Estudos Sociedade e Agricultura

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Paulo Eduardo Moruzzi Marques & Susana Inez Bleil

A identidade cultural desafia a globalização: o desabafo dos agricultores franceses


Estudos Sociedade e Agricultura, 15, outubro 2000: 158-177.

Resumo: No verão de 1999, os problemas relacionados à segurança alimentar e à taxação pelos EUA de bens tipicamente franceses (como resposta à recusa européia em consumir carne de animais tratados com hormônio) provocaram uma forte resposta dos agricultores franceses. Sua mensagem era um convite aos consumidores a participar de uma luta contra o processo de globalização que não leva em consideração as particularidades da cultura regional e a qualidade dos produtos. As demonstrações foram lideradas pela Confédération Paysanne. Este poderoso sindicato desafiou o produtivo modelo da agricultura moderna. Este texto analisa as estratégias de defesa das identidades culturais, particularmente aquelas relacionadas à agricultura sustentável, e dos alimentos, tendo em vista o processo de globalização.

Palavras-chave: Identidade rural nacional; cultura alimentar; sindicatos rurais; globalização.

Abstract: Cultural identity challenges globalisation: the french farmers response. In the summer of 1999, problems due to food security and to over-taxation of typically French goods, by the USA (as a response to Europe’s refusing to consume hormone treated meat), provoked a strong response  by French farmers. Their message was an invitation to citizen/consumers to participate in the struggle against a globalisation process that does not take into account the particularities of regional cultures and the quality of the products. The demonstrations were led by the Confédération Paysanne. This strong French syndicate challenges the ultra-productive model of modern agriculture. This text analyses strategies in defence of cultural identities, particularly those associated with sustainable agriculture and good food, in the face of the globalisation process.

Key words: National rural identities; Food Culture; Rural Syndicates; Globalisation.

Paulo Eduardo Moruzzi Marques é doutorando na Université Paris 3. Bolsista Capes; Susana I. Bleil é doutoranda na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS).


Introdução

José Bové é um pequeno criador de ovelhas em Montredon du Larzac, Departamento de Aveyron, no sul da França. Filho de pesquisadores agronômicos, ele não serviu o Exército por objeção de consciência. Estudou filosofia em Bordeaux, onde conheceu sua esposa, Alice, estudante de ciências políticas. Após participarem ativamente de um movimento pacifista contra a extensão de um campo militar, instalaram-se na região.

Desde 12 de agosto de 1999, Bové simboliza a resistência dos agricultores franceses contra uma globalização que não considera as particularidades das culturas regionais. Nessa data, um grupo de agricultores da Confédération Paysanne (Confederação Camponesa, CP) desmontou uma loja do McDonald’s, em Millau, cidade próxima à exploração pecuária de Bové. O ato de protesto demonstrava o acúmulo de descontentamento dos agricultores diante da decisão americana, com o apoio da Organização Mundial do Comércio (OMC), de sobretaxar as importações de algumas especialidades francesas, entre elas, o queijo Roquefort, o patê de foie gras e as trufas. De fato, a decisão americana significava uma retaliação ao embargo europeu contra a carne bovina norte-americana. Ao contrário da legislação européia, a prática do uso de hormônios de crescimento nas criações de gado não sofre restrições nos Estados Unidos da América.[1]

Essa manifestação teve um impacto muito forte entre os franceses, pois ocorreu num contexto de graves crises de “segurança alimentar”. Na Europa, a idéia de segurança alimentar era sobretudo relacionada à sua capacidade de auto-abastecimento. Nos anos 90, o termo passou a se definir em relação à qualidade dos alimentos. Depois do surto da “vaca louca”,[2] o debate sobre os problemas decorrentes da produção intensiva de alimentos se acentuou com o caso da contaminação de dioxina nos frangos belgas. No mesmo período, um outro drama relacionado à alimentação eclodiu. Cinqüenta e três crianças foram hospitalizadas após ingerirem Coca-Cola impregnada de produtos químicos.

A decisão americana mostrava antes de tudo uma completa negligência quanto à segurança alimentar e ao princípio de precaução[3] sob o argumento de que o comércio é a fonte maior de criação de riquezas e, portanto, não poderia sofrer restrições. O protesto da Confédération Paysanne foi muito bem planejado. Ora, era necessário um símbolo forte. Entre a instalação de uma fazenda na praia de Deauville – um luxuoso balneário na Normandia – durante o Festival de Cinema Norte-Americano[4] e a ocupação da embaixada dos Estados Unidos em Paris, o alvo escolhido foram as obras de instalação do McDonald’s, no coração da região de produção do Roquefort, o primeiro queijo de denominação controlada e que possui regras precisas de produção a fim de manter uma qualidade inquestionável do produto final.[5]

Para os mentores da manifestação, a rede McDonald’s simboliza, por um lado, a uniformização alimentar – imposta pelos americanos a partir de seu modelo de consumo – e seus efeitos destruidores (entre eles, o envenenamento dos alimentos) e, por outro lado, a banalização da agricultura, cada vez mais industrial (destruidora da agricultura familiar e dos sabores regionais). Esta luta significa, portanto, um combate contra o monopólio, a arrogância, a hegemonia e o conformismo, se expressando na denúncia vigorosa contra a ditadura (diktat, para os franceses) alimentar. O sentido desta mobilização também se opõe contra os aspectos mais gerais do desejo de conquista norte-americano, tanto no cinema, como na música ou no sistema econômico mundial (Madouas, 1999: 24-31).

O ato da Confédération Paysanne contra a lanchonete McDonald’s custou a prisão de cinco de seus militantes, entre os quais Bové. Este foi o único que recusou a pagar a fiança.[6] Sua atitude provocou uma grande onda nacional e internacional de solidariedade. No período de encarceramento de Bové, a causa da Confédération Paysanne foi extremamente debatida na imprensa francesa. As vozes de apoio à causa de José Bové partiam de lideranças políticas de matizes diversos. O presidente francês Jacques Chirac declarava, no dia 2/9/99, que a França não cederia às exigências americanas, pois não seria moralmente possível de questionar o princípio de precaução. No mesmo período, o primeiro ministro Lionel Jospin exprimia suas preocupações. Para esta autoridade, não se pode produzir de forma irresponsável, citando particularmente o caso dos bovinos engordados com o auxílio de hormônios (Politis, 1999b).

