prado Jr., 1942: 226). Forte a insinuação, poder-se-ia pensar que esta “ampliação” caiopradiana da teoria social marxista lembra o movimento que, digamos assim, realiza Gramsci em torno da passagem imediatamente posterior àquela que Caio Prado Jr. recolhe do texto marxiano.[3] E ainda imaginar que, enquanto o teórico do PCI iria terminar produzindo, a partir de sua da história italiana, um novo modelo de interpretação do processo “clássico” de modernização do pós-1789, dissertado na monografia sobre o Risorgimento italiano, na qual Gramsci expõe sua tese em um contexto de “vasta cultura”, conexões e muitas mediações (classe/partido/Estado) (Buzzi, 1969), o marxismo “circulacionista” de Caio Prado Jr. vai lhe permitir converter o tema do “país sem povo”, recorrente no pensamento clássico e no Iseb, em uma problemática, como veremos, que leva historiador a uma concepção de reorganização econômica e política da sociedade brasileira em moldes democráticos. No último movimento importante, A Revolução Brasileira (1966), o historiador reafirma o seu método investigativo “empirista”, na síntese que ali faz das dissertações anteriores, todas perpassadas pela sua preocupação com a relação entre economia e sociedade (da bibliografia clássica), ou entre sociedade e política, como aparece forte nas memórias no historiador sobre o contexto de 1945 (Iumatti, 1998). Instigado pela chave weberiana, como o faz Jaguaribe, ou às voltas com as dificuldades da fórmula estrutura/superestrutura, no seu “último livro”, Caio Prado Jr. desvela a intenção geral da sua obra, que ele próprio a identifica com os estudos do autor de Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político (1962);[4] tema esse das relações entre “Vida material” e “Vida social e política” que percorre toda a “dissertação” caiopraidana sobre o capitalismo brasileiro tardio, sobremaneira presente nas análises de conjuntura que ele publica na Revista Brasiliense durante o decênio 1955-64.

Como ensina o estudo dos clássicos brasileiros, a averiguação da história comparada usada pelos autores não só pode fornecer parâmetros avaliativos das raízes intelectuais das obras, como ainda estimular conjecturas acerca do sentido prático da ciência política que elas ensejam. No caso do PCB, é preciso não diminuir em nada o influxo invasivo de 1917 na sua longa trajetória, especialmente a influência do marxismo-leninismo com o seu modelo de revolução burguesa fundado em “1789”; marxismo que não só travou a elaboração dos primeiros anos (Zaidán, 1988), como, por muitíssimo tempo, adiou o uso dos textos mais ricos de Lênin. Em vista disso, deve-se atentar para comparações e apelos a outros paradigmas e ver de que modo eles aparecem em Caio Prado Jr., no “centro pragmático” que dirige o partido desde 1958 (cf. Segatto, 1995) e, como já se aludiu, naquela geração intelectual que se envolveu no aggionarmento da práxis pecebista. Após o XX Congresso do PCUS de 1956, nota-se, uma pequena, mas recorrente, influência do PCI em alguns círculos do núcleo dirigente do PCB, presença à qual, digamos assim, iria se somar, depois, a reflexão sobre as experiências prussiana de modernização e de “revolução passiva”. Em relação a Caio Prado Jr., o que mais chama a atenção é a comparação que ele sempre está fazendo entre o industrialismo brasileiro e o modo ocidental e americano de constituição do capitalismo; tomando esses casos como modelos de generalização do progresso (material e espiritual) e de homogeneização social. Esses seriam emblemas que o historiador usa – não como critério de interpretação – mas para definir, como programa, a revolução como reversão do sentido da formação brasileira, desde a economia, a sociedade até a esfera política. Não por acaso o seu primeiro emblema para pensar a relação entre economia e sociedade, como em Nabuco e em Gilberto Freire, é a Abolição, a que ele se refere como uma grande transformação que deveria se concluir, complementando as indústrias do Litoral. Indústrias “artificiais” (sic) que haviam surgido de políticas fortuitas e oportunísticas[5] e que eram incapazes de generalizar o progresso nas cidades até onde se estendia a miserabilidade “endêmica” da formação social brasileira.

Em sua interlocução sociológica e de Teoria Econômica, os autores de Caio Prado Jr. são basicamente o Lênin não apenas da revolução não-clássica (burguesia débil), mas sobremaneira o da revolução agrária não-camponesa (ausência de feudalidade e de campesinato stricto sensu);[6] e Keynes, cuja interpelação pode ser vista como uma operação na qual Caio Prado Jr. retrabalha o circulacionismo de 1942, concebendo um tipo de reforma da sociedade bastante singular na cultura política marxista-leninista. É como se, em sua “dissertação” sobre o capitalismo brasileiro, Caio Prado Jr. considerasse a modernização brasileira “encapuzada” – parafraseando agora a Florestan–, vendo-a também (há indícios no argumento caiopradiano) “estruturalmente” como uma “revolução passiva”, a qual (nisto seguindo o PCB gradualista da Declaração de Março de 1958) poderia ser revertida, como em 1935 com a ANL, e, quinze anos depois, com a UDN, no fim do Estado; interrupções da “revolução passiva” brasileira “em registro positivo”, como diria um sociólogo do Rio de Janeiro. Seriam processos de transição como esses – incluindo o período que começou com afirmação da Constituição de 46 e com a posse de JK e o tempo de Jango – que poderiam se desenvolver em uma “progressão” rumo ao socialismo. Ou seja, a democratização do país, também pensada de curso longo, teria vida desde que orientada por um projeto de reforma do capitalismo ao modo clássico, mutatis mutandis, parecido ao estilo Welfare State, baseado na valorização do trabalho, “em primeiro e principal lugar”, na superação da miserabilidade generalizada na formação social e endêmica no mundo rural (Monteiro Lobato).

É mais antigo o reconhecimento do lugar de Caio Prado Jr. na historiografia; senão de facto desde os tempos das contínuas reedições pela Brasiliense, pelo menos, desde 1967, quando Antonio Candido colocou Formação do Brasil contemporâneo ao lado de Casa-Grande & Senzala e Raízes do Brasil, definindo-os como os livros-chave, “os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e que não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo” (Candido, 1967; 1977). Além dessa credencial são muito apreciadas a teoria do Brasil Colônia e a sua dissertação sobre o “capitalismo agrário”, e em áreas da esquerda (especialmente acadêmica) também se valoriza a recusa do historiador à imagem de Brasil do seu partido. Há ainda, talvez o melhor de Caio Prado Jr., o seu ocidentalismo – fica melhor vê-lo como pensador social e não apenas como autor de uma Ideologia Paulista, como se disse no PCB –, o “ocidentalismo” caiopradiano, com as aspas dos demais clássicos, opera como emblema de um enigma que o historiador procura decifrar para o seu partido. Daí ser inconfundível a marca de literatura de partido[7] na ensaística de Caio Prado Jr., principalmente se se atenta para os seus dois principais vetores dissertativos. O primeiro deles é a idéia de revolução agrária não-camponesa que, ao longo da obra militante, vai se esclarecendo como valorização do trabalho mediante a universalização da lei trabalhista; e o segundo, a “dissertação” sobre o industrialismo artificial e estruturalmente incapaz de generalizar o emprego e integrar (esta é uma palavra muito repetida em A Revolução Brasileira) a sociedade; tema no qual, o historiador ora segue o sentido do melhor do pensamento social brasileiro, ora parece ter en mente o emblema americano-tocquevilleano, como estaria revelando o amigo e parente do historiador Elias Chaves Neto.

Mesmo quando, ainda em 1966, Caio Prado Jr. insiste em falar no caráter agrário e nacional da revolução brasileira, o primeiro conceito alude à força de trabalho nacional, pensada a partir de uma reestruturação ao modo amplo da Abolição, isto é, de um grande processo para levar a termo, na “generalidade do país”, a estruturação plena do “sistema de trabalho livre”, como sempre dissera (“No terreno econômico, por exemplo, pode-se dizer que o trabalho livre não se organizou ainda inteiramente em todo o país”, cf. 1942: 7); entendendo essa “revolução brasileira” à maneira do Manifesto Comunista como processo longo.[8] O “caráter agrário” da revolução brasileira nada tendo a ver com qualquer tipo de agrarismo camponês. Doutra parte, muito mais do que ficar discorrendo, em termos teleológicos, sobre o “caráter da revolução”, poder e governo revolucionários, etc., Caio Prado Jr. aparece insistindo em duas grandes transformações do mundo brasileiro realmente existente, as quais sempre estará repetindo: a) “reestruturação da economia em bases nacionais para atender às necessidades da maioria da população”; e b) “reestruturação da vida política nacional”, para melhor associar, economia e sociedade, melhor dito, “produção” e “consumo”, sociedade e política, readequando o Estado para tal tarefa;[9] havendo uma ciência política de fortalecimento do sistema partidário, pensada por Caio Prado Jr. para dar funcionalidade à vida democrática, ponto que será objeto privilegiado de suas análises de conjuntura na Revista Brasiliense.

Se a “dissertação” sobre o capitalismo débil, e em muito menor escala que a do agrarismo de grande empresa, tem recebido comentários da bibliografia, a tese caiopradiana sobre a vida política nacional permanece bastante minimizada, o seu quadro de referência, baseado no sistema democrático-partidário do Ocidente, permanece na sombra. Em relação ao modelo soviético originário, Caio Prado Jr. mostrou, no texto de 1934, conhecer o fenômeno da burocratização da URSS, sustentando ali a sua crença de jovem comunista na Revolução entre a dúvida quanto à lei da oligarquização das relações entre dirigentes e dirigidos (de Mitchels, a que ele próprio se refere) e as virtudes que os soviets teriam de gerar uma nova classe política (Prado Jr., 1934). De resto, além do formalismo oficialista em relação ao socialismo existente, Caio Prado Jr. mantém postura mais ideológica, tudo indica não havendo na sua ciência política nada mais relevante por esse lado da inscrição ao mundo comunista. Bem sugestivos são os indícios que Elias Chaves Neto deixa em seus textos nos quais divulga as teses de Caio Prado Jr. ao interior do PCB, quando as procurava apoiar, ora em Tocqueville, ora fazendo referências às bandeiras libertárias de 1789 para realçar o papel transformador que ele via na Constituição de 46; e, finalmente, quando ele recorre a Palmiro Togliatti e à formulação mais articulada do “caminho italiano ao socialismo” que emerge no PCI durante a crise do estalinismo.

É interessante procurar ver como Elias Chaves Neto parece seguir a dois fios quando utiliza a teorização caiopradiana em seu artigos da Revista Brasiliense. Observe-se a tese da reversão do sentido do industrialismo, como ele diz, repetindo o seu mestre, estruturado por contingência de uma vida econômica voltada para fora. Neste ponto, aparece o exemplo americano da prosperidade das indústrias do Leste, obtida pela criação de um mercado interno complementar aberto à Oeste do país. Elias Chaves Neto relembra que foram justamente a distribuição de terras além do Mississipi, conforme o programa farmer de Lincoln, a contínua expansão territorial e a abertura de grandes mercados consumidores, a base do desenvolvimento industrial daquele país no século XIX. Atento às diversidades, o diretor-responsável da Revista Brasiliense assim conclui o ponto: “Entretanto, os mesmos elementos que fizeram a grandeza norte-americana, atuam hoje no caso brasileiro: a existência de um mercado interno, suscetível de assegurar a uma indústria nacional crescente longos anos de prosperidade. É verdade que esse mercado interno precisa ser estimulado e até criado. Mas é a luta do nosso trabalhador por melhores condições (pela reforma agrária no campo e melhores salários nos centros urbanos) que vai criar esse mercado do qual depende a prosperidade dos negócios brasileiros” (Chaves Neto, 1955). Seguindo bem de perto a Caio Prado Jr., Elias Chaves Neto também via na “miséria e na fome da grande massa popular”, a questão estratégica de cuja solução dependeriam as possibilidades do movimento de “renovação” da estrutura econômica da nação (idem).[10] Aquele tema do Oeste farmer, no qual Tocqueville via o limite da democracia e o profundo sentido de igualdade da sociedade americana,[11] novamente vai se fazer presente num dos quiçás últimos artigos de Elias Chaves Neto. Com efeito, em “A grande revolução”, o companheiro de Caio prado Jr. volta a comentar que o segredo do take-off americano; capitalismo que, depois, como aconteceu com a Revolução Francesa, também se desvirtuaria, enfraquecendo o igualitarismo tocquevilleano, ao qual em seu tempo Roosevelt chamaria de “paz pela abundância” (Chaves Neto, s.d.; 1978?). O capitalismo americano iria expropriar os três quartos dos trabalhadores que, à hora da formação da nação, eram auto-suficientes (idem). Quanto ao “caminho italiano ao socialismo”, a adesão que a ele manifestava Elias Chaves Neto – quer no tema do papel do constitucionalismo, quer na idéia da progressividdade da revolução –, os indícios disponíveis sobre uma similitude das idéias políticas de Caio Prado Jr. com o modo de pensar do PCI, ainda são frágeis e não permitem maiores conjecturas, exceto na questão da conduta moderada dos comunistas italianos comparativamente à ânsia pelo poder dos brasileiros no fim das ditaduras (Chaves Neto, 1977).

