Estudos Sociedade e Agricultura

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Leonilde Servolo de Medeiros

Os trabalhadores rurais na política: o papel da imprensa partidária na constituição de uma linguagem de classe


Estudos Sociedade e Agricultura, 4, julho 1995: 50-65.

Este artigo contém algumas das reflexões desenvolvidas em minha tese de doutorado – Lavradores, trabalhadores agrícolas, camponeses: os comunistas e a constituição de classes no campo–, a ser defendida em novembro de 1995 no Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp.

Leonilde Sérvolo de Medeiros é professora da UFRRJ/CPDA.


No Brasil, nos anos 50 e início dos anos 60, os conflitos no campo se generalizaram, adquirindo caráter nacional, não só no sentido de que em praticamente todos os estados do país se constatavam tensões de diferentes naturezas, mas principalmente porque esse foi o momento em que se constituiu uma nova identidade e uma linguagem comum que passaram a agregar, no plano político, diferentes tipos de trabalhadores, em regiões distintas, e em que se forjou uma bandeira de luta que aparecia como unificadora: a reforma agrária.

Nesse processo, a diversidade de situações no campo (“moradores”, “colonos”, “camaradas”, “parceiros”, “foreiros”, “arrendatários”, “posseiros”, etc.) passou a ser sintetizada nos termos “trabalhadores agrícolas”, “lavradores” ou “camponeses”. Essas categorias constituíram-se e distinguiram-se em contraposição às de “latifundiários” e “grileiros”, denominações que passaram a abranger todo um conjunto de relações que, como já foi indicado por Palmeira (1968) e Novaes (1987), não podem ser simplesmente reduzidas à dimensão da exploração econômica, mas recobrem também formas particulares e diversificadas de exercício da dominação.

Se, como aponta Martins, os termos usualmente utilizados para referenciar os que trabalhavam nos campos tinham um caráter depreciativo (Martins, 1981), considerando-se a esfera político-institucional, esses trabalhadores sequer chegaram a ser reconhecidos.[1] Predominava nessa esfera uma concepção genérica, produto de uma intensa disputa política que permeou os anos 30, que negava o estatuto de “classe” ao trabalhador rural. O debate de então procurava afirmar a impossibilidade de levar ao campo (por serem inadequadas) as divisões políticas entre “operários” e “patrões” que marcavam o mundo urbano (Stein, 1991). As intermináveis discussões em torno do que se poderia considerar como trabalhador no meio rural significou, em termos práticos, o não reconhecimento de direitos trabalhistas para o campo, a manutenção da regulação dos contratos de arrendamento e parceria no âmbito do Código Civil e a negação do direito de organização própria. Como aponta Gomes, analisando a constituição da cidadania e da identidade da classe operária, “o estatuto de trabalhador é que dá identidade social e política ao homem brasileiro, fato magistralmente materializado pela criação da carteira de trabalho e pela definição da vadiagem como crime” (Gomes, 1988: 26). Se esse ponto de partida é aceitável, o que estava em jogo nos anos 50 era o reconhecimento do estatuto do trabalhador também como profissão, conseqüentemente de reconhecimento como cidadão, para aqueles que o Estado e as entidades de representação patronal tentavam apresentar como homens do campo, rurícolas, etc.

A emergência de uma nova linguagem é parte de um processo mais complexo de crítica às imagens tradicionais, ligadas ou à visão discriminatória apontada por Martins ou à de negação da existência de uma especificidade do trabalho no campo e, por esse viés, do reconhecimento de uma esfera própria de direitos, envolvendo quer as relações de trabalho propriamente ditas, quer a organização corporativa e política.

O aparecimento dessa nova linguagem e a constituição de uma identidade e imagem de classe, no entanto, não se fizeram num passe de mágica. Foram fruto de diferentes processos que se entrecruzaram. Envolveram o aguçamento dos conflitos em razão da ruptura com determinadas regras estabelecidas (por exemplo, corte do lote para plantio de alimentos, requisição considerada precoce das áreas arrendadas), a emergência de disputa pelo direito de acesso à terra (opondo aqueles que as utilizavam a novos personagens que aparecem dizendo-se proprietários e buscando expulsar os ocupantes), etc. Mas também diz respeito à potencialidade desses conflitos se fazerem conhecer na esfera pública (Arendt, 1987), arrebanharem apoios, gerarem alternativas organizativas com alguma durabilidade e à existência de canais de comunicação entre situações distintas que pudessem promover a formulação de pontos comuns.

