Estudos Sociedade e Agricultura

autores | sumário

 

Renata Menasche

O Quatrilho: casamento, amor e estratégias de reprodução social camponesa


Estudos Sociedade e Agricultura, 15, outubro 2000: 179-193.

Renata Menasche é doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRGS.


Introdução

O esforço empreendido neste texto tem por objetivo apontar elementos para repensar um problema antigo a partir de um problema mais recente. O lugar do casamento nas estratégias de reprodução social camponesa foi já bastante estudado. Mas como o amor, que remete ao indivíduo, interfere no casamento, estratégia familiar? Ou, nas palavras de Viveiros de Castro & Araújo (1977:133), “como incorporar, uma vez admitida tal possibilidade (tendência visível nas teorias e discussões recentes), o componente afetivo e/ou individual na análise das relações sociais?”.

Essa pergunta é parte de um conjunto de indagações que dizem respeito à relação entre o “nós” coletivo e o “eu” individual nas estratégias contemporâneas de reprodução social camponesa.

Mas não pretendo aqui respondê-la. O objetivo deste trabalho é, tomando como inspiração para a análise a história narrada em O Quatrilho[1], levantar pistas para essa reflexão.

 

I parte: a história

Na vida como no jogo

Ambientado na região colonial gaúcha de Caxias do Sul, em fins do século XIX, O Quatrilho é uma história de troca de casais.

O título da obra sugere a analogia com o jogo de quatrilho, jogo de cartas comum, naquele período, entre os camponeses – imigrantes italianos – daquela região. Nesse jogo, a cada mão de cartas ocorre a troca de parceiros.

Ângelo Gardone e Teresa, Mássimo Boschini e Pierina: os jovens casais que, sem terra e evitando o caminho considerado arriscado das colônias novas, formam uma sociedade, deixando Santa Corona rumo a San Giusepe, onde construiriam um moinho e compartilhariam a mesma terra e a mesma casa.

Teresa e Mássimo, Pierina e Ângelo: os novos casais que se formariam a partir da paixão surgida entre os dois primeiros, paixão que os faria deixar tudo para trás.

 

Ângelo e Teresa

A história tem início com o casamento de Ângelo e Teresa, à época com 24 e 20 anos, respectivamente.

Para cumprir a promessa de criar os seis irmãos – três rapazes e três moças –, feita no dia do enterro da mãe, Ângelo, o mais velho, adiara por cinco anos seu casamento. Desde seus 14 anos, quando a mãe morrera e o pai encolhera-se em sua tristeza, Ângelo assumira a frente da família.

O viço da noiva, bonita, vaidosa e alegre, era uma espécie de contraponto à aridez da vida que sempre levara o desajeitado e acabrunhado rapaz.

Teresa, a do meio entre cinco irmãs, era, devido à promessa de Ângelo, a última das irmãs a se casar, o que representava, para ela, motivo de vergonha. Após cinco anos de espera – período em que, depois de cada safra de uva ou de trigo, branqueara, costurara e bordara, abarrotando ainda mais o baú de noiva –, Teresa, com o casamento, começava, enfim, “a ser mulher igual às outras”.

Na manhã seguinte ao casamento, Teresa é conduzida pelo marido para conhecer suas posses: “a mula é dele, a junta de bois de arado é da família, as vacas de leite são uma dele e a outra da Dosolina, as galinhas são das moças. E o trigo? O trigo guardado é da família. O do Ângelo foi vendido para fazer o casamento. A plantação de milho é um terço dele e dois terços da família”.

Viveriam, por algum tempo, na casa da família do marido. Assim, Ângelo continuaria a juntar algumas economias, para que, mais tarde, pudessem ter sua própria terra. Mas poderiam viver lá somente até que Agostinho, o segundo filho homem, então com 17 anos, se casasse: aí teriam que sair, essa era a lei.