Em todo caso, confiável como primeira trilha, ainda em relação às interpretações da obra de Caio Prado Jr., se poderia dizer que a sua teoria do agrarismo de grande empresa não tem sido suficientemente considerado como uma concepção de revolução agrária não-camponesa; vista, além de emblema da gênese (plantation) e da estruturação inconclusa da formação social (Abolição), passando desapercebida a idéia caiopradiana de reforma do mundo rural na generalidade do país, e não apenas nos pontos de conflitos regionalizados, isto é, uma “reforma agrária” ao modo incorporador do west americano; qualificada, todavia, esta proposição, pela ausência, no caso brasileiro, de um processo de ruptura que pusesse fim, no curto termo, o “exclusivo agrário” (cf. Rangel, 1962), como naqueles casos onde uma força militar, inclusive de ocupação, realizou a tarefa de cima para baixo, como no Japão. Aqui, o elemento civilizador (Lobato) da modernização agrária não seria a guerra, mas universalização da lei trabalhista “na generalidade do país”. É como se Caio Prado Jr. evocasse o tema do “país sem povo”, trasmutando-o da equação do livro de 1933 (classe em si/classe para si) numa problemática, com as necessárias qualificações, parecida àquela que Gramsci alude com a sua de fórmula “povo-caos”.[12] Pela recorrência, essa evocação aparece como se fosse uma espécie de sucedâneo à idéia de classe universal e aos excursos (etapas, governos revolucionários, hegemonia proletária etc.); temas significativamente difusos em Caio Prado Jr., tendo-se a impressão de que ele pensa a revolução – com certo exagero na comparação – um tipo “reforma intelectual e moral”, como propõe Gramsci, a ter vida aqui como uma reformulação, radical mas gradualística, do industrialismo, num processo de constituição da população em atores propriamente ditos; convertendo-se ela própria, no processo desenvolvimentista, em sujeito, no sentido atual da palavra (como ele dizia: “deixando de ser unicamente atores de sua história e vida para se fazerem também os seus autores” (Prado Jr., 1954: 155-156).[13]

Mesmo em sua ensaística mais “radical” –a série de sete artigos “As teses e a revolução brasileira” que ele escreveu para o V Congresso do PCB de 1960–, Caio Prado Jr. se singulariza em relação aos dois grupos que disputam a condução do seu partido. Também reservado ante as teses defendidas pelo Comitê Central, como diziam os “esquerdistas” desse congresso a sua “apologia do capitalismo” –segundo ele, um otimismo excessivo ante o novo ciclo econômico, sobremaneira sem nenhuma qualificação–, nestes textos, ao modo do Iseb,[14] o historiador ainda valorizava os avanços do desenvolvimento nacional, mas já demonstrava impaciência e pessimismo ante o futuro do capitalismo no país. O seu “socialismo de reformas capitalistas” (Santos, 1999b) resultava daquela catarse mais completa “atores/autores” e do protagonismo do poder público, não só como ação reitora do capitalismo, ao lado de outras “formas sociais de produção”, mas como ratio de generalidade – capaz de processar o interesse da população e conquistar o necessário reequilíbrio entre produção e consumo.

Observa-se aquela mesma desconsideração com respeito às interfaces da “dissertação” sobre o industrialismo como tema da “superficialidade” da vida política nacional que corresponde àquele capitalismo de “ações dirigidas” (sic). Aliás, esse tema da institucionalidade é antigo. Recorde-se, que ele já aparecera no opúsculo de 33, quando ali o historiador falava de uma sociedade débil sem maiores condições para influir na política imperial da segunda metade do século, quando o país se modernizava e avançava o processo de generalização dos valores burgueses sobre a ordem patrimonialista.[15] As descrições da obra de 42 novamente mostram o desencontro entre as forças econômicas e sociais e as instituições a população pobre ali retratada ensejando a dúvida acerca de se Caio Prado Jr. acreditava que aqueles pobres haveriam de se erguer (classe em si/classe para si, como na fórmula do texto de 33) e protagonizar a obra de construção da Nação.

Já se fez referência a este tema da cartase do “povo-caos”, que, em Caio Prado Jr., antes de obra exclusiva da civilização moderna do industrialismo, se dará por meio da política na atividade dos partidos, ou seja, o valor que tem o capitalismo “sem burguesia” em Caio Prado Jr. não minimiza a sua idéia de reestruturação da vida política nacional. Daí chamar a atenção o fato de que, enquanto as teorias nacional-desenvolvimentistas da época olham mais para o contexto de 30 – a sua “revolução” e a sua modernização, Caio Prado Jr. também procura comparar aquele industrialismo com o modelo incorporador clássico, mas volta as suas análises políticas do pré-64 para a transição de 1945, contexto no qual a questão da institucionalidade da revolução burguesa se expôs como processo histórico em aberto naqueles anos imediatos à publicação do primeiro volume de Formação do Brasil contemporâneo, quando o historiador, justamente, suspende o projeto da sua obra maior, para se engajar na batalha pela unidade dos comunistas com os liberais da UDN. Todavia, com a divulgação das suas memórias, pode-se ver, vivamente, como o historiador lê a conjuntura de 1945 através da interpretação de Brasil de Formação do Brasil contemporâneo, realçando, como uma obra estratégica, o aprendizado que as massas – recorde-se a alusão de 42 à massa dos “desclassificados” e seres “sem bagagem cultural” – estavam tendo ao emergirem à vida pública, mesmo naquela situação que se dramatiza pela “falta de alicerces políticos” (Iumatti, 1998) que, superassem, tanto, o alheamento da maioria da vida cívica quanto as agitações – um termo usado desde o ensaio de 33 até a Revolução Brasileira – que marcavam a vida política nacional. Caio Prado Jr. lutou à exaustão pela “aliança histórica” do PCB com os liberais, como uma política que tanto poria fim ao Estado Novo como abriria caminho para o equacionamento da questão da miserabilidade da população, sobremaneira se uma “polarização de forças”,[16] radicalmente diferente em relação à ordem do Estado Novo, resultasse da “imposição correta” da nova relação que, então, se gestava entre as forças sociais emergentes e a institucionalidade política.

 

A disputa pela "Política de União Nacional"

É sobre esse emblema “1945” que a divulgação das memórias vem lançar luz e colocar Caio Prado Jr. e o seu “grupo” como ator político em meio ao “pequeno mundo”, mas de certa gravitação no contexto da UDN, essa que era o MDB da segunda metade dos anos 40. Com efeito, após a derrota do “ensaio geral” da política de frente única da ANL em 1935 – depois de o país já ter sofrido a Revolução de 30 (a “revolução burguesa sem o proletariado”, cf. Werneck Sodré), decorridos quinze anos de expansão das forças produtivas nacionais e engessamento da superestrutura, “1945” “encerrava tudo em si”. No começo desse ano, o diarista anotava, otimista: “A política se agita, já agora sem reservas e publicamente. Arregimentam-se grupos, alianças e partidos... A luta começou, aberta e rasgada. Como terminará, por onde e para onde levará o Brasil?”. Se o novo era o aparente fim da ditadura, o novíssimo, “irrupção das massas” na vida pública, segundo Caio Prado Jr., só se consolidaria à medida que se criassem as instituições democrático-liberais. Em toda a extensão dos diários caiopradianos, a idéia é a de que, pela política, se decidiriam os rumos do país. As oposições “saíam à superfície”, trabalhavam na organização da UDN e perpassavam à vida nacional a “massa crítica do país” (que elas encarnavam, no dizer do historiador), espalhando-a como “opinião pública” pela imprensa, na política e nos grupos partidários (idem). E em outros contextos qualificados, onde se acumulava e de onde se difundia o clima de “radicalismo intelectual e análise social”, como o da livraria e editora Brasiliense de onde o próprio Caio Prado Jr. não só ampliava a sua inserção no PCB, como ainda credenciava o seu partido nas articulações da UDN, especialmente junto aos seus núcleos mais ativos reunidos na Aliança Democrática Popular (ADP).

As memórias políticas lançam luz sobre a “controvérsia comunista” da “política de união nacional” contra a ditadura, protagonizada entre o Comitê de Ação e a Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), que surgira na chamada “Conferência da Mantiqueira”, como registra a bibliografia.[17] Segundo se lê em várias passagens das memórias caiopradianas, os comunistas articulados no Comitê de Ação calculavam que a política torno da União Democrática Nacional (UDN) levaria tanto a acelerar o fim da ditadura quanto abrir o caminho para as reivindicações populares,[18] de onde se daria a batalha para afastar as massas do populismo, e obter delas apoio duradouro da população; ponto crucial que o historiador considerava uma verdadeira “estratégia política”, ao qual voltaria depois no livro de 1966 (Iumatti, 1998).

Rememorando suas épocas de militância, tanto Manuel Batista Cavalcanti (o velho “Ferro”) quanto o próprio Elias Chaves Neto atribuem muito valor àquela divergência do pós-guerra. O primeiro insiste mais em dizer que a escolha de Prestes, ao deixar o cárcere, pela CNOP, tendendo a apoiar Getúlio, redefinira a própria natureza do PCB, o qual, a partir daí, passaria a ser conhecido como o “Partido de Prestes”, a façanha da Coluna e a identidade da resistência à ditadura, que o Cavaleiro da Esperança trazia consigo, ampliando-se no prestígio a URSS obtivera durante a guerra antifascista. O velho “Ferro” chama a atenção para o modo de reorganizar o partido a partir da movimentação política do “Comitê de Ação”, vencendo o pânico que grassava no PCB após as prisões de 1940 (Batista Cavalcanti, 1983-89). Por sua vez, já Elias Chaves Neto acentua o sentido de “partido aberto” do “Comitê de Ação”, diferentemente do aparelhismo que ele via no tipo de reestruturação promovida pela CNOP. Ele próprio considera que o browderismo, de que seriam acusados depois os “dissidentes” brasileiros – “sem tirar desta política as conclusões falsas”[19] – também teria influenciado alguns partidos comunistas na decisão de participar nos governos de união nacional ao final do conflito (França, Itália) e nas experiências das coalizões de “democracia popular” (Checoslováquia, Polônia), citando ainda Elias Chaves Neto a Mao Tsé Tung como um dos exemplos de “flexibilização” do caminho único criado em 1917. E registra assim a sua versão: “No Brasil, essas idéias tomavam vulto num grande movimento popular pela anistia”, em cujo contexto proliferaram os Comitês Democráticos como articulações suprapartidárias em torno da campanha pela anistia que se mobilizam abertamente no fim do Estado Novo.[20]