Foram vários os caminhos através dos quais essas alterações se processaram: assembléias, reuniões, recurso à justiça (o que significa traduzir uma situação concreta em termos da linguagem legal, mais universal), manifestações públicas, congressos, etc.

Nosso objetivo, neste artigo, é refletir sobre uma das dimensões do processo de construção dessa nova imagem sobre e para os trabalhadores do campo, realizada, em grande medida, mas não exclusivamente, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), de forma a permitir a afirmação de sua presença política através da construção de uma linguagem própria, de caráter classista, de um perfil para os opositores na arena política, a conformação de rituais políticos próprios, etc.[2] Os efeitos desse processo no sistema político podem ser avaliados pela importância que a questão agrária assumiu nessa conjuntura.[3] Pretendo tratar, ainda que de forma apenas indicativa, da imprensa comunista. O ponto de partida é que, como o lembra Davis (1990), a palavra impressa, mais do que uma fonte de idéias e imagens, é mensageira de relações e afeta determinados ambientes, no caso em pauta, grupos mobilizados ou potencialmente mobilizáveis, para os quais os periódicos se voltavam prioritariamente.

A imprensa comunista

O PCB manteve no período que nos interessa uma imprensa ativa, editando regularmente um jornal de âmbito nacional, informativo e doutrinário, Voz Operária, que, a partir de 1959, foi substituído por Novos Rumos. Além desse, mantinha informativos de âmbito estadual/regional (Imprensa Popular, Hoje, Notícias de Hoje, Folha de Goyas, etc). Através desses jornais eram divulgadas análises políticas do que eram considerados os grandes temas nacionais, diretrizes do partido, matérias sobre o movimento comunista internacional, ampla cobertura sobre as lutas “operárias”. Apareciam também, com bastante regularidade, notícias sobre o campo. Descrições de condições de vida e trabalho, notícias de conflitos, etc. podem ser vistos como caminhos através dos quais, pouco a pouco, procurou-se fazer a socialização, para um público eminentemente urbano, que constituía a base do trabalho do PCB, das teses sobre as potencialidades transformadoras de uma aliança operário-camponesa e da bandeira reforma agrária, considerada como condição para a realização de uma revolução de caráter “democrático-burguês”, uma das principais metas do partido.[4]

Dentre os instrumentos da imprensa comunista, ganha destaque, no que se refere ao tema que aqui procuramos destacar, o jornal Terra Livre, principal instrumento escrito de propaganda das bandeiras do PCB entre os trabalhadores do campo e de apoio às lutas desenvolvidas por esse segmento. Esse periódico começou a ser editado em maio de 1949, numa conjuntura de intensa repressão sobre o “movimento camponês”, que então pipocava em diversos pontos do país e em diferentes frentes de luta.

A função do Terra Livre, segundo Nestor Veras,[5] era orientar os movimentos emergentes. O seguinte depoimento desse dirigente, referindo-se aos primeiros momentos do jornal, é ilustrativo das dificuldades encontradas para sua consolidação: “Ensinando os direitos, combatendo a injustiça e denunciando os exploradores nacionais e estrangeiros, Terra Livre tornou-se o centro das perseguições policiais no campo. Muitas buscas, com invasões de casas, nas fazendas de café, usinas de açúcar e em outros latifúndios foram realizadas... Mas nada conseguiram com isso: o jornal continuava a circular. Não tinha redação fixa e sua remessa era feita cada vez de um lugar diferente e por um meio também diferente. Enrolado com os impressos, costurado em algodãozinho como qualquer objeto, enviado uma hora por correio, outra por trem, assim o jornal foi se firmando e crescendo...” (TL, 122, mai. 63, Supl. Especial, p. 3).

