Estudos Sociedade e Agricultura

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Renato S. Maluf

Atribuindo sentido(s) à noção de desenvolvimento econômico


Estudos Sociedade e Agricultura, 15, outubro 2000: 53-86.

Resumo: O ensaio aborda as críticas recentes dirigidas à teoria e à prática de desenvolvimento econômico, tendo a América Latina como referência empírica. Seu propósito principal é o de sugerir a associação entre desenvolvimento econômico e melhoria da qualidade de vida. Destaque especial é conferido às implicações da noção de diversidade para os temas do desenvolvimento econômico e da eqüidade social.

Palavras-chave: desenvolvimento; eqüidade social; América Latina.

Abstract: Making sense of economic development. The essay deals with recent critiques of the theory and practice of economic development, with Latin America as its empirical reference. Its main purpose is to suggest that economic development should be connected to the improvement in the quality of life. Special emphasis is placed on the notion of diversity and its consequences for economic development and social equity.

Key words: Development; Social equity; Latin America.

Renato S. Maluf é professor da UFRRJ/CPDA.

Os argumentos desenvolvidos neste ensaio foram enriquecidos pelas contribuições recebidas em várias oportunidades, em particular na disciplina Teorias de Desenvolvimento e no Seminário “Refletindo sobre ...”, do CPDA/UFRRJ.


Mais do que nunca estamos colocados frente ao desafio de atribuir sentido, talvez mais de um sentido, à noção de desenvolvimento quando aplicada aos processos sociais, em particular ao se tratar do desenvolvimento econômico. Críticas tópicas e de ordem geral às teorias de desenvolvimento econômico e à própria noção de desenvolvimento econômico são, de fato, bastante antigas. No que se refere especificamente à chamada economia do desenvolvimento, várias controvérsias acompanharam-na desde o seu aparecimento no imediato pós-guerra, a começar pela reivindicação feita por alguns dos seus integrantes dela constituir um campo analítico específico da teoria econômica. Mas foi a partir da segunda metade da década de 1970, com o crescente reconhecimento dos limites das políticas e projetos de desenvolvimento enquanto instrumentos de “emancipação” econômica e social das nações, que ganhou vulto a identificação dos impasses teóricos e práticos da promoção do desenvolvimento econômico

A amplitude e a profundidade das referidas críticas, algumas chegando ao ponto de negar a própria idéia de desenvolvimento, permitem considerar o presente ensaio como um intento de elaborar um argumento em favor desta noção ao mesmo tempo em que sugere um sentido a ser atribuído ao desenvolvimento econômico. O ensaio baseia-se numa revisão da literatura recente na qual constatou-se o papel proeminente conferido à diversidade, possivelmente a noção mais pervasiva nos debates sobre desenvolvimento, à semelhança do que se verifica em vários outros temas. Embora esta noção tenha se tornado um poderoso instrumento para os que propõem a rejeição plena da “ótica do desenvolvimento”, argumenta-se aqui que, ao contrário, ela oferece também novas possibilidades em termos conceituais e para a definição de estratégias de desenvolvimento.

À parte a óbvia importância geral do debate sobre desenvolvimento para o qual o presente ensaio pretende contribuir, cabe uma referência ao “lugar” deste debate no meu campo mais específico de pesquisa, a saber, a análise das relações entre o sistema agroalimentar e os processos econômicos e sociais. Como argumentado em outro trabalho (Maluf, 1998), um espaço privilegiado para o estudo destas relações é o da questão alimentar presente no desenvolvimento econômico. Isto porque a questão alimentar introduz a consideração de um direito humano básico, permite observar características socioeconômicas marcantes de uma sociedade por meio da análise de seu sistema alimentar, e tende a estar no centro das ações e das políticas públicas. O enfrentamento da questão alimentar, por sua vez, é um componente indispensável para a crescente eqüidade social que se pretende seja promovida pelos processos de desenvolvimento. Ao sustentar que tais processos contêm uma questão alimentar, colocou-se a necessidade óbvia de, para abordá-la, adotar uma definição de desenvolvimento econômico ainda que com natureza instrumental (como o são a maioria das definições deste tipo), sendo este um dos objetivos que levaram ao esforço analítico ora apresentado.

Assim, neste ensaio, pretende-se sugerir uma compreensão sobre o desenvolvimento econômico que seja compatível com as principais ressalvas à teoria e à prática recentes, ao mesmo tempo em que o torna indissociável do objetivo de obter uma crescente eqüidade social. Para cumprir com esse propósito, o ensaio divide-se em quatro seções. A primeira delas faz um breve apanhado da experiência latino-americana de desenvolvimento nos aspectos do seu desempenho econômico e da eqüidade social. A segunda seção apresenta o sentido que se propõe seja atribuído ao desenvolvimento econômico, incluindo uma sugestão de definição. A terceira aborda mais especificamente os temas da diversidade e da desigualdade nos processos de desenvolvimento. As observações finais da última seção visam extrair algumas conseqüências da análise, em particular para a economia do desenvolvimento.

Esperanças e frustrações com o desenvolvimento latino-americano

A já longa existência dos países latino-americanos como nações independentes, período no qual vivenciaram distintas opções de estratégias de desenvolvimento com resultados bastante insatisfatórios em vários e importantes aspectos da vida dos seus povos, constitui-se num dos principais exemplos da necessidade de, permanentemente, repensar e atribuir sentido(s) ao desenvolvimento econômico. Objeto de “fantasias” (Furtado, 1985) e de “esperanças” (Hirschman, 1971), mesmo entre especialistas dotados de espírito crítico, sua materialização foi parcial ou plenamente inviabilizada por circunstâncias impeditivas e por opções de políticas que não raro respondiam a objetivos nem tão nobres. De fato, a realidade latino-americana segue marcada por profundas desigualdades e carências absolutas aparentemente injustificáveis em face do dinamismo econômico verificado em vários países e das conquistas alcançadas em não poucas áreas da vida material e do conhecimento.

A necessidade de repensar o desenvolvimento justifica-se, no mínimo, como contraposição à convencional prescrição de “mais crescimento econômico” acompanhado de instrumentos compensatórios das evidentes mazelas sociais e ambientais geradas pelos padrões de crescimento que vigoram até os dias atuais. Daí que iniciarei tratando justamente da relação entre dinamismo econômico e eqüidade de renda na América Latina, relação que é objeto de intenso debate na ciência econômica. Advirta-se que não pretendo entrar neste debate teórico específico, mas sim retomar algumas avaliações da performance dos países latino-americanos num indicador (renda monetária) comumente utilizado para medir os benefícios e malefícios sociais dos processos econômicos, para em seguida adicionar outros elementos essenciais à abordagem do desenvolvimento.

A teoria econômica geral e a maioria dos modelos de desenvolvimento supõem que o crescimento econômico gera efeitos benéficos para todas as camadas da população, no mínimo, através do que se denomina de efeito “vazamento” do crescimento (trickle-down effect of growth). Mais problemático, o que se poderia aceitar sob certas condições como um dos requisitos para o enfrentamento da pobreza – uma conjuntura de crescimento econômico – não raro torna-se no único e suficiente objetivo a ser perseguido, daí originando-se críticas agudas no mais das vezes corretas.[1] O fato de o crescimento econômico não ser receita suficiente para enfrentar a desigualdade e a pobreza é amplamente confirmado por pesquisas que, pelo método das correlações estatísticas, revelam, de um lado, não ser possível estabelecer um claro impacto (positivo ou negativo) sistemático, no tempo, do crescimento econômico no grau de eqüidade (v. Bruno et al., 1996). De outro lado, tais correlações deixam evidente que há uma ligação inversa entre a distribuição inicial de ativos e de renda e a natureza e a amplitude do crescimento subseqüente, isto é, quanto maior a desigualdade inicial, menores os ganhos para os pobres com o crescimento econômico; mostram, também, que a redução da pobreza absoluta depende da distribuição da renda manter-se ao menos constante.

Assim, concluem Bruno et al. (1996), não é correto afirmar que o crescimento econômico sempre beneficia os mais pobres ou que nenhum pobre perde com reformas pró-crescimento. Há outros fatores que determinam a incidência da pobreza, a maioria deles localizados no âmbito nacional, entre os quais se destacam o grau prévio de iniqüidade existente em cada país. Esta conclusão é análoga à das abordagens que, valendo-se de instrumental analítico distinto, mostram como o modo em que se organizam socialmente as atividades produtivas, isto é, o padrão de desenvolvimento econômico, já traz embutida a apropriação da renda que resultará da ampliação destas atividades promovida pelo crescimento econômico.

