Estudos Sociedade e Agricultura

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José Augusto Drummond

A extração sustentável de produtos florestais na Amazônia brasileira: vantagens, obstáculos e perspectivas


Estudos Sociedade e Agricultura, 6, julho 1996: 115-137.

Versão revista de um paper apresentado no “Interdepartamental Seminar in the Latin American Area”, na University of Wisconsin, Madison, no semestre letivo da primavera de 1992.

José Augusto Drummond é professor da UFF.


Introdução

O objetivo deste texto é apresentar uma discussão de caráter conceitual e analítico a respeito da viabilidade de atividades extrativas ecológica e economicamente sustentáveis em algumas partes da região amazônica brasileira. Apesar de sintética, a discussão pretende ser abrangente e sistemática. O texto não contém pesquisa original sobre o assunto, mas usa argumentos e achados que constam de uma literatura baseada em volume razoável de pesquisa documental e de campo. Parte dessa literatura se dedica também a discussões conceituais e normativas. Basicamente, o presente texto faz um resumo das principais questões discutidas em torno do extrativismo desde que a militância dos seringueiros brasileiros, liderados pelo falecido Chico Mendes, assumiu dimensões nacionais e internacionais, em 1987.

Depois de muitas décadas em estado de dormência, o extrativismo amazônico ressurgiu no Brasil como um dos vários temas de um debate mais amplo sobre o destino das florestas amazônicas. Essa reemergência ocorreu na esteira de um movimento ambientalista "planetário", fortemente influenciado por cientistas e militantes dos países desenvolvidos. Esse movimento começou a pressionar de muitas formas contra práticas e políticas consideradas ameaçadoras à integridade às florestas tropicais de todo o mundo, e do Brasil em particular. No complexo emaranhado das questões econômicas, ecológicas, políticas e culturais em debate, os seringueiros brasileiros reaparecem na década de 1980 com uma nova identidade: a de "ambientalistas". Eles souberam ligar os requisitos da sua sobrevivência enquanto grupo profissional às vantagens proclamadas do seu uso predominantemente extrativo das florestas amazônicas. Com a formulação do conceito econômico, fundiário, legal e comunitário das "reservas extrativistas", para a qual concorreu especialmente a agrônoma brasileira Mary Alegretti, o tema do extrativismo amazônico saiu de um exílio secular e conseguiu ocupar por quase uma década o centro do palco das amplas discussões contemporâneas sobre o destino das florestas amazônicas e das florestas tropicais em geral.

Como se sabe, a posição "ambientalista" dos seringueiros brasileiros ganhou simpatia ou mesmo o apoio ativo de muitos cientistas e técnicos brasileiros, de todos os ambientalistas, de alguns políticos e setores da burocracia governamental, além de ambientalistas estrangeiros e até técnicos de bancos multilaterais. Houve também uma boa dose de críticas feitas por outros cientistas brasileiros, por governantes locais, além de representantes de outros interesses organizados (pecuaristas, seringalistas, etc.). Na verdade, o debate sobre a viabilidade do extrativismo teve o mérito de estimular uma discussão sistemática de todos os usos possíveis dos recursos florestais e não-florestais da Amazônia. O assassinato de Chico Mendes, em fins de 1988, adicionou um tom apaixonado a um debate que já se revelava profundo. Assim, o tema do extrativismo se empresta a uma ampla reflexão sobre as perspectivas e os potenciais das terras e dos recursos da Amazônia. Essa discussão é inclusive pertinente, ao menos em algumas dimensões, a outras regiões do mundo cobertas por florestas tropicais.

Para tirar partido da grande variedade de tópicos envolvidos no debate acima referido, apresentarei primeiro uma definição de trabalho de extrativismo. Em segundo lugar, discutirei os principais tópicos debatidos contemporaneamente em relação ao extrativismo amazônico, tomando-os um a um, na medida do possível. Em terceiro lugar, farei algumas especulações sobre a viabilidade e a "desejabilidade" de um setor extrativista com bases comunitárias e ecologicamente sustentáveis na Amazônia brasileira.

 

Uma definição de extrativismo

O extrativismo - ou uma economia extrativa - é, no sentido mais básico, uma maneira de produzir bens na qual os recursos naturais úteis são retirados diretamente da sua área de ocorrência natural, em contraste com a agricultura, o pastoreio, o comércio, o artesanato, os serviços ou a indústria. A caça, a pesca e a coleta de produtos vegetais são os três exemplos clássicos de atividades extrativas. A combinação dessas três atividades sustentou, com exclusividade, um número insabido de sociedades humanas, talvez por dezenas de milhares de anos, por vezes associadas com diversas formas de agricultura e/ou pecuária itinerantes. Elas só deixaram de ser decisivas - embora sem desaparecer - com o aparecimento da agricultura temperada permanente que a literatura arqueológica e antropológica associa à revolução neolítica ocorrida há apenas alguns milhares de anos.

Quase toda a "tecnologia" empregada nessas formas de extrativismo "elementar" era simbólica ou empírica: não havia necessidade de complexas mediações tecnológicas ou mecânicas entre os humanos e os recursos naturais. Quando esses extrativismos formam a base exclusiva ou quase exclusiva de sustento, ele caracteriza um tipo de sociedade - "primitiva", "tribal", etc. - , muito familiar aos antropólogos clássicos e contemporâneos. Essas três atividades extrativas - caça, pesca e coleta vegetal - sobreviveram mesmo em sociedades com formas itinerantes de agricultura ou de pastoreio, complementando os recursos de subsistência, principalmente com proteína animal e bens vegetais cujo cultivo era inviável ou desconhecido. Em algumas sociedades contemporâneas, como a brasileira, ainda há grupos sociais demográfica e culturalmente expressivos que praticam essas atividades extrativas como parte de suas estratégias cotidianas de sobrevivência, embora eles possam se dedicar também a atividades agrícolas, pastoris, comerciais, artesanais, de serviços ou industriais.