Embora o público a quem o Terra Livre se dirigia fosse majoritariamente analfabeto, estimulava-se a sua leitura em pequenos grupos onde, quem fosse alfabetizado, deveria ler em voz alta para os demais. Eram constantes as mensagens existentes no jornal nesse sentido. Segundo Elizabeth Teixeira, liderança camponesa da Paraíba, ela mesma assim procedia na Liga Camponesa de Sapé[6]. Dessa forma, é importante considerar que o próprio leitor (ou, talvez melhor se dissesse, o tradutor) não era qualquer um, mas alguém de destaque, uma liderança, capaz de gerar legitimidade à nova mensagem que a palavra impressa trazia. Acreditamos ser possível também afirmar que havia nos grupos leitores do jornal uma certa propensão para a adesão às novas idéias, pela sua própria inserção política (segmentos mobilizáveis e mobilizados por quadros do PCB) e é nesse sentido que ela ganha eficácia enquanto mensagem nova, que institui uma nova linguagem e novas relações (Davis, 1990).

A estrutura do Terra Livre

O Terra Livre não tinha periodicidade regular, apesar de ter buscado ser quinzenal e até mesmo se proposto a ser semanal. Às vezes saía mensalmente, em outros períodos a cada quinzena, em alguns momentos mais críticos com regularidade ainda menor. É o caso dos anos 1957, 1958 e 1959, nos quais foram editados um total de apenas dez números. Essa irregularidade devia-se a diferentes fatores. Um deles era a crônica falta de recursos, como o levam a supor as constantes campanhas mobilizatórias no sentido de angariar doações para o jornal. Mas ela sem dúvida coincidia também com um período de crises internas e reajustamentos políticos no interior do PCB, quando a energia do partido voltava-se principalmente para a discussão e redefinição de suas linhas políticas.[7]

No geral, o jornal manteve quatro páginas em cada edição, sendo que, no início dos anos 60, alguns dos números foram acompanhados por um “Suplemento Especial”, também com quatro páginas, onde apareciam reportagens especiais sobre conflitos, novas leis referentes a temas de interesse dos trabalhadores do campo, etc.

Do ponto de vista de sua forma, o periódico teve algumas seções relativamente constantes ao longo de sua história. A parte mais substancial dedicava-se a noticiar conflitos e a descrever as condições de vida e trabalho no campo. Além dela, outras mantiveram regularidade. A seção Cartas da Roça publicava cartas de “lavradores” de diversos pontos do país que escreviam narrando as suas condições de vida e trabalho, a exploração de que eram vítimas, a existência de castigos físicos, etc. A ênfase recaía sempre sobre a adversidade das condições de trabalho. No Almanaque camponês havia calendários de cultivo, conselhos sobre a melhor forma de cuidar de plantas e animais, matérias sobre doenças mais comuns (gripe, malária, vermes) e suas formas de tratamento, receitas culinárias, noções de puericultura, piadas quase sempre ridicularizando os proprietários de terra, etc.[8] Havia ainda uma seção de versos (poetas do sertão), inclusive, durante algum tempo, com a promoção de concursos para seleção dos melhores poemas. Chama a atenção nesses versos o apelo à união, a narrativa das condições de exploração e humilhação a que eram submetidos os trabalhadores do campo, a diferença com as condições vivenciadas pelos proprietários de terra, etc.[9] Além de poetas desconhecidos que, aparentemente, mandavam versos à redação do jornal para os concursos, publicavam-se também poemas de artistas populares já com alguma fama e que posteriormente ganharam maior projeção, como Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa de Assaré, ou mesmo de poetas de outra extração social que esposavam a causa dos trabalhadores, como Vinícius de Moraes, com seu conhecido “Os homens da terra”.[10]

Também apareciam, com regularidade, histórias em quadrinhos de função didática, retratando dimensões da vida camponesa, sempre enfatizando a exploração e o sofrimento, aspectos da história universal (como surgiu o feudalismo, origens do capitalismo), da história brasileira (a situação dos escravos, a Coluna Prestes), perfil de lideranças, resumos de romances (por exemplo, A Cabana do Pai Tomás, onde era destacada a exploração e a humilhação sofrida pelos escravos, em analogia com a situação dos trabalhadores do campo).

Em síntese, o jornal buscou um formato que facilitasse sua aceitação entre o público para o qual se voltava, procurando se apropriar de questões do cotidiano, da cultura popular, como caminho para passar a mensagem básica: o apelo à organização e adesão às propostas do PCB.