José Bové ganhou a simpatia dos franceses.[7] Muito além, estes fatos do verão europeu de 1999 subvertiam o movimento sindical agrícola francês, afinal era o sindicato de esquerda e minoritário que monopolizava a mídia e abria um importante debate na sociedade. A discussão sobre a globalização passava então por negar a mal-bouffe (comida maléfica). No dia 7 de setembro, José Bové ganhava a liberdade após o depósito da fiança judicial feito por um grande leque de organizações, entre elas associações norte-americanas de agricultores. Imediatamente após sua liberação, o líder sindical conclamava os cidadãos para uma efetiva discussão do problema camponês na sociedade francesa (Chanard, 1999).

Bové e a Confédération Paysanne tornam-se, assim, interlocutores fundamentais na rodada do milênio. Este ciclo de negociação da OMC representa um novo momento no qual os interesses dos investidores e dos consumidores-cidadãos voltam a se confrontar.[8] Neste quadro, a Confédération Paysanne e o Attac (Associação pela tributação das transações financeiras em apoio aos cidadãos) promoveram as principais manifestações contra a idéia de que a cultura, a educação, a saúde, enfim tudo, pode se transformar em mercadoria. O insucesso da reunião inaugural, em Seattle, foi aclamado como a primeira vitória de uma democracia planetária. Logo após, a Confédération Paysanne apresentava seu projeto de instalação em Genébra do Observatoire pour les peuples com o objetivo de acompanhar as novas iniciativas da OMC (Helou, 1999).

A força cada vez maior da Confédération Paysanne sugere certas indagações: por que na França um movimento desta natureza pode se contrapor vigorosamente ao processo de liberalização econômica globalizante? Qual o papel das tradições agrárias e da cultura alimentar na formulação das propostas da Confédération Paysanne e como isso se reflete na sociedade? As linhas a seguir procuram examinar alguns pontos destas questões.

 

A origem da contestação camponesa ao modelo ultraprodutivista

A Confédération Paysanne é uma herdeira de esquerda da Jeneusse Agricole Catholique (Juventude Agrícola Católica, JAC).[9] Esta última foi responsável por uma mudança radical nas instâncias de representação da agricultura francesa. De fato, a modernização da agricultura teve nas idéias da JAC seus alicerces. Segundo Marcel Marloie (1994), o papel da JAC na transformação do sindicalismo e nas mudanças da agricultura em co-gestão com o Estado permitiu que a França tenha sido um dos raros países onde os agricultores puderam participar da definição e execução das políticas que lhes diziam respeito. Apesar de sua origem católica, a JAC rompeu com o tradicionalismo cristão e criou uma filosofia cujos valores se fundamentaram na modernidade, no laicismo e na democracia.

No pós-guerra, os objetivos a favor da segurança alimentar impulsionaram o estabelecimento de um arsenal de medidas a fim de garantir, sobretudo, o auto-abastecimento de alimentos. A França era o país da Europa que possuía o maior contingente de camponeses. Na visão da direita, estes eram considerados como fonte de estabilidade política contra um movimento operário cada vez mais ofensivo. Por outro lado, a esquerda francesa sempre organizou seu discurso e sua prática sobre a idéia de que a exploração familiar deveria ser priorizada pelas políticas agrícolas.

Nesse ambiente e impregnada de uma ideologia produtivista, a JAC julgava que a exploração familiar deveria sofrer um processo de adaptação aos novos tempos. Seu projeto de “reformar as estruturas” foi apresentado num momento particularmente favorável, permitindo assim que suas idéias se tornassem rapidamente hegemônicas. Os jacistas revitalizaram inicialmente a Confédération Nationale de la Jeunesse Agricole (Confederação Nacional da Juventude Agrícola, CNJA) para, em seguida, comandar toda a estrutura sindical. A trajetória de uma das suas principais lideranças pode caracterizar esta evolução. Em 1964, Michel Debatisse acedeu ao posto de secretário-geral adjunto da Fédération National des Syndicats des Exploitants Agricoles (FNSEA), a potente organização sindical francesa. Quatro anos mais tarde, ele assumia o cargo de secretário-geral e, em 1972, chegava à sua presidência.

A “reforma das estruturas” previa que os agricultores considerados os mais aptos para se modernizar deveriam receber todo o apoio para obterem uma superfície agrícola suficientemente ampla[10] e para equiparem seu sistema de produção. Os mais velhos deveriam ceder rapidamente lugar aos jovens. Para isto, um sistema de aponsentadoria precoce foi criado, permitindo a liberação de muitas áreas agrícolas.[11] De outro lado, a criação de instrumentos de regulação do acesso à terra garantiu que os jovens agricultores tivessem prioridade na sua obtenção.[12] Foi estabelecido um modelo para a exploração moderna, na qual a noção de duas unidades de trabalho-homem (UTH) correspondia à situação de produção ideal. De fato, este padrão era representado pela capacidade de trabalho de um casal numa empresa de médio porte, inteiramente mecanizada (Gervais, Jollivet e Tavernier, 1977: 632-650).

A agricultura francesa evoluiu de forma impressionante. A criação da Política Agrícola Comum (PAC), em 1963, impulsionou ainda mais a modernização. A PAC, primeira política elaborada pela Comunidade Econômica Européia, foi um potente instrumento de unificação do velho continente, expressando a vontade de inserir a agricultura na economia moderna. O objetivo de auto-abastecimento da França e da Europa em gêneros alimentares foi alcançado em poucos anos. Além disto, os franceses tornaram-se em seguida o segundo maior exportador agrícola mundial (Loyat e Petit, 1999).

