Estudos Sociedade e Agricultura

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Jorge O. Romano

Discurso religioso e imaginário na luta pela terra


Estudos Sociedade e Agricultura, 4, julho 1995: 66-77.

Jorge O. Romano é professor da UFRRJ/CPDA.


Nos últimos anos temos refletido sobre a concepção e a prática político-religiosa que se expressam na “luta pela terra” propulsada pelos setores da Igreja autodenominados de “progressistas” - em nosso caso, a CPT - como uma concepção e uma prática “heterodoxas” que produzem efeitos, principalmente, no “campo político da representação camponesa” e no “campo ideológico da luta pela terra”, numa conjuntura que abarca o final da década de 70 e grande parte dos anos 80, de abertura e redemocratização nacional, mas que foi de extrema violência para os grupos subalternos agrários.

Através da diferenciação entre um “campo político da representação camponesa” e um “campo ideológico de luta pela terra” estamos tentando aproveitar a proposta analítica apontada por Bourdieu através da construção das noções de “campo político” e de “campo da produção ideológica” (Bourdieu, 1989), na qual se procura remarcar a distinção entre os processos de luta pela representação e mediação política legítima dos atores sociais (em nosso caso, do campesinato), e os conflitos que se manifestam nos processos de produção ideológica, isto é, os conflitos travados entre atores específicos pelo reconhecimento da questão do acesso à terra como componente fundamental nos debates sobre a democratização do país.[1]

Estas concepção e prática “heterodoxas” produzem também um outro conjunto de efeitos que se manifestariam sobre a própria Igreja Católica, analisada como um espaço social específico, o “campo religioso “ (Bourdieu, 1971) da Igreja Católica. Isto é, um complexo campo de lutas no qual poderiam identificar-se, principalmente, relações de conflito entre a hierarquia, o clero e o laicato em torno de questões específicas como a do monopólio do poder eclesial.

A heterodoxia da concepção e da prática da CPT estariam dadas pela manifestação de um duplo processo: de “religiosização” do político e de “politização” do religioso. Pensar ou agir religiosamente seria considerar a realidade em termos de um universo simbólico que orienta a experiência dos homens segundo um sistema religioso em sua origem. Geertz (1978) entende por religião um sistema simbólico que implica concepções que dizem respeito a uma visão de mundo e a um etos, assim como um tipo de ação particular. Para ele a essência da ação religiosa consiste em imbuir um certo complexo específico de símbolos - da metafísica que formulam e do estilo de vida que recomendam - de uma autoridade persuasiva. A dimensão da religiosidade alimentaria a ação por meio da “paixão” e da “utopia”.

Pensar e agir politicamente implicaria considerar a realidade em função de um universo simbólico particular, o da política, cuja definição legítima é produto de conflitos que poderiam ser pensados como constitutivos de uma campo específico (Bourdieu, 1989). Geertz ressalta que a política é uma das principais arenas onde as estruturas de significado - nas quais os homens dão forma à sua experiência - se desenrolam publicamente. Através da noção de “política do significado” procura destacar que os processos políticos são mais amplos e profundos do que as instituições formais destinadas a regulamentá-los (Geertz, 1978).

O reconhecimento da legitimidade da Igreja Católica e de suas concepções e práticas em ambos os campos - no “campo político da representação camponesa” e no “campo ideológico de luta pela terra” - teria influenciado nos processos de construção das identidades políticas das classes subalternas agrárias, como também na conformação do imaginário da luta pela terra.

Este trabalho procura, em especial, identificar algumas das características do discurso religioso da Igreja Católica, visando contribuir na compreensão do imaginário da luta pela terra produzido no campo ideológico específico.

 

O “campo político da representação camponesa” e o “campo ideológico da luta pela terra”

Os processos sociais de construção e consolidação das diferentes formas de representação e mediação do campesinato que têm se manifestado a partir do início dos anos 50 e, em especial, os conflitos pelo monopólio da representação legítima que se expressam nas relações entre esses atores, configurariam um campo político específico, o “campo político da representação camponesa”. As continuidades e descontinuidades das práticas e discursos dos principais atores, das questões em jogo, dos mecanismos de funcionamento (em especial os de legitimação e de deslegitimação), dos conflitos e dos efeitos produzidos sobre outros espaços sociais, permitiriam identificar diferentes estados da trajetória do próprio campo.