Circulação e difusão

É difícil avaliar a penetração do Terra Livre ou até onde era eficaz como instrumento de propaganda. O que temos são indicações: sua tiragem chegou a trinta mil exemplares, sua cobertura dos conflitos era ampla, e sua penetração se dava através de agentes, possivelmente quadros do PCB encarregados de sua distribuição. Em alguns números, os agentes eram quantificados, indicando sua presença em diversos pontos do país. De qualquer forma, é possível afirmar que ele foi um instrumento na constituição da linguagem de classe pelas suas próprias características de meio de divulgação, que permitia apropriação e politização da cultura popular, socialização de informações, etc.

Nossa pesquisa não se colocou como objetivo trabalhar com a forma como a mensagem do jornal era recebida e processada pelos grupos a quem ela atingia. A preocupação central foi com a mensagem divulgada e a maneira através da qual isso era feito. No entanto, não há como ignorar, como adverte Chartier (1990: 123), que “abordar a leitura é... considerar, conjuntamente, a irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-la”. Dessa perspectiva, é fundamental considerar que, muito possivelmente, a circulação do jornal se fazia entre pessoas predispostas a ouvir e receber as suas mensagens, permitindo que ele, de alguma forma, cumprisse seu objetivo de orientar as lutas. No próprio jornal há, por exemplo, menções a situações de greve motivadas pela leitura de algumas edições, onde havia notícias de outras greves e que eram consideradas mensagens a serem seguidas.

Os temas abordados

Como já salientamos, grande parte do jornal era dedicada à divulgação dos conflitos e à narrativa das condições de vida de determinados segmentos. Destaque especial era dado aos trabalhadores da cana-de-açúcar e do cacau, colonos do café, parceiros, arrendatários, posseiros.

Se, em suas resoluções e documentos políticos, o PCB falava em “campesinato pobre”, em “semiproletariado”, a sua imprensa referia-se mais concretamente aos diferentes segmentos de trabalhadores com que o partido se defrontava no trabalho organizativo. Eram recorrentes as descrições das condições de vida e trabalho, enfatizando sua precariedade: a maioria não possuía a terra em que trabalhava, os ordenados eram miseráveis, os pagamentos, muitas vezes, eram feitos através de vales, sequer era pago o salário mínimo, muitos patrões exigiam mais de dez horas de trabalho por dia. Os filhos desses trabalhadores não podiam ir à escola, quer pelo fato de elas não existirem, quer por exigência do trabalho; não havia assistência médica ou qualquer outra.

A dureza dessas condições era apontada como generalizada, abrangendo inclusive pequenos e médios proprietários (que não conseguiam financiamentos e eram asfixiados pelos impostos), arrendatários (acossados por constantes aumentos nas taxas e ameaças de expulsão da terra), posseiros (sempre ameaçados de despejo), agregados, parceiros, meeiros, assalariados agrícolas, colonos, flagelados, peões, trabalhadores florestais.

A apresentação das condições de trabalho assalariado era, por vezes, acompanhada por referências a castigos físicos, denúncias de trabalho gratuito. Várias eram as referências a situações de “trabalho escravo”. Além da ênfase na exploração, havia denúncias de uma intensa regulação das condições de vida. Em diversos casos era apontada a situação de semiprisão em que viviam os trabalhadores, sem liberdade de locomoção, de promover atividades de lazer (bailes, por exemplo) sem prévia autorização do dono da terra, porteiras trancadas a cadeado, capangas vigiando.

A crítica à situação “camponesa” por vezes era feita através de imagens fotográficas, com função impactante. Um exemplo ilustrativo é a foto de um cavalo de raça tomando leite, acompanhada da seguinte legenda: “No Brasil, milhões de crianças não tem direito de beber leite. No entanto, os cavalos de corrida são tratados a leite, milho e alfafa. Mas está próximo o fim deste regime em que os cavalos dos ricaços tem mais valor que um ser humano” (TL 55, abril de 1955). Outro é um retrato do casamento da filha de um usineiro, com comentários sobre a riqueza e o esbanjamento, contrastantes com a miséria dos trabalhadores dos canaviais.