No entanto, se no início parecia haver um consenso entre os agricultores, o favorecimento sobretudo das grandes explorações produtoras de cereais e a corrida produtivista incessante (com graves implicações sociais e ecológicas) fizeram com que um número crescente de agricultores passasse a se contrapor ao modelo idealizado.

As contestações de 68 parecem ter estimulado os primeiros conflitos públicos no interior da estrutura sindical majoritária. Poucos anos mais tarde, uma parte importante da corrente oposicionista, cuja principal liderança era Lambert,[13] decide deixar a FNSEA e constituir o movimento dos paysans-travailleurs (camponeses-trabalhadores).

É em 1984 que inicia a formação da Confédération Paysanne, oficializada em 1987 pela fusão dos paysans-travailleurs com a Fédération National des Syndicats Paysans. Esta última, fundada em 1982, era outra corrente divergente da FNSEA, próxima ao Partido Socialista. Para a cientista política Hélène Delorme (1999), a FNSEA mostrou-se incapaz, depois dos anos 60, de responder às críticas à agricultura moderna. Além disto, a direção desta federação procurou isolar as correntes internas contestatórias, provocando a expulsão destas do seio da FNSEA. Ainda hoje, percebe-se que a FNSEA não reconhece o peso político da Confédération Paysanne.[14]

 

Identidade camponesa como fonte de resistência

A Confédération Paysanne representa uma forte resistência às transformações da vida humana sob a glorificação da sociedade de consumo, na qual as necessidades de valorização do capital definem, antes de tudo, todas a escolhas. A busca de uma nova identidade paysanne (camponesa) encoraja vigorosamente sua luta.

Vale lembrar que a noção paysan (camponês) é associada ao atraso e à ignorância. Pode mesmo se dizer que todo o processo de modernização da agricultura francesa foi amplamente baseado na superação da condição de camponês. Algumas obras referenciais sobre o problema sugerem exatamente esta intenção. Títulos como O fim do camponês (Mendras, 1991) ou O fim da França camponesa, este utilizado como subtítulo do livro História da França rural  (Duby e Wallon, 1977), no volume que trata do século XX, ilustram bem a força dessa idéia.

Portanto, poderia parecer paradoxal que um movimento social reivindicasse um estatuto que pertencera ao passado e que, de certa forma, significou mesmo uma situação de miséria e de opressão. No entanto, a potência deste movimento revela a intensa ligação que ainda há entre o passado e o presente na França. De fato, estamos diante da refundação de uma idéia que aporta, sem dúvida, valores compatíveis com a modernização da sociedade, mas que aponta os inquietantes perigos do caminho atual.

A observação de alguns documentos da Confédération Paysanne pode iluminar esta análise. Na sua carta de princípios,[15] esta organização sindical julga que a função do agricultor é a de produzir, de forma combinada, bens materiais (alimentos, fibras, energia etc.) e não materiais (paisagens, território, meio ambiente). Os alimentos produzidos devem ter uma qualidade gustativa e sanitária incontestável. Quanto à produção de bens não materiais, trata-se de atividades ligadas à qualidade de vida e que, portanto, interessam também a toda a sociedade. A Confédération Paysanne recusa a idéia de que se possa pensar a agricultura com duas velocidades. De um lado, uma agricultura voltada para a exportação e, de outro lado, uma pequena agricultura com a função de conservar o espaço rural. Na sua proposição, a agricultura camponesa tem todos os requisitos para preencher, ao mesmo tempo, três dimensões essenciais para a sociedade. Uma dimensão social, relacionada com a manutenção de empregos[16] e com a solidariedade entre camponeses de todo o mundo.[17] Uma dimensão econômica, na qual a produção agrícola deve se mostrar eficaz principalmente por agregar valor, permitindo que os volumes produzidos não precisem ser superabundantes. Com isto, garantia-se a manutenção de um bom número de agricultores em atividade. Estas características de produção são indissociáveis de uma produção de qualidade, que é a terceira dimensão deste conjunto, na qual o respeito aos consumidores e à natureza é fundamental. Os agricultores deveriam se obrigar a responder pela qualidade dos alimentos, pelo equilíbrio ecológico, pela preservação das paisagens e pela biodiversidade. Aqui estão talvez novas atividades potenciais dos agricultores, cujo debate em torno da idéia da multifuncionalidade da agricultura demonstra sua importância (Cazella e Roux, 1999: 46-69).

Para a Confédération Paysanne, a política agrícola tem um papel essencial para generalizar a opção camponesa, na qual um máximo de agricultores repartidos sobre todo o território viveriam decentemente de sua profissão, produzindo numa exploração de dimensão humana uma alimentação sã e de qualidade.

Entre as categorias que formam a Confédération Paysanne encontram-se os agricultores pluriativos,[18] os instalados fora da norma,[19] os neo-rurais,[20] os produtores biológicos e fermiers (de produtos tradicionais regionais) e mesmo os produtores intensivos insatisfeitos com a corrida incessante e perversa pela produtividade.

A recusa do modelo produtivista por muitos jovens agricultores tem impulsionado muito o crescimento da Confédération Paysanne. O exemplo de Jean-Luc Gaugain, criador de vacas normandas no departamento de Calvados, Normandia, ilustra o perfil destes novos militantes.[21] Ele é um dos principais articuladores da implantação da Confédération Paysanne na região. Este é um processo recente pois, ainda no início de 1999, a organização não existia em Calvados. De fato, um pequeno grupo de agricultores insatisfeitos com a confederação majoritária (FNSEA) passou a ver na Confédération Paysanne uma alternativa para sua representação, constituindo uma seção regional.