A despeito do notável desempenho econômico de vários países da América Latina durante as décadas de 1950, 1960 e 1970, a conhecida matriz elaborada por Fajnzylber (1989) para o período 1965/85 resultou numa caixa vazia  el casillero vacío – pelo fato de que nem um único país desta região logrou combinar taxas significativas de crescimento econômico (superiores à metade da taxa média dos países avançados no mesmo período) com níveis aceitáveis de eqüidade de renda (iguais à metade do nível médio daqueles mesmos países). As demais três caixas, segundo as categorias utilizadas pelo autor, correspondem a: um grupo de países com elevado grau de dinamismo associado à forte “desintegração socioeconômica” (Brasil, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai e República Dominicana); um grupo reduzido com níveis baixos mas aceitáveis de eqüidade, porém, com estagnação econômica (Argentina e Uruguai); um terceiro e expressivo grupo que apresentou, simultaneamente, ausência de dinamismo e insuficiente “integração socioeconômica” (Bolívia, Chile, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Nicarágua, Peru e Venezuela).

Como destacado por Morley (1995), a América Latina sempre teve uma distribuição muito desigual da renda e um nível elevado de pobreza relativa considerando-se o nível de renda média dos países da região, condição que se viu piorada pelo que chamou de “desastre” em termos de desenvolvimento ocorrido na década de 1980, quando apenas dois (Chile e Colômbia), em 20 países, conseguiram elevar a renda per capita. Para aqueles onde havia estimativas da evolução do Índice de Gini naquela década, houve também um substancial aumento na desigualdade com poucas exceções (Colômbia, Costa Rica, Paraguai e Uruguai). Em quase todos os países, a desigualdade comportou-se de modo fortemente contracíclico, sobretudo a pobreza que cresceu acentuadamente durante as recessões e reduziu-se menos significativamente onde houve recuperação econômica pós-1989.

Com importantes distinções entre os países, a incidência média da pobreza no período 1970/90 manteve-se estável em patamar elevado (45-46% da população total), com significativo aumento da pobreza urbana (de 29 para 39% da população urbana) e pequena redução do altíssimo índice de pobreza rural (de 67 para 61% da população rural). As melhorias havidas na distribuição de renda e na incidência da pobreza absoluta pós-1990 limitaram-se aos países com taxas muito altas de crescimento econômico (Rosenthal, 1996). O que temos, então, é uma história quase geral de i) concentração de renda, ii) aumento do nível de pobreza urbana e iii) menor incidência da pobreza rural. A redução no número absoluto de pobres rurais deveu-se principalmente à migração rural-urbana e, em casos localizados, ao aumento da renda monetária das famílias rurais.

Para completar o quadro anterior é preciso fazer uma referência à ênfase na industrialização como vetor quase exclusivo do processo de desenvolvimento, na prática equivalendo-se a ele, sendo esta uma característica da experiência latino-americana, mas não só dela. Desenvolvimento era sinônimo de industrialização que, por sua vez, seria o instrumento principal da modernização das sociedades porque portadora de avanços materiais e indutora de transformações nas relações sociais, ambas sob o dinamismo das inovações técnicas. Uma definição mais recente de Furtado (1992), ainda que muito mais nuançada que as das agências de desenvolvimento de outrora, confirma a ênfase conferida à dimensão produtiva ao se falar de desenvolvimento. Para este importante autor, “as teorias de desenvolvimento são esquemas explicativos dos processos sociais em que a assimilação de novas técnicas e o conseqüente aumento de produtividade conduzem à melhoria do bem-estar de uma população com crescente homogeneização social”. Nesta concepção, a teoria do subdesenvolvimento torna-se uma variante voltada ao caso especial em que aqueles processos não levaram à homogeneização social, ainda que tenham causado elevação no nível médio de vida. O processo de modernização daí resultante teria sido uma forma de assimilação do progresso técnico quase que exclusivamente no plano do estilo de vida, com fraca contrapartida no sistema de produção, mas determinante do estilo de crescimento, cujo padrão mimético de consumo é gerador de inevitável dualismo social. A ruptura deste padrão só poderia se dar, para Furtado, num quadro de convulsão social.

A América Latina, particularmente o Brasil, destaca-se entre os exemplos do que Arrighi (1998) chamou de ilusão desenvolvimentista, isto é, imaginar que a industrialização permitiria ultrapassar o “golfo” que separa o “núcleo orgânico” da economia mundial dos “Estados semiperiféricos” (onde se inclui o Brasil) e, mais ainda, dos “periféricos”, três categorias extraídas do sistema global de I. Wallerstein.[2] Vale destacar na abordagem de Arrighi que o núcleo orgânico não se caracteriza como industrial e que a expansão da industrialização fora dele corresponde mais à “periferização” de atividades industriais. Já o caráter “oligárquico” da riqueza (à la Harrod) faz com que quanto mais elevada a posição de um Estado na hierarquia de riqueza, maior é sua capacidade de apropriar-se dos benefícios da divisão mundial do trabalho, permanentemente agitada pelo “vendaval da destruição criativa e nem tão criativa”. Mais difícil é admitir a conclusão do autor de que os semiperiféricos e periféricos, como grupo, estariam presos a um movimento pendular no qual períodos ascendentes relativamente curtos seriam sucedidos pelo “retorno das coisas” aonde elas estavam 40-45 anos antes. Trata-se de uma imagem inadequada à representação dos processos econômicos e sociais, em especial da questão do desenvolvimento como aqui compreendida.

À ilusão desenvolvimentista identificada por Arrighi no período das estratégias de industrialização baseadas em políticas nacionais ativas em economias relativamente mais fechadas, soma-se a avaliação não menos pessimista de Rowthorn & Kozul-Wright (1998) quanto à possibilidade de obter-se maior convergência econômica (em termos de renda) entre os países no contexto atual. Esta é a suposição de diversos modelos baseados na teoria econômica convencional que tendem a estabelecer vínculos espontâneos entre maior abertura econômica, crescimento mais rápido e convergência econômica. Mostra este estudo que, ao contrário, há claros indicadores de dispersão da renda per capita em termos globais e um quadro misto de convergência e dispersão no interior do “clube convergente” da OCDE pelas flutuações relativas entre seus membros. Daí concluírem seus autores que aqueles vínculos não são nem lineares nem espontâneos, pois dependem fortemente, como na avaliação anterior de Bruno et al. (1996), de “determinantes domésticos”, tais como as condições iniciais dos países e suas escolhas políticas, e, também, do marco temporal da análise.

Mais controversas, contudo, são as conclusões de Bruno et al. (1996) sobre os impactos dos recentes programas de ajuste econômico sobre a pobreza, no sentido de que esta última pode crescer com o ajuste, mas poderia ter crescido ainda mais sem ele. Nos termos em que a correlação é formulada, estreita-se muito o leque de alternativas de opções de política que se oferecia aos países. Isto não impediu os autores de destacarem, corretamente, que os resultados sociais dos programas de ajuste foram fortemente determinados pelo grau de desigualdade prévio ao ajuste e pelas políticas adotadas particularmente quanto à composição dos cortes nos gastos públicos.

Vimos que o objetivo da eqüidade social não se resume à promoção do crescimento econômico. É preciso, agora, ultrapassar os limites do indicador utilizado para medi-la, pois, é sabido, embora nem sempre devidamente considerado, que a renda monetária não se constitui em parâmetro suficiente de eqüidade e de bem-estar social dos diversos segmentos da sociedade, ainda que ela tenha um papel determinante nas condições de vida. A insuficiência do indicador é especialmente verdadeira em se tratando da população rural. Há que adicionar às avaliações baseadas na renda privada outros indicadores sociais para se ter um quadro completo do nível de bem-estar e das oportunidades abertas à população. Particularmente frente a conjunturas em que, como alertou Hirschman (1987), pode se dar uma disjunção entre os indicadores econômicos (produto e renda) e os sociais, além de haver conhecimentos ou conquistas anteriores que não se anulam em face de conjunturas adversas.

A propósito, cabe uma referência à questão da desigualdade e da pobreza. Assim como não é suficiente utilizar o indicador de renda monetária, não basta considerar o grau de desigualdade dele resultante (a pobreza relativa). Há que se ter em conta a distribuição da renda entre os que se encontram abaixo da linha de pobreza utilizada (Sen, 1996) e, principalmente, o nível absoluto de pobreza como ficava em destaque no antigo enfoque nas necessidades básicas (Stewart, 1995). Ao grau de desigualdade vigente é preciso acrescentar a condição absoluta em que vivem os que são considerados pobres; a desigualdade, mesmo que crescente, pode ocultar a melhoria nas condições absolutas dos pobres ou, e este é o pior dos mundos, pode-se ter a combinação de desigualdade crescente com deterioração absoluta das condições dos mais pobres.

