Estudos Sociedade e Agricultura

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Antonádia Monteiro Borges

O trabalho como liberdade


Estudos Sociedade e Agricultura, 15, abril 2000: 201-204.

Antonádia Monteiro Borges é doutoranda na Universidade de Brasília.


Com ênfase pedagógica clara, Mutações do Trabalho, do historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, pode ser lido por todos que estejam em processo de aprendizagem. Ou seja, dirige-se basicamente a todos nós. No caso de sua aplicação em sala de aula – e esse parece ser o foco principal do autor – mais um ponto positivo se destaca: cada capítulo pode ser lido separadamente, sem que perca sua profundidade e continuidade analítica.

A obra como um todo e cada tópico em particular se destinam à reflexão sobre a economia não como esfera autônoma, mas como uma peça do quebra-cabeça das relações sociais. E esta forma como a economia se imiscui no mundo da vida, ao mesmo tempo em que se “autonomiza”, é trazida aos sentidos do leitor por meio de reflexões sociais e sociológicas profundas acerca de processos sociais determinantes das “mutações” que sofreu o trabalho no último século. Trata-se portanto de um painel reflexivo sobre o capitalismo no tempo presente, a partir do lugar das relações de trabalho neste sistema.

O autor luta com suas palavras contra o esfacelamento. Para ele, a compartimentação faz com que pensemos que a crise do trabalho – e, em última instância, do Estado - seja um problema pessoal e não uma questão social (p.112). É com este intuito que Teixeira da Silva nos desloca pelo mundo, trazendo-nos de volta ao Brasil e rumando mais uma vez por outras terras: nessa viagem compreensiva ele busca fugir da fatalidade alienada tão em voga no senso comum “globalizado”. Seu esforço visa precisamente cobrir lacunas deixadas pelo ensino formal nas escolas – fenômenos que percebemos mesmo nos bancos universitários. Esta má-formação, aponta bem o autor, é intencional: “as políticas de educação insistem na formação massificada, não seletiva, para o trabalho, desacreditando a escola como forma de democratização da sociedade”(p.104).

Acompanhando a evolução das relações de trabalho ao longo do século XX, o autor nos apresenta um processo civilizador em que, a despeito dos neoliberalismos e globalizações, exige dos Estados-Nações ações efetivas para a “[garantia de] melhores condições de trabalho” (p.15). Em suma, o autor não crê que as mudanças históricas sejam universais e inexoráveis. Para ele, mesmo que uma iminente “revolução em direção ao mundo automatizado, do tempo livre e da renda garantida” nos ronde, continuamos a viver o trabalho como uma experiência alienada, com “milhões de pessoas em condições de pobreza absoluta e com as ruas repletas de desvalidos da história” (p.102).

Na esteira desta reflexão, é fundamental retomarmos a distinção feita entre trabalho e emprego: para o autor, mesmo diante de um desemprego massivo, as relações de trabalho continuam marcadas pela hierarquia e, conseqüentemente, pela invisibilidade dos corpos de quem labuta. As máquinas, ou melhor, a tecnologia domina os cenários da produção – geralmente em um plano mais imaginário que factual. Segundo o autor, “o desemprego tecnológico surge [surgia] em um bom momento para mascarar as políticas neoliberais como as únicas possíveis para superar o impasse tecnologia versus emprego”(p.98).

O Brasil é um cenário emblemático neste sentido: vemos nesta terra um Estado de bem-estar que jamais existiu sendo desmontado! Aqui se somam os problemas conjunturais de toda república de bananas transformada em ilha fiscal – devido às políticas de juros altos e recessão - às perturbações estruturais decorrentes da “reestruturação contemporânea do trabalho”(p.70). Esta esquizofrenia moderna, esta globalização da crise, exige uma cruzada de esforços: “é preciso buscar explicações gerais que dêem conta do mesmo fenômeno em todo o mundo” (p.20). Assim, o autor sustenta uma ação simpática: contra a globalização perversa sugere o uso libertário possível mediante a rede mundial de informações.

Somente uma tomada de consciência global pode ser capaz de trazer o capitalismo vivido pelo outro para perto de nosso mundo. É preciso espalhar pelos quatro ventos o modo como o capitalismo nos atinge. Termos pasteurizados, como globalização, por exemplo, não servem para aproximar nada, nem ninguém. Sua função é tão-somente aumentar o fosso das desigualdades e da intolerância, frutos diretos da distância estamental que perdura no mundo dito moderno.