Em Pádua, na Itália, Mássimo fora seminarista – assim, era uma boca a menos a ser alimentada pelos pais, ele carpinteiro, ela lavadeira. Enviado de volta para casa pelos padres, trabalharia com o pai por alguns anos, aprendendo o ofício.

Aos 19 anos, correspondendo-se com um tio, o padre Giobbe, pároco na região de Santa Corona, resolve partir para a América. Antes de chegar à colônia, Mássimo viveria em Buenos Aires e Porto Alegre.

Pierina, filha de Gema e Beppe, moça sem muita beleza, rude, mas prática e trabalhadora –”ninguém sabia governar uma casa como ela” –, se encantaria com o sobrinho do padre, instruído, com suas polainas brancas, colarinho duro e gravata de seda.

Casados, Mássimo construiria para eles uma casa nas terras do pai da esposa, onde viveriam até se mudarem, com Ângelo e Teresa, para San Giusepe.

 

As reflexões de padre Giobbe

Finda a cerimônia do casamento de Ângelo e Teresa, padre Giobbe parte rumo ao próximo vilarejo a ser visitado. É durante o trajeto, no lombo de sua mula, que analisa a tristeza que sentia a cada casamento que realizava.

O que lhe causava mal-estar era o brilho de esperança que via nos olhos dos noivos, uma esperança que ele sabia duraria muito pouco tempo. Tinha pena sobretudo das noivas, alegres e atraentes, que ele voltaria a ver, em alguns anos, envelhecidas, feias, com o sofrimento e a resignação escondidos no fundo dos olhos tristes, revelados com lágrimas no confessionário.

 

Os conselhos de tia Gema

Teresa jamais se sentira tão só como nos dois meses que se sucederam ao casamento. Por isso insistira com o marido para que fizessem aquela visita dominical: a sós com tia Gema, na cozinha, poderia, finalmente, abrir seu coração e buscar entender a vida de casada.

“Tudo é diferente do que eu pensava”, desabafa Teresa, ao que a mulher mais velha responde “todas pensam”.

Teresa recordava sua primeira noite de casada, quando Ângelo se deitara sobre ela, de ceroulas, no escuro. “Fora tudo rápido demais: uma dor forte na barriga e, logo, ele rolara para o lado, ajeitara o travesseiro e dormira. Ela não conseguira dormir. Estava em febres. Fora obrigada a se aliviar sozinha, como fazia todas as noites de domingo, quando Ângelo vinha para namorar”.

Tia Gema, divagando em suas próprias recordações, conta à moça – em cujos olhos podia ver que não estava contente – que também fora uma boba. “A gente acha que depois de casar tudo fica bom: a casa só nossa, a galinha, a vaca de leite. Sem mãe para gritar, sem pai para bater. Sem ter que trabalhar como escrava para os irmãos. E então a gente costura um lençol, depois borda uma toalha e faz rendas para a saia de baixo... E todo o domingo na igreja, de olho... nem precisa ser bonito. E quando a gente veste o vestido de noiva e entra na igreja, pensa que está entrando no céu. Mas o céu termina justo ali, isso eu garanto. Começa tudo pior que antes: trabalhar, trabalhar. Porque a gente está no começo, não tem nada, precisa ajudar o pobre marido. E de noite, arrebentada, tem que abrir as pernas para ele. Aí a barriga cresce, e se continua trabalhando. Quando tu pensas que os filhos vão ajudar, chega a vez deles: já estão de olho na estrada. E aí a gente já está um trapo, uma velha, e não teve satisfação nenhuma”.

A cama, afirmava a tia, para a mulher, é um sacrifício. Ao que a moça, constrangida, desabafa: “mas tem dias que se tem a febre no corpo”. Gema – para quem mulher de cinturinha fina, que não dá para o serviço, só pode mesmo sentir febre no corpo – é então categórica: “isso é bobagem, é doença”. E aconselha a sobrinha: “trabalha o dia inteiro, come bastante, dá um grito com o marido, e vai ver que a febre desaparece. Pensa em outras coisas, num bom salame com vinho”.