Numa perspectiva de longo prazo, nota-se que importantes avanços tiveram lugar na América Latina, mesmo durante os anos 80, de modo que os países desta região, claro que diferenciadamente, apresentam desempenho em muitos indicadores socioeconômicos igual ou superior ao de países de baixa-renda similares em outras regiões do mundo. Estes indicadores revelam significativa elevação do nível de escolaridade, tendência decrescente da mortalidade infantil e melhora em outros indicadores de saúde, bem como criação e expansão generalizada de programas de emergência e de transferência de bens em espécie (Morley, 1995).[3] Houve também avanços na questão alimentar e nutricional acompanhando a elevação da renda média e como resultado de investimentos em infra-estrutura (saneamento básico), embora situações de insegurança alimentar ainda afetem a maioria dos países e parcela expressiva das suas populações. Vale registrar, por último, que quase todos os países latino-americanos situam-se nos grupos com médio ou elevado índice de desenvolvimento humano, sem prejuízo das ressalvas feitas aos critérios utilizados pelo PNUD e dos limites desta própria noção (adiante).

No entanto, a possibilidade de retrocessos em alguns indicadores não está descartada em face do prolongado período recente de dificuldades econômicas em muitos países, ao que se soma o fato de a maioria dos analistas concluírem que o padrão de desenvolvimento emergente (o crescimento pós-ajuste) tende a ser mais desigual que o do último período de crescimento na década de 1970. Em conseqüência, a melhoria nos níveis de eqüidade social e a redução da pobreza absoluta continuam dependendo fortemente de políticas sociais que transferem bem-estar através de redes de proteção social cujo igualitarismo e universalidade de cobertura, por sua vez, não estão assegurados pelos modelos atualmente adotados. Para Huber (1996), as políticas sociais latino-americanas encontram-se numa encruzilhada entre modelos “determinados pelo mercado, privados, individualistas e não igualitários”, e aqueles “corretores do mercado, públicos, solidários e igualitários”.

Esta seção destacou as desigualdades sociais que, em geral, resultaram da experiência de desenvolvimento econômico na América Latina, característica que parece manter-se sob distintos padrões e períodos da história recente. Mais do que isso, fez-se uma primeira aproximação crítica à usual combinação “crescimento econômico com políticas sociais compensatórias”. À conclusão de que crescimento econômico não basta, embora possa ajudar sob certas condições, adicionou-se que o objetivo da eqüidade social não se mede, nem sua concepção se esgota na renda monetária, por mais crucial que ela seja. Por último, introduziu-se a tradicional associação entre desenvolvimento e industrialização, ponto a ser retomado adiante na forma de crítica ao projeto de modernização das sociedades “atrasadas” e às estratégias de emparelhamento (catching-up strategies) com os países avançados.

A seção seguinte dedica-se à discussão conceitual sobre desenvolvimento econômico, de modo algum descolada da realidade e dos temas antes abordados. Cabe, porém, referir-se à natureza e ao alcance da discussão conceitual. O sentido que proponho atribuir ao desenvolvimento econômico implica, para sua plena materialização, rupturas radicais em relação às opções políticas e econômicas que prevalecem entre nós. Porém, não pretendo reproduzir o procedimento habitual de saltar da descrição de uma realidade condenável e “ameaçadora” para o oferecimento de soluções últimas e completas. Nesta perspectiva, é legítimo perguntar-se por que (e como) se dariam aquelas rupturas, isto é, por que ações e políticas públicas conducentes à eqüidade social nos termos adiante preconizados substituiriam os já referidos mecanismos e programas compensatórios convencionalmente aceitos e há longo tempo utilizados para amenizar os efeitos nocivos da dinâmica econômica capitalista. Afinal, superar o “atraso” e, com menor ênfase, combater a pobreza são antigos componentes dos discursos oficiais, da política e das análises econômicas na América Latina e em outras partes do Terceiro Mundo, não sendo improvável que eles continuem predominando no plano da retórica. Ao mesmo tempo em que mudanças nem sempre perceptíveis vão se processando no padrão de “história lenta” que nos caracteriza.

A pergunta antes formulada comporta várias respostas afirmativas da possibilidade de rupturas, todas elas movidas, desde logo, por considerações ético-morais. A natureza contraditória dos processos sociais e econômicos e as tensões e conflitos que eles geram, especialmente a pressão oriunda dos movimentos sociais, constituiram-se certamente num elemento indutor, talvez o principal, de transformações localizadas e gerais.[4] Há também justificativas propriamente econômicas para a necessidade de mudanças, como as contidas na proposta de transformação produtiva com eqüidade que orienta as formulações da Cepal desde o início da década de 1990 (Cepal, 1990), cujo núcleo central foi fornecido pela já referida abordagem de Fajnzylber (1989). A abordagem do “possibilismo” de Hirschman (1971), por sua vez, oferece uma metodologia que, por estar mais preocupada em identificar possibilidades do que em prever probabilidades,[5] apresenta a vantagem de evitar os usuais diagnósticos das “grandes crises” que naturalmente exigem “soluções fundamentais ou integrais”; ela evita, também, tanto a armadilha das ilusões desenvolvimentistas como os impasses  de muitos dos seus críticos.

O que se segue pretende ser uma contribuição conceitual de um modo que deixa sugerido alguns caminhos, sem, contudo, arvorar-se a oferecer uma “teoria da transição”.

O(s) sentido(s) do desenvolvimento econômico

A significativa experiência latino-americana e a farta literatura que continua sendo produzida internacionalmente sobre o tema induzem a pergunta sobre que sentido(s) atribuir à noção de desenvolvimento econômico.[6] Esclareça-se que o que pretendo é atribuir um significado aceitável a esta noção, embora seja inevitável que fique subentendida a outra acepção da palavra sentido, que é a de direção, no caso, atribuir ou prefixar uma direção para a história. Sem abdicar inteiramente da perspectiva normativa, o enfoque aqui adotado procura evitar o risco dos determinismos. De fato, a reflexão feita a seguir, além de carecer de rigor teórico para os adeptos da modelística, poderá parecer incompleta em sua abrangência e nas soluções apresentadas. À parte os limites do autor do ensaio, há uma razão de método derivada da compreensão sobre a natureza do objeto em questão que me levou a adotar o suposto das “soluções abertas” no estudo do desenvolvimento, seguindo autores como Hirschman e Sen. Entre os componentes da abordagem de Hirschman que apontam nesta direção destacam-se a opção por um estilo cognitivo – em lugar de um pensar paradigmático – que explora as possibilidades de atuação freqüentemente em forma dissonante, desequilibradora e com “seqüências invertidas”, e sobretudo a apropriação do conceito de “conseqüências não intencionais” da ação humana com o sentido de abertura a várias soluções (Hirschman, 1971). Mesmo o maior rigor formal de Sen não o impede de reconhecer a importância de admitir o desenvolvimento como um conceito incompleto de forma permanente no que se refere ao ordenamento dos seus fins, dadas as avaliações divergentes quanto ao que se considera valioso promover, ou ao que seria uma vida valiosa (Sen, 1988).

Crush (1995) caracterizou o desenvolvimento como um conceito antes auto-evidente que tem sido ameaçado pelo impacto dos pensamentos pós-moderno, pós-colonial e feminista. Embora interessante, esta formulação carrega ainda o viés dos enfoques euro-centrados que para ser evitado demandaria acrescentar o impacto provocado pela própria experiência de desenvolvimento sobre os países que a vivenciaram e sobre a tradição analítica construída no interior dos mesmos. Este é o caso da América Latina. Seria excessivo e incorreto incluir na categoria de ex-colônias ou de “semi-colônias”, como o fez Leys (1996), um conjunto de países com bem mais de um século de existência como nações independentes submetidas a significativas e variadas estratégias de desenvolvimento, como vimos na seção precedente. À experiência vivida por estes países acrescenta-se a rica e peculiar construção de uma tradição latino-americana de análise do (sub)desenvolvimento que se destacou no âmbito do chamado Terceiro Mundo.