Na construção da linguagem de classe estava envolvida, por contraponto, a caracterização do patrão: ele roubava na produção, cobrava taxas extorsivas, era o responsável por ações violentas (castigos físicos, assassinatos), impedia a organização dos trabalhadores.

O Terra Livre era também um instrumento de divulgação, convocação e mobilização, sempre dando ênfase aos encontros e congressos, apresentados como momentos de união de forças e como sinal de novos tempos que se aproximavam. Em torno da busca de sensibilização para a importância da “união”, eram comuns as seções em que se faziam desenhos representando as vantagens do feixe de varas (que juntas são inquebráveis), o tatuíra fugindo apavorado ante a ameaça da união dos trabalhadores, etc.[11]

Os congressos, encontros e conferências podem ser pensados como espaços de discussão, de tomada de decisões, produção de demandas, socialização de conhecimentos e palavras de ordem. Mas também podem ser vistos como momentos de atividade coletiva, produtora de um nós. Perrot, analisando o momento das primeiras greves na França, numa situação onde não havia ainda uma organização sólida, nem um formato definido, afirma que “as reuniões e manifestações, que formam a trama da vida coletiva dos grevistas, não tem somente uma função utilitária de comunicação e de decisão. Elas realizam a união dos membra disjecta... o espetáculo das salas bem cheias, as manifestações populosas, cimento da união, sugere a constatação reconfortante: ‘nós somos o número’” (Perrot, 1974: 551/2).

Cantos, palavras de ordem, expressas em faixas e gritadas também tinham papel aglutinador, de elevação de ânimo e de produção da comunhão a que se refere Perrot. No caso do Congresso de Belo Horizonte, realizado em novembro de 1961, e o mais famoso dos encontros de trabalhadores do período, todas as palavras de ordem traziam em si, e de forma que procurava denotar força e ameaça, a demanda por terra: Terra ou morte, Terra para quem nela trabalha, Reforma agrária, na lei ou na marra. As duas últimas traziam ainda um sentido de justiça embutido, algo que poderia ser aproximado da concepção de economia moral utilizada por Thompson (1979), na medida em que ressaltavam o direito à terra, garantido pelo trabalho ou no caso da última, um sentido de transgressão de uma lei considerada injusta.

A socialização que os congressos promoviam não era só em termos da situação e reivindicações dos trabalhadores do campo. Neles sempre havia a presença de lideranças sindicais operárias, muitas vezes presidindo as mesas, mas quase sempre se pronunciando em torno da importância da aliança operário-camponesa. Essa presença era sempre ressaltada pela imprensa.

A divulgação desses eventos pode ser percebida como um caminho para ampliar o espectro daqueles que faziam parte desse “nós”. É interessante verificar nessa divulgação, no caso de encontros de âmbito maior, fotos, reprodução de falas, ênfase na presença de “autoridades”.[12] Essa presença legitimava os encontros, numa conjuntura de afirmação dos trabalhadores do campo e de acirramento das disputas políticas. Essa legitimação podia se dar em vários planos. O primeiro era o da sociedade, uma vez que muitas vezes a simples presença de uma autoridade transformava um encontro desse tipo, que de outra maneira seria silenciado, em notícia da grande imprensa, produzindo seu existir político (Champagne, 1984). Do ponto de vista do segmento social que participava diretamente do evento, ela tendia a reforçar seus mecanismos de poder, na medida em que os mostravam capazes de se fazer ver, de mobilizar apoios de vulto ou de pesar na agenda governamental. Por outro lado, essas presenças também ganhavam significado na disputa com outros grupos concorrentes, reforçando ou fragilizando as posições do PCB.

O Terra Livre também enfatizava as manifestações públicas: passeatas nas cidades, concentrações. Era através das manifestações que chamavam atenção para si e apareciam à sociedade como grupo de trabalhadores, lutando pela sua subsistência e mostrando coesão em defesa de direitos. Esse efeito era ampliado pela ação da imprensa.

Em época de eleições, o jornal exercia ainda o papel de instrumento de divulgação de candidaturas: com grande destaque apontava os nomes e publicava fotos de candidatos populares, principalmente os que se distinguiam pelo apoio às lutas no campo. É o caso, por exemplo, de Luciano Lepera, em São Paulo, Geraldo Tibúrcio, eleito vereador em 1962 como o mais votado de Anápolis (GO), e José Porfírio, líder das lutas de posseiros de Trombas e Formoso e eleito deputado estadual por Goiás em 1962.