Em seus cadernos, Caio Prado Jr. registra quase dia-a-dia as marchas e contra-marchas do embate entre aqueles dois grupos, pontilhando a disputa com os seus comentários sobre a evolução da própria transição por que passava o país, mostrando como essa “batalha das idéias” ia se deslocando ao longo do ano e como, afinal, se conclui. Com o apoio de Prestes à CNOP, impôs-se no PCB a nova orientação que acentuaria mais ainda a subestimação da importância da eleição presidencial – questão em torno do qual o movimento da UDN se cristalizaria na candidatura de Eduardo Gomes, tornando-a irrenunciável aquele novo início da política brasileira. Mudado o eixo da “política de união nacional”, o PCB se volta para o “queremismo” e as mobilizações da “Constituinte com Getúlio”, advindo dois outros movimentos: a) a reorganização do PCB se faz, à margem do trabalho de unidade entre as esquerdas e a centro-esquerda, “desperdiçando-se”, no dizer de Caio Prado Jr., aquele momento de democratização (Iumatti, 1998); e b) é plausível dizer que se substitui um constructo bem preciso (pelo menos no grupo de Caio Prado Jr.), a “dissertação” caiopradiana sobre a nacionalidade inconclusa, a que se associava a idéia de “aliança histórica” com os liberais, pelo critério de avaliação da política internacional que levava o PCB a uma aproximação com Getúlio. Pela falta de embasamento em uma interpretação de Brasil, a nova orientação do Partido de Prestes, segundo descrevem algumas passagens das memórias, primava pela vagueza e o irrealismo das palavras-de-ordem e pela “improvisação” da tática (sic). Caio Prado Jr. faz vários registros criticando o PCB em dois pontos significativos – a subestimação das eleições e o “populismo revolucionário,”[21] os quais – esta ainda é uma suposição do autor deste texto – envolviam, nessas questões da conjuntura, temas de concepção de revolução em relação em relação aos quais o historiador já então se singularizava. Por exemplo: “Tenho a impressão que Prestes planeja um grande golpe”, comentava o historiador em seus diários a preferência do partido pela Constituição “radical e ultramoderna”, quando “o seu sucesso dependia da legalidade”; ou ainda quando ele anotava que Prestes não tinha “o direito de repetir sua malograda e desastrosa aventura de 1935”. Segundo o historiador, o mais grave, porém, seriam as conseqüências do isolamento a que estava levando a nova política de união nacional (registrava um mês antes do golpe de outubro que o PCB já não contava mais com “nenhuma corrente democrática ou liberal” (sic); “Mesmo simpatizantes estão neutralizados e hesitantes. A reação [reina] soberana em todos os agrupamentos políticos: na UDN, no PSD, nos demais partidos e correntes”) (Iumatti, 1998: 147). Alguns dias depois, voltava a fazer a seguinte anotação: “Temo que os comunistas vão ficar muito mal. Derrotada sua idéia, Getúlio não se interessará mais por sua sorte. Perdem assim o apoio que na sombra lhes estava sendo dado, e ficarão á mercê da reação, sem aliados uma vez que perderam aqueles que deviam estar agora a seu lado: as correntes democráticas da UDN. Na hora que Getúlio considerar inúteis os serviços de Prestes, a reação se desencadeará. Talvez aquela hora esteja chegando.../” (idem: 167). Como é sabido, isolado, Caio Prado Jr. permanecerá marginalizado no PCB, após a dissolução do Comitê de Ação. O risco da repressão se confirmou durante a Guerra Fria. Embora não tenha sido ali a arena onde, afinal, se decidira o rumo das coisas, sem dúvida, aquela “batalha das idéias”, a derrota do “partido” de Caio Prado Jr. no PCB e, por conseguinte, deste em suas relações com e no interior da UDN, não devem ser menos importantes; sobremaneira para o historiador que queira decifrar o pensamento deste comunista, simultaneamente radical e reformista.

Aquele ponto alusivo ao populismo, aparentemente menor, chama a atenção como um elemento de muita definição nas análises caiopradianas: são várias as referências à política das esquerdas, o PCB em primeiro lugar, em termos de conduta de máxima clareza de objetivos e atuação a mais transparente para a população. Outra questão que chama a atenção é o conceito de “opinião pública” –noção que não passa desapercebida a Paulo Iumatti– e que nas memórias, algumas vezes como mero lugar de superfície da política, onde se tornava visível a precariedade da institucionalidade; e noutras, como espaço de formações discursivas, lugar que as oposições deveriam ocupar para dali estimularem a constituição dos grupos sociais em atores políticos. Por sua vez, como as análises de conjuntura dos diários parecem obedecer à seqüência sociedade/política –ou ainda ao esquema sociedade/opinião pública (chamaria a atenção para estes termos) e os partidos e as instituições democráticas (na equação mais completa das exposições da sua ciência política na Revista Brasiliense–, é possível notar já ali a centralidade que tem a sua ”dissertação” sobre a vida política nacional na definição da política, para além da “amargura” do derrotado (1945) e do marginalizado que não é ouvido no pré-64 (cf. Bresser Pereira, 1989), mostra o substractum que afastava o historiador do seu partido. Separação eloqüente, pelo menos, em duas das situações-limite da democratização da vida política nacional: em 1945 e no pré-1964, época, aliás, a que, em parte, pertence A Revolução Brasileira.[22]

É essa conexão entre a “dissertação” sobre a “revolução burguesa” débil (um capitalismo que não integra nem homogeneíza o corpo social) e a precariedade da institucionalidade e “esterilidade” das agitações características da vida política nacional, inclusive as “aventuras” das esquerdas e de seus aliados nacional-populares, que Caio Prado Jr. extrai de “1945”, à luz das teses da obra de 42, e a mobiliza nas suas análises políticas. Aliás, já em Histórica Econômica do Brasil (1945) parece haver uma espécie de “passagem de um tema a outro”, do “sentido da colonização” e da inorganicidade do povo (Formação do Brasil contemporâneo), vale dizer, da constituição de “uma economia propriamente nacional, orientada para o país e as necessidades próprias da população” –superando o sistema anterior “em que prevalece o elemento produção, para uma economia de mercado interno ampliado” (“isto é, o desenvolvimento do factor consumo”, cf. Prado Jr., 1945)–, para o tema (que ele diz não ser possível desenvolver no livro) da “transformação parcial” que, não obstante, se produz na economia brasileira pós-30, “e que exige para completar-se e chegar a bom termo, um programa político de reformas e a consciência clara do rumo que ela (a transformação) deverá tomar. A condição de maturidade para isto já existe; mas a evolução política do Brasil retarda muito a econômica”. Para o historiador, mesmo que apenas econômica, essa modernização já era um valor em si,[23] sobremaneira importante a ampliação “da esfera de intervenção do Estado na vida econômica do país, e um complexo aparelho administrativo (que) controla hoje a maior parte das atividades nacionais”. Então se abriam “grandes possibilidades à execução de um amplo programa de reestruturação econômica”, que, não obstante, estavam sendo aproveitadas “somente no sentido conservador” (sic), assim terminava ele o argumento ali inacabado ao final do último capítulo (“A crise de um sistema”) da sua História Econômica do Brasil, antes da atualização.[24] Aí já estava formulado o tema da investigação: a correlação entre o modo “ocasional” e “empirista” do industrialismo brasileiro, a passividade da maioria da população, inclusive à mercê de uma nova exclusão no programa modernizador da elitização do mercado interno desses anos,[25] e a vida política nacional igualmente débil. No pré-1964, Caio Prado Jr. insistiria muito mais no perigo da subordinação das massas populares à aventura em detrimento do trabalho em profundidade de sua socialização política.

 

Apresentações da teoria política caiopradiana

Não é um despropósito registrar que a Revista Brasiliense, no pré-64, como o Iseb do Rio de Janeiro, se constituiu num campo privilegiado do mundo intelectual da esquerda e da centro-esquerda daquela época. Criada para estimular investigações e debates sobre os problemas brasileiros, os seus fundadores diziam, na apresentação da revista, não alimentarem ilusões sobre o progresso que então se havia estendido a muitos campos, mas que “mal dissimula”(va) nos grandes centros urbanos, o atraso econômico do país (Bastos, 1955). Atraso esse que justamente seria bem compreendido – aqui a Revista Brasiliense declinava sua filiação caiopradiana – à medida que avançasse uma teorização sobre a natureza e o sentido da industrialização substitutiva, como diziam lembrando mestre, insuficiente para atender as exigências de bem-estar do povo, particularmente o de densas camadas da população rural em estado de extrema pobreza e à margem do surto econômico e industrial (idem).

Na primeira de suas análises políticas, do começo de 1956, “O Sentido da Anistia Ampla”, Caio Prado Jr., de modo parecido ao do seu partido, também valoriza a eleição de JK, justamente, escrevia ele, por ela ter tido origem em um forte movimento de “opinião pública”; opinião (“sem dúvida uma das mais vigorosas afirmações da vontade popular registradas em nossa história”), que pesara, primeiro, na aceitação da eleição e, depois, impulsionara o movimento pela posse do Presidente. Segundo o historiador, abria-se um quadro com “perspectivas promissoras” para o processo político, havendo um “sopro de renovação” no governo, dado pelo fato de JK o ter constituído em um novo tempo, em que “as grandes transformações ocorridas desde a última guerra começa(va)m a amadurecer e se fazerem nitidamente sentir”. Em sua circunstância econômica, a nova administração teria de escolher entre a finança internacional e a industrialização (“em termos propriamente nacionais”). Mesmo sendo um governo formado em meio a acordos partidários (“sem conteúdo ideológico e cimentados quase unicamente por interesses pessoais”) –continuava o registro de Caio Prado Jr.–, o seu desafio de ordem política consistia em dar passagem às forças renovadoras, antes dispersas, que se haviam reunido na eleição sob a forma “de amplos setores da opinião pública”, segundo o historiador, mobilizados pela idéia de reforma; aberto o caminho para que aquele despertar político se desenvolvesse em profundidade. Fora ele, apesar das “vacilações” e “ambigüidades” do candidato e do seu alinhamento ao capital estrangeiro, que teria colocado Juscelino Kubsticheck no rumo do novo tempo (Prado Jr., 1956a).

Tendo em mente associar “opinião pública” e “polarização de forças”, o analista já não se manteria tão otimista, transcorrido o primeiro ano do novo governo. Com efeito, no final de 1956, em seu texto “A política brasileira”, comparando as “poucas” medidas “positivas” com as muitas “negativas” adotadas por JK, Caio Prado Jr. centrava a sua análise no plano da política propriamente dita e de suas possibilidades reais, realçando o papel dos partidos. Para ele, o desempenho do governo e da oposição (“O que se pode observar é unicamente uma oposição que ataca, e um governo atacado que se defende”) passava a ser o terreno pantanoso por onde o grande programa de “industrialização e desenvolvimento econômico” (sic) ia se esvaindo naturalisticamente, em razão da “improvisação, superficialidade e inconseqüência da atual administração”, ajustando-se ao novo padrão de crescimento capitalista pós-”pleno emprego das forças produtivas”, como dizia ele, mediante “medíocres dependências” aos trustes internacionais, em detrimento da mobilização da massa da população para o trabalho produtivo e eficiente. Caio Prado Jr. via na agenda falsa da Oposição –a ética udenista, a defesa da liberdade de imprensa (para desestabilizar o governo constitucional) etc.– o reverso da própria campanha presidencial que tivera um “caráter puramente pessoal e de agitação estéril” e que só mostrara a “pobreza de idéias e de pensamento construtivo”. “Voltando a 1945”, o historiador dizia daqueles anos 50: “O certo é que as instituições políticas brasileiras se acham desconjuntadas”. E precisava o ponto: “A sua base essencial, que são ou deveriam ser os partidos políticos, não tem consistência alguma”. Evocando o seu modelo comparativo, o historiador definia: os partidos precisam, antes de tudo, começar a existir, isto é, “que afirmem a personalidade independente dos indivíduos que os compõem e eventualmente os representam. O que dá existência efetiva aos partidos políticos são os princípios e a orientação que os inspiram, e de que os membros do partido, sobretudo aqueles que exercem cargos públicos, ou que os pretendem, não são senão os portadores e instrumentos de expressão.” Para o argumento que ele quer desenvolver no seu texto, as definições não são ociosas: “Em outras palavras, o que essencialmente constitui ou deve constituir um partido político digno desse nome, é uma ideologia que compreenda e contenha sob forma geral e sistematizada, resposta explícita e clara ao conjunto das questões que se propõem no desenvolvimento da vida econômica e social do país, e que de maneira casuística e mais ou menos confusa se apresentam na consciência popular. Cabe aos partidos transpor essas questões para o plano político, dar-lhes uma elaboração teórica adequada e submetê-las assim ao debate público e à opinião do país. É somente assim que se irá formando um pensamento coletivo e uma cultura popular capazes de orientar a vida política do país, colocando-a a salvo de agitações estéreis e do caos que de outro modo estarão sempre iminentes. Não se esqueçam os dirigentes políticos da larga audiência que sobretudo na qualidade de chefes de partido, é posta à sua disposição. É preciso que saibam utilizar essa audiência no sentido da educação popular e da formação de uma consciência coletiva, único esteio seguro das nossas instituições políticas, e capaz de lhes dar um sólido fundamento” (Prado Jr., 1956b).