A discussão conceitual desta seção tem como referência principal as críticas do enfoque pós-moderno às teorias e práticas de desenvolvimento, cuja radicalidade levou-o a questionar a própria idéia de desenvolvimento e a propor uma “era pós-desenvolvimento”. Claro que a crítica às teorias de desenvolvimento com maiores implicações teóricas e práticas é aquela feita segundo a ótica liberal, porém, o diálogo com o enfoque pós-moderno é o que melhor contribui ao objetivo de atribuir sentido ao desenvolvimento. Já os outros dois pensamentos mencionados por Crush (1995) – pós-colonial e feminista – fogem do nosso campo de interesse, o primeiro por questões específicas suscitadas pela autonomia das ex-colônias (africanas, orientais ou asiáticas) e suas repercussões sobre a atuação das agências de desenvolvimento das ex-metrópoles e dos organismos internacionais. Quanto ao segundo, está além das nossas possibilidades incorporar devidamente a crítica feminista ou, nos termos de Shiva (1997), abordar o caráter “masculino e patriarcal” dos projetos que compõem o processo de desenvolvimento e o sistema de conhecimento que lhe dá suporte. Naturalmente, um “olhar latino-americano” perpassa todo o ensaio, apesar de nele não haver uma revisão das principais abordagens originárias deste continente.

Pode-se afirmar que as teses contrárias ao desenvolvimento (“contradesenvolvimento”, “antidesenvolvimento” etc.) são, de fato, teses anti-modernistas. Escobar (1984, 1995), um dos principais representantes dessa vertente, sugere “dizer não ao desenvolvimento” com base numa abordagem pós-estruturalista e em elementos buscados diretamente em Foucault. Sua proposição é a de elaborar a crítica cultural da economia enquanto estrutura fundacional da modernidade, e desconstruir o desenvolvimento e suas formas de conhecimento, seus sistemas de poder e suas formas de subjetividade. A visão “contramodernista” (counter modernist) sugerida pelo autor coloca o foco sobre os novos movimentos sociais, a teologia da libertação, a teologia feminista (sic) e a pesquisa-ação participante. Imaginar uma era pós-desenvolvimento implicaria o fim do desenvolvimento como regime de representação, a ele opondo-se os movimentos de base e a reinterpretação da modernidade, valorizando-se seu caráter híbrido revelado nas culturas onde sobrevive o tradicional em permanente tráfego com o moderno, como na experiência latino-americana (Escobar, 1995).

Rahena (1997) oferece-nos um amplo painel com base na compilação do que seriam temas típicos de uma era pós-desenvolvimento, e conclui que há três paradigmas a serem substituídos, caso se pretenda construir uma “ordem estética”[7] que, opondo-se à “ordem lógica e racional”, emerge da base da sociedade, enfrenta a disjunção entre os que fazem a ordem e os que usufruem seus benefícios e respeita as diferenças e a singularidade de cada pessoa e cultura. O primeiro paradigma é o Estado-nação, a cujo papel de protetor das pessoas (contando com aparatos como o sistema educacional) sugere contrapor o fortalecimento da autocapacidade (self-reliance) dos subjugados. O segundo é a composição progresso e desenvolvimento e seus vínculos com os “subparadigmas” da continuidade e da linearidade; especial atenção é conferida ao suposto de que o desenvolvimento econômico seja a chave para qualquer tipo de desenvolvimento, em lugar do que propõe que prevaleçam a cultura e as condições sociais próprias a cada país em qualquer processo de desenvolvimento. O terceiro paradigma a ser substituído é o da escassez como base e justificativa da economia moderna, particularmente, ao ser associada a mecanismos individuais e excludentes de satisfação de carências (needs) nem sempre sinônimo de necessidade (necessity).[8]

É possível valer-se das críticas antes apresentadas para chamar a atenção sobre três elementos a serem levados em conta. Primeiro, pode-se concordar com a sugestão de redefinir o desenvolvimento em um modo que “reduza sua dependência da episteme da modernidade” (Escobar, 1995), porém, acrescentaríamos, admitindo as inevitáveis raízes comuns a ambas as noções.[9] Segundo, é certamente importante desvendar o sistema de poder que regula a prática do desenvolvimento como convencionalmente conduzida pelas agências promotoras do mesmo. Terceiro, as referidas críticas corroboram a perspectiva adotada neste ensaio de enfatizar a base cultural do desenvolvimento. Contudo, apesar de os três elementos mencionados terem recebido importantes contribuições de autores filiados ao pós-modernismo, de fato, estes não foram os únicos e nem mesmo os primeiros a considerá-los. Além do que as contribuições que podem ser recolhidas do enfoque pós-moderno são limitadas pelas restrições ao mesmo em pontos essenciais para o presente tema, como se verá a seguir.

A raiz comum entre desenvolvimento e modernidade evidencia-se nas promessas de rupturas e profundas transformações que ambas as noções carregam, a primeira (desenvolvimento) constituindo-se numa das materializações possíveis da segunda (modernidade),[10] com a idéia de progresso conferindo um sentido positivo a ambas. A propósito, tome-se o conhecido enunciado de Marx sobre o advento da sociedade burguesa moderna – ”tudo o que é sólido desmancha no ar”– retomado por Berman (1986) como imagem rousseauniana do “turbilhão da vida moderna” alimentado por processos sociais contraditórios chamados de modernização. Como lembra esse autor, ainda recorrendo a Marx, os processos que compõem a vida moderna são radicalmente contraditórios na sua base pelas forças industriais e científicas que liberam, acompanhadas de sintomas de decadência que expressam seu contrário.

Nesses termos, as estratégias de desenvolvimento vivenciadas pelos países, ou por comunidades mais circunscritas, constituem processos de modernização. A ressalva vai para os projetos cuja perspectiva de modernização expressa uma forma particular de ver a transformação social, por sua vez, associada à hegemonia econômica e a intentos de uniformização cultural que dão origem a contestações em nome da defesa seja da soberania, seja do diverso ou do outro.[11] O pós-modernismo é, em larga medida, a crítica de uma dada construção da modernidade, melhor, de um projeto de modernização, sem dúvida aquele que dominou os discursos mais poderosos sobre o desenvolvimento e os aparatos correspondentes. Porém, um tipo de crítica na qual, nos termos de Jameson (1996), fica perdida a “modernidade” enquanto tentativa de obter algo coerente da relação entre “modernização” (que acontece na base e é incompleta) e “modernismo” (forma que a superestrutura assume como reação aos acontecimentos ambivalentes).

Resta a pergunta sobre a possibilidade ou a conveniência de reter algo do “espírito moderno”, ou algum sentido de moderno em face destas e de outras possíveis críticas ao projeto que se tornou hegemônico. Sustenta-se, aqui, que é possível atribuir um sentido (ou mais de um sentido) ao desenvolvimento sem necessariamente (re)atribuir sentido a um determinado projeto de modernização, e que isto não é contraditório com o reconhecimento simultâneo de que a ótica do desenvolvimento, com seus componentes épicos (Hirschman, 1967) e trágicos (Berman, 1986), está inextricavelmente ligada à experiência moderna ainda em curso ou que ainda não se esgotou, sobretudo na América Latina.

Observação análoga à anterior pode ser feita em relação à proposição de um enfoque pós-estruturalista. Pode-se acompanhar Hirschman (1980) quando ele saudou as posturas analíticas que ofereciam a perspectiva de restaurar alguns graus de liberdade em risco de serem perdidos para o estruturalismo e quando ele manifestou-se contra a excessiva parcimônia da teoria econômica. Pode-se também concordar com a ressalva feita por Berman (1986) àqueles autores que imergiram no mundo do estruturalismo. Porém, valendo-nos do mesmo Berman, a alternativa não é a de adotar “... a mística do pós-modernismo, que se esforça por cultivar a ignorância da história e da cultura modernas e se manifesta como se todos os sentimentos humanos (...) acabassem de ser inventados – pelos pós-modernistas – e fossem desconhecidos, ou mesmo inconcebíveis até à semana passada” (idem: 32). Completa seu argumento a defesa que faz dos laços com os “modernismos do passado” (dinâmico e dialético), que podem devolver o sentido de nossas próprias raízes modernas, ajudar a conectar nossas vidas à de indivíduos em sociedades distantes e radicalmente distintas das nossas e iluminar as forças contraditórias e as necessidades que nos inspiram e atormentam (idem: 34).[12]

Por último, é particularmente grave a resistência (ou rejeição) do pós-modernismo às “proposições universais” (universals) com alguma historicidade (dever ser), às idéias de movimento e mudança em alguma direção e à utopia de um futuro possível, às quais a pós-modernidade contrapõe o mover-se para nenhum lugar (Lash, 1992).[13] Para Pieterse (1998), o enfoque pós-desenvolvimento de matriz foucaultniana que se cristalizou nos anos 80 constitui-se mais num programa de resistência do que de emancipação. Harvey (1992) vai mais longe ao circunscrever, histórica e geograficamente, a condição pós-moderna, em face da qual propõe um contra-ataque da narrativa contra a imagem, da ética contra a estética e de um projeto de vir-a-ser em vez do ser.