No entanto, o termo extrativismo se aplica também a atividades mais "modernas", em que certos materiais naturais também são retirados no seu local de ocorrência natural, mas com a intermediação de tecnologia e maquinário mais sofisticados. Refiro-me, entre outros, à mineração, à extração de petróleo e gás natural e ao corte de árvores em grande escala. Podemos incluir aqui as grandes obras de manipulação da água (aquedutos, represas, projetos de irrigação). Nesses casos, o extrativismo não caracteriza a sociedade como um todo, e sim certos setores econômicos de sociedades complexas dotadas de agricultura, pecuária, comércio, artesanato, indústria transformativa e serviços. Nos países mais desenvolvidos de hoje, o extrativismo "elementar", que chamarei aqui extrativismo de baixa tecnologia, é tipicamente uma atividade importante apenas em áreas "remotas" ou de "fronteira" (onde tecnologia, capitais e infra-estrutura são escassos). Nela um número relativamente pequeno de trabalhadores pobremente equipados como que "arranca a unha" alguns recursos da natureza. O extrativismo "moderno", que chamarei de alta tecnologia, pode ou não ocorrer nessas mesmas regiões, mas quando se instala nelas via de regra introduz "modernizações" tecnológicas e mecânicas compatíveis com escalas comerciais de produção determinadas pela competição por mercados de escala nacional ou internacional.

O extrativismo de baixa tecnologia pode conviver com a de alta tecnologia numa mesma sociedade, inclusive numa mesma região e num mesmo ramo, como uma forma "tradicional" que sobrevive à "modernização", ou quando o bem natural perde - por motivos que não é preciso discutir aqui - valor econômico de mercado. O garimpo manual ou pouco mecanizado, por exemplo, pode operar ao mesmo tempo que a empresa mineradora capitalizada, se o mineral tiver alto valor por unidade de volume, como o ouro, ou as pedras preciosas. Outro exemplo: por causa de subsídios e de reserva de mercado, o seringueiro brasileiro pôde continuar a produzir extrativamente uma borracha mais cara e de qualidade menor depois da domesticação da seringueira (isto é, a sua extração em escala industrial) em outros países. Essa co-ocorrência ou co-localização dos dois extrativismos é muito mais rara ou mesmo impossível com outros bens econômicos, como o petróleo e o minério de ferro, de preço baixo por unidade de volume, ou o alumínio e outros metais, em que os custos de mineração e processamento são muito altos.

Para efeito deste texto, o extrativismo que interessa é o de baixa tecnologia, focalizado em produtos vegetais das diversas floras amazônicas. O debate sobre as "reservas extrativistas" amazônicas se refere a modos de extração de flora (e, em menor escala, de fauna) que não dependem de grandes insumos de capital e tecnologia. Isso não impede a possibilidade de que formas mais modernas de extrair esses mesmos bens venham a surgir a curto prazo, dentro e fora das reservas. Outro detalhe importante é que esse extrativismo se aplica principalmente a bens que são conceitualmente entendidos como renováveis (basicamente plantas e animais, ou gerados por plantas e animais), ou seja, bens cujos estoques são repostos por processos naturais numa escala de tempo compatível com a cultura humana. Essa capacidade de renovação natural dos estoques é crucial para o próprio conceito de reservas extrativistas, pois é ela que garante conceitual e praticamente uma produção contínua ou estável de bens (que os cientistas de língua inglesa chamam de sustained yield), que por sua vez angariam continuamente meios de subsistência para os seus coletadores.

Outra dimensão importante do conceito de extrativismo aqui discutido é a tendência de as economias extrativas contemporâneas (quando voltadas para o mercado, e não para a subsistência) se concentrarem em um ou dois bens cujo valor de mercado é tipicamente instável, causando ciclos voláteis de prosperidade e falência. Não apenas tende a ocorrer uma dependência excessiva de um único bem, mas há o detalhe de que esse bem é tipicamente exportado da região produtora sem quaisquer transformações industriais, ou apenas com as transformações estritamente necessárias para a preservação de suas características naturais. Por definição, uma economia regional é extrativa exatamente porque não processa localmente os bens que retira da natureza. Isso transfere para outras regiões ou mesmo outros países os benefícios ligados ao processamento secundário, à transformação industrial, à comercialização, ao marketing e ao transporte dos produtos finais. Processos correlatos a essas outras etapas produtivas - como a diversificação econômica e social, a maior qualificação dos trabalhadores, a elevação do nível de renda dos trabalhadores, o desenvolvimento tecnológico e o surgimento das atividades secundárias e terciárias - ocorrem de forma muito superficial ou não ocorrem em regiões extrativas.

As reservas extrativistas da Amazônia pretendem produzir um fluxo de bens naturais, coletados com pouco ou nenhum investimento tecnológico, para serem transformados, marketeados e consumidos em outras regiões e países, às vezes depois de algum processamento e transformação de baixa tecnologia realizados localmente. Não é demais lembrar que tais reservas poderão produzir também (via caça, pesca, coleta, artesanato e agricultura) "valores de uso", ou seja, bens consumíveis diretamente pelos produtores ou utilizáveis em escambos locais. No entanto, não é o eventual caráter de subsistência das reservas extrativistas que tem causado maior controvérsia, e sim as suas reais possibilidades de produzir valores de troca a serem negociados em mercados nacionais e internacionais. Para completar o quadro conceitual do que são essas reservas extrativistas, pode-se admitir que elas desenvolvam alguma criação animal (de espécies locais ou exóticas) e algum cultivo de plantas, desde que os bens assim produzidos não superem o valor dos bens extraídos.

A partir desses traços, podemos partir para uma discussão de vários tópicos sobre as possibilidades de produção sustentada de recursos naturais em clave extrativista na Amazônia brasileira.