Gaugain foi cooperante francês no Brasil, atuando no Instituto de Desenvolvimento e Ação Comunitária (Idaco), sobretudo no apoio técnico e organizativo aos assentamentos de reforma agrária do Rio de Janeiro. Hoje, de volta à sua região natal, ele assumiu a responsabilidade dos 74 ha da exploração agropecuária de sua família. A criação de vacas normandas representa uma alternativa ao padrão de produção de leite. Há 50 anos, esta raça predominava na região (80% dos bovinos). Todavia, a corrida produtivista priorizou a introdução da raça holandesa em detrimento da normanda.[22] Jean-Luc Gaugain se inspira na preservação da tradição da natureza e na busca da qualidade alimentar para justificar a continuidade de seu trabalho com as vacas normandas. Estas idéias não são, no entanto, incompatíveis com o fato de sua exploração ser inteiramente modernizada. Sua performance econômica é uma das melhores da região graças ao seu reduzido custo de produção.[23] Sua exploração torna-se cada vez mais um modelo que emprega racionalmente as potencialidades naturais disponíveis.[24]

Gaugain utiliza um sistema no qual o aproveitamento das pastagens naturais, base da alimentação de seu plantel animal, é muito eficaz. Sua prioridade, portanto, é a utilização máxima das pastagens. Dessa forma, defende a paisagem, a qualidade da alimentação e o bem-estar dos animais. Nos três meses de inverno rigoroso, suas vacas alimentam-se sobretudo com feno. Os alimentos fermentados não são utilizados. Além disso, há um enorme cuidado com a escolha dos alimentos produzidos fora de sua exploração. Por essa razão, seu leite tem sido cada vez mais valorizado pela indústria queijeira tradicional da região. Para preservar todo o sabor característico de um queijo como o Pont l’Evêque,[25] o leite deve manter todas as suas qualidades organolépticas. A silagem de milho, que é o alimento mais comum da pecuária regional, altera o gosto característico do leite. Por outro lado, o leite das vacas de raça normanda, criadas em pastagens naturais, realça o sabor particular do produto final.

A luta de Jean-Luc Gaugain se orienta então para a valorização da produção sobre bases mais ecológicas. Para ele, a política agrícola comum (PAC)[26] e as territoriais francesas[27] ainda não valorizam suficientemente as explorações que desempenham um papel favorável ao equilíbrio social e à preservação ambiental. Sua intervenção ocorre também junto ao grupo de fornecedores do Pont l’Eveque, que negocia atualmente com a direção da queijaria a introdução de prêmios para aqueles que criam seus animais do modo mais tradicional e ecológico.

A partir da idéia de que o meio agrícola não pode ser visto como uma máquina industrial de produção, Jean-Luc Gaugain considera que a Confédération Paysanne preenche os desejos dos agricultores em relação, de um lado, à representação do setor excluido das políticas agrícolas produtivistas e, de outro, à busca de uma alternativa viável economicamente para produzir alimentos sãos, saborosos e com qualidade nutricional.

 

As raízes históricas da gastronomia francesa[28]

A França é reconhecida em todo o mundo por sua tradição gastronômica. Os chefs franceses trabalham nos mais distantes pontos do planeta, criando e reproduzindo uma alimentação-arte, resultado de uma prática secular. Por meio da história agroalimentar francesa é possível compreender o que significa “comer” na França e como essa visão sobre a alimentação se tornou um elemento fundamental da identidade nacional.[29] Nesse país, talvez como em nenhum outro desenvolvido, as raízes rurais ainda estão muito presentes. Ao comprar um alimento, o consumidor quer ver revelados os ingredientes, o modo como foi produzido e a origem do produto. O rural, representado pelos diferentes territórios, guarda essa missão de manter a tradição e a qualidade dos produtos.[30] Os camponeses são vistos como verdadeiros “jardineiros”, pois eles são responsáveis pela arquitetura da paisagem e pela manutenção de uma foma de vida. A organização deste jardim é considerada uma arte, na medida em que preserva a harmonia com a natureza (Noudin et Villers, 1996: 285). Impressiona, aos estrangeiros, como a terra e tudo o que ela evoca fazem parte até do cotidiano urbano, ou seja, pode-se dizer que a alma do francês é eminentemente rural.[31] Pesquisa recente revela que 63% da população urbana diz desejar viver no meio rural.[32]

A visão de mundo na qual a natureza e o alimento estão em comunhão requer uma produção industrial que não rompa com este equilíbrio. Em outras palavras, para que os produtos encontrem a preferência do consumidor é necessário a indicação de sua história, que passa pelo território, pela raça do animal ou pela forma tradicional de fabricação e de criação dos mesmos (os exemplos mais típicos são os vinhos, os queijos e os embutidos). Os vinhos de origem controlada (Appellation d’origine controléeAOC) ilustram esta idéia. Esta invenção francesa (AOC) nasceu da convicção dos profissionais do setor na qual o prazer de degustar um vinho está, em grande parte, no conhecimento do território onde as vinhas amadureceram e onde o viticultor expressou toda a sua arte de produção (antes de ser um comércio, qualquer atividade alimentar continua sendo uma arte). Assim, segundo os produtores de vinho, esta informação é essencial pois permite à imaginação do consumidor um dado essencial para que a degustação se faça em sua plenitude.[33]

Em vários países da Europa, e na França em particular, ainda existe nas pessoas o desejo generalizado de cultivar sua própria horta. Nas cidades da periferia de Paris existem extensas áreas divididas entre os habitantes. Antes de ser um trabalho, esta atividade é um lazer, tendo como valores a autonomia, a cordialidade e a gastronomia (Prédine, 1998: 7). A prática do autoconsumo simboliza também o controle sobre o produto.

Para Claude Fischler, diretor de pesquisa do CNRS,[34] a questão alimentar está claramente colocada no slogan “Eu sou o que eu como”. Na medida em que o consumidor passa a não reconhecer mais o que ingere, ele perde progressivamente a referência de quem é. Contra esta tendência, o francês tem lutado para criar as mais diferentes formas para assegurar seu consumo. Os produtos são identificados por meio de diferentes selos que comprovam, cada vez com mais detalhes, sua qualidade.[35]

Na França, existe um discurso consensual quanto à necessidade de comer não apenas para saciar a fome mas, sobretudo, para dar prazer ao paladar.[36] De fato, desde a infância, na escola e em inúmeros eventos culturais, as crianças são expostas a esta visão de mundo e são iniciadas no aprendizado do gosto. Isso porque se entende, na França, que o gosto é, não apenas um dom, mas também uma arte que se deve aprender, ao degustar os mais diferentes sabores. Assim, percebe-se uma política de valorização e difusão do conhecimento das diferentes formas de preparar os alimentos e das boas maneiras à mesa.