As palavras amargas da tia, sempre disposta e brincalhona, deixaram Teresa assustada. A conversa, ao contrário do que tinha esperado, lhe fizera ainda mais intranqüila. Não era isso que teria gostado de ouvir. “Então não existia o amor? Mas até o padre falava dele! E se o desejo do corpo não existisse, por que o padre falava contra essas tentações? Alguma coisa estava errada no que a tia Gema dissera. Mas não conseguia atinar onde estava o erro”.

Depois dessa conversa, sentados à mesa para o café da tarde, pela primeira vez a presença de Mássimo chamaria a atenção de Teresa, que, por sua vez, despertava no rapaz a lembrança de uma moça por quem se interessara quando vivera em Buenos Aires.

 

O anticlericalismo de Roco

Agostinho anunciara que iria se casar, e tudo indicava que o casamento seria seguido de um batizado. O irmão mais velho sempre soubera que teria que deixar a casa do pai, mas não esperava que isso acontecesse tão cedo. Apenas dois anos haviam se passado de seu casamento, e as economias de Ângelo eram ainda insuficientes para comprar sua própria terra.

Ao mesmo tempo, não havia mais terras disponíveis naquela região, o que fazia com que muitos novos casais se dirigissem para as colônias novas, perto do Rio Uruguai. Mas Ângelo não estava disposto a encarar o desafio e as dificuldades de desbravar uma nova região, como fizera, em Santa Corona, seu próprio pai. Resolve, então, mudar-se provisoriamente para Caxias, onde se empregaria na construção da estrada de ferro, juntando o que conseguisse ganhar por seu trabalho para o momento em que descobrisse uma colônia a venda nas redondezas.

É assim que ele e Teresa – então grávida – se instalam na pensão de Roco, compadre do padrinho de Ângelo. Lá ficariam até que Teresa fosse levada de volta à casa do pai do marido para aguardar o nascimento da primeira filha, Rosa.

Em uma das tardes em que conversavam, Teresa compreendeu a origem do ódio que Roco mantinha pelos padres: os culpava por terem transformado em beata sua esposa.

As idéias de Roco eram, para a moça, surpreendentes. Roco lhe explicava não ser contra a religião, mas contra os padres. Afirmava sua fé e respeito pelo evangelho, distinguindo-o da pregação dos padres: “quando se ouve eles falar, parece que tudo o que dizem é coisa mandada por Deus, mas no evangelho não tem a metade do que eles querem obrigar a gente a fazer”. O casamento, interroga-se, não seria também uma invenção dos padres?

Teresa ficava intrigada com as idéias do amigo: “como podia ser contra os padres e a favor da religião? Como se podia separar as duas coisas?”. Isso dava à moça o que pensar. “A mulher deve obedecer o marido. Será que isso estava escrito no evangelho?”.

 

Amor é uma coisa, casamento é outra

Já se iam alguns meses da mudança dos dois casais para San Giusepe. O moinho, administrado por Mássimo, já estava em funcionamento.

Ângelo era responsável pelo trabalho na lavoura e pelos negócios da sociedade, que se expandiam a cada dia. Em breve, tomaria, a juros baixos, dinheiro emprestado dos colonos de San Giusepe para quitar a dívida da colônia que haviam comprado – negócio que Mássimo consideraria imoral, pois não estava de acordo em explorar os colonos –, e, ainda, passaria a comprar toda a produção da vizinhança para comercializar na venda do lugar – da qual se tornaria sócio – e em Caxias. Transformava-se em negociante habilidoso, figura proeminente da comunidade.

Teresa deixara a casa por conta da prima, e se encarregava da comida. “Uma não metia o nariz no que a outra fazia”.

Durante todo esse período, a relação entre Teresa e Mássimo fora distante, quase formal. Mas Teresa, que andava angustiada, remoendo suas idéias, resolvera conversar a respeito com Mássimo. E é com esse objetivo que, certa tarde, procura-o no moinho.