O debate pós-modernista na América Latina apresenta algumas características peculiares, como discutido em Beverley et al. (1995). Os autores remetem à Octavio Paz, para quem o pós-modernismo não se ajustaria ao nosso continente, que deveria produzir suas próprias formas de periodização cultural. Estes mesmos autores preferem falar de “modernidade desigual” e de novos desenvolvimentos do hibridismo cultural da América Latina, em lugar de modernidade e modernização em si mesmas, aproximando-se neste ponto específico da proposição análoga de Escobar (1995) antes referida. A partir de uma perspectiva um pouco distinta e que faz eco ao que se mencionou sobre o papel da experiência de desenvolvimento vivida pelos países latino-americanos, Lechner (1995) identifica entre os povos da região um desencanto com a modernização e a perda da crença numa concepção específica de progresso, sustentando, porém, que repensar o projeto de modernidade significa considerar a articulação das diferenças sociais e atacar falsas homogeneizações, em lugar de rejeitar toda e qualquer idéia de coletividade.

O chamado projeto da modernidade continha uma intenção de desenvolver cujas raízes remontam ao século XIX, quando a apreensão ante a dimensão destrutiva do processo de desenvolvimento capitalista, manifestada nos problemas da pobreza e do desemprego, fez surgir a pretensão de ordenar esse processo. Cowen & Shenton (1996) localizam a origem das doutrinas de desenvolvimento na moderna intenção de desenvolver vinculada à agência do Estado. Como assinalam corretamente, a idéia e a prática de desenvolvimento intencional vêem-se confrontadas com o processo imanente de desenvolvimento do capitalismo, de modo que a dificuldade de definir desenvolvimento está em tornar a intenção consistente com o processo imanente.

Um outro ponto importante levantado pelos autores é o de que a intenção de desenvolver envolve um elemento de “tutela ativa” (active trusteeship), cuja superação demandaria implementar mudanças qualitativas que teriam a liberdade como a finalidade do desenvolvimento. Cowen & Shenton (1996) descartam, também, várias proposições alternativas de desenvolvimento e de “desenvolvimento alternativo”, por carregarem o jargão do desenvolvimento e elementos de tutela. Descartam, ainda, a possibilidade de um desenvolvimento “verdadeiro” voltado às comunidades – estas seriam uma “abstração da teoria moderna” – ou a de um desenvolvimento comunitário, pois, embora sejam tidas como a antítese positiva da doutrina corrompida de desenvolvimento, representam, elas também, doutrina de desenvolvimento recriada permanentemente. Enfim, propõem o “desenvolvimento livre” em lugar de doutrinas de desenvolvimento.

A categorização neste terreno é bastante complexa. Tome-se o exercício feito por Pieterse (1998) antepondo um conjunto variado de formulações sob o rótulo de “desenvolvimento alternativo” à corrente principal do desenvolvimento (mainstream development), que se expressa na fala usual de desenvolvimento nos “países em desenvolvimento”, nas instituições internacionais e na cooperação para o desenvolvimento. Além da convivência entre ambas (através, por exemplo, dos vultosos recursos repassados por integrantes da corrente principal às ONGs), o autor destaca as debilidades das formulações alternativas (idéias e abordagens pós-convencionais vestidas em imaginários políticos convencionais), a impossibilidade de afirmarem-se como paradigma por serem intelectualmente fragmentadas, e a gradativa perda de seu sentido alternativo na medida em que a corrente principal se abriu e incorporou muitos dos seus lemas – ainda que pela cooptação de valores alternativos e sua adição às clássicas estratégias de desenvolvimento centradas no crescimento. Assim, as diferenças entre elas teriam se tornado conjunturais, o que leva Pieterse a colocar em primeiro plano a divisão entre desenvolvimento social (onde estão a corrente principal e a alternativa) e a abordagem de desenvolvimento que denomina de “esmigalhadora de números” (o positivismo do crescimento), institucionalmente localizada em agências da ONU e no FMI, com o Banco Mundial localizando-se no meio desta polarização.

Retomando o aspecto da tutela destacado por Cowen & Shenton (1996), ele é, sem dúvida, dos mais importantes. Relações tutelares costumam estar presentes na ação das agências estatais e paraestatais de desenvolvimento frente àqueles que elas denominam, sintomaticamente, de seu “público-alvo”, mas também podem permear os vínculos que se estabelecem entre as organizações não-governamentais e as comunidades beneficiárias da sua atuação. Porém, em lugar do apelo de Cowen & Shenton (1996) por um pouco claro “desenvolvimento livre que renuncie a toda tutela”, um procedimento mais realista nos levaria a reconhecer a possibilidade da tutela e a tratá-la como um elemento de tensão próprio deste tipo de relação entre atores sociais, sobre o qual há que ter permanente vigília. Em lugar de imaginar a eliminação de qualquer tutela, tratar-se-ia de buscar atenuar suas manifestações mediante o aperfeiçoamento dos mecanismos de representação dos atores sociais participantes dos processos de desenvolvimento. Acrescente-se a este elemento de tensão o fato, para alguns não menos difícil de aceitar, de que os movimentos sociais no Terceiro Mundo não são uma resistência à modernidade, mas são, sim, portadores de demandas por acessá-la que, ademais, adotam ideais iluministas de cidadania e de participação (Schuurman, 1993).

A crítica ao discurso do desenvolvimento, às suas doutrinas e às suas agências não leva necessariamente a uma posição “antidesenvolvimento”. Pode-se, mesmo, argumentar se o “antidesenvolvimento” faz sentido exceto para algum tipo de fundamentalismo.[14] É bem verdade que a rejeição é favorecida pelo fato da noção de desenvolvimento econômico carregar um certo “darwinismo social” embutido na idéia de progresso como expressão de evolução econômica e, conseqüentemente, na noção de atraso que seria seu contraponto. Nos termos de Shanin (1995), a idéia de progresso foi gerada para ordenar e categorizar, em um modo aceitável, a crescente diversidade entre diferentes sociedades resultante delas se encontrarem em diversos estágios de desenvolvimento. A pretensão ia, de fato, mais além, pois, como formulou Latouche (1988), a noção metafórica descritiva de desenvolvimento chegou a adquirir o estatuto de conceito nos anos 60 como desenvolvimento econômico. Porém, continua o mesmo autor, o fracasso do desenvolvimento em si levou posteriormente a uma “involução semântica” e à perda de rigor, com o conceito de desenvolvimento tornando-se ponto de miragem de todas as aspirações, inclusive daquelas prejudicadas por ele, seguindo-se daí sua adjetivação como desenvolvimento social, sustentável, humano etc. Contudo, parece-me que mais significativo do que a rejeição da noção é o fato dela ter permanecido, ainda que com qualificativos.

O sentido que se pretende atribuir à noção de desenvolvimento (e de desenvolvimento econômico) não referenda o projeto de modernização como tal, particularmente influente entre os anos 1940 e 1960, apesar de necessariamente reter alguns de seus elementos discutidos adiante. É inevitável reter também a idéia ocidental de progresso em termos de uma concepção cumulativa de tempo e da perspectiva de aperfeiçoar as condições materiais da sociedade em direção a um estado qualitativamente melhor, mesmo que se evite preestabelecer caminhos e metas.

Como resultado das observações feitas nesta seção, o procedimento mais adequado e, sem dúvida, cauteloso quanto ao significado da noção de desenvolvimento é o de ater-se ao sentido literal do termo e às duas idéias principais nele contidas, que são as de melhoria e de processo. Daí deriva o sentido a ser atribuído ao desenvolvimento econômico e sua definição como o processo sustentável de melhoria da qualidade de vida de uma sociedade, com os fins e os meios definidos pela própria sociedade que está buscando ou vivenciando este processo.[15] Trata-se de uma definição instrumental (como quase todas neste campo) adequada ao tratamento das questões em debate na literatura, que evita ao mesmo tempo uma abordagem paradigmática do tema e o procedimento convencional – às vezes ingênuo – de propor uma definição tão “compreensiva” que seja capaz de iluminar e dar coerência à ampla variedade de aspectos que se quer ver considerados.

Há algumas questões relacionadas à definição proposta que demandam observações adicionais de esclarecimento. Inicio pelo caráter normativo (dever ser) inevitável em definições como estas que envolvem dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à tensão real entre a “intenção” contida na definição e o “processo imanente”, que é capitalista e, portanto, desigual. Há que se considerar a diferenciação promovida por este processo entre os grupos sociais e mesmo entre os indivíduos (por gênero, idade e habilitações), em se tratando da melhoria da qualidade de vida, sem se iludir com a solução fácil e enganosa de falar em melhoria na qualidade “média” de vida. O segundo aspecto refere-se às distintas visões sobre o que seja melhoria da qualidade de vida e à sua expressão política em termos da capacidade (também desigual) de concretizar tal objetivo. Ambos os aspectos estão contemplados na definição, ao se colocar em primeiro plano os mecanismos pelos quais são definidos os fins e os meios (“por quem” e “para quem”), porém, numa formulação aberta que deixa implícita sua natureza como elementos de tensão e objetos da política. Evidencia-se, também, o suposto da indissociabilidade entre a economia e a política, no caso mais além da boa tradição da velha economia política.