Por isso, faz sentido a retomada feita pelo autor do modo como Estado e trabalho, dois lados de uma dobradiça, se articularam ao longo deste século para a expansão capitalista. E não é gratuito que a atenção principal do autor seja o império norte-americano vis-à-vis as três poderosas nações européias: Alemanha, França e Inglaterra. Ao traçar a ascensão e queda do modelo fordista e, com este, do Estado de bem-estar social, o autor nos faz compreender o desamparo do ser humano na atualidade: “o que fica, para a maioria das pessoas, é a noção de um fim de época, de um fim do mundo, de um fim da história” (p.72).

Se, num primeiro momento, “o fordismo estimulava o estranhamento entre trabalho e trabalhador”, esta alienação foi minimizada por uma sustentação estatal à solidariedade comunitária minada pela fábrica. Alienados por gerações fabris, com a derrocada deste modelo de produção, os trabalhadores (ou trabalhadores que nunca o foram) já não são mais amparados pelo Estado. Pelo contrário, o Estado de providência se mostra mais como um Estado policial, que pune e encarcera.

Como se espera, os Estados Unidos são paradigmáticos também neste aspecto, flexibilizando o trabalho, enfraquecendo os sindicatos, aniquilando imigrantes e outros sujeitos avessos ao mundo wasp (Sigla de White Anglo-Saxon Protestant, isto é, protestantes brancos e anglo-saxônicos). Mais ainda, esse processo é orientado basicamente pela vontade e pelos interesses de uma camada específica, a classe empresarial: “reduzir o peso do Estado e a proteção ao trabalho, deixando fluir livremente as chamadas leis de mercado, é proposta de um setor da sociedade que já se sente maduro e em condições de caminhar sozinho, com sua própria força.” (p. 69-70. Ênfase minha).

Felizmente, com alguma esperança no olhar, para o autor esse processo de exclusão social não se dá sem resistência e luta: são dois lados de uma mesma moeda. Sobretudo quando o despedaçamento atinge “setores de nítida vocação estatal – como escola, hospitais e sanitarismo básico”, o cidadão – convencido por uma república convalescente de que era um cidadão – luta por seus direitos. Lutas reais, de forte conteúdo simbólico, passam a ser travadas entre os que crêem que o Estado e a elite não podem simplesmente se livrar dos trabalhadores quando estes perdem sua plena capacidade produtiva: quando adoecem, envelhecem ou têm filhos, por exemplo. Basta notarmos que uma das maiores chagas apontadas pelos neos de toda espécie é a previdência social (p.84).

As chamadas reformas – do Estado e da previdência – caminham juntas, rumo a um mesmo fim: o descompromisso total. Mas não sem percalços. Além das exigências referentes aos velhos direitos sociais, novas demandas têm tomado força como pauta reivindicatória de recentes movimentos políticos, como questões ambientais, por exemplo. Estas novas demandas se somam às anteriores apontando para os perigos da intolerância frente ao diferente – principalmente se este for refratário ao pensamento hegemônico (o neoliberalismo) e à sua linguagem única (o economês).

Por fim, o autor sugere estar na diversidade de formas de vida social a saída para o terror causado pela ausência de definição do tempo presente. Diversidade esta que devemos buscar em outras sociedades e também em nossa própria, em tempos passados. O historiador nos brinda em vários momentos de seu livro com referências a músicas e filmes que marcam com engenho esse processo dual em nosso tempo, verdadeiras obras de arte voltadas à liberdade.

Com esse conhecimento passaremos a valorizar formas de produção menos voltadas à acumulação, e mais à troca – ou seja, à distribuição de riquezas. Descobriremos que a crise vivida não é de falta de emprego, mas de concentração de capital. A decifração desse falso enigma que nos sufoca cotidianamente é utópica e, por isso mesmo, necessária. Já nos mostrou magistralmente Thorstein Veblen que o comedimento pífio do capitalista se traduz em consumo conspícuo e, em última instância, na miséria da maioria. O que devemos buscar, portanto, são formas intensas de vida, traduzidas em relações de aliança e reciprocidade, enfim, em solidariedade e festa.

Francisco Carlos Teixeira da Silva. Mutações do trabalho. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 1999. 128p. (Coleção Paradidática).