Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Comunismo e cultura política


Estudos Sociedade e Agricultura, 4, julho 1995: 28-49.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ


Relembrando Ivan Ribeiro

Ao dar um peculiar colorido e significação à vida política em determinados contextos, a cultura política tem ensejado inúmeras e interessantes análises sobre os processos de produção e reprodução da subjetividade da vida pública. Na bibliografia, a expressão cultura política passou a designar um conjunto de atitudes, normas, crenças, mais ou menos partilhadas pelos membros de uma determinada unidade social, tendo como objeto os fenômenos políticos. De um modo geral, diz-se que em determinados momentos podem ser identificadas em um país várias subculturas, tais como as subculturas laica-liberal, a católica, a socialista, a conservadora, a de direita, etc., referindo-se a expressão a universos de significação vividos por grupos mais específicos, que exercem influência e disputam o controle da vida política nacional (Almond e Verba, 1965).

Álvaro Moisés (1992) chamou a atenção para o fato de que a literatura dedicada à democratização deste final do século não valoriza suficientemente o surgimento de um cultura política de massas como item crucial das transições políticas contemporâneas. Seus autores mais influentes sustentam que esses processos democratizantes tiveram lugar como resultado de uma escolha estratégica de elites políticas após terem comparado os ônus da opção democrática com os custos maiores da repressão aos conflitos societários fundamentais, ou da supressão da oposição, mas não atribuem maior importância à cultura democrática como um de seus fatores determinantes.

Moisés justifica a bibliografia observando que as suas pesquisas dedicaram-se inicialmente mais a um approach genético das transições do que propriamente às vicissitudes do desenvolvimento da democracia, uma vez aquelas iniciadas. Ele próprio entende que a formação de um consenso normativo mínimo torna-se tão importante para que a democracia se desenvolva e não se interrompa cada vez que um conflito fundamental emerge, quanto a formação de uma sis-tema partidário eficiente ou uma institucionalização de mecanismos adequados de representação política. Inclusive a sobrevivência de práticas arcaicas de fazer política, como o clientelismo, o prebendalismo, e as experiências das democracias delegativas de O’Donnell, corporificadas nos governos Collor, Menem e Fujimori, seriam exemplos da incidência do problema nos processos democratizantes ainda em andamento (Moisés, 1992).

Assim, os estudos, quando se ocupam do tema, tendem mais a se voltar para o problema da formação de uma cultura política de massas para a estabilização de um regime democrático do que em relevar o seu papel na origem das transições políticas. Ademais, sem poder dispor de medições empíricas como as que caracterizam a bibliografia (surveys e estudos comparados)[1], mais complicado ainda será a colocação do problema do papel das idéias de esquerda durante a fase de desencadeamento dos processos democratizantes.

Pode ser que a perspectiva da história das idéias aplicada à análise de uma subcultura não chegue a resultados tão convincentes como os da metodologia acima mencionada. Desde logo, porque conspira contra o seu sucesso a tendência dos historiadores de esquerda em superestimarem a gravitação das idéias deste tipo na história nacional, como ocorre em muitos textos assinados por autores pecebistas. No entanto, uma requalificação da problemática, a propósito do reduzido tamanho da força política dos grupos de esquerda, não deve levar a uma posição radical que desconheça por completo a função de tais contingentes em certas conjunturas, nas quais as esquerdas participam, não poucas vezes, influindo consideravelmente em sistemas de orientação importantes.

Entendida como qualquer outra, não há razões adicionais para que a “subcultura” das idéias de esquerda não possa ser objeto de um tratamento sistemático em autores da mesma filiação ideológica, desde que estes deixem de concebê-las como balizas teleológicas através das quais dever-se-ia cumprir a história nacional. Para além do exclusivismo da representação ideológica por classe social, elas devem ser consideradas como valores compartilhados por grupos pluriclassistas que interagem entre si com maior ou menor repercussão nos rumos das atividades políticas. Doutra parte, até podem ser analisadas em estruturas discursivas que se associam a processos geradores de paradigmas apropriáveis por agentes políticos à procura de sintonia com a realidade e maior gravitação para suas iniciativas. Aliás, Pécaut (1990) chama a atenção para o fato de que o conceito de cultura política não deve encerrar exclusivamente a idéia da semelhança de atitudes individuais, consideradas fora de qualquer contexto institucional, como nos autores clássicos. Mas do que isso, ele refere tanto um fenômeno de sociabilidade política quanto uma adesão a uma mesma leitura do real.

Não deve surpreender, portanto, o papel potenciador que as idéias de esquerda, como de resto as de outros agentes políticos, podem cumprir em movimentos de opinião pública relevantes. Pois, como observa Giacomo Sani (1982), do ponto de vista da interpretação dos acontecimentos políticos, a análise da cultura política (esclarece ele, de elites no poder como de elites na oposição) tem uma importância absolutamente desproporcionada à força numérica desses agentes. Para esse autor basta citar o papel que as elites desempenham na definição dos temas dos debates públicos, em conduzir nesta ou naquela direção a opinião pública e, sobretudo, em tomar decisões de grande importância para a estruturação, por exemplo, das coalizões de poder e, ainda, em fases de reestruturação do sistema político, quando este se acha, por assim dizer, em estado fluido, como ocorre nas fases de transição de um regime a outro, antes que novos governos e novos grupos se consolidem (Sani, 1982).