Teresa, então, apresenta suas idéias a Mássimo. “A tia Gema não acredita que existe o amor. Mas eu pensei bastante e sei que o amor existe. Existe mesmo, não é?”, ao que Mássimo responde afirmativamente.

“Então a primeira idéia está certa. A outra é: o amor nunca é pecado, é sempre uma coisa boa, porque foi feito por Deus”.

Sentiu-se fraquejar, mas continuou. “Outra coisa que eu penso, é que o amor é uma coisa e casamento é outra”.

Ouve, então, o rapaz perguntar: “e quando as duas coisas acontecem separadas, o que é que se faz?”. “É isso que eu não sei”, responde Teresa.

 

Teresa e Mássimo; Pierina e Ângelo

A dúvida permaneceria ainda por mais dois ou três meses, até o dia de Natal, o primeiro que passavam em San Giusepe. Após o farto almoço, Mássimo convidaria a todos para um passeio no rio. Ângelo esquivar-se-ia, pois tinha ainda um negócio a concluir naquela tarde. Pierina tampouco iria, mas insistiria para que fossem, ele e Teresa. E foram.

Teresa, então, conduz Mássimo a uma clareira, local que havia escolhido para entregar-se a ele. “O amor existia, e era mais forte do que tinha imaginado. Se morresse agora, nem sequer estremeceria, pois estava leve, não havia nenhuma culpa pesando no fundo, e tudo era bom”. Entenderam, os dois, que uma outra vida devia, necessariamente, começar ali.

Dali há algum tempo – o suficiente para que Mássimo conseguisse, secretamente, colocar as mãos em uma pequena parte do dinheiro que lhe cabia pela sociedade –, partiriam, levando Rosa.

Em São Paulo, Mássimo abriria uma oficina de móveis, que viria a prosperar. Formariam, onde não pudessem ser encontrados, uma nova família.

Ângelo e Pierina ficaram desesperados com o abandono dos respectivos cônjuges. Ângelo proporia como solução para a situação que vendessem tudo, pois não podiam ficar os dois ali, morando juntos.

É Pierina que, mantendo a cabeça fria e dizendo que não colocaria a perder tudo o que tinham, resolve “colocar as coisas em seu lugar”. É assim que ela, algum tempo depois – quando percebe o interesse de Ângelo por uma viúva –, tomaria a iniciativa de passarem a viver maritalmente, engravidando na primeira noite em que mantiveram relações sexuais.

Por “viverem em pecado”, Ângelo e Pierina enfrentariam a hostilidade – insuflada pelo padre local – de toda a comunidade. Mas, como seus negócios prosperassem cada vez mais, alcançariam o perdão da igreja e a aceitação da comunidade.

Podendo, então, partir de San Giusepe de “cabeça erguida”, mudam-se para uma das melhores casas de Caxias, de onde Ângelo poderia melhor gerir seus negócios, que se expandiam, e onde teriam ainda vários filhos.

 

II parte: casamento e amor

Casamento: negócio de família

“O casamento tem por função primeira garantir a continuidade da linhagem sem comprometer a integridade do patrimônio”. Esta frase de Bourdieu (1962:34) sintetiza com grande precisão o lugar atribuído ao casamento nas estratégias de reprodução social camponesa.

O casamento, entendido menos como assunto dos indivíduos diretamente envolvidos do que de suas respectivas famílias, é abordagem recorrente nos estudos sobre campesinato.

É dessa perspectiva, por exemplo, que Bourdieu (1962) analisa o celibato na região francesa do Béarn e que Vernier (1991) estuda as alterações provocadas no mercado matrimonial pelas emigrações na ilha grega de Karpathos. Em um estudo sobre os colonos teuto-brasileiros da colônia velha de Dois Irmãos, região do Vale dos Sinos, Rio Grande do Sul, Woortmann (1994), enfatizando a família camponesa como instituição importante para a regulamentação do comportamento e da preservação de valores culturais, mostra também como as práticas de sociabilidade, mais especificamente o parentesco – seja como casamento, seja como descendência –, se relacionam ao patrimônio territorial camponês.