 

Argumentos contra e a favor do extrativismo de baixa tecnologia na Amazônia

Esta seção se dividirá em tópicos analíticos. Para cada tópico colocarei as questões básicas, discutirei as implicações e apresentarei as visões que predominam sobre o assunto, concluindo com o meu próprio posicionamento. Alguns tópicos inevitavelmente se sobrepõem parcialmente a outros e isso gerará algumas repetições. Devo esclarecer que, apesar da minha posição pessoal moderadamente simpática às reservas extrativistas, discutirei argumentos favoráveis e contrários ao extrativismo de baixa tecnologia.

a) As atividades extrativas têm uma longa história na Amazônia. Pelo que se pode inferir dos mais recentes estudos arqueológicos e antropológicos, das etnografias contemporâneas e dos antigos relatos de missionários e viajantes, a extração de elementos da flora e da fauna de áreas florestadas e conexas (rios, lagos, igapós, cerrados, manguezais, etc.) tem sido um meio fundamental de subsistência para a maior parte dos seres humanos que viveram na Amazônia nos últimos 6 a 8 mil anos. Algumas porções do vale central do rio Amazonas parecem ter sido controladas, por algum tempo, por civilizações agrícolas relativamente complexas, embora não tão complexas e duráveis quanto as que floresceram nas montanhas e platôs dos Andes e da América Central. No entanto, é improvável que mesmo essas sociedades amazônicas complexas tenham interrompido todas as suas atividades extrativas, mesmo nos seus momentos de maior prosperidade. Tudo indica que a maior parte das sociedades amazônicas passou por longos estágios de comunidade primitiva, em que a extração forneceu grande parcela dos meios de subsistência, por vezes em combinação com os produtos da agricultura itinerante, ou de queimada. Essa combinação de atividades continua até hoje a fazer parte da estratégia produtiva de grupos nativos da região e até de migrantes mais recentes.

Assim, o extrativismo tem uma longa história na Amazônia, contribuindo para sustentar as milhões de pessoas que viveram e ainda vivem lá, antes e depois da conquista européia. Ele não pode ser desprezado como uma novidade comercial, ou uma "moda" de ambientalistas urbanos que favorece um grupo de interesse (coletadores), e nem mesmo como uma "distorção" introduzida pelos colonizadores europeus. É evidente que as atividades extrativas da Amazônia mudaram depois da penetração européia, mas quase todos os ciclos extrativos propriamente comerciais da Amazônia foram baseados em bens e "drogas do sertão" conhecidos e usados antes da presença européia.

b) As florestas amazônicas foram em parte modificadas pela ação humana. A Amazônia teve muitos milhões de habitantes, por milhares de anos. Houve algumas sociedades mais densamente povoadas, mais estáveis e mais complexas, e um número maior de sociedades de pequena população, seminômades e com estruturas sociais mais simples. Nestas últimas, várias dinâmicas sociais provocavam migrações sazonais, o seminomadismo e a repartição das aldeias. Todos os amazônidas controlavam o fogo, caçavam, pescavam e coletavam dezenas ou centenas de produtos vegetais; muitos praticavam agricultura itinerante. Tudo isso deu ampla oportunidade para que florestas e outras formações vegetais fossem modificadas pela ação humana, principalmente ao longo de rios, vias terrestres e em torno de aldeias. Muitos trechos de florestas tropicais não podem ser consideradas, portanto, "virgens". Denevan (1976) e Hecht (1989), entre outros, argumentam com base em cuidadosas pesquisas de campo que as florestas perto de aldeias e rios navegáveis resultam tanto de interferências humanas intencionais (principalmente a introdução deliberada de espécies vegetais úteis) quanto de processos ecológicos fora do controle humano.

Assim, é errado dizer que o extrativismo de baixa tecnologia deixe as florestas tropicais num estado "virgem". Pelo contrário, é quase certo que o extrativismo introduza mudanças sistemáticas na floresta, embora num grau muito menor que qualquer outra atividade econômica. Mesmo que o extrativismo não cause desmatamento nem a disrupção radical dos ecossistemas florestais, ele altera esses ecossistemas, especialmente quando combinado com a agricultura de queimada. Em suma, o extrativismo de baixa tecnologia modifica as florestas tropicais da Amazônia, mas essas florestas continuam a apresentar sistemas ecológicos complexos, alta produtividade biológica e rica biodiversidade, que por sua vez continuam a gerar produtos extrativos.

c) O extrativismo gerou produtos de sucesso comercial. Uma larga percentagem da produção extrativa amazônica não passa dos circuitos locais de subsistência e escambo. Depois da penetração européia, no entanto, muitos produtos extrativos encontraram mercados comerciais relativamente amplos e prósperos, de dimensão nacional ou internacional. Alguns produtos comandaram preços razoáveis por anos ou mesmo por décadas. O guaraná, o cacau, a castanha-do-pará e a borracha, só para citar exemplos mais conhecidos, conquistaram mercados duradouros e, para o mal ou para o bem, angariaram fortunas para comerciantes locais e internacionais, se não para os próprios coletadores. Por isso, é errado afirmar que bens coletados não podem alcançar o status de commodities. Incorreta também é a afirmação que o extrativismo é pela sua própria natureza fadado a existir apenas no nível de subsistência ou de troca local. É claro que não existe garantia que um produto extrativo de baixa tecnologia manterá a sua condição de commodity, uma vez que o atinja. A mesma incerteza, em grau mais brando, ocorre com produtos extrativos de alta tecnologia, no entanto.

d) O extrativismo dá origem a ou perpetua economias de mera subsistência que não superam baixos níveis de produtividade e de bem-estar. Os habitantes das regiões rurais da Amazônia - quer sejam coletores ou não - estão entre os brasileiros mais pobres. A estrutura social atual da região, severamente estratificada e excludente em termos do acesso à terra e a outros recursos de subsistência, deve muito aos explosivos ciclos de prosperidade e declínio típicos do extrativismo. É certo dizer, como faz Paulo Alvim, que os extratores amazônicos são pobres e continuarão a ser pobres enquanto estiverem presos à agricultura de subsistência e a ciclos extrativos efêmeros, mas isso não deve obscurecer outro fato: os coletadores amazônicos não são os brasileiros mais pobres, nem os que têm piores perspectivas.