Originariamente o “campo político da representação camponesa” teria como principais atores os sindicatos de trabalhadores rurais, as entidades leigas da Igreja Católica agindo no campo, as ligas camponesas, o partido comunista e algumas agências do estado desenvolvimentista-populista dos anos 50 e início dos anos 60. A partir de finais dos anos 70 e durante a década de 1980, num outro estado do campo, encontram-se não só entidades com atuação em nível nacional ou na maioria das regiões do país, como o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais construído em torno da Contag, a CUT-Rural, a Igreja Católica através de suas entidades leigas - em especial, a CPT - , o Movimento dos Sem Terra, e agências do Estado (como as Ematers, o Incra, o Mirad, etc.). Mas também entrariam em cena outros novos mediadores e representantes, seja com base de atuação regional - por exemplo, o Conselho Nacional de Seringueiros na Amazônia e a Comissão Regional de Atingidos pelas Barragens do Alto Uruguai - ou local, como associações, cooperativas e, em certa medida, “organizações não governamentais” (as quais, partindo de tarefas de apoio à organização e ao desenvolvimento de comunidades camponesas, com freqüência passam a desempenhar informalmente funções de representação, como instituições ou através de seus assessores, individualmente).

Os debates em torno da questão agrária, que também se manifestam desde a década de 50, permitem delinear a constituição de um campo ideológico particular, o “campo ideológico de luta pela terra”. Este campo delimitaria um espaço social específico no qual se manifestam conflitos nos processos de produção ideológica e na circulação de discursos, em torno do reconhecimento ou não da questão do acesso dos camponeses à terra, os quais envolvem de forma diferenciada atores políticos, econômicos e intelectuais.

Nos finais dos anos 1970 e 80, o conflito básico se travaria entre representantes e mediadores do campesinato (MSTR-Contag, entidades da Igreja Católica - como a CPT - , MST, CUT-Rural, etc.) e os representantes dos grandes proprietários de terras - como a União Democrática Ruralista - das agroindústrias e das agências do Estado. Através do poder simbólico[2] de seus discursos específicos ou articulados - como no caso da Campanha Nacional da Reforma Agrária - e de suas ações, esses atores procurariam produzir ou impedir o reconhecimento dos conflitos pela posse e uso da terra agrícola, que se manifestam com diferente intensidade nas diversas regiões do Brasil, enquanto casos de uma luta de nível nacional, a “luta pela terra”, luta esta possuidora de um caráter não só econômico, mas marcadamente político, por ser um dos componentes fundamentais da “questão agrária” e da redemocratização do país.

Cabe ressaltar que, além do reconhecimento dos representados - da “base”, dos próprios camponeses - os outros principais reconhecimentos em jogo são os do Estado e os expressados por um conjunto diverso de atores - os jornalistas, os políticos e os intelectuais - que têm em comum o fato de serem os outros conformadores por excelência da “opinião pública”, dos temas e problemas pensáveis política e intelectualmente.

Intimamente vinculada à competição pelo monopólio da mediação que se manifesta no “campo político da representação camponesa” encontramos uma disputa entre os atores do campo pela conformação e imposição de uma concepção de “luta pela terra” legítima que compreenderia, entre outros elementos, uma noção de Reforma Agrária, a identificação de seus beneficiários, de seus inimigos, dos tipos de lutas “autênticas” e as características individuais e coletivas do setor reformado. Nesta disputa poderiam ser identificados diferentes tipos de discursos - por exemplo, discursos políticos, jurídico-legais, pedagógicos, acadêmicos, religiosos e, ultimamente, ecológicos - instrumentalizados pelos atores segundo os estados e as conjunturas do campo.

As continuidades que se apresentam nos tipos de discurso implementados pelos atores passariam a constituir uma tendência ou “marca” específica do seu “dizer” (que influiria também no seu “fazer”). Por exemplo, uma articulação do discurso jurídico-legal e do político (com predominância do primeiro) no “dizer” do MSTR-Contag; uma primazia do discurso político classista no “dizer” da CUT-Rural; uma articulação instável do político classista com o componente messiânico do religioso no “dizer” do MST; uma outra articulação instável, agora entre o político e o ecológico, no “dizer” do CNS e uma tentativa de fusão do político e do religioso através do duplo processo de “politização” do religioso e de “religiosização” do político no “dizer” - e no “fazer” - das entidades leigas da Igreja Católica, como é o caso específico da CPT.