Quais foram as condições históricas que possibilitaram o nascimento e a perpetuação, na França, dessa arte do comer bem? Os autores diferem quanto à data exata do surgimento desse fenômeno. Para Fernand Braudel, essa preocupação já pode ser observada no século XVI. Já Brillat-Savarin considera que é somente no fim de século XVIII que se alcança, em todas as refeições, a conjugação da ordem com a limpeza e a elegância (Moulin e Michel, 1998: 41). De qualquer forma, existe um momento, que parece ser a segunda metade do século XVII, no qual as preferências alimentares mudam completamente.[37] Para Jean-François Revel, trata-se de uma revolução na história do gosto. Assim, se na Idade Média as refeições, nos castelos, eram caracterizadas pela quantidade e pelo espetáculo dos pratos (as aves eram servidas ornadas em suas plumas e mesmo os grandes animais eram servidos inteiros, deleitando os convivas com as surpresas visuais), esta forma alegórica de perceber o alimento vai dar lugar a preocupações no que se refere à qualidade.

A partir de então, as escolhas alimentares vão estar direcionadas, antes de tudo, pelo gosto. Os detalhes, a complexidade dos procedimentos e a precisão serão a base dessa nova ciência: “A qualidade mais importante do cozinheiro é a exatidão (…)” (Revel, 1982: 12). Ao contrário dos cozinheiros da Idade Média, que utilizavam temperos intempestivamente para mascarar o gosto particular dos alimentos (às vezes, em adiantado estado de decomposição), a tônica deste momento é valorizar o gosto natural dos produtos.

No fim do século XVIII, acontece uma nova revolução dos costumes. Surgem os primeiros restaurantes, e com eles, uma extensa literatura de guias e críticas gastronômicas que vai influenciar intensamente os hábitos culinários. Assim, a partir do século XIX, ir ao restaurante representa comer melhor do que se poderia fazer em sua própria casa e não um último recurso como, por exemplo, no caso de uma viagem. Revel (1995: 224) descreve duas características fundamentais dos restaurantes quando comparados aos cabarés, seus precursores “(…) De um lado, a limpeza e mesmo o luxo da decoração e, de outro, seu papel fundamental em levar a grande cozinha para o público em geral” (idem).

O surgimento dessa cozinha profissional e comercial, dirigida por homens, os chefs de cozinhas, proporcionará uma concorrência crescente entre os estabelecimentos, em que o mais importânte é o talento. O cozinheiro profissional depende, para enriquecer e ficar famoso, do número de clientes dispostos a pagar pelo seu trabalho. Desta forma, atinge o mesmo nível de qualquer outro profissional da criação, seja pintor, ator ou músico (Revel, 1982: 12).

Para esses cozinheiros conseguirem um resultado excelente era necessário (e ainda é) um controle de qualidade rigoroso. De fato, a história da gastronomia caminhou sobre dois eixos complementares.

De um lado, existia a cozinha popular e doméstica, mantida durante séculos pelos camponeses e transmitida oralmente de pai para filho. A sua matéria-prima vinha das hortas familiares, o que possibilitava uma variedade e uma abundância notáveis. Ora, esta cozinha popular é reconhecida até hoje pela sua riqueza e diversidade, assim que pela sua autonomia em relação à cozinha dos castelos. Ela tem estado, fundamentalmente, “ligada ao território (terroir) e explora os produtos da região e das estações em estreita ligação com a natureza. Ela tem sido também a perpetuação de um saber (savoir faire) ancestral, transmitido de uma forma inconsciente, de imitação e de hábitos. Além disso, ela tem, até hoje, uma forma de cocção lenta e associada a alguns instrumentos e recipientes fixados pela tradição”(Revel, 1995: 36).

De outro lado, como fonte inspiradora, existia a cozinha erudita (savante) e que esteve sempre situada nas classes ricas de todas as épocas. Esta mesa baseou-se na invenção, na renovação e na experiência. Ora, o que importa revelar é que esta prática de experiências teria sido quase impossível se não houvesse, já na base, uma cozinha tradicional, saborosa e variada.[38] A história da cozinha na Europa continental, que percorreu um trajeto entre o popular e o erudito, permite dizer que o bom gosto e a procura de sabores não são privilégios dos ricos.[39]

 

Conclusão: os valores camponeses e a defesa da cultura alimentar

As profundas raízes agrícolas e a tradição alimentar francesa favorecem a união entre as preocupações dos camponeses e aquelas dos consumidores. A idéia do agricultor-jardineiro, aquele que protege a paisagem e um modo de vida equilibrado do ponto de vista social e ambiental, está profundamente presente em todos os cidadãos, sejam urbanos ou rurais. Os movimentos recentes mostram o potencial de insatisfação contra uma lógica que destrói esta cultura agroalimentar.

Neste contexto, a Confédération Paysanne busca a reformulação da noção de paysan para conduzir sua estratégia de contestação ao modelo produtivista. Tradição e modernidade, regionalismo e internacionalismo se associam para apontar novas perspectivas. Sua ação, que se pretende não corporativa, galvaniza as aspirações mais profundas dos consumidores urbanos. A base de sua argumentação consiste no retorno à política, a fim de evitar que o mercado seja o único meio de definição das relações entre os homens. Deste fato, um caso de ordem econômica, como as imposições alfandegárias americanas, pode se transformar numa luta política de defesa cultural e ecológica.

Por outro lado, as crises recentes de segurança alimentar criam um ambiente propício para o debate de alternativas quanto ao modelo de organização produtivista e industrial da agricultura. A idéia de que na mesa se encontra o resultado da produção agrícola (para o melhor ou para o pior) estimula os cidadãos a expressarem suas angústias. Contra a mal-bouffe unem-se os consumidores e os agricultores.