Outro comentário refere-se ao próprio objetivo da melhoria da qualidade de vida. Formulado nestes termos, o objetivo do desenvolvimento é compatível com qualquer critério ou escala de valores para avaliar a qualidade de vida, sem estar preso a um dado padrão ou modelo de vida. Vale dizer, admite-se ser este um objetivo universal capaz de comportar diferentes formas de materializar-se. Contudo, o respeito à diversidade das formas de materialização da qualidade de vida deve, por um lado, ser perpassado por uma ótica fundada na noção de direitos humanos universais que o qualifica e o delimita, ponto não abordado neste ensaio. Por outro lado, a diversidade das formas deve se confrontar com a busca de critérios gerais para qualificar o desenvolvimento econômico dos países. A definição proposta deixa espaço para uma variedade de critérios, dependendo do aspecto que se queira destacar, com duas ressalvas. A primeira diz respeito à inadequação da contraposição “países desenvolvidos versus países subdesenvolvidos”, quando se abandona a tradicional e influente perspectiva de adotar as já referidas “estratégias de emparelhamento” e ao se valorizar os ambientes distintos e peculiares resultantes de fatores culturais e institucionais.

A segunda ressalva refere-se ao qualificativo “países em desenvolvimento”. Um corolário muito importante da definição proposta é o de que, quando não há melhoria da qualidade de vida, não há desenvolvimento econômico, circunstância que se manifesta sob condições de conflitos violentos no interior dos países ou entre países. Deduz-se daí que, na ausência desta circunstância, todos os países, desde os industrializados até os integrantes do Terceiro Mundo, estariam sempre “em desenvolvimento”, sem embargo das restrições que podem ser feitas à natureza, à amplitude e aos efeitos colaterais do processo em questão. Nestes termos, a denominação “países em desenvolvimento” revela-se redundante e enganosa expressão que, ao ser aplicada aos países de baixa-renda, pretendeu substituir a crueza e a desesperança associadas ao epíteto de “subdesenvolvidos”. É curioso notar que nem mesmo a ótica do pós-desenvolvimento escapa desta armadilha, já que ela parece aplicar a noção de desenvolvimento apenas aos países do Sul (aos projetos de desenvolvimento neles implementados, à ajuda para o desenvolvimento etc.) que seriam os “em desenvolvimento” (developing), como se nos desenvolvidos (developed) do Norte não houvesse desenvolvimento. Eles não só o têm, como voltaram a se defrontar com problemas que seriam típicos dos países “em desenvolvimento”, que são o desemprego e a pobreza.

Os critérios para avaliar e comparar os processos de desenvolvimento dos países podem, por um lado, estabelecer dicotomias específicas relativas ao nível de renda (países ricos e pobres), ao grau de desigualdade (países altamente ou menos desiguais), à ordem econômica e política internacional (países centrais e periféricos), etc. Por outro lado, quando o contraste mais geral é necessário, um recurso retórico adequado pode ser o de agrupá-los como países avançados (pelas suas conquistas em termos do nível de renda e do grau de eqüidade social) e como países do Terceiro Mundo ou de baixa renda (pelo nível relativo de renda e por serem mais iníquos). A denominação “países de baixa renda” parece ser a designação geral mais apropriada para este segundo grupo, inclusive porque evita a controvérsia sobre como se compõe o “Terceiro Mundo”, para Landes (1998) uma unidade conceitual em vias de dissolução. A importância atribuída à eqüidade social na diferenciação entre os dois grupos de países não obscurece a recente constatação de que a geração de desigualdade e de pobreza em proporções significativas é um fenômeno comum a ambos os grupos, embora com impactos sociais e políticos mais graves nos países de baixa renda. Este fenômeno provocou, ainda que por vias perversas, a reabilitação do debate sobre desenvolvimento, inclusive nos meios mais recalcitrantes.

Um outro esclarecimento refere-se à amplitude da definição proposta, que a tornaria aplicável não apenas à dimensão econômica do desenvolvimento, mas à noção de desenvolvimento em geral. Acrescente-se que é comum utilizar-se, indistintamente, as expressões “desenvolvimento” e “desenvolvimento econômico”, ambigüidade que, reconheço, pode estar presente neste próprio ensaio. O risco, neste caso, é que a pretensão da abrangência comprometa a relevância do conteúdo específico da definição. Além do que, a definição proposta pretende estabelecer uma conexão explícita entre o econômico e a qualidade de vida. Este talvez seja o único sentido possível de se seguir falando de desenvolvimento econômico.

O último esclarecimento refere-se à dimensão espacial embutida numa definição como esta. Propositadamente, a definição não faz menção explícita a um território geograficamente delimitado, porém, na referência à “sociedade” está subentendido um relativo privilegiamento da dimensão nacional no delineamento de estratégias de desenvolvimento e na viabilização de políticas e programas essenciais ao objetivo proposto para o desenvolvimento econômico. Essa observação é tão mais importante quando se tem em conta as ressalvas que fazem tanto progressistas (internacionalistas e “comunitaristas”) quanto conservadores (liberais), por razões distintas, à pertinência do nacional no contexto atual. A atual ressaca da vaga de interpretações lineares do fenômeno da globalização – e do predomínio das “forças de mercado” que o acompanharia – tem recolocado a relevância do Estado nacional em vários aspectos. Se a economia mundial é mais “inter-nacional” que global (Wade, 1996), isto é sobretudo verdadeiro na questão central da moeda e da distribuição internacional da riqueza na qual sobressaem o poder dos Estados territoriais e a competição entre eles, e não sua substituição pelos mercados “numa grande confederação mundial” (Fiori, 1999). Hobsbawm (1996) lembra que o Estado-nação é crucial para os movimentos políticos e nota que as próprias tendências atuais do desenvolvimento econômico tornam ainda mais importantes a indispensável função redistributiva do Estado territorial e seu papel no desenvolvimento social, ponto particularmente decisivo para o presente tema. Por último, vale observar que os sistemas nacionais estão profundamente assentados numa intrincada e peculiar rede de instituições que não apenas modulam seu perfil socioeconômico como também filtram as influências internacionais a que estão submetidos.[16]

Contudo, o comunitário, o local e o regional – como territórios ou, melhor, como espaços socialmente construídos (Sánchez, 1991) – tornaram-se referências indispensáveis quando se trata de propostas de desenvolvimento, seja sob a ótica da descentralização, seja numa perspectiva “de baixo para cima”. Certamente é possível e mesmo desejável que a busca da melhoria da qualidade de vida inclua estratégias de desenvolvimento econômico definidas e implementadas em nível local ou regional, as quais favorecem ademais a participação das comunidades envolvidas. O que se requer é reconhecer a distinta natureza das questões correspondentes aos diferentes níveis e, naturalmente, pensar como elas se inter-relacionam.

Desenvolvimento, diversidade e desigualdade

Foi mencionado na introdução que a noção de diversidade constitui-se na idéia mais penetrante nos debates recentes sobre desenvolvimento. Nesta seção, o tema da diversidade será abordado em associação com o da desigualdade na perspectiva de propor um referencial para a análise de situações ou condições diversas nos processos de desenvolvimento. Sugere-se aqui que a noção de diversidade em si mesma e em relação à de desigualdade comporta ao menos dois significados, um quantitativo e outro qualitativo.

A diversidade de situações como expressão de desigualdade com sentido quantitativo constitui-se na dimensão tradicionalmente realçada nas análises sobre os processos de desenvolvimento. Tome-se a noção de desenvolvimento desigual que expressa, a rigor, uma característica intrínseca ao desenvolvimento capitalista que dá lugar aos processos de diferenciação entre os agentes econômicos (concentração de capital), entre as regiões (concentração espacial) e mesmo entre os países. O sentido quantitativo da desigualdade fica evidente quando as situações de iniqüidade resultantes do processo de diferenciação são avaliadas através da comparação entre “os que têm mais” e os “que têm menos”, comparações que carregam, ao menos implicitamente, uma expectativa de convergência. Esse é o caso das demandas por reduzir a distância que separa ricos e pobres, por “superar o atraso”, por emparelhar-se aos mais desenvolvidos, entre outras. Atraso e subdesenvolvimento são categorias que, por definição, supõem a possibilidade (ou a pretensão) de convergir a uma condição julgada superior segundo critérios freqüentemente quantitativos, mesmo que esta condição superior comporte elementos qualitativamente distintos em termos de qualidade de vida, padrão tecnológico etc. Retornarei à questão da convergência mais adiante.