Além destas “marcas” distintivas do “dizer” - e do “fazer” - dos diferentes atores, apresentam-se em todos eles, de forma mais ou menos explícita, componentes do discurso pedagógico e do próprio discurso religioso. Os componentes comuns do discurso pedagógico manifestam-se na conformação de uma espécie de “visão pedagógica” da política presente em todos os atores.[3]

Mas o que gostaríamos de ressaltar aqui, diz respeito à recorrência de componentes do discurso religioso no “dizer” e no “fazer” dos outros mediadores e representantes dos camponeses, característica esta que poderia ser explicada em termos genéricos, históricos e políticos. Genéricos, porque no universo discursivo ocidental haveria uma sobredeterminação dos diferentes discursos pela ordem do discurso religioso (Cf. Orlandi, 1987). Históricos, pela presença ou passagem de quadros formados, direta ou indiretamente, pela Igreja Católica na maioria das entidades mediadoras, por exemplo: no MSTR-Contag, na CUT-Rural, no MST, nas ONGs, além, obviamente, das próprias entidades leigas da Igreja. Em termos políticos, pelo poder da Igreja Católica - transferido de forma desigual à suas entidades leigas - nas disputas pela hegemonia no “campo político da representação camponesa” e pela legitimidade de seu discurso no “campo ideológico da luta pela terra”. Em especial no que toca aos principais reconhecimentos em jogo: dos camponeses, do Estado e dos jornalistas, dos políticos e dos intelectuais, isto é, dos outros conformadores por excelência da “opinião pública”.

Dada esta sobredeterminação do discurso religioso caberia tentar levantar elementos que permitam compreender melhor sua influência na conformação do imaginário produzido e legitimado no “campo ideológico da luta pela terra”, em especial sua importância na delimitação do politicamente pensável e impensável sobre a luta pela terra. O resultado desta delimitação, através da eficácia simbólica do “efeito de previsão” ou “da teoria” (Bourdieu, 1989), traz a possibilidade de contribuir no fazer ou desfazer das identidades desses atores, de seus projetos, de seus “movimentos”, fazendo ou desfazendo as representações sociais desses atores, projetos e “movimentos”.[4]

 

As características do discurso religioso e a conformação do imaginário no “campo ideológico da luta pela terra”

Quais seriam algumas das características do discurso religioso da Igreja Católica, que poderiam dar pistas para refletir sobre a conformação do imaginário no “campo ideológico da luta pela terra”, especificamente, das representações das identidades dos mediadores e dos atores como também de seus projetos?

a.  Sem pretender reduzir a complexidade da religião à linguagem, a religião pode ser pensada como um espaço institucional no qual se constitui uma certa discursividade, que pode ser estendida à expressão de suas várias práticas. Nesse sentido, o discurso religioso pode vir a constituir um objeto específico de conhecimento.[5] Como colocávamos anteriormente, há vários modos pelos quais esse discurso também se configura nos diferentes discursos (por exemplo, no pedagógico, no jurídico, no acadêmico, etc). Isto é, no universo discursivo ocidental haveria uma sobredeterminação de diferentes discursos pela ordem do discurso religioso (Orlandi, 1987).

A sobredeterminação do discurso religioso, o seu ressurgimento constante e o problemático processo de silenciamento resultante são característica que apresentam pistas para pensar aspectos genéricos do próprio imaginário.

Assim poderia considerar-se a CPT como lugar (ou pretexto) no qual se originam ou produzem vários discursos sobre a questão agrária: discursos políticos, religiosos, acadêmicos, jurídicos, etc. Haveria que refletir até que ponto as práticas da CPT criam situações discursivas em que a estratégia de poder é embaralhar, sob uma mesma fala, diferentes ordens e formas discursivas, em especial o político e o religioso e, logo, misturar diferentes sentidos para passar sem críticas por leitores de diferentes identidades ideológicas. Um dos resultados é o processo de silenciamento que acompanha todas as formas de exercício de poder, o qual - qualquer que seja sua natureza - faz que se fale de algumas coisas para silenciar outras (Orlandi, 1987).

Nessa perspectiva, até onde se pode pensar que uma das fontes do poder de negociação da CPT em relação ao Estado nasce da sua estratégia de, como mediador, construir para si mesma a capacidade de “estar no lugar de”, não só dos representados - através dos mecanismos de despossessão política na delegação, exacerbados no caso do campesinato como uma das classes mais “despossuídas” econômica, política e culturalmente - , mas nos lugares dos outros mediadores: ocupa as posições do sindicalista, do político, do intelectual. Para “estar em” esses lugares, sua prática é instituída por um discurso que, ancorado num lugar, renasce em outro - uma sorte de “efeito-hydra”, de ressurgimento incessante (Orlandi, 1987) - com todas as qualidades retóricas da adequação. Assim a CPT e seu discurso seriam várias coisas ao mesmo tempo e se transformariam em várias outras sucessivamente, nos momentos oportunos.