Para a autora, “a noção de patrimônio se distingue daquela de propriedade individual mercantil, pois a terra... não é simplesmente um bem imóvel, e o casamento, se tem uma razão prática, e se é uma estratégia de reprodução material, tem igualmente uma ‘razão cultural’, pois busca reproduzir uma descendência. A terra é parte de uma ordem moral; mais que objeto de trabalho... ela é o patrimônio de uma ‘linhagem’. Sob ambos os pontos de vista, ela expressa o valor: família e hierarquia” (Woortmann, 1994: 311).

É desse modo que a autora analisa os padrões de sucessão, herança, casamento, sociabilidade, assim como as migrações camponesas. “A migração interna dos colonos...”, explica, “... assim como a emigração de seus antepassados alemães, obedece a uma mesma lógica, decorrente da mesma condição camponesa e de uma ideologia que privilegia a terra como requisito de reprodução social, isto é, uma reprodução ‘camponesa’... não se explica apenas por fatores que são externos ao campesinato... mas também a partir do próprio sistema camponês. Ela é, ao mesmo tempo, desencadeada e organizada pelo sistema de parentesco: uma dimensão desse sistema, como o padrão de herança, expulsa pessoas; outra dimensão, o ‘espírito de parentesco’, faz com que a migração se faça através de grupos de parentes [não apenas famílias, mas conjuntos de famílias aparentadas entre si nas localidades de origem]... que irão replicar o modelo em outro lugar – para, em seguida, recomeçar tudo de novo” (idem: 115-16).

A migração é, então, percebida como mecanismo de reprodução social desse campesinato. E é também por meio dessa abordagem que Woortmann interpreta o expressivo número de rapazes e moças destinados, entre esses colonos, à carreira religiosa; bem como o celibato camponês[2], afirmando que “o expulso é necessário para que a totalidade se reproduza, e para que se reproduza o não-indivíduo no interior da ordem hierárquica” (idem:314).

As estratégias de reprodução social camponesa descritas por Woortmann (1994) remetem à história narrada em O Quatrilho.

O compromisso de Ângelo com a criação dos irmãos, assim como sua expulsão da casa da família quando do casamento do irmão mais novo. A passagem de Mássimo pelo seminário e sua posterior migração. A valorização do perfil laborioso de Pierina[3]; ou a possibilidade de ascensão à condição de “mulher” atribuída ao casamento por Teresa[4]. A migração conjunta dos dois casais, parentes, todos não herdeiros. E, ainda, o fato da terra se colocar, para todos, como meta, a ser alcançada a partir do casamento.

Sugere-se nesta comunicação que não se deve interpretar como coincidência que a análise de­senvolvida por Woortmann (1994) aborde temáticas presentes também nas histórias dos personagens de nossa história. A história narrada guarda muitas semelhanças com  descrições etnográficas do modo de vida camponês e suas estratégias de reprodução social, o que permite intuir que a trama não seja mera “invenção” do autor, mas que esteja assentada, de algum modo, nas tradições daqueles colonos.

Assim sendo, tomados os cuidados necessários, propõe-se uma interpretação dos casamentos fictícios de Ângelo e Teresa e de Mássimo e Pierina tendo com base a  compreensão do lugar da instituição casamento nas estratégias sociais de reprodução camponesa, como anteriormente discutida.

 

Razão versus sentimento?

“Os indivíduos agem dentro dos limites das regras, de forma que o modelo que se pode construir não representa o que se deve fazer, ou mesmo o que se faz, mas sim o que se tende a fazer se excluída toda a intervenção de princípios exteriores à lógica do sistema, tal como o sentimento.” (Bourdieu, 1962: 47)

Seria o sentimento, como parece afirmar Bourdieu, necessariamente exterior à lógica de reprodução social camponesa?