Assim não está fora de propósito procurar reconhecer, por trás de mobilizações ideológicas de maior abrangência, sinais de discursos originários, cuja apreciação mais individualizada não resulta de todo desinteressante. Longe de constituírem meros reflexos dos condicionantes histórico-sociais, eles equacionam problemáticas do mundo real e indicam parâmetros para a ação de sujeitos político-sociais relevantes. Esse tipo de reconstituição de discurso per se, como a que se apresenta nos tópicos I e II, pode ajudar a entender o sentido em que algumas crenças e mensagens políticas se generalizam de modo influente, bem como as circunstâncias sob as quais se operam mudanças na cultura política de certos protagonistas que galvanizam momentos históricos em que as idéias e determinado tipo de construções intelectuais parecem ter maior relevância e eficácia política.

I

Coube a Caio Prado Jr. chamar a atenção em 1966 para a dimensão de verdadeira mentalidade que certas teorizações - em torno das idéias de etapa, agrarismo feudal e revolução antiimperialista à Oriente - tiveram, até bem entrados os anos 60, no discurso comunista brasileiro. A maneira de encarar a evolução brasileira com categorias apriorísticas, por longos anos, afirmara a idéia de que o país vivia a passagem do capitalismo para o feudalismo. O Brasil contemporâneo seria uma realidade ainda atrasada, cujo desenvolvimento exigia a realização de tarefas jacobino-burguesas como a remoção dos “restos feudais” e o rompimento da dependência externa através de um processo de libertação nacional que se desdobraria em socialista, dependendo da hegemonia proletária nas frentes populares. Nos anos 50, copiava-se a versão leninista da revolução democrático-burguesa, à qual se agregara o antiimperialismo da experiência chinesa (Prado Jr., 1966).

O historiador comunista insistia em que a própria forma de confecção daquela imagem de Brasil reforçava uma tradição de dogmas num ambiente já de por si “de deficiente preparação científica” (entre militantes que se formaram exclusivamente na atividade prática imediatista, reforçando a tendência de aceitação sem explicação), num país “culturalmente imaturo”. Tudo isso fez com que, em tal tradição, se prolongara um dogmatismo que se alimentava daquele modo particular de avalizar a interpretação dos fatos com recurso à autoridade dos textos clássicos e ao exemplo histórico dos países socialistas. Formara-se um imaginário bastante enraizado que perpassou os anos, desde a década de 20. Para Caio Prado Jr., por conta dessa mentalidade persistentemente reproduzida, o PCB não se apercebera da precariedade da sua visão sobre a industrialização autonomista nem se dera conta de como a tradição de frente única o levara a uma aposta no antiimperialismo burguês do pré-64, segundo ele, completamente ilusória (Prado Jr., 1966).

Resulta sempre uma trilha interessante observar que Caio Prado Jr. não radicaliza aquela sua objeção ao dogmatismo e desconsidera por completo o fato importante de que aquela cultura comunista fora objeto de severas críticas e experimentara mudanças significativas em dois momentos fundamentais. À seqüência da morte de Vargas, durante os debates sobre o XX Congresso do PCB nos anos 56/57 (onde sua ausência é notável); e a partir da segunda metade dos anos 70, quando começa a aqui chamada discussão “eurocomunista”, embora esta corresponda mais a um período no qual Caio Prado Jr. diminui a sua produção intelectual. São dois momentos de enfraquecimento da alma comunista e de emergência de uma nova elaboração centrada na valorização da democracia política como instrumento de reforma da sociedade. É uma evolução muito custosa, consistente no abandono da visão instrumentalista da democracia própria do marxismo-leninismo, numa evolução inacabada que ainda não se concluirá com o fim do PCB, em 1992. Em linhas gerais, trata-se de um processo no qual se cruzam dois movimentos simultâneos: o do reconhecimento de determinadas características da modernização brasileira e de certa superação da concepção da história como revolução - esta última uma operação que permanecerá inconclusa ao não sair a própria discussão “eurocomunista” brasileira dos marcos da tradição intelectual marxista, como se observará mais adiante.

*

Contra o modelo de modernização das sociedades agrárias e a política socialista da III Internacional, os “eurocomunistas” do Brasil vão radicalizar, sobretudo no contexto do VII Congresso do PCB (1981-83), o melhor, por assim dizer, do pecebismo contemporâneo: de um lado, a recusa, desde os debates empreendidos pelos chamados “renovadores” dos anos 50 sobre o Relatório Kruschev, da visão de um Brasil “estagnado e sob domínio colonial” (imagem que não explicara a frente constitucionalista antigolpe após o suicídio de Vargas); e de outro, a introdução da dúvida na concepção universalizada de partido-demiurgo da nova sociedade previsto na utopia socialista. Já essa primeira elaboração dissidente (abstraídas as suas contradições) realçara o papel que a defesa da democracia tivera naquele tumultuado processo político de meados dos anos 50; erodira as posturas revolucionaristas da moldura estalinista que então revestiam o pensamento pecebista, e, embora timidamente, começou a pôr entre parênteses a própria idéia de ruptura revolucionária (Santos, 1988).

Correlacionando tal pecebismo com a investigação sobre a imposição do modo de produção capitalista no país, já em meados dos anos 70, os “eurocomunistas” brasileiros, ou seja, a sua intelectualidade,[2] diferentemente de Caio Prado Jr., tomaram como ponto de partida de novas formulações a política efetivamente praticada pelo PCB no pós-64, radicalizando num sentido estratégico a postura de defesa da democracia política e o pluriclassismo reformador da teoria das frentes únicas.[3]

O que se quer sugerir neste texto é que a bibliografia sobre a modernização das sociedades agrárias, especialmente Lênin, Lukács, Gramsci e Moore, constitui uma constante em vários autores “eurocomunistas”, com fortes indícios de que tal presença lhes induziu a converter a questão do prussianismo - vale dizer, o reconhecimento de uma via não-clássica de desenvolvimento capitalista - , de um pano de fundo recortado inicialmente para uma nova compreensão da literatura, em chave explicativa da formação social brasileira, até tornar-se uma referência que revalorizará a mobilização pela redemocracia política do pós-64 numa ótica mais abrangente. A luta democrática, de “instrumento tático” como gesto reativo ao regime militar, passava a ser interpretada como uma reversão mais estratégica do prussianismo presente em boa parte da vida política brasileira, importando tal revalorização num alargamento de paradigmas, com repercussões significativas nos padrões da cultura política comunista.