O lugar dos direitos

O Terra Livre também servia como instrumento de divulgação de direitos. Desde o ano de 1956, uma coluna passou a ter bastante regularidade: Conheça os seus direitos. Nessa coluna, por longo tempo assinada por Lyndolpho Silva, presidente da Ultab, procurava-se afirmar, com base na legislação existente, os direitos que se considerava que os trabalhadores tinham, mas eram sistematicamente negados: férias, repouso remunerado, impropriedade do desconto habitação, salário mínimo, salário igual para homens e mulheres, limitações na cobrança de taxas de arrendamento, preços de produtos agrícolas, direito de organização, etc.

Fica visível a importância que, desde então, assumiam possíveis brechas legais, recorrentemente utilizados como base para reivindicações. A Consolidação das Leis do Trabalho, a lei do inquilinato, a legislação disciplinadora das formas de organização, pareceres de Tribunais Regionais de Trabalho, eram reproduzidos e comentados nas suas possibilidades de aplicação aos trabalhadores do campo.

A seção era também canal de divulgação e crítica de projetos em curso, como por exemplo, as primeiras discussões sobre o que seria o Estatuto do Trabalhador Rural.

É através da imprensa comunista e das atividades que ela supunha, que a noção de direitos começou a ser socializada entre os trabalhadores bem como a busca do reconhecimento social de algumas práticas costumeiras como direitos. É o caso do plantio entre as ruas dos cafezais. No caso dos posseiros, era o trabalho investido na terra que fazia da resistência um direito.

Se é verdade, como afirma Sigaud, que se trata de uma “simplificação grosseira” buscar avaliar as iniciativas dos trabalhadores em termos de uma “contabilidade de reivindicações apresentadas/reivindicações atendidas (Sigaud, 1989: 170), não há como negar que a sistemática ausência de respostas positivas por parte dos poderes públicos fragiliza o trabalho organizativo, em função mesmo de sua ineficácia e, em conseqüência, a própria capacidade dos trabalhadores terem suas demandas atendidas.

Dessa perspectiva, é fundamental incorporar a dimensão de seletividade das políticas públicas, apontada por Offe (1984), e buscar resgatar algumas das ações do Estado que poderiam ser tratadas como resultados de um complexo jogo político, onde a capacidade de pressão e de criar fatos políticos por parte dos trabalhadores é fundamental. Essas ações são indicativas do reconhecimento dos trabalhadores, provavelmente não nos termos de aceitação de demandas tal como propostas por estes, mas através de redefinições impostas pela diversidade e complexidade de interesses presentes.

A criação desses regulamentos e aparelhos constituiu-se em novos estímulos às lutas dos trabalhadores ou, pelo menos, era isso que buscava a imprensa, dando destaque às vitórias e chamando a atenção para os caminhos a serem seguidos. Um bom exemplo, são os pronunciamentos em relação ao decreto da Supra de 1964 que desapropriava terras às margens das rodovias federais: “convém dizer, para conhecimento das massas camponesas, que não se trata, ainda, de reforma agrária, mas uma simples medida de desapropriação (sob indenização prévia e em dinheiro, das propriedades ociosas acima de 100 ha...). Isso sem tocar no parágrafo 16 do art. 141 da Constituição não representa nenhuma reforma agrária, porque não modifica em nada a antiga e bolorenta estrutura agrária do país que repousa no monopólio da terra exercido pelo latifúndio. Entretanto é medida positiva que conta com o apoio do povo, pois vem regularizar a situação das terras valorizadas pelas obras e adquiridas propositadamente e para fins lucrativos antes mesmo das construções através de grandes negociatas. Pode e deve todavia assumir o decreto um caráter mais democrático e de maior interesse popular se, pelo menos um terço ou metade for entregue, gratuitamente, aos camponeses, embora o restante tenha de ser vendido sob um prazo de pagamento de vinte anos, ao invés de dez como prevê. Assim devem os camponeses começar a ocupar desde já essas terras às margens das estradas federais e açudes, ficando para depois a aplicação das condições de pagamento...” (TL 131, fev. 1964: 1).