Não é o que podemos apreender do estudo de Segalen (1980:20-21), que afirma que o amor está presente no meio rural, mas trata-se de um valor afetivo diferenciado segundo a organização social do grupo em questão.

Os dois casais de nossa história se constituem e buscam sua viabilização na terra dentro dos limites das regras estabelecidas pelas estratégias de reprodução social camponesa. Os casamentos são compatíveis com essa lógica, é verdade. Entretanto, isso não significa que tal lógica seja vivenciada como mecanismo.

Ângelo fora atraído pela vivacidade de Teresa, que, por sua vez, ansiava pelo casamento; Pierina encantara-se com os modos refinados de Mássimo, que, a seu tempo, vira na noiva trabalhadora um componente do sonho de se estabelecer na terra e constituir família. Ou seja, as uniões não foram constituídas na ausência de sentimentos.

Dessa forma, antes que contrapor o amor à razão, cabe perceber que àquela razão correspondia um tipo de amor. Isto é, as uniões se constituíram a partir de sentimentos, mas sentimentos pertencentes a uma determinada ordem social, compatíveis com sua reprodução.

Afinal, alerta Duvignaud (1990:207): “atribuiríamos a mesma palavra para designar a ligação ou amor para as sociedades que regulamentam escrupulosamente as relações de casamento, e para aquelas que deixam ao indivíduo a livre escolha de seu parceiro para a instituição do casal?”.

A análise de Segalen (1980:26-30) das diferenças regionais com relação à liberalidade sexual, permitida aos jovens camponeses franceses do século XIX antes do casamento, pode ser ilustrativa para compreender o vínculo entre relações amorosas e relações sociais.

A autora mostra, por meio de exemplos de diversas regiões francesas, que sociedades mais hierarquizadas, que têm uma organização de classe a defender, são bem mais severas e restritivas no que se refere às relações entre jovens de sexos diferentes do que as sociedades organizadas sobre uma base mais igualitária, em que a ordem social não seria colocada em perigo por uma relação que pudesse precipitar uma futura gravidez.

Em cada caso, explica Segalen, os limites seriam interiorizados pelos próprios jovens, ocorrendo o “acordo entre o amor e as necessidades sociais”. Qualquer que seja o tipo de relação autorizada entre os jovens, conclui a autora, o sistema de reprodução social funciona, protegendo a ligação fundamental entre a unidade de exploração econômica e a família.

É interessante, ainda para enriquecer a reflexão, trazer um outro trabalho, o de Iturra (1991). Estudando os camponeses da aldeia portuguesa de Pinheiros, o autor mostra como, naquela sociedade, a reprodução no celibato é estrutural. A geração de filhos fora do casamento é, então, percebida com naturalidade naquela sociedade, que veda a possibilidade do casamento aos que não têm patrimônio a transmitir. O celibato, comenta ainda o autor, “inclui uma fornicação mais permanente, nem sempre resultante num fruto”. Dessa forma, as relações sexuais fora do casamento parecem não ser, em Pinheiros, percebidas como problemáticas, desde que, mais uma vez, não sejam ameaçadoras da organização social.

Voltando à nossa história, podemos intuir que a aceitação junto à comunidade que Pierina e Ângelo conquistariam para sua união busca legitimidade no fato desse novo arranjo possibilitar que “as coisas fossem recolocadas em seu lugar”, ou seja, esse “casamento”, mesmo que ilegal, restabelecia o vínculo entre família e patrimônio, rompido pela partida de Teresa e Mássimo.

Já quanto ao casal apaixonado de O Quatrilho, seu destino seria outro. Talvez pudesse ter optado por viver secretamente seu romance – casos de adultério são corriqueiramente mencionados em diálogos presentes na trama. Dessa forma, o sistema teria permanecido intocado. Seus sentimentos teriam, nesse caso, sido contidos pelos limites estabelecidos pela organização social do grupo. Entretanto, não foi essa sua opção. A decisão de assumir publicamente seu amor, colocado, assim, acima do valor maior, a reprodução na terra, conduz Teresa e Mássimo, necessariamente, à condição de exilados.