Um vista d’olhos nos antecedentes dos “eurocomunistas” brasileiros mostraria que alguns deles são, a rigor, os primeiros, ainda na primeira metade dos anos 70, a se voltarem para o prussianismo lukacsiano, inicialmente à procura de um novo enfoque para o tema da cultura brasileira.[4] Num deles, o conceito de via prussiana já aparece referindo a modernização agrária num país que se desenvolvera por um caminho “lento e irregular”, no qual velhas forças e relações pretéritas foram sendo extirpadas sem os movimentos populares da “via francesa”, numa simbiose do novo com o velho, mediante um reformismo propiciado “pelo alto” (Coutinho, 1974). Observava-se que esse traço marcara tanto a cultura política da época que a mudança social se concebia como um “destino fatal”, donde a crença de que ela só adviria de “indivíduos excepcionais”. Do divórcio povo-nação resultava difícil aparecer uma “autêntica consciência democrático-popular” (Coutinho, 1974).

Não há registro de uma maior incidência desse lukacsianismo culturalista na política, pois uma “divisão do trabalho” imposta no interior do PCB só admitia então a esses intelectuais o empresariamento de uma renovação estético-cultural do marxismo, enquanto a direção partidária reservava-se a função propriamente de definição da política.[5]

Uma segunda pista é a presença de O programa agrário da social-democracia russa em outros jovens intelectuais que procuravam recuperar o opúsculo leniniano do seu uso tradicional, para com ele resgatar a política como tal; aliás, como requeria a orientação gradualística de resistência, oposição e combate à ditadura praticada pelo PCB depois de 1964.

Um desses textos é o de Ivan Ribeiro onde ele utiliza o conceito leniniano de via prussiana para rediscutir, de forma pioneira, a reforma agrária dos anos 50, definida então como condição eliminatória do latifúndio e das relações pretéritas, obstáculos ao desenvolvimento burguês.[6] Como “via americana”, a reforma agrária significava naquele tempo um processo de conversão do camponês dependente em proprietário protagonista da modernização da agricultura (Ribeiro, 1988). A sua libertação, como na teoria de Lênin, será vista como um resultado da lógica de diferenciação social no contexto da constituição do mercado interno, levando os comunistas brasileiros a adotarem o viés economicista, restringindo o conceito de democracia à questão econômico-social da incorporação dos camponeses na economia monetário-capitalista.

Com a evolução da agricultura no após-64 em direção oposta à tese (estagnacionista) do reformismo democrático-burguês, Ivan Ribeiro percebia o novo equacionamento da questão agrária. De um lado, ele assinalava que o latifúndio não só não impedira o fortalecimento do capitalismo, como tampouco aguçara as suas contradições com as frações industrial e comercial da burguesia; e, de outro, mostrava que, pela modernização experimentada, a agricultura já deixara de ser o setor mais atrasado da economia (Ribeiro, 1988). A atenção de Ribeiro se voltava para um capitalismo agrário sob a égide da grande propriedade, isto é, para um conjunto de transformações que progressivamente adaptavam a agricultura, substituindo gradualmente os procedimentos feudais por procedimentos burgueses. Nesse tipo de formação social, onde “misérias modernas” coexistiam com “misérias antigas”, a reforma agrária manteria o seu papel fundamental na liquidação dos anacronismos, sem isso significar, porém, que a sua não-realização interditasse o desenvolvimento capitalista, como se acreditou até bem entrados os anos 60. O propósito de Ribeiro era deslocar a problemática da reforma agrária do “estrutural” - da sua imprescindibilidade para ampliar o mercado interno e dinamizar o capitalismo - para o âmbito do “institucional”, como sugere depois, ou seja, para um novo modo de pensar politicamente a questão agrária, “com o objetivo de tornar possível aos camponeses e trabalhadores rurais entrar no jogo político enquanto força de classe e com individualidade” (Ribeiro, 1983).[7]

Numa outra reflexão, a ida a esse Lênin do prussianismo também tinha o sentido de recuperar a dimensão autônoma da política. Mas agora o argumento se construía a partir de uma nova leitura do processo industrialista; e de uma ampliação de horizontes onde, ao lado de Lênin e Gramsci, aparecia Barrington Moore, estimulando a superação do paradigma clássico de modernização, sobremaneira através da sua categoria de revoluções “vinda de cima” (Vianna, 1978).

Tal ensaística procuraria interpretar a modernização brasileira no contexto de 30 como um processo de apropriação do Estado que vai resultar na conservação das estruturas agrárias e do velho sistema político, nisso assumindo feição “prussiana”. A aliança da elite agrária com os setores urbanos então emergentes é que vai conferir à nova configuração estatal uma dimensão universalizadora; propulsionada, não pelo grupo produtivo “pré-destinado”, mas por uma amálgama de elites agrárias e camadas médias que viverão o “Estado demiúrgico”, “realizando a nacionalidade”, como pensaram os grandes ensaístas da época; de fato, conduzindo “pelo alto” a marcha da industrialização do país, nisso se aproximando ao modelo gramsciano (Gramsci, 1974: 112-25). É esse núcleo argumentativo que singularizaria o processo brasileiro, ao dar conta, simultaneamente, tanto da ausência dos industriais em Outubro de 1930, como dos efeitos trazidos pelo movimento varguista para a imposição de interesses industriais na estrutura econômica. Em suma, o caso brasileiro seria o de uma via industrialista que avança sob os auspícios da política, sem um processo de criação de uma institucionalidade burguesa que permitisse à classe produtiva ser hegemônica na nova ordem em construção (Vianna, 1978).