Outras populações rurais brasileiras como as do Nordeste árido, ou do vale do rio Jequitinhonha (MG), ou mesmo do vale do rio Paraíba do Sul (RJ), são mais pobres que os extratores amazônicos, conforme constatado por Haller. Nessas regiões também há concentração fundiária, também há culturas de subsistência, mas a situação desses pobres rurais é agravada pelo fato seguinte: não há florestas nativas, sequer secundárias, que ofereçam produtos extrativos, nem para o mercado, nem para complementar a subsistência. Em outras palavras, a substituição do extrativismo por atividades econômicas comerciais que eliminem a floresta não garante melhores condições de vida para os que hoje são apenas ou principalmente extratores. Pode-se afirmar que os produtos extrativos florestais funcionam para os coletadores como uma "dispensa" natural que evita privações absolutas. Os pobres rurais de áreas desmatadas não contam com essa "dispensa."

e) Produtos extrativos tendem a ser substituídos por plantas/animais domesticados e/ou por produtos sintéticos. É verdade que muitos produtos extrativos das florestas tropicais brasileiras e de outros países foram deslocados de suas posições em mercados nacionais e internacionais pela domesticação comercial de plantas regionais em outras partes do país ou do mundo. O mesmo fenômeno foi causado por sucessivas descobertas de produtos sintéticos substitutivos de matérias primas, descobertas essas geralmente feitas em laboratórios de países desenvolvidos. As plantações de seringueiras no sudeste asiático são o exemplo clássico e mais bem conhecido de plantas domesticadas que retiram as suas "irmãs" selvagens do mercado. Mas esse exemplo - que não inclui a criação da borracha sintética - não é o único. O cacau brasileiro tem nas últimas décadas sido produzido quase exclusivamente em plantações fora da região amazônica (sua origem), e concorre com a produção de outros países. O pau-brasil (nativo da Mata Atlântica), cuja importância comercial foi tão grande a ponto de dar o nome à colônia-país, foi sobreexplorada a ponto de se tornar raríssima nas florestas tropicais costeiras nativas já no século XVIII. Mesmo rara, a sua madeira ainda tinha bom valor comercial em meados do século XIX, quando a criação das anilinas sintéticas suprimiu a sua utilidade como fonte de tinturas. Hoje a sua madeira serve apenas para fabricar arcos de violino. O óleo de pau-rosa, que também foi um produto valioso de nossas florestas tropicais, acabou sendo sintetizado, pondo fim ao valor comercial dessa outra árvore.

Assim, é verdade que qualquer produto extrativo de origem vegetal corre o risco de ser domesticado, alterado, produzido em escala industrial e/ou replicado em laboratório. No entanto, esse risco atinge também produtos agrícolas estabelecidos, produzidos comercialmente. A moderna ciência dos materiais, a engenharia genética e a biotecnologia são hoje setores econômicos sólidos e dedicados sistematicamente a desenvolver ou substituir produtos naturais. A ameaça atinge, pois, produtos vegetais extraídos e cultivados, incluindo muitos produtos legítimos da moderna agricultura industrializada.

Os tempos modernos e contemporâneos trouxeram um ritmo relativamente veloz de turnover no uso de recursos naturais, especialmente nos campos da energia e dos combustíveis. As florestas européias, depois de milenarmente devastadas para usos agrícolas e industriais, foram deslocadas pelo uso do carvão mineral (o combustível por excelência da revolução industrial), há cerca de 200 anos. Há 100 anos o petróleo era uma novidade que muitos consideravam sem futuro, mas que rapidamente substituiu o carvão em muitos empregos. Agora já são comuns previsões sobre o "fim da era do petróleo". Poucas das grandes usinas hidrelétricas do mundo têm mais de 70 anos de idade. Na agricultura e pecuária, tem havido mudanças equivalentes. As sementes de trigo e milho plantadas hoje não são as mesmas com as quais a agricultura comercial dos EUA de 100 anos atrás inundou o mundo. Sementes e mudas melhoradas de todas as espécies se tornaram rotineiras em muitos ramos da agricultura e os produtores que as ignoram ou não têm acesso a elas ou ficam em posição difícil nos seus respectivos mercados.

Esse mesmo turnover de fontes energéticas ocorre no campo dos materiais. Há 50 anos os plásticos engatinhavam, mas hoje substituem materiais primários como madeiras, fibras e metais em inúmeras aplicações. Outro exemplo notável é o dos cabos de fibra ótica, cujo uso reduz drasticamente a necessidade de cabos de cobre para fins de telecomunicações. Tecnologias mais eficientes e programas eficazes de reciclagem diminuem a demanda das matérias-primas naturais ainda não substituídas.

Assim, as ameaças de domesticação e/ou sintetização são reais e até prementes, mas elas não são um motivo para argumentar contra o extrativismo de baixa tecnologia, pois se aplicam também a bens "modernos" e até a recursos naturais não-renováveis (minérios) produzidos de forma intensiva de capital.

f) Os produtos extrativos têm preços de mercado não-confiáveis. Nos anos mais recentes a tendência já multidecenal de declínio dos preços reais das matérias-primas e dos produtos primários em geral continuou, apesar de todos os anúncios de ambientalistas sobre a escassez iminente desses bens. Continuam a aumentar também as diferenças entre esses preços e os de produtos secundários e terciários. De fato, nas últimas quatro décadas os preços reais de quase todas as principais matérias primas - incluindo as que são produzidas de forma intensiva de capital, como ferro, alumínio, carvão, petróleo e gás natural - caíram, apesar de em alguns casos ter havido efêmeros picos de elevação.