Dessa premissa, Caio Prado Jr. se voltava para a “questão geral” da democratização da vida política nacional, entendendo a democracia, “antes e acima de tudo, o conjunto de práticas através das quais se torne possível ao povo em geral adquirir consciência de seus problemas e necessidades, formar opinião sobre a maneira mais conveniente de resolver aqueles problemas e dar satisfação às necessidades; e finalmente fazer com que essa opinião seja levada em conta na administração pública do país. A liberdade e os direitos políticos assegurados na Constituição brasileira e nas leis não têm ou não devem ter outros objetivos que aqueles. E se explicam e justificam na medida exclusiva em que contribuem para isso. De nada servem portanto se deles se excluir o conteúdo concreto que vem a ser o fato de servirem de caminho e instrumento de participação popular na direção e administração do país” (idem). O autor entendia ainda essa “verdadeira democracia” –de partidos e procedimental–, como a mais importante condição “para o funcionamento regular das nossas instituições políticas e da administração pública. Não é possível governar e administrar o país, no mundo de hoje e naquele que se projeta para futuro, sem ser na base de fortes correntes de opinião pública nas quais os governos busquem não somente inspiração para seus atos, como agentes políticos e administrativos capazes de realizar de maneira conseqüente e fecunda as tarefas que incumbem aos órgãos do poder”.[26] Como resultado do exercício, Caio Prado Jr. obtinha uma avaliação do processo político em curso, e como nele evoluía a administração JK: este se formara como um governo “eleito com um vasto programa estratégico de realizações no terreno do desenvolvimento econômico do país”; programa que se revelava “não ser mais que uma iniciativa pessoal do candidato” tornado Presidente; movida a conjuntura noutro sentido, ele passava a ser um governo desprovidos dos “elementos ideais e políticos” para sua concretização como programa. Por sua vez, registrava o analista, a oposição pela oposição “não é base suficiente para nenhuma ação política, por mais brilhantes e capazes que sejam os indivíduos que compõem aquela oposição” (idem).

Neste ponto, Caio Prado Jr. retornava ao antigo tema da indiferença política, inclusive o ceticismo da “grande maioria da população” ante as respostas que esperava da administração pública e esta não emitia sinais de solução satisfatória aos seus problemas.[27] Era da dialética daquele trinômio opinião pública/polarização de forças/vida política nacional que Caio Prado Jr. dava atenção privilegiada ao tema da persistência das práticas da “política brasileira” – de “hostilidades pessoais ou de grupo”, “rivalidades de campanário”, ou debates de questões políticas e administrativas “no plano de suas preferências doutrinárias e convicções pessoais” –, divisando os contornos de um quadro sombrio, de crescente confusão e vazios que, como ele dizia, haveriam de alimentar os grandes interesses nacionais e internacionais, à espera de “dias ainda piores de completa desordem e desorganização da vida administrativa do país” (idem).

No terceiro artigo dessa primeira série de análises, “Panorama da política brasileira”, do final de 1961, a reflexão caiopradiana já era francamente pessimista. O analista punha agora o foco do seu interesse no quadro de desequilíbrio catastrófico que se estava criando a partir da situação que ele chamava de “vácuo” e “marasmo”. Caio Prado Jr. inclusive interpela as “forças políticas dominantes sobre que recai a responsabilidade da direção do País” pela omissão numa hora “em que mais se fazia sentir a necessidade da ação, de uma tomada decisiva de posições, de perspectivas claras e de realizações de grande envergadura”. Com essa idéia de urgência, o analista insistia no seu diagnóstico de que a política brasileira encontrava-se num “ponto morto”, na “completa esterilidade dos seus atuais quadros políticos”, isto é, deteriorando-se, sem uma estrutura político-partidária capaz de dar passagem a formas de “atividade política fecundada e de perspectivas” (sic). Em lugar de apelar para o voluntarismo, o autor ia buscar na tradição a raiz desses impasses, “incongruências” e “inconseqüências” que “estranhamente” se perpetuavam na vida política nacional: “Realmente, a política brasileira ainda se acha fundamentalmente disposta dentro de um velho esquema inteiramente superado pelos fatos, e que herdado de um passado que já se vai tornando remoto, vem anacronicamente se arrastando em renovação. Esse esquema vem dos tempos em que a figura de Getúlio Vargas ocupava o centro de nossa vida política. Essencialmente, os nossos partidos e agrupamentos políticos ainda formam nos dois campos originários das forças que no passado respectivamente apoiaram Getúlio Vargas e lhe fizeram oposição... Analisando-se com atenção a vida política brasileira e a sua estrutura partidária, verifica-se que efetivamente o que ainda marca, de maneira decisiva, a linha divisória dos partidos, é a sua tradição do tempo do getulismo, isto é, a sua posição originária respectivamente de partidários e adversários do governo, ou antes, da pessoa de Getúlio Vargas” (Prado Jr., 1961).

Todavia, ao invés de anacrônico, o espectro de “1945” tornava-se, naquela circunstância do pré-64, a baliza do ator político: aquele “dispositivo político” projetava a “ilusão” – “já hoje felizmente bem atenuado, pelo menos na opinião pública” – de que “as contingências e vicissitudes da política brasileira são reflexo da correlação de forças econômicas e sociais no plano das lutas político-partidárias”, oficializando na cena pública conflitos partidários que, “em última instância”, resultam do jogo “de facções de estreitos horizontes e inspirados unicamente em interesses personalistas e de clientelas políticas concorrentes”. O ponto do autor era mostrar como esse “tradicionalismo ideológico” se perpetuava subsumindo e anulando “nesse jogo estéril” (sic) “uma larga parcela de esforços honestos e dignos de melhor sorte”. E na falta de “questões gerais”, reavivava “naturalisticamente” a política como mera agregação de interesses pessoais e de “clientelas partidárias”. As eleições permaneciam palco sendo palco para “contingências eleiçoeiras”, apenas ocasião para simples composições heterogêneas, formando um mundo, como sempre estará dizendo Caio Prado Jr., de “inconseqüência” e de “esterilidade no que respeita à solução, ou pelo menos encaminhamento, das soluções para os fundamentais problemas brasileiros”. Segundo o historiador, podia se ver a atualidade desse velho estilo na conduta das forças políticas frente à administração JK, localizando-se, não em função das orientações do governo – “entreguismo e inflação em escala sem precedentes” –, mas “na base de determinações puramente partidárias e de facção”. A UDN, maquiando a face semelhante à parte mais conservadora do governo, ocupou todo o espaço da oposição numa luta “facciosa de clã político” derrotado. O analista continuava a sua narrativa política: a candidatura Lott – “nítida e confessadamente reacionária” (sic) – apenas iria fazer funcionar o “decrépito dispositivo PSD-PTB contra a UDN” “no sentido de indevidamente polarizar as forças políticas do País”, isto é, centralizá-las em torno de uma “estreita luta de facções sem nenhum conteúdo ideológico e programático real”; e a eleição de Jânio, por sua vez, reproduziria o “obsoleto esquema faccioso que é o PSD-PTB de um lado, a UDN do outro”. Nada estranho, segundo Caio Prado Jr., que, nesse quadro, a demagogia “populista e esquerdizante” de Jânio ganhasse conteúdo popular, mas apenas para, em sua aventura, levar o país àquela situação de “paralisia” da “política brasileira”. Ademais, essa “cena política oficial” envolvia os debates sobre as questões nacionais com uma “nebulosa estratosfera de vagos princípios abstratos onde, embora debatidos, não oferece a menor possibilidade ou probabilidade de se traduzirem em realizações concretas” (idem).

Esse “dualismo” das análises caiopradianas se diferenciava das demais ciências políticas dos anos 50. Por exemplo, enquanto na sua “sociologia da modernização”, o PCB realçava a polarização nação/imperialismo e lhe conferia status de sobredeterminação a governar todo o processo político (constructo que alguns isebianos revestiam, em viés culturalista bem mais elaborado, com o par atraso/moderno, extraindo daí a sua teoria da afirmação nacional (autenticidade/inautenticidade), o marxista Caio Prado Jr. retinha da Economia Política o tema da população-consumo, chegando a uma ciência política que, como outras, atentava para as relações desiguais entre os níveis de estruturação de uma formação da sociedade em situação de capitalismo retardatário. A própria idéia de “polarização de forças” diferentemente da tática de frente única substantiva (cf. Laclau e Mouffe, 1985), em Caio Prado Jr. aludia à reestruturação da política brasileira “na base de princípios e programas de ação nitidamente definidos e formulados em termos suscetíveis de imediata aplicação”. Neste seu texto “Panorama da política brasileira”, Caio Prado Jr. ainda alertava as “forças progressistas e populares” para deixarem de ser “simples joguetes envolvidos em lutas de facções” e tomassem(rem) a mobilização popular como matriz de onde sairiam os novos quadros e as reformas de base teriam a sua viabilidade convalidada, ao se entrosarem ali a atividade legislativa e a ação dos grupos sociais “diretamente interessados no assunto”. Para o historiador, esse processo seria vivido pelos partidos políticos à medida que eles se enraizassem na massa popular (“... sentirem e interpretarem suas aspirações, formularem-nas em termos de idéias gerais e princípios políticos, captarem e utilizarem a sua experiência, e finalmente disciplinarem e canalizarem convenientemente a ação popular. Tudo isso é inteiramente estranho aos partidos brasileiros, que aliás não se constituíram nem funcionam para esse fim. São por isso incapazes, na sua forma atual, de assumir a responsabilidade das reformas de base que o País necessita”). Embora não alheia à tradição de “obsessão pela política” do seu partido, a terapêutica caiopradiana era radical: os partidos políticos deveriam aposentar “definitiva e inapelavelmente o decrépito dispositivo político-partidário” e se reestruturarem “em função de programas de ação efetiva no rumo da solução dos grandes problemas nacionais, e na base da organização popular, isto é, tomando por fulcro os movimentos populares onde encontrarão o impulso e cooperação necessários, e somente aí o encontrarão, para aquela ação” (Prado Jr., 1961). Em outras passagens de sua obra, o autor parece ter em mente um modelo de ação político-popular, à primeira vista, de todo “purificado” em relação ao campo da cultura política então vigente, dissociado do marco institucional da política corrente.[28] Vendo-se o sentido desse e de outros artigos, a ambigüidade sugere mais uma referência a uma terapêutica regenerativa dos partidos (ou mesmo de refundação) para que eles pudessem “dar novo rumo àqueles fatos e instituições” (Prado Jr., 1961).

Um ano depois, no quarto artigo que escreve para a Revista Brasiliense, “Perspectivas da política progressista e popular”, já no governo de Jango, Caio Prado Jr. volta à questão da inexistência de um “sentido mais profundo” na “vida política partidária oficial brasileira”, não dissimulando o próprio pessimismo de que as “aspirações e reivindicações e a problemática econômico-social brasileira” estavam apenas sendo instrumentalizadas (Prado Jr., 1962). Ao invés de ver aquele momento como um quadro político “estrutural”, isto é, no qual a condução da “luta de classes na política” se definia a partir da “disposição de forças” e as táticas operavam em função de um objetivo último, Caio Prado Jr. retornava ao tema da debilidade institucional como a questão que o ator político não poderia deixar esmaecer à hora de identificar o campo de manobras onde teria de operar na política corrente. Há indícios da preocupação do autor com a escolha de meios em estrita relação a fins, com o cálculo político a partir da compreensão geral do processo que se mostrava na conjuntura, vale repetir, a “deficiência de nossa vida política, revelada na inadequação dos quadros partidários à nossa realidade e problemática econômico-social” (idem). Segundo ele, como a formulação dos “grandes problemas” já se havia tornado “clara, pelo menos em suas linhas gerais e fundamentais” – a “libertação econômica do País e a transformação de sua economia agrária” –, e inclusive já tinham se popularizado, sobressaí-se a figura do ator político – sem poderes ilimitados e dependendo ter iniciativa à medida que compreendesse sua própria circunstância – motivado para tentar governá-la em razão dos objetivos últimos.[29] O quadro era de virtù e fortuna: “No entretanto, os quadros partidários brasileiros não se dispõem em função das soluções a serem dadas a essas questões. Ou o fazem de maneira ambígua e inconseqüente. Eles se dividem e agrupam não na base de programas destinados a enfrentar as tarefas propostas pelo desenvolvimento autônomo e nacional da economia brasileira e pela reforma agrária – que são os pontos em que se centralizam as questões pendentes na conjuntura atual – e sim com vistas a insignificantes interesses de grupos partidários, quando não de simples ambições e vaidades pessoais” (Prado Jr., 1962). A responsabilidade pela persistência desse quadro, segundo Caio Prado Jr., cabia, em primeiro lugar, às “forças populares e progressistas” que haviam perdido a iniciativa perante os “fatos” e aos demais atores, perante aqueles a quem deveriam conduzir e aos adversários que lhes subalternizavam a ação. Nas palavras de Caio Prado, abdicando da tarefa de operar a “polarização de forças segundo os problemas nacionais”, deixando que tais problemas “se disfarçam e esvaem na heterogeneidade dos dispositivos partidários que se defrontam na arena política, bem como na vagueza de formulações inconsistentes e inconseqüentes” (idem).