Além disso, na França, a cultura (e, neste caso específico, a cultura alimentar) possui um lugar destacado no desenvolvimento histórico.[40] A cultura não é um produto igual aos demais. Ela é uma maneira de perceber e de se integrar ao mundo. Ela é um tecido de experiências e de interpretações da vida do qual cada sociedade humana tem necessidade para se compreender. Por meio da defesa da gastronomia, reforça-se a idéia que a alimentação é antes de tudo um ato social e cultural, que não pode ser visualizado unicamente em seu aspecto mais elementar, ou seja, a satisfação das necessidades biológicas. Dessa visão, o prazer do paladar é um direito e um dever de todo cidadão. Portanto, alimentar-se bem é um exercício de cidadania do francês. Desta forma, o consumidor não pode ser esquecido quando as decisões lhe tocam diretamente. Assim, a criação da imagem de um consumidor-cidadão pode indicar um novo contrato, uma nova redistribuição de papéis (Paillotin e Rousset, 1999: 15).

As ações de José Bové e da Confédération paysanne impulsionam uma reação francesa de defesa cultural. É assim que ela se desenvolve na França, a partir de uma mobilização camponesa, como uma concretização da idéia do “direito à diversidade”, que ocupa o lugar da “exceção francesa”. No debate internacional, observa-se o abandono da posição defensiva ante o pensamento único e o neoliberalismo, passando-se a reivindicar espaços para todas as diferenças culturais.

 

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Notas


[1] Os efeitos desse produto no homem não são claros. Existem suspeitas de que essa prática possa provocar câncer e causar problemas hormonais.

[2] Desde março de 1996, os indícios científicos de que a encefalopatia espongiforme bovina (ESB) é transmissível ao homem são cada vez mais evidentes (Fischler, 1998: 45-56). A doença é uma conseqüência da extrema intensificação da produção animal em nome da qual a rentabilidade precedeu à qualidade. O uso de alimentos de origem animal para os herbívoros é, no mínimo, contraditório (Paillotin e Rousset, 1999: 11).

[3] A França tem evocado constatemente este princípio para garantir seu padrão interno de qualidade alimentar. 

[4] Manifestação que também se realizou em setembro de 1999.

[5] A produção do queijo Roquefort reúne 2.500 criadores de ovelhas. Desde 1925, possui um estatuto de controle de denominação (mas já em 1411, a Carta Real de Charles VI conferia aos habitantes da pequena cidade de Roquefort o monopólio da produção do queijo). O novo decreto de denominação de origem controlada (Appellation d’Origine Contrôlée, AOC) estipula que as ovelhas devem ser criadas à base de forragem e de cereais provenientes, ao menos na sua terça parte, da região geográfica de produção. A utilização dos pastos é obrigatória e cotidiana. Desde julho de 1999, os produtores estão proibidos de utilizar gorduras animais e alimentos transgênicos. De fato, a sobretaxação da importação do Roquefort pelos americanos não implicava enormes prejuízos para os produtores. O volume de produção anual deste queijo gira em torno de 18.000 toneladas (com uma movimentação de 2 bilhões de francos), dos quais 444 toneladas (30 milhões de francos) destinam-se aos Estados Unidos (Politis, 1999a). Nota-se, portanto, que a escolha foi antes de tudo simbólica.

[6] Na verdade, o seu caso foi dissociado daquele de seus companheiros, devido aos seus antecedentes. Desta forma, o valor fixado de sua fiança era mais elevado. Na sua biografia, consta a militância de causas ecológicas, antimilitaristas e antinucleares. Sua fixação no Larzac, em 1974, foi fruto da conquista de terras por um grande movimento ecologista que impediu a expansão de um campo militar. Ele e sua mulher Alice ocuparam um terreno sem água e sem eletricidade. Em 1981, François Mitterrand concedeu estas terras aos seus ocupantes. Além disto, Bové participou ativamente de vários protestos pelo reconhecimento da Confédération Paysanne. Em 1995, estava no Pacífico, junto com o Greenpeace, para protestar contra o retorno dos testes nucleares. Três anos mais tarde, foi preso e condenado por destruir sementes de milho transgênico da multinacional suiça Novartis. Por seus atos, Bové é também conhecido como Robin Hood e Asterix, o invencível gaulês (Politis, 1999a).

[7] No dia 11 de setembro de 1999, a revista Figaro Magazine divulgou uma pesquisa de opinião na qual 81% dos franceses aprovavam as ações de Bové. 

[8] De fato, após a Cúpula Mundial de Segurança Alimentar, em Roma, iniciou-se um movimento inédito da sociedade civil para influenciar as decisões concernentes ao comércio mundial. Neste sentido, as dificuldades de implantação do Acordo Mundial sobre o Investimento (AMI) ilustram o poder desta mobilização. Entre as várias redes da sociedade civil, pode-se destacar o Fórum Global sobre a Segurança Alimentar, coordenado pela AGORA (Associação para Projetos de Combate à Fome), em Brasília. 

[9] Marcel Marloie cita uma estimativa na qual 75% dos dirigentes das duas principais organizações dos agricultores (Fédération Nationale des Exploitants Agricoles – FNSEA, e a Confédération Paysanne) foram formados no interior da JAC. 

[10] A partir de 1968, a superfície mínima de instalação tornou-se um importante elemento da política agrícola. Toda exploração que não tivesse 15,40 ha estava condenada ao desaparecimento devido à impossibilidade de acesso às facilidades dos empréstimos do Crédito Agrícola. 

[11] A instituição, em 1962, da indenização vitalícia de partida, Indemnité Viagère de Départ (IVD), tinha este objetivo.

[12] Destacam-se aqui as Sociedades de Organização Fundiária e dos Estabelecimentos Rurais, Sociétés d’Aménagement Foncier et d’Etablissement Rural (SAFER). Tratam-se de sociedades anônimas de caráter semipúblico que dispunham do direito prioritário para a aquisição de terras agrícolas. As superfícies adquiridas, sem fins lucrativos, deveriam ser vendidas aos agricultores num prazo de cinco anos. Seu funcionamento, ao impor a transparência nas transações dos patrimônios fundiários, moralizou o mercado imobiliário rural (Servolin, 1985: 202-219). 