Como os produtos extrativos de baixa tecnologia são por definição primários, essa é uma desvantagem econômica inerente deles, embora geralmente se preste atenção apenas a casos de falência generalizada de economias extrativas baseadas em um ou dois produtos. Na verdade, a tendência de preços reais declinantes atinge todos os bens primários, de baixa ou alta tecnologia. Isso cria desvantagens para economias nacionais ou regionais excessivamente voltadas para esses tipos de produtos. Como uma economia regional eminentemente extrativa, a Amazônia brasileira tem sofrido com flutuações de preço e depressões que sem dúvida contribuíram para desorganizar estruturas produtivas e para afetar negativamente o bem-estar humano e os estoques de bens naturais. Embora seja certo dizer que as crises econômicas raramente se restringem aos setores de produção primária, é notória a maior flexibilidade da produção agrícola, industrial e de serviços para contornar e sobreviver a essas crises. Depender do extrativismo numa era de recessão de preços de bens primários não é, de fato, posição confortável.

g) Os produtos extrativos são intensivos em "capital natural" e os seus preços são por isso os mais baixos numa economia complexa. Por definição, os produtos extrativos de baixa tecnologia são colocados no mercado pela coleta direta de estoques naturais, com intermediação de uma mão-de-obra pouco qualificada e de uma tecnologia rudimentar. A maior parte do seu valor está embutida, portanto, nas suas características naturais (conteúdo energético, valor nutritivo, traços biofísico-químicos, etc.), às quais pouco ou nada é acrescentado em termos de mão-de-obra, tecnologia ou marketing. Em termos técnicos, as economias extrativas agregam pouco valor aos seus produtos, em termos de trabalho, tecnologia, serviços, características especiais, etc. Esses valores são agregados em outras regiões, vizinhas ou distantes, que assim embolsam a remuneração ligada a essa agregação. Assim, as economias extrativas são "simples", com poucas forward linkages entre os setores propriamente extrativos e setores industriais, comerciais e de serviços, faltando-lhes a diversificação características das economias desenvolvidas. Pela sua própria composição simplificada, as economias extrativas são muito suscetíveis a colapsos e disrupções quando o principal componente do valor - as características naturais, que estão fora do controle humano - dos seus bens se deteriora, ou sofre competição de um substituto. Sabe-se também que os maiores e mais rápidos retornos de capitais produtivos investidos, hoje em dia, ocorrem nas indústrias de alta tecnologia e nos serviços mais sofisticados, principalmente nos ramos intensivos de informação. Os produtos extrativos não poderiam estar mais longe do que estão desses ramos.

Os "capitais naturais", em casos de extrema raridade ou de valor estratégico, podem ocasionalmente alcançar alta valorização no mercado. No entanto, na maior parte dos produtos de qualquer economia diversificada as rendas geradas remuneram muito mais o trabalho qualificado, o desenvolvimento de produto, a transformação e o acabamento industriais, o financiamento, a gerência, o marketing e a comercialização - e não os capitais naturais. Bunker coloca a questão da seguinte forma: as economias extrativas "bombeiam para fora" valores naturais que são economicamente expandidos e trocados em economias "metropolitanas." Num mundo marcado por agudas diferenças econômicas de país a país e no interior de alguns países de subdesenvolvimento industrializado (como o Brasil), os bens produzidos por mão-de-obra mais altamente qualificada, com processos produtivos modernos e com intensidade de capital, derrubam a lucratividade dos bens primários, principalmente os extrativos de baixa tecnologia, impedindo uma integração equilibrada das economias extrativas nas redes regionais, nacionais e internacionais de trocas. Embora eu não chegue a concordar com a afirmação de Bunker que toda região extrativa tende a viver uma espiral de decadência e disrupção econômica e ecológica, a verdade é que atualmente as perspectivas desenvolvimentistas dessas regiões são sombrias.

h) As florestas tropicais úmidas contêm mais formas de vida úteis aos humanos do que as que já foram descobertas nelas. Aqui passo a uma outra ordem de tópicos, os propriamente ecológicos (no sentido da ciência natural da ecologia). Mesmo as estimativas mais cuidadosas sobre o número de espécies de fauna e flora existentes nas florestas tropicais do mundo apontam para a probabilidade de que (1) elas abriguem enormes números de formas de vida desconhecidas da ciência e até dos saberes populares locais e (2) que muitas dessas formas de vida podem ser úteis para a humanidade, de maneiras ainda insabidas. Um enorme catálogo de espécies existentes ainda está por ser escrito, superando em muito o catálogo de espécies conhecidas. Pode-se lembrar ainda que muitas espécies catalogadas têm utilidades potenciais ainda desconhecidas.

Em outras palavras, mesmo submetidas a milênios de extração de baixa tecnologia e a alguns séculos de pesquisas comerciais e científicas, o potencial de "utilidades" existentes nas florestas tropicais está longe de se exaurir. O senso comum ecológico nos diz que essas espécies desconhecidas e/ou não-utilizadas têm uma maior chance de sobreviver (até serem descobertas e estudadas) se as florestas nas quais evoluíram continuaram a ser ao menos as florestas modificadas pela ação humana da forma que o extrativismo as modificou.

A relevância deste argumento muito citado a favor do extrativismo não pode ser exagerada. Plantações monoculturais, pastagens e quase todos os demais usos das terras florestadas implicam na erradicação completa de grande extensões de floresta e obviamente destroem o ambiente densamente florestado no qual esses recursos desconhecidos evoluíram por milênios. Produtos ou matérias-primas de todos os tipos, para muitos ramos da atividade humana, podem estar estocados nas florestas mantidas sob regime extrativista sustentado. Além de parques nacionais, reservas biológicas e outras áreas de conservação, que implicam no não-uso ou no uso apenas "indireto" desses recursos, não há melhor alternativa disponível do que o extrativismo sustentado para conservar algumas seções de floresta.

i) A ciência contemporânea tem interesse no futuro das florestas tropicais preservadas pelo extrativismo. Sob vários aspectos, as ciências da biologia, ecologia, genética, agronomia e correlatas têm as florestas tropicais como a sua principal "fronteira" de expansão. O futuro dessas ciências depende em grande parte do futuro das florestas tropicais como repositórios de processos evolucionários impossíveis de reproduzir em laboratório. Essas ciências, especialmente nas nações ricas, são em si mesmas grandes conglomerados financeiros, técnicos e de recursos humanos (cientistas, pesquisadores, técnicos). Por isso cientistas naturais hoje compõem o lobby mais forte a favor da preservação e do uso racional de florestas tropicais de todo o mundo. Populações tradicionais de coletores têm inclusive servido (conscientemente ou não) como informantes e identificadores de produtos florestais úteis, tanto para instituições científicas quanto para empresas de diversos ramos.