É reiterando a tese da debilidade da política brasileira que Caio Prado Jr. pintava o final do ano 1962 com cores de uma conjuntura “pré-revolucionária”. À falta de atores competentes –para converter a instabilidade após a renúncia de Jânio em uma fase de “grandes transformações capazes de encaminhar a solução das contradições pendentes”–, a situação se tornava dramática.[30] O analista preocupava-se com o processo de deterioração, com a circunstância inicialmente favorável que se ia perdendo – a cena pública se amesquinhava a cada dia –, dissipando-se, como ele mesmo dizia, o “ardor das massas” que despontara em 1954 “numa luta que estimulada e desencadeada, embora por fatores altamente positivos, logo se esteriliza e perde, em todas suas arrancadas, em becos sem saída”. Lendo-se os comentários sobre os sucessos imediatos à posse de Goulart –a continuação da luta pela recuperação dos poderes do Presidente, quando este já pudera nomear o próprio ministério, mediante “intensa agitação popular, greves, pronunciamentos militares”– tem-se a impressão de que Caio Prado Jr. tomava distância em relação à "ânsia desmedida" pelo poder das “forças progressistas e populares”, evocando novamente “1945”.[31] Caio Prado Jr. não vê tempestividade no plebiscito e chega a dizer que o mesmo se, realmente, foi o “fato político máximo” daquele momento, ele não ensejara um “passo decisivo” no sentido das reformas, nem indicava “algum sintoma de uma próxima realização”.[32] Nas análises de Caio Prado Jr., essa “não-coincidência” “entre os fatos concretos da política partidária brasileira, de um lado, e doutro as contradições profundas da nossa realidade econômica e social” tornava-se o parâmetro básico para o ator político, “sem dúvida grande óbice, talvez no momento o mais sério, oposto a um fecundo desenvolvimento da política brasileira no sentido da solução das grandes contradições econômicas e sociais que afetam o organismo da Nação” (Prado Jr., 1962).

É essa conexão fatos políticos/correlação das forças econômicas e sociais à luz da proposição sobre a vida política nacional –lembrando o mesmo passo que ele realizara em seu marxismo a partir da “realidade consumo” em países de capitalismo tardio– que diferenciava a ciência política caiopradiana e deixava o historiador muito solitário naquele pré-64. Sem “ânsia desmedida” pelo poder, para Caio Prado Jr., se estaria em melhores condições para se distinguir entre o cálculo de curto termo destinado a realizar ações de poder, daquele outro tipo de formulação que visava “corrigir as defeituosas vias em que se processa a política brasileira”; trabalhar em favor de uma “clara definição e polarização de forças”, criando perspectivas para a solução das contradições econômicas e sociais pendentes”, interditando, na “política brasileira”, a velha lógica que terminava sempre por “canalizar e dissipar o dinamismo latente nessas contradições para estéreis lutas de facções e choques de interesses personalistas” (idem).

Em suma, se, de um lado, há em Caio Prado Jr. uma espécie de “sociologização” da política corrente –ele esperava que o jogo político se subordinasse em relação à correlação de forças econômicas e sociais, sugerindo, no limite, o desligamento das “forças progressistas e populares” dos “estéreis dispositivos e quadros partidários oficiais a regulares,”– de outro, há também um segundo movimento de “politização” desse sociologismo, na verdade, uma idéia de politização da constituição da nacionalidade. Naqueles tumultuados anos do pré-64, tal movimento exigia como “um primeiro e imediato passo” a concretização “sistemática” (sic) de um programa “a fim de tirá-lo das vagas generalizações e dispersão de princípios que ainda hoje o caracterizam”, vale dizer, “a noção precisa de como propor essas questões concretamente e de modo a lhes dar soluções expressas em normas práticas e desde logo aplicáveis”.[33]

Caio Prado Jr. não só se oporá ao populismo revolucionário de seu partido em 1945, como também –essa seria a decorrência da sua dissertação sobre o mundo rural brasileiro– distanciar-se-á de todo e qualquer instrumentalização das classes subalternas agrárias. Nada mais longe do agrarismo de grande empresa, empregados, sindicatos e legislação do que uma política de mobilização dos camponeses “no projeto dos outros” (seja do proletariado, da burguesia ou de grupos intelectuais urbanos). Mas para isso não atentou José de Sousa Martins (1981) ao acusar o partido de Caio Prado Jr. de uma práxis agrária, que se já não estava extinta no PCB, vinha sendo substituída, pelo menos desde meados dos anos 50, por um tipo de política mista, sindical-camponesa (cf. Carvalho Costa e Santos, 1999a). Crítica, por que não dizê-lo, que também se estendia ao próprio Caio Prado Jr., pela priorização do tema da exploração em seu agrarismo. Do mesmo modo que em seus comentários acerca da cena pública das cidades, no panorama agrário do pré-64, o historiador também vai se manter em uma postura de quase absoluto isolamento:  ele não acompanha as tendências à absolutização da luta pela terra. E, depois, nos últimos anos da década de 70, à hora do fim da influência pecebista nos sindicatos, o seu agrarismo permanece bastante alheio à propulsão valorativa dos modos de ser dos camponeses que se difunde com o aggiornamento da práxis agrária da Igreja. A dissertação agrarista de Caio Prado Jr. não tem serventia para conferir sentido novo às lutas pela terra que “pontilhava o país”, denunciando a ideologia produtivista do regime militar e testemunhado como questão da vida a "territorialização do capital", tema novamente em mãos de alguns autores (entre outros, Cameron, 1980; Martins, 1980a,b,c; 1981). Essa bibliografia sempre terá dificuldades em incluir Caio Prado Jr. naquela cultura de instrumentalização dos camponeses, pela sua bem explícita concepção de “revolução agrária não-camponesa” de assalariados e semi-assalariados, sindicatos e “modos cívicos urbanos”; e de universalização da lei –a “grande transformação” do mundo rural– cujo objetivo, no plano da política, era aquilo que Ivan Ribeiro sugere, em seus poucos textos, como de incorporação ao sistema político (“com o objetivo de tornar possível aos camponeses e trabalhadores rurais entrar no jogo político enquanto força de classe e com individualidade”, cf. Ribeiro, 1983), como nas cidades na atividade partidária.

Nos três últimos artigos-editoriais que escreve para a Revista Brasiliense, com os olhos postos nos movimentos que iam mudando a conjuntura, Caio Prado Jr. se debruça sobre a práxis agrária das esquerdas, centrada na questão da terra. Esses artigos retratam uma circunstância que o ator agrarista podia converter em fortuna, se se dispusesse a trabalhar o impulso favorável da “dialética econômica” de grande empresa que, conforme a teoria caiopradiana, estava a governar o mundo rural daquela época sob o duplo influxo da luta pela efetivação da lei e por reivindicações trabalhistas (Prado Jr., 1963b). Observa-se nesses artigos do imediato pré-64 não a preocupação com a questão agrária como tal, mas ainda o cuidado de Caio Prado Jr. com o reaparecimento do espectro da “agitação estéril” no campo que, segundo ele, só haveria de subalternizar os grupos sociais, como se vira com o populismo nas cidades. O historiador retornava ao velho argumento mas agora de modo bem propositado, indicando o lócus de sua viabilidade –Pernambuco–, e a baliza – a condução das greves canavieiras de 1963 e a atitude do governo, convergentes no mesmo sentido da reforma agrária ampliada, ali a intervenção competente do ator democrático podendo contornar os perigos “que nos ameaçava”. No primeiro desses artigos, “Um discurso marca época” (Prado Jr., 1963a), o historiador via o governo Arraes como emblema que mostrava as possibilidades de implantação de medidas concretas, “racionalizando” a palavra-de-ordem da reforma agrária, afastando-a da “agitação estéril”; no segundo texto, “O Estatuto do Trabalhador Rural”, Caio Prado Jr. tomava o fato da sua promulgação, em meados de 1963, ante a qual as esquerdas não haviam demonstrado grande interesse, para “atualizar”, usando um aforismo luckacsiano, a idéia de “revolução abolicionista”, quer pelo horizonte amplo de mobilização social que ela abria “na generalidade do país”, quer por que também oferecia, no imediato, “as melhores perspectivas para a ação reformadora e seu sucesso”;[34] e, por fim, em “Marcha da questão agrária no Brasil” (já no começo de 1964), o historiador extraia das “greves” de Pernambuco um “modelo” para a sua tese da “luta pela reforma e renovação da nossa economia agrária”. Ao invés de realçar a desapropriação, a lição de Pernambuco contabilizava resultados vantajosos à política de concentração de energias no “centro nevrálgico e ponto principal de partida da reforma que deve ser imediata e intensamente atacado”. Vale repetir o autor: “Não é certamente o único, mas sem dúvida o essencial e que oferece melhores perspectivas para a ação reformadora e seu sucesso”. Em posição bem isolada, justamente pela distinção que fazia entre os “focos de agitação” e o movimento social da “grande massa de empregados” na generalidade do país, o ponto de Caio Prado Jr., naquele imediato pré-64, consistia em valorizar aquelas perspectivas pelos seus resultados como mostravam três ordens de efeitos: a) ocorrera ali uma “verdadeira transmutação” nas condições de vida daqueles trabalhadores rurais; b) dinamizara-se a região (movimento comercial em curto espaço de tempo etc.); e c) ademais, já estaria em curso o “efeito econômico” da pressão da força do trabalho em suas lutas reivindicativas, para abrir ainda mais o acesso à terra. Em contraste com a “agitação” da luta pela terra, Caio Prado Jr. considerava aquela experiência como uma movimentação que descortinava “amplas perspectivas de reforma e renovação econômica e social e podemos até dizer política”, mais consentânea, como ele definia, com o “profundo sentido do nosso processo revolucionário.” (Prado Jr., 1964).