À medida que as questões colocadas pelas lutas dos trabalhadores ganhavam tratamento institucional e legal, rompendo com a lógica anterior da repressão e de tratamento no âmbito do espaço privado, elas também foram sendo redefinidas por todos os atores presentes, criando novos espaços de confronto e obrigando a constituição de novas formas de luta. Nesse sentido, a visibilidade dos trabalhadores do campo e seu aparecimento como grupo organizado, como “campesinato”, criou patamares organizativos e de demandas que, em que pesem os eventos do pós-64, constituíram uma base para sua posterior reinserção no cenário político.

Considerações finais

Se como aponta Davis (1990), mais que difusora de notícias, a imprensa é mensageira de relações, sem dúvida esse papel ganha maior magnitude quando se considera a imprensa partidária. Considerando o caso do Terra Livre, verifica-se que ele procurou levar para os campos a mensagem do PCB, buscando “traduzir” as propostas desse partido para o campesinato. Dessa forma, pode-se afirmar que ele foi um dos instrumentos da criação de uma identidade camponesa. Algumas pesquisas mostraram como ela foi construída no próprio processo de emergência de um segmento social na esfera pública (Novaes, 1987; Grynzpan, 1987). Se a mensagem veiculada ganhou adeptos e produziu efeitos é porque ela, de alguma forma, foi capaz de expressar as carências e tensões existentes no meio rural.

Igualando no plano político inserções econômico-produtivas diferenciadas, produzindo a imagem de um opositor (o latifúndio), acentuando os seus traços de exploração e opressão e, portanto, de injustiça, essa mensagem foi fundamental na emergência dos trabalhadores do campo na política, porque, de alguma forma, ela foi capaz de moldar, numa linguagem já pré-existente, os conflitos que se multiplicavam no campo. Foi através dela que esses trabalhadores marcaram sua presença, constituíram suas demandas e construíram uma “cultura política”, cujas marcas ainda hoje são visíveis, por exemplo, através da importância que assume a bandeira da reforma agrária.

Ao mesmo tempo, a imprensa acabou por trazer para dentro do PCB a complexidade do trabalho político no meio rural. Em que pesem as reduções e simplificações presentes nas teses gerais do partido, os jornais deixaram aflorar uma enorme complexidade de relações sociais, de tipos de conflitos, de reivindicações, de alianças constituídas. Se nem sempre elas foram objeto de preocupação e discussão interna no seu tempo, sem dúvida a sua releitura é fundamental para alargar o conhecimento sobre um segmento social que se constituiu em um personagem crucial no pré-64.

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Notas

[1] Martins afirma que as palavras que designavam as populações que viviam no campo, com variações regionais, eram “caipira”, “caiçara”, “tabaréu”, “caboclo”. Trata-se de “palavras que desde os tempos remotos têm duplo sentido. Referem-se aos que vivem lá longe, no campo, fora das povoações ou das cidades, e que, por isso, são também rústicos, atrasados ou, então, ingênuos, inacessíveis. Às vezes querem dizer também ‘preguiçoso’, que não gosta do trabalho. No conjunto, são palavras depreciativas, ofensivas” e que se referem a uma leitura urbana do mundo rural (Martins, 1981: 22).

[2] Thompson (1987) e Jones (1989), analisando momentos distintos da formação da classe operária inglesa e Perrot (1974), refletindo sobre as primeiras greves do operariado francês, foram os pontos de partida para estas considerações.

[3] Sobre isso, há uma farta literatura. Entre outros, ver Camargo (1981), Medeiros (1994), Palmeira (1989).

[4] Para a discussão das teses mais gerais do PCB, ver Chilcote (1971). Análises mais recentes e que avançam no sentido de refletir sobre as suas concepções estão em Brandão (1992) e Pandolfi (1995). Para a análise da relação entre o PCB e a questão agrária, consultar Medeiros (1983), Faleiros (1989), Costa (1990).

[5] Nestor Veras era um dos principais quadros destacados pelo PCB para atuar no campo. Secretário geral da Ultab (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), era também difusor em diferentes espaços das teses do PCB para o campo. Pode-se encontar diversas matérias de sua autoria, no geral de caráter analítico, nas revistas Estudos Sociais e, principalmente, Brasiliense, bem como no jornal Novos Rumos.