Essa investigação não nascia do acaso. Ela respondia à busca de um redimensionamento do sentido da política de frente democrática. Desde essa perspectiva, começou a circular no PCB a idéia de que a possibilidade de reversão do capitalismo excludente - imposto à moda prussiana mediante a instrumentalização privatista do Estado - encontrava lugar justamente no plano da política.[8] Para onde já apontavam a intuição do PCB ao se especializar, desde cedo, na montagem de coligações heterogêneas e a sua concepção de avanços políticos progressivos e de reformas graduais nos marcos do regime capitalista.

Por outro lado, aqueles “efeitos superestruturais” da via prussiana realçados pelos intelectuais “culturalistas” na sua ensaística literária, anteriormente mencionada, anos depois, voltariam a merecer atenção de alguns remanescentes daquele primeiro agrupamento que, numa outra fase, já viviam a adesão ao gramscismo propriamente político.[9] A recomposição do modelo leniniano de O programa agrário da social-democracia russa vai se fazer também através da incorporação da reflexão gramsciana sobre o Risorgimento. Agora se introduzia formalmente o conceito de revolução passiva para ampliar o prussianismo, já considerado problemático pela sua concentração nos aspectos econômicos.[10]

Ensaiava-se claramente uma interpretação do caso brasileiro como via não-clássica: uma versão de modernização sem a realização de uma revolução democrático-burguesa; ou sem a revolução de libertação nacional de moldura jacobina, como no pensamento pecebista da fase mais estalinista. Nessa busca de uma outra imagem de Brasil não é só o conceito de revolução passiva que se faz presente. Também é decisiva a noção de “Estado ampliado”. O primeiro deles lembrado para a caracterização da transição conservadora para a modernidade à moda do Caio Prado da Evolução política do Brasil. Havia exemplos confirmativos tanto da função estatal substituidora do protagonismo burguês, como da exclusão transformística das massas, bem ilustrada pelo “populismo”. Já a teoria ampliada do Estado, rompendo com o terceiro-mundismo da tradição comunista, apoiará sobremaneira a caracterização do Brasil moderno, cuja ocidentalidade, pelas vias transversas da revolução passiva, induzindo o abandono do modelo da III Internacional e a reformulação da estratégia socialista a partir da tese gramsciana da “guerra de posições” - como no eurocomunismo italiano, aqui também tomada como base definidora de um caminho democrático para o socialismo.[11]

Neste ponto é preciso observar que, se foi a política de frente única o ponto de partida comum a esses dois matizes “eurocomunistas” - um mais político, e outro, culturalista-lukacsiano e gramsciano -, será a leitura da formação social brasileira do primeiro deles a que mais haverá de atribuir à luta pelas liberdades uma dimensão estratégica, prevendo que os seus resultados, na falta de uma hegemonia burguesa consolidada no país, poderiam assumir a feição de uma verdadeira revolução política. Nisso lembrando a reflexão lukacsiana sobre os caminhos de adequação (tardia) da estrutura social e política colocados para a experiência da modernização prussiana; ou seja, o caminho da democratização política da sociedade (retomando a idéia da revolução democrática engelsiana); e o da adaptação da estrutura política (conservando a estrutura social) à forma ocidental de democracia, como queria Weber (Lukács, 1976). O segundo viés transportará para o Brasil do final dos anos 70 a concepção gradualista da “guerra de posições” gramsciana, ressaltando a importância do processo de ocidentalização experimentado pelo país no tempo do autoritarismo, como uma realidade a exigir a reformulação da política de esquerda. Esse gramscismo revestiria a tática dos “avanços graduais” e da sucessividade dos governos pluriclassistas elaborada pela intuição do PCB desde os anos 50 com uma nova concepção de “revolução processual”, em oposição à tradição leninista da “revolução explosiva” que tensionava, como um resíduo insuperável, o discurso pecebista.

Além disso, deve-se registrar que a primeira ensaística vai mais longe nesse esforço de substantivação da política praticada pelo PCB no pós-64, ao procurar no tema da democratização em curso no começo dos anos 80 uma perspectiva de formulação da práxis de esquerda completamente ocidentalista (Vianna, 1983).[12] As experiências européias de modernização conservadora tardia são lembradas como interessantes sobretudo porque realçavam a tendência segundo a qual, onde o processo de modernização não se dera com a criação de uma adequada institucionalidade política, como na Espanha e em Portugal, à hora do colapso dos seus regimes autoritários nos anos 70, formava-se uma situação na qual a perspectiva da revolução subsumia a da transição (Vianna, 1983).[13] Aqui se tornava obrigatória a referência à teoria da modernização, desde logo denunciado o caráter espúrio da relação natural entre desenvolvimento e democracia, como queria o logicismo da ideologia econômica. Reconhecia-se que os processos modernizantes certamente imprimiam pluralização às sociedades, mas isso não significava que se pudesse dizer que tal pluralidade social se converteria naturalisticamente em pluralismo político. Num mundo de especificidades e desigualdades, a hipótese econômica só favoreceria à democratização no contexto da política e das iniciativas dos sujeitos políticos; ou seja, à medida que (devido ao uso privatista que os regimes autoritários faziam da política), à hora do esvaziamento das ditaduras, pela autonomia que lhe é própria, a política se voltasse contra a velha relação Estado/sociedade, assegurada até então pela força (Vianna, 1983).