Mas não era essa a leitura que tinham os atores de maior gravitação no mundo rural. Caio Prado Jr. observava que, mesmo com a falta da orientação daquela alternativa, pela própria existência de uma espécie de condicionador político geral –o governo Arraes– “foi possível superar quaisquer insuficiências teóricas que se supriram com o empirismo da ação prática”. O problema era dar solução ao que se passava “na generalidade do país”, onde a revolução agrária não-camponesa “marchava muito lentamente”. Ele ainda insistia para que os atores democráticos abandonassem a ênfase na luta pela desapropriação. Às vésperas do golpe militar de 1964, o agrarista brasileiro se queixava do grosso das “forças democráticas” que continuavam indecisas a “intervir acertadamente” e hesitavam em deixar de lado "a estéril agitação por objetivos que se acham”, dizia ele, “no mais das vezes, na situação atual do País e no momento que atravessamos, muito além e mesmo inteiramente fora do realizável, afim de se concentrarem naquelas tarefas de reforma que efetivamente respondem à sua fase e etapa atuais”.[35]

*

Certamente a exposição de uma ciência política como essa não teria passagem em seu partido.[36] Pode-se ter uma ídéia aproximada de sua recepção no artigo “Aparências e realidades do panorama político”, publicado na revista Estudos Sociais em resposta à análise apresentada em “Panorama da política brasileira” (Matos, 1962). Chama logo a atenção a comparação que o articulista oficioso fazia entre o historiador –que, segundo ele, não era o primeiro exemplo de “alguém que conheça, até profundamente a letra do marxismo”– e o teórico Bukharin, cujo principal e “o mais sério defeito apontado por Lenin num teórico da categoria de Bukharin”, era – cite-se a Matos explicando o seu ponto – “não saber assimilar a essência revolucionária da doutrina elaborada por Marx e Engels e por ela se guiar em face da complexidade e das contradições da própria vida.” No caso do “escritor marxista” brasileiro, essa incapacidade justamente se revelava nas suas teses sobre a história corrente, a principal delas, aquela que caracterizava o “panorama da política brasileira” como uma dramática situação de “vácuo”, “sem rumos precisos”, devido às “falhas da ‘estrutura partidárias’ que não refletiam a correlação de forças econômicas e sociais’ e sim uma amaldiçoada herança do ‘tempo do getulismo.’” (idem). Aqui aparecia o problema “idealista” da ciência política caiopradiana de dissociação entre estrutura e superestrutura (“como se fosse possível existirem na sociedade uma estrutura e uma superestrutura marchando cada qual para o seu lado”). Ela teria efeitos práticos, e paralisava, à medida que o autor não dominasse o seu impressionismo ante a “tensa, agitada e grave” situação do país. Como dizia o crítico de Estudos Sociais, ela impedia a Caio Prado Jr. de perceber os avanços na consciência antiimperialista, na reforma agrária (que já se havia convertido “em tema obrigatório”); no movimento operário (que passara para uma nova fase), no movimento camponês (que já “começa a pesar como uma força influente, sobretudo no Nordeste e no extremo Sul”). Não podendo o historiador ver os temas do “desenvolvimentismo” e do “moralismo” (sic) daquela época como expressões políticas “de classe” e de conflitos entre frações burgueses; discernir o sentido do apoio dos comunistas a JK e entender os acontecimentos subseqüentes à renúncia de Jânio. As “identidades” (sic) que em suas análises fazia Caio Prado Jr. entre a política brasileira e suas seqüelas nos partidos burgueses não lhe deixava ver o processo em curso cada vez mais intenso e complexo. “A realidade é muito mais simples do que todas as especulações de fundo idealista,” era assim como o analista resumia a estranha ciência política caiopradiana que retratava uma vida política condicionada por “pequeninas ambições e aspirações personalistas”. Ao contrário de ser causa de “vácuo”, a debilidade da estrutura partidária devia ser vista como expressão “autêntica” da “impureza” das classes dominantes brasileiras (“o entrelaçamento de interesses entre latifundiários e capitalistas – fruto do atraso da revolução burguesa e das deformações do nosso desenvolvimento econômico e social” (idem).

O articulista também tinha em mente uma idéia de “polarização das forças sociais e políticas” (sic), pensada, porém, a partir da dualidade da vida política nacional em dois campos, como era comum fazê-lo naqueles anos 50 –“o do nacionalismo e o da democracia contra o do entreguismo e da reação”, cuja lógica levava o autor a avaliar de modo diferente ao de Caio Prado Jr. o processo político (que seguia “com uma profundidade e uma nitidez cada dia maiores”)– a depender o seu curso da criação de uma força social “social destinada, no presente estágio, a tornar vitorioso esses objetivos”, isto é, uma frente única dotada de “um programa que não deixe dúvidas quanto a superioridade e à vantagem das soluções nele defendida”.[37] Em suma, ao invés de perceber o sentido da tematização das relações entre economia e sociedade, do atraso da política em relação à economia, o crítico das análises da Revista Brasiliense só via na tese caiopradiana da “reformulação partidária” como “única alternativa” para aquela crise do pré-64 (“o que se tem em vista, aqui, obviamente, são os partidos das classes dominantes”) um duplo equívoco: “Em primeiro lugar, significa admitir a possibilidade de uma reestruturação partidária (é claro, não apenas do ponto-de-vista jurídico formal, mas do conteúdo social dos partidos) sem que antes se verificasse uma reestruturação da sociedade. Seria, em outras palavras, colocar o carro na frente dos bois. Em segundo lugar, não passa do mais ingênuo idealismo pretender-se atribuir-se a esses partidos reestruturações – CPJ não esclarece sequer se a um, a dois, ou a todos – a missão de resolver os problemas do Brasil, libertando-nos do imperialismo, acabando com o latifúndio e assegurando o nosso desenvolvimento independente e democrático” (idem).

Tem-se, aí neste pequeno contraponto, se representativo aquele autor, como tudo indica, uma mostra das “razões práticas” da separação entre Caio Prado Jr. e o seu partido. Certamente, o tema das contaminações “burguesas” e idealistas na formação e na obra de Caio Prado Jr. exigem melhor cuidado e investigação, às quais muito estimula o tema dos “deslizes” do autor de Formação do Brasil contemporâneo, ao lembrarem, desde logo, outras “singularidades” excessivas em outros marxistas políticos que também se debruçaram sobre a “história corrente”, atentos às opções do “agir teoricamente orientado” (Habermas, 1992), na sugestão marxiana da Tese sobre Feuerbach n. 8: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática” (Marx, 1845; 1978). Comentando a acusação daquele articulista da revista Estudos Sociais, segundo a qual, em seu artigo “Panorama da política brasileira”, ele apenas mostrava “cegueira opaca e visceral incapacidade de análise e compreensão da realidade política brasileira”, o próprio Caio Prado Jr., no último daqueles textos propriamente políticos (“Perspectivas da política progressista e popular”), voltava a insistir na mesma idéia da assimetria entre a “vida política oficial” e o “sentido mais profundo” da vida social brasileira, falando como se fosse um dos primeiros clássicos divagando sobre o divórcio entre país real e país legal; dizendo, todavia, o marxista do PCB que “precisamente na natureza dessa ligação que se há de acentuar a análise a fim de corrigir as defeituosas vias em que se processam a política brasileira” (Prado Jr., 1962).

A leitura das memórias políticas de Caio Prado Jr. vêm mostrar o reformador social como um dos responsáveis pelo “clima de rebeldia intelectual e análise social” que iria marcar o intelectualismo brasileiro que então começava a freqüentar a universidade (cf. Candido, 1967; 1977) e o publicista, na sua própria militância, em luta para não se deixar governar pelas “agitações estéreis”. O emblema “1945” não é “mera volta” a 1945, como em outros marxistas não o são 1789 e 1848, para não falar no marxismo gramsciano e suas remissões à Reforma, à Renascença e ao Risorgimento. Caio Prado Jr. trouxe daqueles últimos anos do Estado Novo a inspiração para colocar o tema das duas "reorganizações" ao seu partidos, como ele costumava dizer e repetir. Em sua trajetória arredia, fora obrigado a requalificar a “questão do consumo” (1942; e 1954) como objeto do seu marxismo para poder chegar à idéia de socialismo de “reformas capitalistas"; apenas conseguira ensaiar uma “dissertação” sobre o capitalismo débil (1945) que, mesmo inconclusa, vai funcionar como interface da sua tese sobre a “reestruturação da vida política nacional” (especialmente, 1955-64). Por que não ver a sua ciência política, tal como exposta na Revista Brasiliense, ao lado da “teoria da revolução brasileira” da Abolição, voltada para “completar” a República?

 

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Notas

[1] Registe-se que ambos, Lukács e Caio Prado Jr., não se desligam do comunismo soviético e guardam filiação disciplinada a seus partidos. Muito mais como impressões de viagem, Caio Prado Jr. também à época escrevera dois artigos na revista Estudos Sociais sobre a experiência do governo socialista de coalizão na Checoslováquia.

[2] Jaguaribe havia lido na imprensa comunista o artigo “Os fundamentos econômicos da revolução brasileira”, no qual o autor de Formação do Brasil Contemporâneo voltara ao tema da origem da economia agrária estruturada para o sistema produtor da grande empresa mercantil, a fazenda brasileira mais se parecendo com a fazenda de escravos romana do que com qualquer formação social representativa do feudalismo (Jaguaribe, 1954; Schwartzman, 1982).

[3] A proposição-programa que Gramsci extrai de Marx para suprir a falta de condições de trabalho na prisão é aquele cãnone relativo à tempestividade sociológica e cultural da mudança nas sociedades já amadurecidas: “Ninguna formación social desaparece antes de que se desarrollen todas las fuerzas productivas que caben dentro de ella, y jamás aparecen nuevas y más altas relaciones de producción antes de que las condiciones materiales para su existencia hayan madurado en el seno de la propia sociedad antigua. Por eso, la humanidade se propone siempre únicamente los objetivos que puede alcanzar, pues, bien miradas las cosas, vemos siempre que estos sólo brotan cuando ya se dan o, por lo menos, se está gestando, las condiciones materiales para su realización” (Marx, 1977: 344). Com os sucessos de 1929, Gramsci amplia sua investigação originária sobre as causas da derrota de 17 na Europa, tornando-a muito mais ambiciosa à hora de dissertar sobre a interação base/superestrutura numa formação social em contexto de crise. Quer pela “Revolução contra o capital” (relembre-se esse texto gramsciano a respetio de 1917), quer pela “grande transformação” que então reorganizava um capitalismo estruturalmente modificado, o tema novo da dialética “torta” entre economia e sociedade se qualifica no próprio Gramsci e passa a ser pensada, como no Risorgimento, a partir deste outro postulado, igualmente axial: “Un grupo social es dominante sobre los grupos adversarios a los que tiende a ‘liquidar’ o a someter también com la fuerza armada, y es dirigente con los grupos afines o aliados. Un grupo social puede e incluso debe ser dirigente antes de conquistar el poder gubernativo (y esta es una de las condiciones principales para la misma conquista del poder); después, cuando detenta el poder e incluso si lo tiene fuertemente en el puño, se transforma en dominante, pero debe continuar siendo igualmente ‘dirigente’” (Gramsci, 1974: 96). Caio Prado Jr. somente faz referência àquele postulado marxiano tão de uso de Gramsci na obra madura, numa passagem na qual o historiador comenta as possibilidades irreais de reformas proveninentes do voluntarismo dos reformadores sociais e fala da condução dos acontecimentos em função de sua direção para os objetivos revolucionários, mas em atenção à circunstância (“E ‘direção’ e ‘análise’ já constituem, em si e por si, propriamente fatos que também hão de ser levados em conta”). Lê-se ali: “É de Marx a observação tão justa e comprovada por todo o decorrer da História, que os problemas sociais nunca se propõem sem que, ao mesmo tempo, se proponha a solução deles que não é, nem pode ser forjada por nenhum cérebro iluminado, mas se apresenta, e aí há de ser desvendada e assinalada, no próprio contexto do problema que se oferece, e na dinâmica do processo em que essa problemática se propõe” (Prado Jr., 1966: 13-14).

[4] No meu texto “Três fontes constitutivas do pecebismo contempoâneo”, adianto algumas anotações sobre esse sentido de identidade entre Caio Prado Jr. e a interpretação de Jaguaribe sobre o capitalismo tardio, conhecida pelo historiador nos textos isebianos de Jaguraribe, especialmente O nacionalismo na atualidade brasileira (1958).

[5] Caio Prado Jr. considerava as estradas de ferro na experiência da Europa e dos EUA como um “fator dinâmico” de irradiação na economia, e dizia que aqui, na falta de um elemento de autogênese produtivo deste tipo, dever-se-ia voltar as vistas para a “natureza do mercado” da indústria, segundo ele, o “ponto nevrálgico” da economia brasileira (Prado Jr., 1945; 1960: 370-72). Dramático o caso brasileiro, sem experiência de feudalidade, estruturada sua economia pelo plantation system, com um industrialismo, em relação ao modelo clássico “muito atrás” em termos de recursos naturais e de população.