Como na análise de Duvignaud (1990:208), “a afetividade se manifesta pelos sentimentos, pelas paixões que, quando exteriorizadas fora das normas estabelecidas, se constituem em escândalo”. Um amor fora da ordem, cuja realização, dessa forma, se dava pela ruptura com o modelo, apenas poderia ser vivido com a expulsão dos apaixonados. O preço cobrado seria o abandono da terra, a negação da condição camponesa, o exílio na cidade[5].

 

Como em Romeu e Julieta

Em um trabalho onde buscam mostrar a  conexão entre a concepção de amor presente na obra Romeu e Julieta, de Shakespeare, e a noção de indivíduo tal como definida na cultura ocidental, Viveiros de Castro & Araújo (1977:131) discutem a hipótese que apresentam como fio condutor de sua análise: “A noção de amor elaborada no texto em questão define uma concepção particular das relações entre indivíduo e sociedade, estando subordinada a uma imagem básica da cultura ocidental – a do indivíduo liberto dos laços sociais, não mais derivando sua realidade dos grupos a que pertença, mas em relação direta com um cosmos composto de indivíduos, onde as relações sociais valorizadas são relações interindividuais. O amor – e aqui antecipamos algo de nossas conclusões – é visto como uma relação entre indivíduos, no sentido de seres despidos de qualquer referência ao mundo social, e mesmo contra este mundo.”

A peça, afirmam esses autores, por meio da “origem do amor” conota “a origem do indivíduo moderno sob um aspecto essencial: este indivíduo é tematizado, sob a espécie de sua dimensão interna, enquanto ser psicológico que obedece a linhas de ação independentes das regras que organizam a vida social em termos de grupos, papéis, posições e sentimentos socialmente prescritos”. Afinal, argumentam, “o casamento de Romeu e Julieta não une famílias, e sim indivíduos” (idem:142, 147).

A análise de Viveiro de Castro & Araújo (1977:140) parte, assim, da noção de indivíduo como valor, estabelecida por Dumont, apontando, porém, um aspecto considerado não tematizado pelo autor francês: a autonomização do domínio afetivo.

Mas o que teriam em comum os dois casais de apaixonados, um originário de duas famílias – poderosas e inimigas – da Verona de meados do século XV; o outro da destruição de duas famílias – camponesas – da San Giusepe do final do século XIX? Em ambas as histórias, pode-se interpretar o amor dos protagonistas como sentimento que se desloca, autonomizando-se, das visões de mundo em que estão inseridos os amantes, remetendo-os, assim, a um sistema de valores em que o indivíduo, e não mais os grupos a que pertencem, passa a ocupar o lugar central.

E, em ambas as histórias, tal deslocamento de sentimento traz como conseqüência a expulsão dos casais dos grupos a que pertenciam: seja pela morte, no caso de Romeu e Julieta; seja mediante a troca do campo pela cidade, no caso de Mássimo e Teresa. Seus amores não podiam ser vividos no seio das sociedades cujas lógicas de reprodução combatiam. Eram pertencentes a outra lógica – que, de certa forma, anunciavam –, em que a primazia pertence ao indivíduo.

Como na análise desenvolvida por Duvignaud (1990:210-11), discutindo a gênese das paixões: “A personalidade anômica é um ‘mártir’, um testemunho. Testemunho daquilo que ainda não é e que poderá ser. Testemunho de uma possibilidade ilimitada de afetividade que ultrapassa a forma atual da sociedade em que está inserida. As imagens do passado, aquelas do presente, as utopias podem servir de instrumento a essa antecipação do ser com relação a si mesmo e com relação à vida comum. (...) A paixão é o modelo da retirada de um ser da existência, em direção a uma outra existência, que ainda não existe”

Em Romeu e Julieta, à morte dos dois amantes se sucede a pacificação entre suas famílias. Ocorre, assim, o fim da rivalidade entre as duas facções – que polarizavam politicamente a sociedade de Verona –, fortalecendo-se, então, o poder do Príncipe. É dessa forma que Viveiros de Castro & Araújo (1977:160) interpretam a peça como “um mito que narra, paralelamente à origem do amor, a origem do Estado”.