É claro que os extratores e o seu saber folk só sobreviverão enquanto houver florestas de pé e comunidades humanas vivendo nelas. Mas, mesmo enquanto há florestas de pé, os extratores podem ser deslocados de suas atividades propriamente extrativas, para se dedicarem a outras atividades econômicas, ou por serem expulsos das suas áreas tradicionais de ocupação. Não é casual, portanto, que tantos cientistas naturais tenham expressado simpatia pela causa do extrativismo sustentado de baixa tecnologia, tanto na forma de apoio político quando na de assistência técnica ou participação diretas. Mesmo reconhecendo as limitações socioeconômicas do extrativismo (e em alguns casos ignorando-as), muitos cientistas consideram que ele é a melhor forma de preservar as formas de vida características das florestas tropicais. Alguns, talvez os mais pragmáticos, acham também que as reservas extrativistas podem "se sustentar", ou seja, fazer a floresta produzir bens comercializáveis e assim encontrar uma "justificativa" mercadológica que não está ao alcance de parques nacionais e reservas semelhantes.

j) O extrativismo não é necessariamente sustentável, econômica ou ecologicamente. Voltemos a tópicos mais "sociais". Dizer que toda forma de extrativismo é ecológica e economicamente sustentável não é verdade. Além do mais, mesmo a sustentabilidade estritamente ecológica não é suficiente. Muitas formas de extração, mesmo de baixa tecnologia, se mostraram essencialmente destrutivas da base de recursos. Um exemplo clássico é o das árvores de caucho (que produzem um tipo de látex) da Amazônia, sistematicamente derrubadas pelos mesmos seringueiros que exploravam a seringueira de forma sustentável. Outro exemplo amazônico clássico é a sobrecoleta de ovos de quelônios. Mesmo no caso das seringueiras, sabe-se que elas podem ser exploradas até a exaustão em poucas temporadas, ou então por décadas, dependendo da intensidade e da tecnologia.

No entanto, mesmo quando uma atividade extrativa consegue ser ecologicamente sustentável (ou seja, conhecem-se e respeitam-se os ciclos reprodutivos naturais da base de recursos), a extração pode ser economicamente inviável em vista de vários fatores discutidos acima: competição de produtos naturais semelhantes (selvagens ou domesticados) ou sintéticos, ou simples falta de mercado. Se a viabilidade econômica não é alcançada via mercado, pode-se tentar via política de subsídios ou regulamentações. A própria existência física de um estrato social de seringueiros no Brasil dependeu, aliás, de décadas de reserva de mercado e de subsídio ao preço para a borracha coletada na Amazônia. Duke, simpatizante do extrativismo de baixa tecnologia, propõe que os consumidores de produtos de florestas tropicais paguem uma "sobretaxa" para ajudar a sustentar os coletadores frente aos concorrentes mais "modernos", o que não deixa de ser também um subsídio privado que argutamente reconhece as dificuldades dos extratores na economia mundial contemporânea. Os tempos atuais de globalização e concorrência não são bons, no entanto, para subsídios públicos e privados.

Há, pois, muitas variáveis a considerar na extração sustentada de produtos florestais. Os seringueiros brasileiros alegam conhecer e respeitar os ciclos reprodutivos dos bens que exploram. O saber folk e o conhecimento científico podem ser combinados para esse fim, mas a verdade é que para muitos produtos a sustentabilidade a longo prazo ainda está sendo testada. Muita pesquisa e experimentação precisam ser feitas para garantir que determinado produto esteja sendo extraído de forma ecologicamente sustentável.

Não será demais lembrar que, mesmo depois do ritmo ecologicamente sustentável de extração de um produto ser claramente determinado, as pressões da competição podem levar ao seu abandono e à exaustão do recurso por sobreexploração. Nesse caso, a perspectiva de rendimento econômico sabotaria o objetivo da sustentabilidade ecológica. Afinal de contas, a lógica mais fundamental da economia de mercado é liberar a produção econômica das restrições naturais. A própria agricultura neolítica foi a seu modo uma forma de "acelerar" a produção através do controle dos fluxos energéticos de ecossistemas extremamente instáveis e simplificados pelo engenho humano.

k) Quantas pessoas podem ser sustentadas pelas economias extrativas? Uma das poucas certezas a respeito de economias extrativas de baixa tecnologia em florestas tropicais é que elas só podem sustentar uma baixa densidade populacional. Isto é certo porque (1) as taxas de exploração sustentada dos recursos serão moderadas e (2) a distribuição natural dos recursos vegetais e animais dessas florestas tropicais é esparsa. O extrativismo de flora e fauna amazônico é por natureza extensivo, e não intensivo. A mineração ou a extração petrolífera podem gerar muita produção em pouco tempo e em área relativamente pequena, mas essas são atividades típicas da extração de alta tecnologia. Alguns críticos do extrativismo, como Homma, destacam que os rendimentos modestos e o caráter extensivo das reservas extrativistas sustentarão apenas uma população muito pequena, e em níveis muito modestos, quando não de pobreza. Nesse caso, o mesmo argumento usado pelos críticos das grandes reservas indígenas brasileiras ("é muita terra para pouco índio") é aplicável às reservas dos coletores não-tribais.