[6] Foi Alberto Passos Guimarães quem, involuntariamente, sugeriu a melhor chave para se qualificar o agrarismo caiopradiano. Em texto de 1960, buscando conferir fundamento à práxis sindical-camponesa já praticada pelo PCB desde meados dos anos 50, Alberto Passos Guimarães recorria à distinção que Lênin fizera no clássico opúsculo entre as “duas formas históricas da revolução agrária” – a revolução agrária camponesa e a revolução agrária não-camponesa. O autor russo procurara mostrar a lógica e a forma distintas em relação à revolução camponesa antifeudal que uma revolução agrária não-camponesa podia assumir em países de agricultura totalmente capitalista, ou naqueles outros casos em que o seu “regime agrário” já se achasse muito “amalgado” com a “economia capitalista em geral” (cf. Passos Guimarães, 1960). Esse tipo de revolução agrária poderia ser liderado por outras classes (no exemplo de Lênin, burguesia industrial e proletariado) e teria por objetivo abrir passagem para o capitalismo na agricultura. Alberto Passos Guimarães citava O programa agrário da social-democracia russa (1907): “Em outras palavras, é possível um país burguês sem camponeses. É possível uma revolução burguesa em um país de considerável população camponesa e que, não obstante, essa revolução não seja camponesa, isto é, seja tal que não revolucione as relações agrárias que afetam em especial os camponeses e não destaque êstes entre as forças sociais, sequer ativas, executoras da revolução” (idem)

[7] Como membro dos mais qualificados da inteligentsia do pré-64, falando do vazio bacharalesco da inteligentsia brasileira, Jaguaribe dizia à época: “A ‘literatura’ morreu nos anos 40. Como só havia ‘literatura’, nada restou para lhe tomar o lugar, carecendo, ainda, de .... nos meios intelectuais, o esförço filosófico que vêm empreendendo os grupos indicados (referia-se aos ecos no Brasil do neotomismo, do existencialismo cultural e do neopositivismo, o marxismo incluído (“representado pelo Sr. Caio Prado Junior, que se mantém , no entanto, estritamente fiel à ortodoxia partidária, conservando uma posição epistemológica e uma interpretação sensualista da realidade típicamente oitocentista”, cf. Jaguaribe, 1957). E continuava: “É de crer-se, no entanto, que êsse esfôrço filosófico logre afirmar-se e desenvolver-se, dando ensejo ao aparecimento de uma literatura de idéias, apta a responder às grandes questões irresolvidas, em nossa atsmofera espiritual. Neste caso, tudo indica se processará, finalmente, a fundação de uma cultura brasileira, herdeira da européia, integrada no espsírito ocidental, mas vinculada à realidade do Brasil e representativa de suas necessisdades” (Jaguaribe, 1957).

[8] Em seu livro de 1933, o historiador não minimiza o sentido formativo da Nação de 1822 e chama o seu capitulo de “Revolução”; o mesmo fazendo Buarque de Holanda. E também Sodré, em relação ao longo período pós-30, ao qual o general chama de modernização “ao modo prussiano” (cf. Sodré, 1962).

[9] Caio Prado Jr. considera a ação do poder público indispensável para promover aquelas reorganizações que, pelo seu atraso e urgência, exigiam um esforço tão grande quanto o dos planos qüinquenais da URSS; tremendo esforço que os capitalistas brasileiros não podiam dispender. Ao Estado também caberia evitar “todos os desperdícios, desequilíbrios e convulsões” próprios da liberdade e econômica, da concorrência e da livre iniciativa privada). Reafirmada nesta sua função supletiva, o poder público também é reclamado pela sua condição de instituição portadora de ratio de generalização em meio àquele mundo de desarticulação estrutural e privatismo. No artigo “Livre iniciativa econômica e iniciativa estatal” (1957), Caio Prado Jr. recusa a livre iniciativa como utopia, considerando-a ideologia e disfarce à oligopolização (“Num país como o Brasil, diz ele neste texto, e num mundo como de hoje, a iniciativa privada deve, em seu próprio benefício, ser controlada e secundada pelo Estado, sob pena de se transformar na iniciativa de muitos poucos a que os demais ainda hão de se curvar” (Prado Jr., 1957).

[10] Respondendo às críticas de Prestes ao seu artigo no primeiro número da Revista Brasiliense (“Política de união nacional”), Elias Chaves Neto confirma ter ido buscar na obra histórica de Caio Prado Jr. (e não apenas no marxismo) a chave do entendimento dos problemas nacionais. Elias Chaves Neto reconhece ter ali encontrado a causa da debilidade do mercado interno, pois “somente a história nos pode revelar o sentido íntimo dos fenômenos dos quais a observação imediata nos revela apenas as aparências” (Chaves Neto, 1955).

[11] É o próprio Elias Chaves Neto quem fazia a observação acima e ainda lembrava que o cientista político francês chegou a ver o igualitarismo americano como um fato social (é também o próprio Elias Chaves Neto quem vai fazer a citação de Tocqueville) “que mais cedo ou mais tarde chegaremos como os americanos à igualdade completa de condições...” “O que me será dado esperar ou temer” (idem).

[12] A noção “povo-caos” como catarse emerge da teorização gramsciana da revolução como “reforma intelectual e moral”. No caso de Caio Prado Jr., com o mesmo sentido que tem no ensaísmo clássico brasileiro, esse tema retornaria em termos de uma questão de Economia Política que fosse além do “lembrete” keynesiano sobre o “problema do consumo”. O industrialismo brasileiro (“estritamente” condicionado pelo mercado externo”) não havia conformado a nacionalidade. Para o historiador, depois de 29, o paradigma keynesiano facilitara a recolocação do problema do consumo, ajudara a realçar melhor a diferenciação ao modo clássico de estruturação do capitalismo. Ali, o mercado figurara como uma “realidade sempre presente”, algo com o qual “não se devia preocupar” (sic), como na aurora do capitalismo e antes das crises periódicas, quando o problema econômico dominante era o da produção; o capitalismo industrial não passando de sua organização, como emblemático na Revolução Industrial. Aqui, a organização da produção sempre foi uma questão “subsidiária” e “secundária” para a economia nacional, o problema do mercado é que sempre se constituíra na questão decisiva (Prado Jr., 1954).

[13] Essa “fórmula” de Caio Prado Jr. aparece na monografia Diretrizes para uma política econômica brasileira logo após a passagem na qual o autor se afasta da crença segundo a qual o crescimento em curso naqueles anos cepalinos pudesse, por si só, se transformar num outro tipo de desenvolvimento. Recusando qualquer a priori, Caio Prado Jr. falava da necessidade de uma mudança “da quantidade em qualidade” do desenvolvimento, e negava que ela pudesse ocorrer “espontâneamente e necessàriamente da evolução econômica ‘natural’, no sentido de um determinismo mecânico além da consciência e ação intencional dos indivíduos dela participantes”. Concluindo o argumento, o historiador escreve imediatamente após aquela “fórmula” atores à autores, esta intringante passagem: “E em todo caso, uma tal transformação se fará tanto mais suavemente e com menos choques e desperdício de energias, quanto maiores forem aquela consciência, compreensão e intecionalidade” (Prado Jr., 1954: 195).

[14] Interpelando o lugar comum da bibliografia, Virgilio Roma de Oliveira Filho observa que os isebianos tinham mais interesse no capitalismo em si do que na burguesia, à qual nenhum deles atribuía função nacional de classe dirigente (Oliveira Filho, 1999).

[15] No contexto de 1822, a revolução não se aprofundara na Constituinte de 1823 nem a Independência não se concluíra. Caio Prado Jr. registra a “atitude inconseqüente” das classes subalternas, após “1848”, mencionando a grande massa escrava (50% da população) de baixo nível intelectual e cultural, principalmente isolada nos “grandes dominios ruraes” e cujo processo de constituição “em classe politicamente ponderável” só se daria “no decorrer do tempo”, e se refere ainda às camadas médias livres, grupo sem coesão social e tampouco sem “possbilidades de uma eficiente atuação politica” (Prado Jr., 1933).

[16] Ao que tudo indica, Caio Prado Jr. utiliza este conceito por primeira vez em suas memórias políticas (cf. Iumatti, 1998). No texto de 54, encontra-se esta observação: “Em suma, o que se impõe é uma polarização de opiniões em tôrno da verdadeira questão pendente e que se apresenta à política econômica do Brasil: ou a conservação ou a transformação total do atual sistema colonial de nossa economia” (Prado Jr., 1954: 183). Talvez o conceito provenha do dualismo do Prefácio marxiano de 1859 (onde se lê: “... formas ideológicas, en que los hombres adquieren conciencia de este conflicto y luchan por resolverlo”, cf. Marx, 1977: 344), tendo-se, digamos, numa ponta – a opinião – e na outra, os partidos expressivos dos interesses da população, conferindo assim sentido à idéia de que uma reestruturação da vida política nacional se resolveria numa relação “consistente” entre a movimentação social mais profunda mediada pelos temas mais candentes (“verdadeiramente nacionais”).

[17] O Comitê de Ação era o grupo que vinha fazendo política comunista nos dois últimos anos do Estado Novo, quando a CNOP reivindica ser o único agrupamento credenciado para reorganizar o PCB. Enquanto esta se formara com o chamado Grupo Baiano e se sediava no Rio de Janeiro, o Comitê de Ação operava tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro (no primeiro estado, além de Caio Prado Jr., os principais nomes eram Mário Schemberg, Tito Batitini e Hector Ferreira Lima; e no Rio de Janeiro: Victor Konder, Zacharias de Sá Carvalho e David Lerner (Iumatti, 1998).

[18] Segundo Iumatti, os três grupos da ADP eram o “Movimento Libertador” (dos liberais Armando Sales e Campo Vergal), com o papel de fazer a ligação com a UDN ; o “Movimento de Unificação Popular”, que se voltava mais para a luta antiditatorial; e a “Comissão de Trabalhadores contra já Carestia e a Ditadura”, ligada ao Comitê de Ação, que se dedicava a apoiar as demandas populares (idem).

[19] Seguindo orientação do seu secretário-geral Earl Browder, o Partido Comunista Americano, por considerar não apenas importante a convergência entre Oriente e Ocidente celebrada nas conferências de Teherán e Yalta do final da guerra, mas também reconhecendo que a própria idéia de luta de classes estava superada, se dissolveu, transformando-se em uma associação de fins não-políticos (Chaves Neto, 1977).

[20] Recordando o comício do Pacaembú, no qual Prestes falara para multidões: “Vieram em massa os Comitês Democráticos; o que talvez tivesse sido um erro que os sectarizou, transformando os Comitês em células do Partido” (idem: 74).

[21] Mesmo que a sua crítica principal se volte para o populismo “pelo alto” do Estado Novo, Caio Prado Jr. também se referia ao populismo que medrava em torno da figura de Prestes nas diferentes mobilizações do PCB naquela época. Paulo Iumatti apresenta as notas onde Caio Prado Jr. observava que, enquanto a mobilização de massas do queremismo apoiava-se nas camadas “mais inconscientes e ignorantes da população, no ‘lumpen ou quasi-lumpen-proletariat” (e não na grande maioria da massa do “proletariado propriamente” que “permanece ainda alhei[a] à política” (Iumatti, 1998: 126-27), Prestes despertava “simpatias” no operariado “regular e melhor qualificado”. Mas em várias outras passagens há anotações sobre o clima de “histeria coletiva” dos “seguidores de Prestes”, cada vez mais formados por “uma grande massa das [riscado à pequenos burgueses] camadas mais inferiores da pequena burguesia (e muitos lumpen-proletariat tambem)” (idem:. 127-28). Acerca do “espirito de desordem, vindicta, radicalismo pequeno-burgues” que marcavam a mobilização dos prestistas, assim seguia anotando o historiador: “Em muitos aspétos, a campanha prestista-comunista assume o colorido das campanhas fascistas. A mesma idealização e quasi deificação do chefe; [rasura ileg.] o mesmo radicalismo que não se [sente] aliás bem dentro da linha oficial do partido; as mesmas explosões emotivas e irracionais coletivas (idem: 128). Mas o ponto que aqui interessa: “A politica comunista tem por enquanto muito pouco de construtivo. Ninguem procura muito saber o que se vai fazer; quer-se alguma coisa de radical, confusamente sentida. Mas ninguem se preocupa em definir claramente o que seja esta ‘coisa’. As proprias reivindicações de Prestes e do PCB, os [pontos] do seu programa, ficam no ar. Não se fala neles; a mesma Tribuna Popular mal os discute e esclarece (idem: 130).

[22] Recorde-se aqui que o autor não avançou no projeto de escrever os três volumes subseqüentes à obra de 1942, em razão das exigências da sua circunstância política. Em 1945 é intensa a sua militância. Perdida a batalha pela aliança do PCB com os liberais da UDN, Caio Prado Jr. pensou em reiniciar aquela obra (cf. diários, in Iumatti, 1998), mas logo se envolveria com as eleições constituintes de 1945 e 1947. Após o suicídio de Getúlio, ele se voltaria para o projeto da Revista Brasiliense, que dura todo o decênio da “luta nacionalista” (Chaves Neto, 1977). Afora a História Econômica do Brasil (1945), que aliás aproveita grande parte de Formação do Brasil Contemporâneo, os demais escritos dissertativos, A Revolução Brasileira sobretudo, são textos de uma mesma obra de vocação publicística.