Em Romeu e Julieta, assim como na análise de Duvignaud (1990:208), as emoções, os sentimentos, as paixões aparecem, então, “como outros tantos modos de superar as exigências da natureza, as instituições e os obstáculos que limitam, socialmente, a livre interação entre os seres”.

Coloca-se, então, como questão: qual seriam o significado e as conseqüências da presença do amor romântico entre os camponeses de San Giusepe? Ou, ainda, lançando o problema para a reflexão: como o individualismo, “valor fundamental das sociedades modernas”, viria – ainda que assegurada a continuidade de uma visão particular de mundo – a alterar (ou não?) a hierarquia interna dos valores dessa cultura (Dumont, 1985:29,18)?

 

Referências Bibliográficas

Bourdieu, Pierre. Célibat et condition paysanne. Études Rurales, 5-6, 1962:32-135.

Dollo, Christine. Amour et mariage. Marselha, iufm aix-Marseille, s.d., (http://sceco.univ-aix.fr/cerpe/amourmariage.htm).

Dumont, Louis. O individualismo - uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

Duvignaud, Jean. La genèse des passions dans la vie sociale. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.

Gay, Peter. A paixão terna – a experiência burguesa: da Rainha Vitória a Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Iturra, Raul. A reprodução no celibato. In: A religião como teoria da reprodução social – ensaios de antropologia social sobre religião, pecado, celibato e casamento. Lisboa: Escher, 1991.

Mauss, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do ‘eu’”. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: epu, 1974.

Pozenato, José Clemente. O Quatrilho. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995 (9ª edição, edição especial alusiva ao lançamento do filme O Quatrilho).

Segalen, Martine. Mari et femme dans la société paysanne. Paris: Flammarion, 1980.

Sennett, Richard. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Vernier, Bernard. Émigration et dérèglement du marché matrimonial. In: La genèse sociale des sentiments. Paris: Édition de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1991.

Viveiros de Castro, Eduardo Batalha & Araújo, Ricardo Benzaquen de. Romeu e Julieta e a origem do Estado. In: Velho, Gilberto (org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

Woortmann, Ellen. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo/Brasília: Hucitec/Ednub, 1995.

 

Notas

[1] O livro de José Clemente Pozenato deu origem ao filme, de mesmo nome, dirigido por Fábio Barreto e lançado em 1995.

[2] Da mesma forma que na análise que Bourdieu constrói a partir dos dados da região francesa do Béarn (1962), ou no estudo de Iturra (1991) da aldeia portuguesa de Pinheiros.

[3] Segalen (1980:130, 23), estudando o campesinato francês do século XIX, mostra, para aquela sociedade, a importância, para a valorização de uma mulher, de sua capacidade de trabalho e de gestão dos assuntos domésticos, relacionando a essa valorização um padrão de beleza feminina: “o senso do belo é orientado por considerações de um mundo onde o vigor físico e a saúde são os principais trunfos de uma sociedade fundada sobre o trabalho manual”.

[4] No mesmo estudo, anteriormente citado, Segalen (1980: 136) mostra que, na sociedade tradicional, a mulher não tem qualquer status fora do casamento, sendo a instituição responsável por sua constituição em ser social.

[5] Cabe aqui uma ressalva. Relembrando que a interpretação é construída com base em um caso ficcional, poder-se-ia supor que esse fosse um desfecho possível entre camponeses reais – hipótese que encontraria respaldo na análise da bibliografia aqui discutida. Entretanto, é necessário atentar que o desfecho da história, como se apresenta, é construído por um autor e para um público já imersos num imaginário em que prevalece o amor moderno.