Para não ser envolvido neste “efeito hydra” e decodificar a falsificação, seria necessário, analiticamente, remeter-se á formações discursivas correspondentes, que podem ser entendidas como verdadeiros dicionários que encaminham as ordens dos discursos e, conseqüentemente, os sentidos diferentes (mecanismos do tipo: “onde se fala ... leia-se...”). É pela formação discursiva que se identifica uma fala. A formação discursiva dispõe sobre o que o sujeito pode e deve dizer numa situação, de tal forma que, remetendo seu discurso à ideologia, essa formação fará com que suas palavras tenham um determinado sentido e não outros possíveis (Orlandi, 1987).

b.  A “onipotência do silêncio” e a tensão constante entre o “monopólio” e a “coletivização” da produção do sentido são algumas das características do discurso religioso da Igreja Católica que poderiam servir como pontos de partida para refletir sobre a identidade dos mediadores, em especial, sobre a vocação de mediador único e as dificuldades na construção de alianças da CPT.

Discursivamente Deus é produzido como o lugar da “onipotência do silêncio”. Sendo assim os homens precisam colocar (instituir) nesse lugar uma fala específica. Uma questão de pesquisa que se coloca seria como os homens falam no dizer colocado na voz de Deus?

Num outro trabalho, no qual analisávamos especificamente os mecanismos de enunciação e a estruturação do imaginário do discurso político-religioso da CPT, (Romano, 1992), se ressalta a complexidade dessa questão que se origina na “onipotência do silêncio”, em especial nos conflitos que se travam entre a CPT, o clero e a hierarquia para colocar seu dizer na voz de Deus.

Levantávamos a idéia de que se daria uma tentativa de coletivização da produção de sentido no campo religioso que entra em conflito com o monopólio dominante dessa produção, o qual, em última instância, diz respeito à divisão de papéis entre hierarquia e laicato. Este monopólio junto com o monopólio do sagrado - que implica o acesso exclusivo à verdade - estão na base do carisma religioso.

Assim, considerando a Igreja como um campo de lutas, os conflitos constantes entre a CPT, o clero e a hierarquia podem também ser detectados nos espaços da produção discursiva e do seu reconhecimento. Em princípio, a voz de Deus é ressuscitada ou transferida só à autoridade papal (o Papa pode ser visualizado como uma sorte de encarnação do enunciador primeiro, Deus). Com base no valor básico da hierarquia, todos os demais membros do campo religioso se ordenariam “hierarquicamente” como enunciadores secundários. A intransferibilidade da enunciação e a arbitragem dos conflitos internos são propriedades do discurso da Igreja e definem a estratégia da Igreja-hierarquia desde o ponto de vista da produção discursiva. Essas propriedades desenham um “campo de efeitos”, o qual pode ser descrito em termos do caráter precário da legitimidade do discurso atribuída a qualquer enunciador secundário que se encontra numa posição de inferioridade em relação à Igreja-hierarquia.

Essa característica de legitimidade precária dos enunciadores secundários estaria na base dos constantes conflitos que se manifestam entre as práticas discursivas da CPT com as do clero e/ou com as de outras entidades da Igreja Católica. É uma disputa entre enunciadores secundários para ver quem é que fala, ou melhor, logra falar através de sua boca, a palavra verdadeira do enunciador primeiro, a palavra inquestionável. Mas no caso da CPT o conflito tem adquirido uma dimensão mais ampla já que, freqüentemente, dando-se conta ou não, tem desenvolvido um discurso através do qual pretende diminuir ou até eliminar o papel do enunciador anterior, isto é, da Igreja-hierarquia. Seu discurso assume assim um caráter heterodoxo ao questionar as características básicas do modelo imposto pela ortodoxia do campo: a intransferibilidade e a hierarquia. A resistência a aceitar a sua posição de enunciador secundário, definida no próprio discurso da Igreja-hierarquia, tem dificultado - e diria, impossibilitado - a superação deste tipo de conflito, resultando em soluções de compromisso, parciais e frágeis, dependentes das alianças conjunturais que os agentes da CPT envolvidos pudessem construir - ou atualizar - com setores da Igreja hierárquica de modo a “abafar” ou deslocar os conflitos (Romano, 1992).

c.  Caberia relembrar também, como característica importante para refletir sobre algumas das identidades dos atores da luta pela terra - por exemplo, dos camponeses na busca da terra prometida, dos sem terra na caminhada da evangelização libertadora - , o equilíbrio tenso entre o temporal e o espiritual na conformação do sujeito religioso.