[13] B. Lambert (1970) é um agricultor socialista formado pela JAC. Seu livro Les paysans dans la lutte de classes é uma referência importante neste debate. 

[14] Julgada de direita, a FNSEA não aceita a definição de paysan, pois a agricultura moderna exigiria agricultores profissionais. Ela recusa também as iniciativas voltadas para se produzir menos em favor da qualidade. 

[15] « Agriculture paysanne: une agriculture au service de la société », página WEB da Confédération Paysanne, http://www.confederationpaysanne.fr.

[16] O desemprego tem sido considerado o principal problema social europeu. As iniciativas voltadas para a criação de empregos aparecem como prioridades do governo do primeiro ministro Lionel Jospin. Neste sentido, as ações mais notáveis são aquelas trazidas pela introdução das 35 horas de trabalho semanal e pela criação de postos de trabalho para os jovens. Esta última apresenta mudanças consideráveis para o desenvolvimento rural. Por exemplo, o programa “Novos serviços, novos empregos” se revela muito interessante. Três categorias de empregos (principalmente no meio associativo) podem ser distinguidas neste quadro: 1) aqueles ligados à proteção e à valorização do patrimônio natural; 2) aqueles ligados à comunicação com o público, à pedagogia e à sensibilização dos parceiros locais; 3) aqueles ligados ao desenvolvimento de iniciativas benéficas ao meio ambiente no setor agrícola ou na montagem de projetos inovadores em matéria de prevenção de poluição ou de tratamento de resíduos. O Estado contribui durante cinco anos para a consolidação da nova atividade. A perenização do emprego dependerá, segundo a lógica do projeto, da criatividade dos implicados e de uma verdadeira necessidade socioambiental (Froidefond, 1999). 

[17] Em termos internacionais, a Confédération Paysanne é filiada à CPE (Confédération Paysanne Européenne) e à Via Campesina.

[18] Na verdade, o modelo ideal de produção agrícola, acima citado, se concretizou apenas parcialmente. As mulheres desempenham um papel cada vez menor na produção agrícola e mesmo os homens, responsáveis pelas menores unidades de produção, dedicam-se progressivamente a outras atividades, fora da exploração. Em 1995, 38% do conjunto das explorações francesas eram consideradas como a tempo parcial (Charvet, 1997: 31-39). De fato, a pluriatividade é uma estratégia econômica de reprodução da agricultura familiar, cuja lógica é contestada pela Confédération Paysanne por não romper com o modelo produtivista. Ela difere essencialmente da idéia de multifuncionalidade, que procura sobretudo valorizar as atividades dos agricultores em suas unidades de produção. 

[19] Estes agricultores representam mais de 40% das novas instalações rurais na França (das quais, 10% não são agrícolas). Estas explorações não se beneficiam do apoio público por razões diversas, como a reduzida dimensão da área agrícola ou o desrespeito às normas de formação exigidas. No entanto, a maior parte deste grupo responde às expectativas da política territorial francesa, por exemplo quanto à produção com alto valor agregado, à criação de empregos e à atenção com as questões ambientais. A Confédération Paysanne, que demonstra muita sensibilidade com este problema, propõe o debate sobre a instalação progressiva deste contingente (Courdille, 1999).

[20] Este é o grupo mais importante da Confédération Paysanne, aproximadamente 5.000 associados (35% do total). Estes agricultores têm origem fora da agricultura e, portanto, seriam mais sensíveis aos problemas gerais da sociedade. A grande maioria vem de classes médias e altas, predominando professores, estudantes e agentes sociais. Normalmente, são originários de Paris e das grandes aglomerações francesas. A presença dos neo-rurais é um dos fatores importantes para o movimento que Bernard Kaiser (1990) denominou como o renascimento rural. José Bové ilustra bem o perfil deste grupo. 

[21] As informações relativas àquele jovem agricultor foram obtidas numa entrevista realizada no dia 3 de novembro de 1999. 

[22] Outras raças desapareceram da paisagem normanda. Segundo um relatório da FAO, apresentado em outubro de 1999 à Comissão Européia, no velho continente, aproximadamente 27% das raças de mamíferos domésticos (entre as 2.238 raças domésticas recenseadas) estão ameaçadas de desaparecimento. De forma evidente, a aceleração do fenômeno coincide com a especialização e modernização das explorações agrícolas. Estas possíveis extinções implicariam também a perda de uma formidável variedade genética de raças resistentes aos parasitas e às doenças. Seria o fim de uma reserva insubstituível de genes. Neste quadro catastrófico, as Appellations d’Origine Contrôlées (AOC) são vistas com muita simpatia, pois, entre as exigências de produção, impõem-se a manutenção de certas raças locais para a obtenção de produtos lacticínios tradicionais (Rossin, 1999).

[23] Seu resultado ocupa a terceira melhor performance entre as criações regionais. 

[24] Além das vacas normandas, Jean-Luc Gaugain complementa as atividades pecuárias com a produção de maçã para a confecção artesanal da cidra e da aguardente Calvados (outros produtos tradicionais da região). 

[25] Denominação de origem controlada (appellation d’origine contrôlée, AOC) de um dos queijos mais reconhecidos e apreciados da região, para o qual Gaugain fornece seu produto.

[26] Existe uma grande frustração, entre aqueles que defendem a mudança do modelo produtivista, quanto aos acordos da última rodada de negociação da PAC, que é conhecida como Agenda 2000. Apesar da introdução de novos instrumentos favoráveis ao desenvolvimento rural e ao meio ambiente (como a modulação das subvenções e a introdução da noção multifuncionalidade da agricultura), há ainda um excesso de subsídios aos grandes cerealicultores intensivos e à exportação (Solagral, 1999). 