[6] Dados de entrevista.

[7] O período mencionado coincide com o início da desestalinização, o que colocou em pauta discussões sobre questões programáticas mais gerais. Não só o Terra Livre foi afetado. A mudança de linha do PCB implicou na substituição do jornal A Voz Operária pelo significativamente chamado de Novos Rumos.

[8] É interessante ressaltar que o jornal Liga, editado, a partir de 1962, pelas Ligas Camponesas, tinha seções semelhantes ao do Terra Livre conforme se pode verificar a partir da edição desse periódico feita por Francisco Julião e publicada pelo CIDOC, Cuaderno, 27, em 1969, Cuernavaca, México.

[9] Alguns exemplos desses versos podem ser ilustrativos do processo de apropriação política da cultura popular:

O que adianta o Brasil/ Possuir tanta riqueza,/ Se o povo trabalhador/ Vive na maior pobreza?/ Sofrendo calamidades/ Nossa vida é uma tristeza;/ A classe mais sofredora/ É a classe camponesa/ Que sofre na miséria/ E o tubarão junta riqueza” (TL 53, mar. 1955).

Tatuíra levanta cedo/ Bate o sino da alvorada/ Os pobres vão para a lavoura/ Ainda de madrugada/ Perde sessenta por cento/ De sua triste jornada...

Agora chegou o tempo/ Jesus tem nos protegido/ Vamos de boa vontade/ Ajudar nosso partido/ Viva a reforma agrária/ Defesa dos oprimidos./ Fazendeiro eu lhe digo/ Está chegando sua hora/ Jesus Cristo está olhando o quanto a pobreza chora/ O alheio vem para seu dono mesmo que haja demora” (TL 59, nov. 1955).

...O operário sofre muito/ Mas parece que ainda passa/ o pior é o lavrador que as veis trabaia de graça/ E se ele não fizé isso/ O tatuíra despacha./ O lavrador fica devendo/ Pra quem vive na mamata/ Se tenta saí da fazenda/ O jagunço do patrão mata/ É obrigado a morrer à míngua/ Pisado que nem barata...” (versos de Benedito Pereira Filho, TL 64, mai 1956).

Além deles merece ser mencionado o “ABC de Prestes”, tradução versificada e em palavras simples do programa do PCB.

Tratando-se de uma produção oral, muitas vezes cantada sob a forma de desafios, chama a atenção a tentativa do jornal de reproduzir as palavras tal como faladas, guardando sua oralidade (o mesmo não acontecia na seção de “Cartas ao leitor”).

[10]Senhores Barões da terra,/ preparai vossa mortalha,/ porque desfrutais da terra/ e a terra é de quem trabalha/ bem como os frutos que encerra./ Senhores Barões da terra/ preparai vossa mortalha./ Chegado é o tempo de guerra, não há santo que vos valha;/ Não a foice contra a espada,/ não o fogo contra pedra,/ não o fuzil contra a pedra, não o fuzil contra a enxada:/ -união contra granada!/ -Reforma contra metralha!...”. Essa poesia, bastante longa e da qual transcrevemos apenas um trecho, foi amplamente divulgada não só no Terra Livre, mas também no Liga e no Novos Rumos.

[11] Numa das chamadas para a importância da associação como forma de garantir direitos, apareciam os seguintes versos, acompanhando ilustrações:

Quando a vara está sozinha,
O tatuíra até sorri
Pois as varas de uma em uma
Qualquer um pode partir.

Mas se as varas se juntam
E um bom feixe formar
Quero ver qual é o tatuíra
Que tem força para quebrar
”.

                              (TL 44, 1954).

“Tatuíra” era um termo usado nos anos 50 para designar os proprietários de terra. Era representado graficamente como uma grande formiga, gorda, com cara humana e feições más. Progressivamente o termo foi substituído por “latifundiário”, cujo uso se generalizou.

[12] Em alguns dos congressos e conferências é notável a presença de prefeitos e parlamentares, muitas vezes ocupando posições de destaque. Em outros, o próprio governador do estado se fazia representar.