Com o pano de fundo de uma história bastante diversificada, a demorada transição vivida pelo país desde meados dos anos 70 teria se parecido com aquele processo. Sob a circunstância de que, na fase de “conclusão da revolução burguesa” que ele significava, se agravara ainda mais a assimetria entre economia e política, de modo que, numa hora de débil controle, emergência de movimentos sociais e alternativas políticas, como no início dos anos 80, a precariedade da institucionalidade e o privatismo no uso do Estado revelaram-se disfuncionais à retomada do crescimento econômico colocada na ordem do dia. Nada assegurando, por conseguinte, que a resolução desse impasse levasse a transição brasileira a terminar necessariamente como uma redemocratização liberalista nos moldes antigos. Equacionada nestes termos a transição, aí estava posta mais uma questão crucial para a mudança da cultura política de esquerda no final dos anos 70: o reconhecimento da possibilidade de que a superação do autoritarismo e a conquista do regime democrático pudessem ocorrer no Brasil sem mudanças bruscas e violentas, como observara a seu tempo Armênio Guedes.[14]

Toda essa elaboração, na verdade, não era mais que um equacionamento da prolongada crise pecebista sob a chave da política gradualista de frente democrática à luz dos estímulos que provinham da controvérsia eurocomunista dos partidos europeus. Os “eurocomunistas” brasileiros estavam sintonizados em muitos pontos com a uma definição de socialismo em termos de uma democracia radicalizada e plural; democracia, como ficará esclarecido depois na bibliografia, concebida como lócus do processamento dos interesses e conflitos e de gestação da opinião pública democrática enquanto instrumento essencial da melhora progressiva da sociedade (Vacca, 1992). O privilegiamento que adquiriam no discurso “eurocomunista” brasileiro noções como Estado de Direito, garantias constitucionais, constituinte, transição, necessidade de sistema partidário, etc., minava profundamente tanto a teoria da revolução como ato fundacional de uma nova ordem social quanto a concepção do partido como o partido-Estado da experiência do socialismo real - pressupostos esses retirados da doutrina e da história, e cristalizados na cultura política comunista.

II

À margem da bibliografia clássica, Pécaut (1990) propõe que o conceito de cultura política só tem utilidade na medida em que se articulam concepções políticas diversas, como os seus exemplos dos ex-integralistas no Iseb (humanismo marxista), queremismo no PCB, a recuperação getulista dos comunistas no pós-54, o encontro dos estudantes com o marxismo, etc. No pré-64, teriam sido percursos em sentido contrário como estes que asseguraram aos esquemas nacional-populares o caráter de uma verdadeira cultura política, deixando o caminho aberto para as mais variadas práticas políticas, assegurando também a coesão relativa de um meio que se estendia muito além dos militantes propriamente ditos.

Nesse sentido do contraste, é possível perceber com maior nitidez o significado da discussão “eurocomunista” e como ela ganha vida própria no Partido, ao se comparar as suas inovações com um texto representativo da natureza da velha mentalidade, ainda presente residualmente no PCB dos anos 80: o chamado informe de balanço do Comitê Central sobre os debates do VII Congresso, elaborado em novembro de 1982 para servir de base à resolução política de encerramento do evento (PCB, 1984).

Sob tensão, ao ver as táticas gradualistas do Partido ganharem terreno no imaginário democrático dos anos 80, mas receoso de que elas corroessem a alma comunista, o Comitê Central que assina aquele texto empreende uma espécie de retomada de uma leitura marxista-leninista avant la lettre da realidade brasileira. Pelo que ali se diz, esta era a condição indispensável para uma correta compreensão daquela conjuntura, em contraposição à heterodoxia “eurocomunista”, portadora de posições similares às da sociologia funcionalista da modernização que associara equivocadamente crescimento econômico e democracia política.

O ponto principal do dissídio refere-se ao que seria a perda de centralidade do fator nacional (na tradição, garantida pelas categorias de dependência e latifúndio, capazes de singularizar a formação social brasileira), enfraquecida pelo privilegiamento do fator democrático, mudança introduzida na versão “eurocomunista” mais problemática ainda pela redução desse fator à democracia política.

Em lugar de interpelar o próprio legado do PCB e recorrer a um marxismo de ponta, como faziam os “eurocomunistas”, o espírito impresso naquele informe do Comitê Central voltava-se para o tradicionalismo ideológico. Algumas passagens desse texto, resumidas a seguir, caracterizam bem um tipo de pensamento - aliás, uma mentalidade mais generalizada - então posto à defensiva diante do aparecimento dos primeiros elementos de uma cultura política alternativa ao marxismo-leninismo brasileiro.

Antes de tudo, uma referência à questão “preliminar” do método correto de apreensão da realidade para a formulação da política. Rejeitava-se com veemência o recurso ao tema da modernização por ser esta uma metodologia imprópria para estabelecer a “contradição a ser resolvida” na formação social brasileira. Segundo se dizia naquele texto, em seu ecletismo teórico os “eurocomunistas” levaram as suas observações sobre o prussianismo e a sua “teoria” de revolução passiva brasileira para fora do marxismo-leninismo. Daí porque, em lugar de procurar a determinação básica da dependência externa, eles definiam como marca fundamental da formação social a idéia de assimetria entre a economia (sob impacto modernizador, com uma sociedade civil robustecida) e um Estado arcaico e autoritário, fincado nas tradições elitistas do país. Tal como a concebiam no seu argumento modernizador, essa idéia de assimetria limitava o horizonte de construção da nova sociedade, ao colocar como tarefa “revolucionária” uma luta restrita à obtenção de uma simples “correspondência” entre aquelas duas esferas da sociedade, na esperança de que a mobilização pela democracia política viesse a assumir caráter de verdadeira revolução. Dizia-se ainda que os “eurocomunistas” entendiam equivocadamente a democratização política como uma ampliação do processo de fortalecimento da sociedade civil, à espera de que ele oferecesse melhores condições para que se formasse no país um novo consenso democrático, aberta então a possibilidade para que o proletariado conquistasse a hegemonia na sociedade civil democraticamente, ao contrário da tradição que condicionava esse movimento estratégico à conquista prévia do poder político (PCB, 1984).