Outras considerações cabem neste tópico. A criação extensiva de gado - que foi durante duas décadas a forma oficial preferencial de ocupar a Amazônia - emprega localmente menos gente ainda que o extrativismo. Ou seja, a introdução de fazendas de gado em trechos recém-desmatados de floresta amazônica ocupada por coletadores significou uma destruição líquida de empregos. O garimpo, embora seja intensivo em mão-de-obra e sujeito a altos níveis de renda, raramente cria comunidades estáveis. Projetos de colonização intensivos em mão-de-obra fracassaram mais do que tiveram êxito na Amazônia. Projetos minerais, hidroelétricos e petrolíferos criam muitos empregos na fase de instalação, mas são intensivos de capital e criam relativamente poucos empregos permanentes, principalmente para as populações locais. Ainda assim, permanece o fato de que as reservas extrativistas, mesmo que disseminadas através da Amazônia, não sustentariam massas de rurícolas brasileiros, nem lhes garantiriam altos níveis de vida.

l) Qual a compatibilidade entre as reservas extrativistas e a reforma agrária? Uma questão propriamente política correlata à anterior: as reservas extrativistas, de tamanho relativamente grande para uma população relativamente pequena, seriam uma "injustiça" cometida contra os rurícolas de outras regiões brasileiras sem acesso à terra? Ou seja, as reservas extrativistas seriam capazes de incorporar levas de migrantes empurrados pela ausência de reforma agrária em suas regiões de origem? Esse é um caso exemplar da identificação correta de um fato (a extração não emprega muitas pessoas) e da sua ligação incorreta com outro fato (a falta de reforma agrária no resto do Brasil). A reforma agrária fracassou em todo o Brasil. Há muito mais agricultores sem terra no resto do Brasil do que na Amazônia. Não vejo porque os coletadores amazônicos, que se organizaram pelas suas próprias forças, teriam alguma obrigação de "acolher" nas reservas extrativistas o "excedente social" gerado pela falta de reforma agrária no resto do Brasil. As reservas foram na verdade concebidas para defender o estilo de vida de um grupo social particular e aproveitar os potenciais ambientais de uma determinada região.

No entanto, este tipo de crítica - que ouvi e vi ser feita por simpatizantes da reforma agrária - peca principalmente por ignorar o mais óbvio: as reservas extrativistas são em si mesmas uma reforma agrária amazônica. Afinal, elas são concessões de terras públicas feitas a associações de produtores rurais pobres, um fato inédito na nossa política fundiária colonial, pós-colonial e contemporânea. Essa é uma política fundiária radicalmente nova no Brasil, em qualquer região, e deveria assim ser defendida por todos os partidários de reforma agrária.

m) Os trabalhadores rurais que migram para a Amazônia são atraídos por atividades extrativas? Esta é também uma questão política derivada das duas anteriores, com cores culturais. Ela reflete as profundas diferenças entre os estilos de vida das populações rurais de diferentes regiões do Brasil. Muitos intelectuais e políticos influentes ainda defendem a migração dos trabalhadores rurais sem terra de outras regiões para a Amazônia, como forma de desmontar tensões nessas regiões e de "ocupar" a Amazônia. Permitam-me colocar a questão em outros termos: os migrantes rurais que foram ou vão para a Amazônia desejam ser extratores? Parece-me que a resposta é inteiramente negativa. Não creio que esses migrantes queiram viver dentro de florestas, coletando produtos que lhes são estranhos. O seu projeto é antes desmatar trechos florestados e instalar culturas comerciais e de subsistência. Via de regra, as paisagens rurais de onde provêm esses migrantes é desmatada e para eles trabalhar a terra significa, antes de qualquer outra coisa, desmatar para plantar.

Estou querendo dizer que as reservas extrativistas servem para manter o estilo de vida daqueles amazônidas que acostumados com a coleta florestal e conceitualmente excluem o influxo de migrantes cuja primeira preocupação - mesmo que legítima - é desmatar. Essa "seletividade" não deve ser levada muito a sério, porém, já que as reservas extrativistas não estão sendo propostas e criadas em toda a Amazônia. Ao contrário, a sua área conjunta não tende a ser muito grande porque mesmo entre os rurícolas da Amazônia nem todos querem continuar a ser coletores.

n) Qual é a viabilidade política do extrativismo sustentado na Amazônia? Como foi mencionado acima, o extrativismo vegetal de baixa tecnologia exclui ou limita severamente quase todas as outras atividades que usam recursos naturais amazônicos - agricultura, criação de gado, mineração, corte de árvores, plantio comercial de árvores, hidrelétricas, exploração de petróleo e gás natural. Assim, o tema de sua viabilidade política frente a essas atividades competidoras é crucial. O volume de interesses investidos e organizados em torno dessas outras atividades é simplesmente formidável. É melhor encarar a realidade: esses interesses são mais do que legítimos, pois várias forças sociais expressivas dão apoio a elas - empresários, donos de terras, trabalhadores, políticos locais e nacionais, planejadores, investidores, etc. A base social e o poder organizacional do extrativismo sustentado, por outro lado, está numa classe de trabalhadores rurais pobres que apenas recentemente conseguiu algum grau de organização, com apoio de um movimento ambientalista relativamente rarefeito e de alguns cientistas. O esforço dos seringueiros para se manterem unidos é dificultada pela sua dispersão e pobreza. As suas organizações tiveram vitórias importantes - a criação de umas duas dezenas de reservas extrativistas, financiamentos para atividades de processamento e industrialização de alguns produtos, acordos comerciais - mas elas dependeram de apoios externos cuja continuidade é incerta.

É possível que a coalizão pró-extrativismo sustentado de baixa tecnologia continue a existir por algum tempo, mas as demais forças sociais reagiram e construíram argumentos que defendem adequadamente os seus próprios interesses. A violência física contra as lideranças não é nem a mais eficaz nem a única ameaça que os seringueiros vivem. Além da sustentabilidade econômica e ecológica, portanto, os seringueiros terão de manter a eficácia propriamente política exibida na última década. Vencer no mercado será necessário, mas não bastará.

o) Existem barreiras culturais ao extrativismo. No seu todo, os atuais líderes políticos brasileiros, nos diversos níveis de poder, e as lideranças em vários outros setores sociais se formaram no contexto de uma economia em crescimento industrial acelerado, na qual a agricultura tradicional e o extrativismo de baixa tecnologia decaíram. Essas lideranças foram gestadas num ambiente favorável à modernização e aprenderam a valorizar a urbanização, a tecnologia, a produtividade, a educação formal e a produção para o mercado - tudo o que falta no extrativismo de baixa tecnologia.