[23] Mesmo denunciando os seus “danos sociais”, no texto apensado em 1956 a História Econômica do Brasil, Caio Prado Jr. também valorizava as modernizações agrárias já então em curso (Prado Jr., 1960: 372-79). “O sistema colonial da economia brasileira, também no setor da agricultura onde ele tem suas principais raízes, abre-se em brechas profundas e penetram e em que se estabelecem os elementos renovadores da velha estrutura, substituída gradualmente por uma organização econômica que seja função das necessidades proprias do país e capaz, por conseguinte, de atender efetivamente ao bem-estar e prosperidade de seus habitantes” (idem: 379).

[24] Ali, naquele final estavam as seguintes palavras: “As sucessivas medidas nesta economia chamada de ‘dirigida’ se foram sucedendo sem ordem nem plano de conjunto; atendiam-se, com elas, a circunstâncias e situações momentâneas e particulares, e se resolviam problemas de emergência. Tratou-se sempre só de salvar o que podia ser salvo numa situação desesperada; e, com isto se chegou a um resultado: a imobilização dos fatos econômicos, em que se tratava de conservar o status quo. Daí o estado caótico em que se encontra a vida econômica do país” (Prado Jr, 1945; 1960: 337). Chama a atenção que quando Caio Prado Jr. opera nova atualização na edição brasileira do seu livro substituía aquele trecho por uma mera adaptação para uma passagem ao capítulo seguinte.

[25] O autor assim comentava o “esgotamento do período das substituições fáceis”, com o desaparecimento das “circunstâncias extraordinárias” que havia propiciado a prosperidade da última fase do Estado Novo: “As velhas contradições que socavavam a economia brasileira, por um momento, disfarçadas, voltam a aparecer, muitas delas agravadas; e outras novas se agregam a elas, aprofundando consideravelmente a crise geral do sistema, agora já com grandes repercussões na vida política e social do país” (Prado Jr., 1960: 345). E dizia mais: a par do estímulo externo e do enriquecimento das classes possuidoras durante a guerra e no imediato pós-guerra, sem dúvida constitui elemento favorável daquele progresso “artificial” “o regime ditatorial e a restrição das liberdades públicas” que faziam com que recaísse na massa trabalhadora o peso dos sacríficios da carestia e da concentração de renda (idem).

[26] E explicava ainda “Governos e administrações que não se apoiarem num pensamento coletivo representados por partidos e expressarem ideologias políticas, pouco ou nada podem realizar por lhes faltarem não apenas normas de ação seguras e aplicáveis na prática, mais ainda quadros políticos e administrativos ativos necessários para a aplicação de tais normas” (idem).

[27] “O povo não está nem mesmo em condições de saber ao certo o que deve ou pode esperar. Falta-lhe para isso suficiente coesão ideológica; e em matéria de pensamento e ação política não vai além do imediato. A direção que têm tomado os sufrágios populares em tantas instâncias, mostra isso claramente. Resulta daí que nem o govêrno e os partidos que o sustentam podem contar com um apoio popular suficiente para levarem a cabo uma tarefa administrativa de largo fôlego; nem a oposição, por motivos semelhantes, conta com autoridade moral para servir de freio aos erros do govêrno. E não tem outro recurso, para justificar sua existência, que se agitar freneticamente e sem outra perspectiva que arrastar o país nessa agitação estéril” (idem).

[28] A conjectura provém de, pelo menos, duas outras passagens: a) quando, em um daqueles textos escritos para o V Congresso de 1960, à propósito da política de frente única (que ele esperava “que morresse” no partido), Caio Prado Jr. lamentava a perda de energias em tais alianças (que só abriam espaço para que os “demagogos” “se aproveitassem da massa trabalhadora”), ao invés de se concentrar “na organização e preparação ideológica em torno das reivindicações do proletariado e dos trabalhadores do campo (Prado Jr., 1960); e b) quando ele desqualificava a burguesia nacional no imediato pós-64, referindo-se a um ator (“progressista e popular”) impreciso, mas, em todo caso, nucleado por um pólo constituído de trabalhadores das cidades (proletariado “regular”) e dos “empregados” no mundo rural (Prado Jr. , 1966).

[29] Há essa passagem na obra de 1966: “A teoria revolucionária brasileira, que é a resposta a ser dada às questões propostas na atual conjuntura do país, não se inspira assim de um ideal expresso na ‘natureza’ da revolução para a qual se presumiria a priori que marcha ou deve marchar a evolução histórica brasileira – uma revolução socialista, democrático-burguesa ou outra qualquer. (...) A teoria da revolução brasileira, para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos, será simplesmente – mas não simplisticamente – a interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta. Processo esse que, na sua projeção futura, dará cabal resposta às questões pendentes. É nisso que consiste fundamentalmente o método dialético. Método de interpretação, e não receituário de fatos, dogma, enquadramento da revolução histórica dentro de esquemas abstratos preestabelecidos” (Prado Jr., 1966: 19).

[30] “O País atravessou neste ano e pouco, uma das mais agitadas fases de sua política, uma sucessão de crises que vem abalando profundamente o País e chegando mesmo a colocá-lo na iminência de lutas armadas. Na base dessa agitação e crise, o que em última instância as alimenta, foi sem dúvida, como ainda é o caso, a intranqüilidade decorrente do aguçamento das contradições profundas que dilaceram o organismo econômico e social da nação e se manifestam entre outros neste efeito e sintoma tão palpável que é a crescente aceleração do processo inflacionário” (Prado Jr., 1962).

[31] Em um artigo de 1956, rememorando 1945, Elias Chaves Neto compara a orientação dos comunistas italianos, os quais, por não se terem lançado “desesperados ao poder e terem acolhido a via legal” em 1946, mantiveram-se como um partido influente, com a experiência brasileira, na qual o PCB, ao invés de convergir com a movimentação antiditatorial daquela época, se isolara, “e preferiu seguir os políticos demagogos que se limitavam a lhe fazer promessas” (Chaves Neto, 1956).

[32] Justamente aproveitando noutra direção o apoio popular que o dispositivo janguista havia mobilizado (conseguido “unir e confundir, desde a renúncia de Jânio Quadros, com o estabelecimento do pleno exercício, pelo Sr. João Goulart, dos podêres de Presidente da República”; cf. Prado Jr., 1962). Nesse ponto, ele resistia ao cálculo “subjetivista” sobre as forças postas na cena oficial e que, para ele, só levava a ver na “conciliação” de Goulart a causa da deterioração da conjuntura (mas restava ainda “...explicar como e porque resolveu conciliar, e como logra fazê-lo com o assentimento geral, ou pelo menos sem oposição sensível do dispositivo e das fôrças políticas que o apoiaram e continuam apoiando sua política e suas posições. Se fôsse tão fácil deter ou modificar o rumo dos fatos políticos, como seria no caso a vontade ‘conciliatória’ do Sr. João Goulart, não haveria mais previsão política possível, nem plano, programa, estratégia ou tática em que se pudesse confiar”; idem).

[33] O autor cita, entre outros, o exemplo da reforma agrária, “reduzida simplesmente, na maioria dos casos, a imprecisas formulações acêrca da distribuição de terras e a diatribes contra o latifúndio. O resultado é êsse que vemos: a falta de consistência e seguimento dessa política, perdida como se encontra em vagas formulações de caráter agitativo, e incapaz por isso de se fixar em diretrizes concretas suscetíveis de orientar as fôrças populares, com segurança, em qualquer emergência que porventura se apresente.´ O que não sòmente faz a política popular incompreendida por muitos, e freqüentemente até mesmo eivada de suspeição em largos setores da população que em princípio lhe seriam favoráveis, mas ainda abre perspectivas para a exploração demagógica por parte daqueles que pretendem usar e efetivamente usam as fôrças populares em proveito de suas ambições e facciosos interêsses político-partidários” (Prado Jr., 1962).

[34] Caio Prado Jr. voltava a falar num processo de reforma agrária centrado na valorização do trabalho, bem mais importante que a luta pela terra (questão “evidentemente conexa”); ênfase no trabalho, que inclusive, à medida que provocasse resultados gerais, abria o acesso à propriedade. Através de um “amplo movimento social reivindicatório”, se constituiria a “base social” capaz de efetivar reforma “de tamanho vulto e alcance econômico e social” (Prado Jr., 1963b). Quanto à reforma agrária “nos grandes setores da agropecuária”, o autor observava que a solução coletivista das cooperativas, um tema que, como o da terra, também chegava de fora e lhes era “completamente estranho” aos “ trabalhadores empregados”, não seria “praticável de forma generalizada’’; idem). Ele ainda chamava a atenção para o fato de que não havia “na maior parte e mesmo na generalidade da massa de trabalhadores empregados nas grandes explorações brasileiras – e isso por força da própria situação em que se encontram – preparo suficiente para assumirem a responsabilidade da gestão coletiva das emprêsas onde trabalham” (mencionando a mobilidade dos trabalhadores temporários) (idem). Relembrava aí a dupla face do “verdadeiro camponês” (do qual falava Lênin) ao mesmo tempo “um trabalhador e executor de tarefas” e “um dirigente dêsse trabalho e dessa execução”. Caio Prado Jr. valorizava a luta reivindicatória pelo seu “duplo e concorrente” efeito de abrir “amplas perspectivas”, a saber, de alterar “o estatuto miserável do trabalhador rural”, encarecendo a mão de obra e estimulando uma “ascensão do nível tecnológico da agropecuária”, capacitando-a, em suma, não só para que ela pudesse oferecer “padrão mais adequado de vida e na medida de suas exigências” aos seus empregados, como ainda liberando terras “onde a grande exploração não vingar ou não se puder estabelecer nas novas contingências de um trabalho revalorizado” (idem). Com esse tema da disponibilização de terras voltava o argumento de seus textos de 1960 sobre o uso, do ponto de vista do trabalho, da tributação como “principal meio” do processo reformista; ênfase que muda, quando se forma o governo Goulart, passando o autor a atribuir aquela função generalizante à aplicação da lei trabalhista.

[35] Em nota apensada nesse seu último texto, “já depois de impresso”, como ele mesmo dizia, Caio Prado Jr. comenta três documentos bem expressivos das correntes de esquerda e centro-esquerda, às vésperas de 64: a) uma nota conjunta da Frente de Mobilização Popular, CGT, UNE, Liga Feminina, UBES e Ação Popular; b) o documento “Sugestões iniciais para um programa de govêrno que faça as reformas de base”, encaminhado por Santiago Dantas às entidades representativas para um debate de comprometimento de um novo ministério do governo Goulart; e) o texto “Posição dos comunistas”, este publicado no jornal Novos Rumos, de 24-30/1/64. Caio Prado Jr. registra a “subestimação da efetivação e aperfeiçoamento da legislação trabalhista”, com a ressalva de que apenas o PCB faz uma “ligeira e muita apagada referência à legislação do trabalho, sujeitando à desapropriação as propriedade que não a cumprirem”; “Os demais pronunciamentos silenciam inteiramente o assunto” (Prado Jr., 1964).

[36] No pré-64, os argumentos caiopradianos serão parcialmente aceitos, com os poréns necessários para acomodá-los ao pensamento oficial do PCB, acordado entre os seus grupos mais gravitantes. Eles se fazem particularmente presentes na formulação da práxis sindical-camponesa dos comunistas brasileiras (ver as Teses para o V Congresso de 1960 e a resolução final, especialmente os artigos de Alberto Passos Guimarães publicados na Tribuna de Debates do evento).

[37] “A conquista dos objetivos da revolução brasileira e, ainda antes disso, a consecução de medidas que nos aproximem mais ràpidamente dessa conquista, depende não de uma superficial e artificiosa ‘reestruturação partidária’, mas de uma efetiva mudança na correlação das fôrças sociais e políticas, até que o poder das correntes nacionalistas e democráticas, agrupadas num amplo movimento de frente única, sobrepuje o poder das fôrças do entreguismo e da reação” (Matos, 1962).