Para os redatores daquele informe congressual, a visão “eurocomunista” era “impressionismo sociologizante” e elucubrações de “politólogos funcionalistas”, não passando de um “dualismo” que se resolvia na aceleração da tarefa modernizadora (primeiro do aparato produtivo, logo das instituições sociopolíticas), em lugar das transformações radicais da sociedade. Chegava-se a dizer que os “eurocomunistas” reeditavam o economicismo da Declaração pecebista de março de 1958 que também fizera associação entre ascenso democrático e desenvolvimento capitalista. Ao contrário dessa “sociologia funcionalista”, não se devia entender a “antidemocracia brasileira” do pós-64 como um resultado das tradições e costumes das classes dominantes, um mero resíduo a ser varrido pela expansão do moderno; sua base radicaria fundamentalmente no capitalismo monopolista e na integração capitalista do latifúndio, o Estado cumprindo nisso tudo papel decisivo, porém subordinado a um setor moderníssimo, como era o imperialismo. O critério chave da abordagem do Comitê Central consistia na referência ao processo da exploração e não se centrava, como no outro, na teorização da modernização brasileira. De acordo com os redatores daquele texto, o principal a ser observado na controvérsia era entender a questão democrática, o “arcaico” e o “moderno”, “com a metodologia monista e marxista-leninista” e praticar a política como luta de classes e não como consenso (PCB, 1984).

Um segundo ponto característico: o uso de Gramsci. Reivindicado o enfoque marxista-leninista, também seria conseqüência afirmar que os novos “social-democratas de direita” (de acordo com aqueles críticos do eurocomunismo) na verdade teriam de Gramsci se afastado para chegarem a uma visão da sociedade e do Estado, bem como das relações entre eles, tão errônea que os conduzia somente àquela curiosa “estratégia” de lutar por uma nova “correspondência” entre economia e Estado, à procura do consenso nacional e de um socialismo sem ruptura. A sociedade civil não seria o reino da modernidade, como pretendiam, contraposta a um Estado arcaico, nem seria o campo da democracia em dissídio com o campo do autoritarismo estatal. Donde, sob pena de “escamotear o teor da luta socialista”, a rejeição “obrigatória” da tarefa de “reforço da sociedade civil” e de suas agências privadas controladas pelo Estado (na verdade, elas não passavam de reino do privado e da servidão). Neste entendimento, em lugar de copiar a “guerra de posições”, gramscismo seria reafirmar o princípio leninista da concentração da luta política na conquista do poder. A mobilização pela democracia, reapropriada pelo enfoque ortodoxo, devia ser orientada em termos de uma batalha na esfera das agências privadas das classes subalternas para libertá-las da ideologia reacionária, ou seja, como uma luta pela conquista da hegemonia, tomada do poder e subversão, a partir daí, da própria sociedade civil. Reafirmava-se assim a cultura política da dupla ruptura no Estado e na sociedade civil, com preeminência para o primeiro termo, conforme a tradição marxista-leninista (PCB, 1984).

Já a inspiração dos “eurocomunistas” no Lênin da revolução de 1905 - na reflexão em que o líder russo também falava de uma espécie de assimetria entre autocracia arcaica e capitalismo ascendente (que lhe permitiria prever um outro tipo de revolução democrático-burguesa, com a presença ativa do proletariado) - tornava difícil reduzir a problematização da assimetria modernização econômica/política a uma mera cópia do dualismo da sociologia da modernização. Por isso, cobrava-se do discurso “eurocomunista” a ausência do sentido revolucionário da consigna leniniana sobre a direção proletária do processo da “revolução popular”, especialmente a insistência em atribuir ao proletariado a tarefa de levar “o mais longe possível” o curso revolucionário; e não apenas batalhar por novos tipos de controles “especificamente capitalistas”, a “serem impostos” a uma burguesia sem convicção em suas próprias formas de dominação (PCB, 1984).

Ademais, dizia-se que os “eurocomunistas” fugiam também do Lênin do “assalto ao palácio” e se reconciliavam com um “gramscismo” gradualista e suspeito da “guerra de posições”. Eles eram mencheviques, ao se esquecerem da palavra de ordem leniniana da “ditadura democrática dos operários e camponeses”, e ao defenderem tarefas subalternas como “concluir a revolução democrática” e levar “o mais longe possível” apenas uma dominação burguesa moderna (PCB, 1984).

Não por acaso os autores do aludido texto denunciavam o vínculo das formulações “eurocomunistas” com o “direitismo” intermitente no PCB - diziam que a proposta de “conciliação nacional” ou “consenso democrático”, veiculada no começo dos anos 80 como fórmula capaz de dar partida à transição política, estaria na mesma linha de continuidade com os “desvios oportunistas” do velho PCB, a começar pela antiqüíssima contraposição “agrarismo” versus “industrialismo” nos anos 20; com o “liquidacionismo” de 43 (uma referência inadequada à história do “liquidacionista” Comitê de Ação, na verdade também um debate sobre a política de alianças contra o Estado Novo); com a política de “apertar os cintos” da tática de “união nacional” em 45; nos anos 50 com Agildo Barata e o chamado Movimento Renovador; com a Declaração de março de 1958; e, finalmente, com o “desvio desenvolvimentista” de setores do PCB no pré-64.