Efetivamente, uma outra característica do discurso religioso da Igreja Católica é que esse discurso está influenciado pela procura, por parte da própria instituição, do equilíbrio tenso entre o eterno e o instante, mantendo a assimetria entre os planos temporal e espiritual (Orlandi, 1983).

A Igreja que fala por meio da voz dos bispos participa dos dois planos: é, ao mesmo tempo, pecadora (institucional) e santa (divina). O peso da participação destes planos - temporal e espiritual - na prática dos seus quadros é diferencial e conflituosa. Os que se concentram no plano temporal sofrem a cobrança que sem a graça de Deus não há salvação. Os que se refugiam no plano espiritual não lembram que a missão principal da Igreja é evangelizar, transformando o mundo.

O conflito entre esses planos também se expressa no que diz respeito ao “sujeito religioso”, aos fiéis. Na religião católica romanizada o “sujeito religioso” está marcado pela submissão, isto é, ele se constitui como aquele que é “falado por Deus”. O discurso divino - eterno, sempre lá - se realiza no sujeito pela sua total adesão. Ele reflete a palavra divina no sentido de espelho, de repetição. Ele não reflete “sobre”; nem sequer pode tomar distância (Orlandi, 1987).

Assim, se no movimento político, as entidades da ala progressista da Igreja, como é o caso da CPT, procuram que o ator se represente cada vez mais como autodeterminante, como cidadão, podendo - e devendo - através da mobilização política, agir contra o governo, no plano espiritual o fiel deve submissão, não pode ir contra a voz de Deus, resultando, conseqüentemente, na despolitização da relação do fiel com a Igreja.

Cabe deixar em aberto algumas outras questões sobre a conformação das identidades dos atores da luta pela terra, dos camponeses na busca da terra prometida, dos sem terra na caminhada da evangelização libertadora. Qual é o princípio orientador da prática religiosa e pastoral na conformação das identidades: o princípio da unidade ou da diferença? Especificamente, como está sendo considerado o sujeito no discurso institucional religioso? (Dias, 1987). Quando o agente da CPT fala há um reconhecimento do outro ou tentativas de apagar o outro no nós institucionalizado?

d.  O equilíbrio tenso entre o temporal e o espiritual, agora vinculado à dimensão profética do discurso religioso, colocaria também pistas para pensar os projetos dos atores da luta pela terra.

A predominância da dimensão profética no discurso implica na tendência de absorção do temporal pelo espiritual. A assimetria entre esses planos, como um tipo de intertextualidade - isto é, de relação de um discurso com outros discursos - é uma condição particular do discurso religioso.

Cabe relembrar que a característica fundamental da predominância da dimensão profética seria a dissimulação de sua relação com o momento histórico como possibilidade mesma de constituir-se. Essa dissimulação dá-se através do seu estilo e forma específicos (por exemplo, no discurso profético, o tempo verbal pretérito perfeito, pelo geral, dá como realizado o futuro), assim como pelo seu conteúdo messiânico (Bellarini e Bressan, 1978).

Na profecia haveria uma diluição dos limites temporais e espaciais. O passado e o futuro passam a se comunicar diretamente, adquirem força cotidiana produzindo um efeito de perda de historicidade. No encontro com a CPT o campesinato será absorvido pelo tempo místico do Reino de Deus, dos sofrimentos do “povo escolhido”. A história da luta pela terra do campesinato brasileiro é reconstituída, principalmente, com um tempo místico, composto de um ou vários momentos fortes (reprodução dos momentos fortes clássicos: o tempo de Moisés, o tempo de Jesus, o tempo dos Apóstolos, o tempo dos mártires da Igreja) e um tempo intersticial, o tempo histórico (Romano, 1992).