[27] De fato, os Contratos Territoriais de Exploração (CTE) são algo novo no contexto das políticas nacionais francesas. Estes contratos são financiados pela redistribuição dos recursos da PAC em função do mecanismo da modulação das subvenções aos agricultores. Este mecanismo permite, na esfera nacional, a reorientação de até 20% das subvenções diretas às maiores explorações. Com isto, os CTEs visam favorecer as zonas menos desenvolvidas, a preservação da paisagem, a conservação ambiental, a criação de empregos rurais e a proteção das explorações familiares marginalizadas mediante a repartição mais equilibrada das subvenções públicas (Goguel, 1999). Os primeiros CTEs foram assinados em novembro de 1999, mas ainda representam valores insignificantes.

[28] Para uma comparação entre as culturas alimentares na França e no Brasil, ver Susana Inez Bleil (1998: 37-58).

[29] Em 1825, Brillat Savarin (1982: 19) lançou Physiologie du goût que torna-se um clássico do gênero. Entre as inúmeras máximas do autor (que ele propõe como básicas à ciência), podem ser citadas estas particularmente reveladoras do sentimento francês no que se refere a sua alimentação: “Diga-me o que você come e eu te direi quem você é”; “O destino das nações depende da maneira como estas se alimentam”; “Aquele que recebe seus amigos e não dá nenhuma atenção pessoal à alimentação a estes destinada não é digno de ter amigos”. 

[30] É interessante notar que a palavra paysan tem o mesmo radical daquela que designa o país, pays (território). Ou seja, o paysan é aquele que representa a tradição mais autêntica, que possui uma estreita ligação com a idéia de nação. 

[31] Segundo Guy Paillotin (1999: 21), ex-presitente do INRA, Instituto Nacional de Pesquisa Científica, e Dominique Rousset, jornalista, “através de sua origem e de suas tradições, a França tem até hoje o sentimento de ser agrícola”. 

[32] Publicada no livro de Bertrand Hervieu e Jean Viard (1996: 16). Aliás, esta obra foi feita com o objetivo de compreender a atração do francês pelo campo. 

[33] Segundo a lógica do mercado, esta idéia é completamente absurda e não científica. A exceção cultural francesa é incompreensível para a atual política da OMC, segundo a qual a única informação que o consumidor desejaria estaria no nível da composição material, objetiva e química do vinho. “Em outras palavras, se nós somos atraídos pelo gosto do tanino, pouco importa que este gosto seja obtido a partir de um barril de carvalho ou de um pedaço de pau !” (Paillotin e Rousset, 1999: 120).

[34] Órgão que cumpre o papel similar ao do CNPq no Brasil.

[35] Entrevista concedida a Paul Benkimoun (1998: 25). 

[36] A questão do gosto é tão importante que, para mantê-lo, o francês está disposto a correr alguns riscos sanitários, como é o caso do consumo generalizado dos queijos, tipo “cru”, ou seja, sem sofrer pasteurização. Assim, um dos principais entraves ao consumo dos produtos biológicos é, além do preço, uma possível alteração do gosto.

[37] A modernidade gastronômica se inicia com a publicação do Cuisinier français de François de la Varenne, em 1651. Cinco anos depois é a vez do Cuisiner, de Pierre de Lune. Em 1662, aparece o anônimo Le Cuisiner méthodique ou l’école des ragoûts. Trata-se agora de uma cozinha “mais sutil, inspirada por combinações construídas em várias etapas, com molhos especiais, cozimentos separados e apropriados para os diferentes ingredientes, onde os temperos são usados de forma extremamente meticulosa” (Revel, 1995: 17-18). 

[38] Segundo Revel (1995: 37-38), “a arte é uma criação pessoal, mas esta criação é impossível sem uma base artesanal”. Para Jacques Barrau (1983: 321), a conjunção entre a simplicidade do natural e a sofisticação do preparado não esteve presente somente na história da cozinha francesa. Na China, isso ocorreu de forma semelhante entre a rusticidade da cozinha taoísta e o seu casamento com a cozinha inteligente e meticulosa (nos sabores, cores e consistência) de Confúcio. 

[39] Revel (1982: 10-12) critica vivamente três concepções presentes no senso comum. Primeira falsa idéia: “A grande cozinha é ligada à riqueza”. O padrão de vida elevado dos países desenvolvidos não está associado, necessariamente, a uma boa alimentação. Para ele, a boa cozinha é justamente o resultado de uma luta constante contra o desperdício, a penúria e a monotonia. Segunda falsa idéia: “A boa cozinha é complicada e requer muito tempo, sendo assim incompatível com a vida moderna”. Para o autor, entre as grandes promessas da modernidade estão exatamente o aumento do tempo de lazer e a diminuição do tempo de trabalho. Por outro lado, a cozinha simples não é sinônimo de comida ruim. Por último, Revel é ainda completamente contrário à idéia de que “a grande cozinha é condicionada pela presença da mulher dentro de casa e pela desigualdade entre os sexos”. Segundo o autor, por um lado, o número de homens que cozinham bem na França não é pequeno. Por outro lado, historicamente, as mulheres que ficavam em casa pertenciam à aristocracia e à grande burguesia. As trabalhadoras e as camponesas sempre trabalharam. Uma grande parte da cozinha francesa, como, por exemplo, os pot-au-feu e os ragoûts tiveram sua origem a partir deste fato. A maior parte dos pratos que requerem “cinco horas de cocção" são velhas receitas camponesas feitas para e por pessoas que trabalhavam. O alimento era colocado no fogo baixo, na hora de partir ao trabalho, sendo que ao retornar estes estavam prontos. 

[40] Pode-se destacar aqui a interpretação poética de cultura apresentada por Dagens Nyheter (1999/2000: 13), segundo o qual cultura representa “um meio ambiente, um tipo de atmosfera onde podem germinar de tempos em tempos lindos cogumelos, mas cuja função essencial é de satisfazer as necessidades específicas de uma sociedade em alimento e em espiritualidade.” Ainda segundo este jornalista e escritor sueco, seu país está, infelizmente, mais próximo do ideal norte-americano do que dos valores franceses.