Em suma, o referido texto pretendia condenar a identificação da questão democrática com a democracia política e o nivelamento da política comunista com a prática contemporânea da frente única aggiornada. O pensamento aí reproposto, em lugar de ir ao tema da modernização para recolocar noutra moldura a mal resolvida problematização da relação crescimento econômico/democracia e reformular a concepção da história como processo revolucionário, partia do princípio da “atualidade do socialismo” também no Brasil, da definição de que o país vivia um período de transição do capitalismo para o socialismo, num principismo a recobrir a teorização (bem diversa) do capitalismo dependente brasileiro. Nesta interpretação, a questão democrática conotava mais o estrutural, referida à democratização da propriedade (da terra e industrial) a partir da mudança no poder político, nada tendo a ver com a democracia concebida como um prolongado processo de reversão do prussianismo modernizante e como um valor em si, ou seja, como instrumento institucional e como instrumento de melhora progressiva da sociedade, desde um ponto de vista não-linear do curso histórico.

Eis aí, de maneira emblemática, as duas concepções polarizadas que recobriam o discurso da democracia que o PCB difunde na passagem dos anos 70 para a década de 80. Uma, em seus primeiros passos, visando uma nova práxis comunista; e a outra, tradicionalista, reafirmando um pensamento auto-referido, considerado indispensável para definir uma política de feição revolucionária para a transição democrática dos anos 80. Como uma das “ironias” da história, enquanto com o último discurso o Comitê Central procurava conter a “renovação pecebista” daquela época em limites compatíveis com o essencialismo comunista, o PCB, como partido, verbalizava muitas das idéias “eurocomunistas”, sendo a corrente política mais entusiasta e sintonizada com a transição então em curso, embora ainda alimentasse intramuros uma ideologia destituída de qualquer vocação hegemônica.

Da perspectiva mais ampla da história do marxismo poder-se-ia perceber quão extemporâneas eram as posições registradas no texto anteriormente resenhado, e como surgiriam resistências em alguns dos “eurocomunistas” brasileiros à hora de transitar para o pós-marxismo.

Com o esgotamento do socialismo real no curso dos últimos anos 80, o processo reformulativo da estratégia socialista apresentou-se plenamente como tal, já não mais se constituindo numa problemática dissidente e eurocomunista. Em muitos autores a questão do fim do capitalismo deixou de ser tema totalmente inclusivo e fechado, e a crítica à noção de revolução como ato fundacional de novas sociedades tornou-se mais freqüente.[15] Posteriormente, o exemplo do PCI, em sua conversão em PDS, com rupturas paradigmáticas na sua tradição intelectual, implica na busca de uma nova utopia democrática.

Os últimos “eurocomunistas” brasileiros, por sua parte, forneceram muitos subsídios para os documentos do PCB à hora em que este partido fez a opção radical pela democracia tardiamente, um pouco antes de sua dissolução em 1992. Mas tudo indica que, após terem participado ativamente da controvérsia eurocomunista dos anos 70, durante a crise do marxismo à hora do colapso do socialismo real e da URSS, não quiseram ir adiante na discussão pós-marxista, vista por alguns deles com certa desconfiança (Vianna, 1988b; Coutinho, 1992 e 1994; Konder, 1992).

III

Este texto tem por objetivo apenas realçar o debate “eurocomunista” no PCB, enquanto emblema dos impasses e mutações na cultura política comunista, numa ocasião de convergência com o ponto mais alto da configuração do imaginário democrático dos anos 80. Aqui foram considerados somente alguns autores, e não toda a discussão ocorrida no interior do PCB, como se pode consultar nas páginas do periódico Voz da Unidade da época.

Escapa à sua finalidade referir-se a um balanço da transição política (Pereira Reis e Boschi, 1988). Não se pretende que a cultura democrática tenha determinado, isoladamente, a virada política do começo de 1984, quando se acelerou a derrota do regime de 64, nem que haja uma relação de determinação, direta e exclusiva, entre o que se passou intramuros da agência ideológica em questão e as transformações nos valores e condutas dos demais setores da Oposição ao regime ditatorial.

Contudo, se se olha atentamente o MDB da passagem dos anos 70 para a década de 80, não seria difícil dizer que esse partido na verdade não era mais do que um movimento de opinião pública expressando uma cultura política heterogênea que depois iria se traduzir em força eleitoral, influindo, como se sabe, na mudança do regime. Ademais, não é descabido pretender que o PCB - ser ambíguo entre ideologia e história, e que nos seus melhores esforços ampliava o horizonte da sua política através do MDB - desempenhou nesse processo um papel interessante, estimulando a política de alianças pluriclassistas, reconhecida como eficaz por amplos setores da Oposição.[16] Também não é um despropósito presumir que nessa associação PCB/MDB subsistam conexões do tipo grupos partidários-intelectuais/cultura política, tal como ocorreu em outras passagens da história republicana nas quais essa relação coloriu a vida pública nacional, tornando mais inteligível, depois, a sua própria interpretação. O que se quer sugerir é que o empenho do PCB em favor do reconhecimento da democracia como eixo da mobilização anti-regime - na dimensão que lhe corresponde, pois não é a única - constitui circunstância relevante na formação da cultura política da oposição ao regime militar. Do mesmo modo que, mutatis mutantis, o estatismo dos ensaístas das primeiras décadas do século teria influenciado as elites da revolução de 30, fazendo parte da estrutura ideológica daquela época. Ou como ocorreu na fase nacional-desenvolvimentista. Com a diferença de que neste caso, sim, se pode falar da presença de uma verdadeira inteligentzia que radicaliza o papel da ideologia como conditio sine qua non do processo de modernização industrialista do país. A propósito, basta relembrar a frase isebiana lapidar, segundo a qual, à Lênin, sem ideologia desenvolvimentista não haveria desenvolvimento nacional.