A polissemia e a obscuridade da profecia são condições para que as vozes do discurso profético sejam articuladas, sem romper com Deus nem com os acontecimentos reais, através da ilusão da reversibilidade. Assim, no projeto atribuído aos sem terra na caminhada da evangelização libertadora, a articulação entre o religioso (a proposta de Deus), o político (os conflitos da experiência humana) e o jurídico (o acordo: aquele que, instituído pela intermediação do profeta, permite uma “economia do sagrado” através da qual a vontade de Deus e a vontade dos homens buscam constantemente um precário equilíbrio) manifesta - se através da dimensão profética, da dimensão das ameaças e das promessas.

e.  Finalmente, após estas breves notas que procuram apontar para temas e questões mais do que apresentar resultados ou dar respostas, esperamos ter chamado a atenção para a importância de refletir sobre as características próprias do discurso religioso: sua capacidade de sobredeterminção, seu ressurgimento constante, o processo de silenciamento, o conflito entre o monopólio e a coletivização da produção do sentido, o equilíbrio tenso entre o temporal e o espiritual, a predominância da dimensão profética na conformação do sujeito.

A identificação e análise destas características, presentes no duplo processo de “politização” do religioso e “religiosização” do político, que se manifesta no “dizer” da CPT como entidade leiga da Igreja Católica, abrem pistas significativas para o estudo da construção do imaginário da luta pela terra, das identidades dos atores e de seus projetos.

 

Referências bibliográficas

Bellarini, T. e Bressan, G. O profetismo bíblico. Petrópolis, Vozes, 1978.

Bourdieu, Pierre. “Genese et struture du champ religieux”. Revue Francaise de Sociologie, Vol XII, 3, jul-set 1971: 295-394.

__________. O Poder Simbólico. São Paulo, Difel, 1989.

Castro, Selma. “O discurso profético: ressacralização do espaço social”. In: Orlandi, E. org., Palavra, fé e poder, São Paulo, Pontes, 1987: 29-42.

CPT: Documentos, dossiês, boletins e depoimentos diversos.

Dias, Romualdo. “De Deus ao seu Povo”. In: Orlandi, E. (org.), Palavra, fé e poder, São Paulo, Pontes, 1987: 43-52.

Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo, Zahar, 1978.

Grignon , Claude. “Sur les relations entre les transformations du champ religuieux et les transformations de l'espace politique”. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 5, 1977: 3-34.

Orlandi, Eni. A linguagem e seu funcionamento. São Paulo, Brasiliense, 1983.

__________. “Os falsos da forma” In: Orlandi, E. org., Palavra, fé e poder, São Paulo, Pontes, 1987: 11 - 28.

Romano, Jorge O. “Ação política, educação e lutas sociais no campo”. Comunicação apresentada na III Conferência Brasileira de Educação. Ande, Anped e Cedes, Niterói, Rio de Janeiro, 1984.

__________. “Identidade e Política. Representação e construção da identidade política do campesinato”. In: Relações de Trabalho e Relações de Poder. UFCE, Fortaleza, 1986: 194-204.

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__________. “Política e Religião. Igreja Católica e a representação do campesinato”. Comunicação apresentada no XVI Encontro Anual da Anpocs, 1992.


[1] Estamos pensando a “luta pela terra” como uma “idéia-força” na perspectiva de Bourdieu, quando trata sobre o poder que ganham as palavras de ordem - em campos específicos - de fazer e desfazer a realidade através de fazer e desfazer as visões que os atores têm da própria realidade (Bourdieu, 1989).

[2] O poder simbólico seria o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e - deste modo - a ação sobre o mundo, portanto, o próprio mundo. Só se exerce se for reconhecido (Bourdieu, 1989).

[3] Não nos deteremos aqui nesta questão relativa à onipresença da “visão pedagógica” da política que se manifestaria no “campo ideológico da luta pela terra”, já que o tema mereceria uma pesquisa específica. Em trabalho anterior levantamos algumas questões iniciais sobre os pensáveis e impensáveis presentes na confusão recorrente (que se dá no “dizer” e no “fazer” dos mediadores do campesinato) entre “os efeitos pedagógicos da ação política” e “os efeitos políticos da ação pedagógica” (Romano, 1984).

[4] A noção de “efeito de previsão” ou “efeito da teoria” Bourdieu a elabora a partir da afirmação de Marx de que a linguagem é a consciência real prática (Bourdieu, 1989). Para um exemplo da instrumentalização dessa noção na reflexão sobre as lutas sociais no campo brasileiro, ver Romano (1988).

[5]As breves considerações apontadas sobre o discurso religioso são extraídas de Orlandi (1983 e 1987); Castro (1987); Dias (1987); e Bellarini e Bressan (1978).