A diversidade de condições e a desigualdade dela derivada têm também um significado qualitativo que comporta antes a idéia de “ser diferente” do que a de “ter menos” ou a de “insuficiência”. Pode-se identificar quatro fatores de diversidade em seu sentido qualitativo. O primeiro e mais comumente destacado deles é a diversidade cultural que intervém nos processos econômicos e sociais dos países ou das regiões no interior destes países. O segundo fator, a diversidade institucional, guarda relação com o anterior, mas requer uma menção específica, pois trata-se da institucionalidade peculiar que diferencia as sociedades quanto ao seu modo de funcionamento e ao leque de opções possíveis. O terceiro fator refere-se à diversidade humana (entre os seres humanos) que leva a qualificar o próprio significado da eqüidade social e a definir estratégias diversas para persegui-la. Por fim, mas não menos importante, temos a diversidade natural pelo fato da base de recursos naturais ser não apenas distribuída desigualmente mas ser também diferente entre os países e entre as regiões no interior de um país, resultando em distintas possibilidades na relação dos padrões de desenvolvimento com o meio ambiente.

Esses quatro fatores sintetizam as razões que levam à proposição, contida neste ensaio, de valorizar a diversidade em seu significado qualitativo na formulação de estratégias de desenvolvimento. Entre outras implicações, esta proposição estabelece estreitos limites à formulação de paradigmas de desenvolvimento, se é que não os nega inteiramente, já que a ênfase é posta na diversidade das experiências e não apenas na busca daquilo que é comum a elas. Hirschman (1986) já havia chegado à conclusão análoga por caminho distinto, ao argumentar que uma das “verdadeiras penúrias” da economia do desenvolvimento era a inexistência de um país subdesenvolvido típico, a outra sendo as tensões, especialmente o autoritarismo político, que acompanharam os processos de modernização.

A consideração conjunta dos aspectos qualitativos e do significado quantitativo da diversidade e da desigualdade envolve obviamente componentes antagônicos, mas apresenta também interfaces entre ambas as dimensões, sobretudo quando se trata de carências absolutas. Por exemplo, as proposições que de algum modo sugerem a referida convergência dos que “têm menos” com os que “têm mais” são alvo da conhecida crítica da subordinação dos objetivos do desenvolvimento aos valores predominantes nas sociedades ocidentais industrializadas e com nível de renda elevado, resultando na adoção de estratégias tendentes a reproduzir os modelos econômicos e sociais daquelas sociedades. Essa crítica lança luz sobre o risco bastante grande de tomar a eqüidade social como sinônimo da generalização de um certo padrão de consumo ou estilo de vida, ao que se contrapõem tanto o cada vez mais valorizado respeito à diversidade quanto os diagnósticos que concluem por ser insustentável a longo prazo o padrão de consumo vigente no mundo industrializado. Contudo, rejeitar a perspectiva da homogeneização não implica desconhecer que a criação de espaços desiguais e a permanente geração de pobreza têm determinantes principalmente gerais no sentido de que são comuns – como aqueles que derivam da natureza desigual do desenvolvimento capitalista – e que estes fenômenos são uma expressão de injustiça social. Mais do que isto, é possível e necessário mensurar a desigualdade e a pobreza (absoluta e relativa) geradas por este desenvolvimento, valendo-se quase sempre de indicadores comuns (renda, escolaridade, estado nutricional etc.), sem com isto associar-se a algum conjunto de valores único e específico.

Como lembra Raiser (1997), criticar as visões usuais para as quais erradicar a pobreza significaria atingir (massivamente) o padrão de vida ocidental não resulta em compartilhar uma implicação “não saudável” (sic) do pós-modernismo de resistir a qualquer análise das causas globais da pobreza, rejeição que, por sua vez, é parte de uma ética do desenvolvimento baseada numa visão centrada no agente. Para Hettne (1996), desenvolvimento significa essencialmente obter melhorias materiais que podem ser conseguidas mantendo-se as identidades culturais, em oposição portanto à perspectiva de convergência cultural inerente ao conceito de desenvolvimento como modernização, ou ao que alguns denominaram de weberianismo vulgar que toma desenvolvimento como transição da sociedade tradicional à sociedade moderna.

Assim, nas noções de eqüidade social e de desenvolvimento econômico como melhoria da qualidade de vida deve estar presente o respeito à (ou o reconhecimento da) diversidade, sem prejuízo de considerar que fenômenos sociais como a pobreza (e a fome) têm origem em fatores determinantes mais gerais derivados do padrão de desenvolvimento econômico.

Nesta mesma direção vai o alerta de Phillips (1997) sobre o risco da “nova política do reconhecimento da diferença” deslocar da condição de preocupação central da teoria social e política as “velhas políticas de redistribuição” concernentes às desigualdades econômicas. Embora reconhecendo a perda de primazia da ênfase na homogeneidade típica das análises de classe da desigualdade, nota a autora que a relevância atribuída às diferenças – associadas com gênero, etnia ou raça – pode tirar de cena as desigualdades econômicas se ela corresponder à valorização da cultura per se. Questionando a separação real ou para fins analíticos das dimensões econômica e cultural, Phillips faz eco às posições para as quais justiça, hoje, requer ambas, redistribuição e reconhecimento.

Pode-se extrair duas implicações das observações anteriores para os fins deste ensaio. A primeira delas é a ratificação do entrelaçamento dos temas econômico e cultural, sobretudo nas análises de estratégias de desenvolvimento, como insistido anteriormente. A consideração da dimensão cultural do desenvolvimento, em diálogo com a antropologia social, tem como principais objetivos qualificar a suposta homogeneização decorrente de interpretações lineares do fenômeno da globalização,[17] desvelar as formas de hegemonia cultural e rejeitar os padrões estandartizados de desenvolvimento econômico. Cuidando, porém, como alerta Tucker (1996), de não tomar a cultura como um mero enfeite (“o suspiro do bolo”) ou, no extremo oposto, de não reificar a cultura.[18] Se a cultura se refere à dimensão cognitiva da experiência, o já referido enfoque cognitivo de Hirschman (1971) pode oferecer um caminho profícuo para o desejado entrelaçamento do econômico com o cultural na análise e na prática do desenvolvimento.[19]

A segunda implicação é a necessidade de combinar os enfoques recentes “de baixo para cima” em que ganha destaque a diferente condição dos indivíduos, perspectiva presente entre outros no conceito de desenvolvimento humano, com a antiga e boa noção de desenvolvimento social para a qual, olhando “de cima para baixo”, a condição dos indivíduos (ou grupo de indivíduos) e suas trajetórias possíveis são também determinadas por seu “pertencimento” a determinado segmento ou classe social, por sua vez, fonte de desigualdades. Vale dizer, o enfoque de desenvolvimento humano que ganhou proeminência na última década, ainda que valioso, não é plenamente intercambiável ou não substitui o de desenvolvimento social.

Foge às pretensões deste ensaio estender-se na apreciação da noção de desenvolvimento humano e, muito menos, da rica e volumosa produção de Amartya Sen de onde se originou a fundamentação conceitual principal daquela noção. No entanto, ambas, a noção e seu marco conceitual, permitem um breve comentário adicional sobre a questão da desigualdade. Bobbio (1995), ao se perguntar sobre a permanência nos dias de hoje de uma perspectiva de esquerda, concluiu que a aspiração à igualdade, baseada na contraposição “igualdade versus desigualdade”, é a principal razão de ser de um movimento com aquela orientação. Nega, assim, a perspectiva liberal de contrapor “igualdade versus liberdade”, pois entende que liberdade é o status da pessoa ao passo que igualdade diz respeito à relação entre dois ou mais seres. Contudo, alerta Bobbio, um “projeto de repartição” deve sempre perguntar-se sobre igualdade entre quem, em relação a quê e com base em quais critérios.

Já a abordagem de Sen (2000) evoluiu justamente na direção de definir desenvolvimento como liberdade – título de seu mais recente livro – numa trajetória que esteve focada, inicialmente, na ausência de “titularidades” ou “habilitações” (entitlements) como causa da fome e da pobreza de indivíduos e coletividades (Sen, 1981) e, posteriormente, no desenvolvimento como expansão das capacidades (capabilities), entendidas enquanto condição para que os indivíduos exerçam plenamente a liberdade de escolher os “modos de funcionar” (functionings), os modos de ser e de fazer (doings and beings) que tenham razões para valorizar (Sen, 1988 e 1989). Contrapondo-se à idéia, tornada um princípio, de que “todos os homens são iguais”, Sen (1992) parte do suposto da diversidade entre os seres humanos e coloca-se, conseqüentemente, a pergunta: “eqüidade em quê?”, para concluir que o espaço (no sentido de Bourdieu) fundamental em que ela se define é o da liberdade.