Aliás, os dois contextos onde se dão as mudanças no pensamento comunista anteriormente referidas - anos 50/60 e ocaso do autoritarismo - são contextos de amplas mobilizações políticas nas quais ocorre um processo de passagem de consideráveis parcelas populacionais de uma mentalidade, ainda para usar descritivamente a famosa expressão, do tipo parochial political culture de classes subjugadas pela tradição, para uma nova situação que também poderia ser caracterizada como de uma cultura de “participação” relativamente aos fenômenos políticos (Almond e Verba, 1965). Por certo, essa evolução não constitui um processo evolutivo espontâneo que dispense a interferência dos grupos intelectuais (pensadores, inteligentzia, Iseb, etc.) e outras agências (partidos, Igreja, os movimentos sociais, etc.) que realizam a “socialização política”, ou que atuam, como diz Gramsci, estimulando a “reforma intelectual e moral” de classes que, por si mesmas, não conseguem realizar todas as suas potencialidades.

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Notas

[1] O texto de Almond e Verba, The civic culture, é modelar. Ver também Moisés (1992); Ponte (1992), entre outros.

[2] Uma pesquisa a respeito encontrará manifestações “eurocomunistas” nas estruturas organizacionais do PCB de vários estados; aqui serão consideradas apenas algumas de suas referências intelectuais. Cf. Folheto (1983); Nogueira (1981); Santos (1994).

[3] Documentos ilustrativos desse pecebismo são as teses para o V Congresso de 1960, o informe de balanço do Comitê Central para o VI Congresso de 1967, especialmente a Resolução política do CE da Guanabara do PCB de março de 1970, republicada na revista Temas de ciências humanas (Cf. Guedes: 1981a).

[4] O livro Realismo & anti-realismo na literatura brasileira contém ensaios de todo um grupo intelectual (Coutinho et al.: 1974).

[5] Também é Carlos Nelson Coutinho (1990) quem relata essa “divisão de tarefas” no interior do Partido nos anos 60.

[6] Cf. “Agricultura e capitalismo no Brasil”, publicado na revista do PCB Études brasiliennes editada em Paris em 1975, sob o pseudônimo de Cláudio Barros, e republicado em 1988 (Ribeiro: 1988).

[7] Poucos dias antes de sua morte, num seminário para secretários estaduais e técnicos agrícolas, Ivan Ribeiro frizara que o maior significado da reforma agrária dos anos 80 era mesmo a extensão da cidadania para milhões de indivíduos-produtores-consumidores. Palestra em João Pessoa, setembro de 1987.

[8] Ver o texto apresentado por Vianna (1981) no debate do VII Congresso realizado na ABI no dia 26 de outubro de 1981.

[9] O famoso ensaio de Carlos Nelson Coutinho “A democracia como valor universal” foi publicado em 1979 na revista Encontros com a civilização brasileira n. 19. Também é dessa época “Gramsci e nós” (Coutinho: 1980a). Ver ainda a “Introdução” à coletânea de textos de Gramsci (Coutinho: 1980b).

[10] É o que revelaria depois Coutinho (1986).

[11] A rigor, um primeiro registro da influência do eurocomunismo europeu no PCB encontra-se no artigo “A questão democrática” (Teixeira (1978).

[12] Acerca da horizonte “oriental” pelo qual se pautara o PCB durante anos, e que não lhe permitia superar completamente as suas ambigüidades no tema da democracia política, ver o ensaio do mesmo autor: “O Ocidente incompleto do PCB” (Cf. Vianna, 1988a).

[13] Argumentava-se que o conceito de transição, que na literatura clássica (de Tocqueville a Gerschenkron, Eisentadt, etc.) surgira em alternativa ao de revolução, podia ser utilizado também num discurso marxista. Gramsci e Ingrao seriam os exemplos, o primeiro com o conceito de “guerra de posições” e o segundo com a tese da expansão da democracia política para o socialismo.

[14] O então membro do Comitê Central do PCB, analisando a passagem do ano de 1980 a 1981, acreditava que já se vivia uma peculiar situação de um período de transição, embora não se tivesse no país um governo de transição, segundo ele, uma perspectiva para ser trabalhada pelas forças oposicionistas da época, evitando-se as precipitações e os retrocessos, nos moldes da “boa tese gramsciana da guerra de posições” (Cf. Guedes, 1981b).

[15] Laclau e Mouffe (1985) empreenderam uma descontrução de categorias-chave do marxismo, reconstituindo uma história intelectual anterior como passo para um novo curso na formulação política de esquerda. Segundo eles, o conceito gramsciano de hegemonia seria o umbral definidor da transição para uma outra cultura política. Eles chamam a atenção, porém, para a necessidade de se ir além e desconstruir o conceito de “classe social” como pressuposto da unidade de posições de sujeito dos diversos agentes sociais, pois no capitalismo avançado tal unidade identitária torna-se sumamente precária, sempre sujeita a constante rearticulação hegemônica. Para Laclau e Mouffe, pensar os novos movimentos sociais das sociedades avançadas desde a crítica ao essencialismo e à concepção tradicional de sujeito (unitária e fundante de nova ordem social), deveria levar a um novo projeto socialista, falibilístico, concebido doravante em termos de uma democracia radicalizada e plural.

[16] Como é sabido, no período, o PCB se radicou no MDB (PMDB), visualizando-o como a própria frente democrática anti-regime, às vezes nele se dissolvendo. Exemplos dessa relação seguramente seriam obtidos se fosse reconstituída a história do MDB, particularmente após as eleições de 1970, quando os comunistas e outros setores valorizaram a importância do partido oposicionista, fazendo a sua defesa frente à tese da autodissolução. Sobre as concepções comuns PCB-MDB ver, por exemplo, Manifesto (1981).