A breve referência a ambos os enfoques permite supor que a resposta de Sen à pergunta de Bobbio (igualdade em relação a quê?) talvez fosse que a igualdade no espaço da liberdade requer o enfrentamento da desigualdade no campo das capacidades. Esta aparente compatibilidade entre ambos os enfoques pode, no entanto, não resistir à crítica do “desenraizamento” da noção de “modos de funcionar” – as vidas humanas estão enraizadas em instituições sociais que habilitam ou constrangem a ação – e à demanda por “desindividualizar” ou “desprivatizar” o significado de privação através de conceitos como o de exclusão social, dirigidas ao enfoque de Sen por comentaristas (Gore, 1997).[20] Reconhecendo a crucial contribuição de Sen ao introduzir a diversidade humana na noção de eqüidade social e, portanto, na definição das estratégias e instrumentos para buscá-la, os comentários anteriores reafirmam o que já se mencionou sobre a justiça social requerer, hoje, justiça distributiva e reconhecimento (das diferenças), e sobre a importância de preservar a noção de exclusão social (e de desenvolvimento social) ainda que num contexto de valorização do ser humano e da qualidade da vida humana como a finalidade última do desenvolvimento.

Para concluir este tópico, retomarei os temas da diversidade e da diversificação para acrescentar, por fim, que eles envolvem uma importante questão de escala e de espaço segundo o aspecto ou a variável analisada, isto é, segundo a distinta escala e territorialidade do capital (individual, urbano, nacional etc.) e a dimensão socioespacial (comunidade, local, regional etc.) que se esteja considerando. Para dar conta desta questão é necessário abrir um diálogo interdisciplinar particularmente com a Geografia Econômica, em lugar de meramente adotar o procedimento de incorporar a “variável” espaço nos modelos de análise econômica.

Smith (1988) observa que o padrão de desenvolvimento desigual do capitalismo resulta da “dialética da diferenciação e da equalização geográficas”, isto é, de tendências contraditórias de diferenciação e de equalização dos níveis e das condições de desenvolvimento entre países, regiões e comunidades. A equalização manifesta-se mais claramente na esfera da circulação, mesmo que envolva a equalização das condições e dos níveis de produção, ao passo que a diferenciação social e geográfica está diretamente relacionada com a escala dos capitais individuais cuja concentração e centralização ocorrem em alguns lugares em detrimento de outros. Particularmente importante é considerar a dinâmica territorializada dos setores produtivos (Sánchez, 1991) que, de um lado, impõe uma articulação espacial concretas sobretudo se algum tipo de predominância leva à especialização funcional de um território, e, de outro, implica considerar as diversas dinâmicas territorializadas presentes numa área delimitada ao avaliar suas perspectivas futuras de desenvolvimento. A dimensão espacial assim abordada é especialmente relevante para o tema da questão agroalimentar tanto pelo lado das tendências equalizadoras da produção e do consumo de alimentos promovidas pelo sistema alimentar global (com destaque à esfera da distribuição), quanto pelas possibilidades oferecidas pelas atividades agroalimentares de amenizar a diferenciação geográfica e social por serem territorialmente espraiadas e por oferecerem mais oportunidades sociais se organizadas de forma eqüitativa. Amenizar diferenciações geográficas, no caso, pode andar junto com a desejada valorização da diversidade cultural dos hábitos de cultivo e de consumo de alimentos.

Observações finais

Mais do que extrair conclusões, o par de observações feitas a seguir trata de possíveis desdobramentos dos pontos abordados no ensaio especialmente para a economia do desenvolvimento. Começando por retomar antiga pergunta sobre se há uma economia do desenvolvimento propriamente dita, ou se se trata apenas de aplicar, como querem alguns, os instrumentos de uma teoria econômica geral a um objeto definido geograficamente, a saber, os países pobres, tendo a promoção do crescimento econômico como objetivo central. A esta última perspectiva soma-se a defesa do rigor teórico supostamente oferecido pelos modelos de uso convencional na economia, que teria sido perdido pelo excessivo recurso a metáforas por parte das teorias com enfoque desenvolvimentista (high development theory, como as chamou Krugman, 1994). 

O enfoque sugerido no presente ensaio deixa evidente a concordância com a conhecida crítica de Hirschman (1986) à pretensão a uma “monoeconomia” e sua sugestão de abarcar a complexidade mesmo que com algum sacrifício do poder preditivo.[21] Haveria que iniciar uma reflexão mais detida sobre os requisitos para a recuperação da economia do desenvolvimento do ocaso a que foi relegada nas duas últimas décadas, retomando criticamente o legado de seus principais autores e, obviamente, formulando novas perguntas. Se o contexto é, agora, bastante distinto em termos da maior abertura externa das sociedades e suas economias e do recuo no papel do Estado, é interessante notar que voltaram ao primeiro plano temas muito caros à tradição desta disciplina como, entre outros, a atenção às dimensões institucionais e culturais que conferem peculiaridade à trajetória social e econômica dos países. O diálogo interdisciplinar, por seu turno, constitui-se em importante ferramenta para evitar a reedição, mesmo que travestida, da propensão da economia (e de muitos economistas) de atribuir-se o estabelecimento dos critérios de escolha frente aos dilemas associados ao desenvolvimento.[22]

A centralidade conferida nos debates atuais ao papel do Estado na economia, mais especificamente na promoção do desenvolvimento, de fato, mantém um tema que sempre foi muito importante e que constituiu-se num dos principais problemas da economia do desenvolvimento. Como ressalta Fiori (1999), o Estado dos desenvolvimentistas foi sempre uma abstração, ora construção ideológica idealizada, ora mero ente epistemológico requerido pela estratégia de industrialização. Sem prejuízo das questões ligadas à concepção do Estado colocadas pela observação anterior, mantém-se a meu ver a perspectiva de buscar a regulação pública das atividades econômicas e, portanto, de pensar nos objetivos gerais e setoriais e nos respectivos instrumentos que a assegurem. Ao Estado seguiria cabendo um papel central, apesar de “público” não ser, no caso, sinônimo de governamental e englobar instâncias de regulação compartilhadas com a sociedade civil. No mesmo sentido, sugere-se abandonar a (enganosa) dicotomia Estado versus mercado em favor de uma compreensão distinta da própria natureza dos mercados e dos mecanismos regulatórios que lhe são inerentes, aos quais compete atribuir um sentido público.[23]

Vimos que mesmo num contexto de economias mais abertas ao exterior, manteve-se o papel determinante das políticas domésticas – principalmente, no tocante à apropriação dos frutos do dinamismo econômico – apenas tendo se tornado mais complexa a formulação de políticas num mundo interdependente. Vimos também que não há contradição no longo prazo entre eficiência econômica e eqüidade social, entre crescimento econômico e distribuição da renda e da riqueza; mais do que isto, reduzir a iniqüidade beneficia os mais pobres no curto prazo e favorece o crescimento no longo prazo. Estas conclusões – verdadeiras no plano macroeconômico – não eliminam a necessidade de se rediscutir a noção de eficiência econômica, ainda fortemente marcada pelos fundamentos microeconômicos que caracterizam a corrente principal da economia que a tornam uma questão de eficiência em custos e de competitividade dos agentes econômicos individualmente considerados. Estou aqui sugerindo a possibilidade de se construir um marco conceitual e analítico onde a eficiência econômica é abordada de forma subordinada a critérios de eqüidade social. Creio ser este um dos caminhos para tratar do tema da exclusão e de contribuir para a resposta a perguntas como “exclusão em relação a quê?”, ou melhor, “incluir em relação a quê?”.

Concluo retomando o objetivo inicial deste ensaio, que é o de atribuir sentido ao desenvolvimento econômico, aqui associado à busca de melhoria da qualidade de vida através de processos com ativa participação das respectivas comunidades na definição dos seus fins e dos meios para perseguí-los. Hirschman concordaria com Berman no sentido de que trata-se de tomar o desenvolvimento em nossas próprias mãos. Fica no ar, contudo, a observação deste último de que deste modo poderíamos expressar nossas próprias “aspirações e aptidões fáusticas” e, com astúcia e fortuna, criar e encarnar nossas próprias tragédias do desenvolvimento.

 

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