Quero sugerir que a maioria das lideranças políticas e sociais brasileiras defende para o Brasil uma economia sedentária, agroindustrial, urbanizada. O extrativismo de baixa tecnologia, sustentado ou não, lhes parece irretorquivelmente "retrógrado", incompatível com o tipo de economia de uma "potência mundial" emergente. Como os seringueiros e demais coletadores formam grupos sociais pequenos, geograficamente pulverizados e politicamente disenfranchised, eles tendem a ser ouvidos por último, quando são ouvidos. Penso que sem o apoio de cientistas e ambientalistas eles não teriam sido ouvidos na década que passou desde a fama e a morte de Chico Mendes. Tenho certeza de que os "coletadores" continuarão a ocupar um nicho "negativo" no imaginário de nossas lideranças e elites. As reservas extrativistas e o próprio ideal de um extrativismo sustentado, de base comunitária, sofrerão as conseqüências negativas disso.

p) Uma economia extrativa pode levar à justiça social? Este é um tópico normativo, valorativo, de fundo, mas presente e subjacente a todos os demais. Argumentos econômicos apresentados no item "g", acima, levam à conclusão de que as economias extrativas formam sociedades com uma larga base de extratores pobres e um estreito ápice de comerciantes e intermediários ricos. Como os valores agregados aos produtos extrativos ocorrem em outras áreas geográficas, as regiões propriamente extrativas alcançam pouca diversificação e prosperidade. Não surgem classes de trabalhadores industriais, profissionais liberais, empregados de escritórios e serviços, estudantes de cursos profissionais ou universitários. É correto dizer portanto que o perfil social "injusto" da Amazônia contemporânea foi formado e é mantido pelo extrativismo. A base comunitária das reservas extrativistas pode eliminar as funções de intermediação comercial, mas o extrativismo, mesmo sustentado, mesmo comunitário, não tende a gerar um nível de renda que leve ao desenvolvimento ou à "justiça social".

De toda forma, quem conhece bem o Brasil, pelos livros ou em primeira mão, sabe que os níveis de desigualdade social na Amazônia não são mais perversos que os de outras regiões nas quais o extrativismo ou se modernizou, ou desapareceu. As classes intermediárias são também exíguas nessas áreas modernizadas, o que leva à conclusão, de resto óbvia, de que o extrativismo não é o único processo social que leva à desigualdade social no Brasil.

 

Conclusões

A minha visão sobre o extrativismo sustentado de baixa tecnologia já se delineou ao longo da discussão dos 15 itens acima. Nesta seção vou recapitular a minha visão e indicar os problemas básicos que enxergo em termos da viabilidade do extrativismo e das linhas de pesquisa e ativismo que podem ajudá-lo. Basicamente, eu acredito que o extrativismo de baixa tecnologia pode continuar a ser um "modo de produzir" para uma parte substancial dos rurícolas amazônicos. Mais do que isso, eu acredito que ele deve continuar a existir, e de preferência em bases comunitárias, ecologicamente sustentáveis e economicamente viáveis. Ou seja, esse extrativismo me parece viável e recomendável.

As exigências da viabilidade podem ser assim colocadas:

a) Os empreendimentos extrativos que visem sustentabilidade devem ser levados a cabo em terras públicas florestadas especialmente designadas para esse fim. O formato já praticado, de cessão de terras públicas para comunidades nativas ou organizações profissionais de coletores, deve ser mantido. Essas terras podem se localizar até dentro das florestas nacionais existentes, ou na periferia de outros tipos de unidades de conservação. Nesse segundo caso elas podem ter a função complementar de proteção dessas unidades.

b) As reservas extrativistas devem ser manejadas de forma sustentável, tanto econômica quanto ecologicamente. Para tanto elas devem combinar (1) atividades de mercado e de subsistência e (2) conhecimentos folk e científico. Deve haver um saudável realismo comercial para evitar que as reservas se estiolem em ciclos efêmeros ou em subsídios diretos ou indiretos. Entre outras coisas, isso implica na exploração de uma gama variada de bens para tirar partido dos ciclos não-coincidentes de reprodução natural dos bens e de oportunidades comerciais que não sejam apenas sazonais. Evidentemente, produzir para o mercado provoca tensões bem conhecidas para a cultura ou modo de ser da maioria dos coletadores. Elas são o preço inescapável para o ingresso no mercado, ou inserção mais profunda nele. De outro lado, a produção de bens de uso não deve ser desprezada nem descartada, pois eles podem amenizar dificuldades criadas por oscilações nas atividades de mercado.

c) As reservas extrativistas devem se sujeitar a auditorias governamentais e independentes. O Ibama ou a Embrapa devem lhes prestar assistência técnica em troca do livre acesso a atividades e planos de produção, para verificar se os termos da cessão estão sendo cumpridos. Cientistas e organizações independentes também devem se candidatar a monitorar as reservas extrativistas, tal como fazem com todas as outras formas de uso de recursos naturais amazônicos. Já vi, por exemplo, mais de um cientista decepcionado (mas condescendente) com alguns poucos seringueiros que preferem criar gado, desmatando terras das reservas, do que viver de coleta. Para a pecuária há outros incentivos disponíveis além das terras cedidas para a extração.

d) As reservas extrativistas precisam buscar agressivamente forward linkages, ou seja, ligação de suas atividades coletoras com atividades industriais, comerciais e de serviços. Isso implica exigir que as reservas extrativistas superem os limites do extrativismo. Penso assim porque será apenas com essas ligações que uma renda monetária significativa será gerada para as comunidades. Processamento, transformação industrial, venda, marketing e desenvolvimento de produtos devem estar dentro do campo de esforços das reservas, diretamente ou indiretamente (através de parcerias). Só assim o extrativismo se erguerá acima dos patamares de simples subsistência e será competitivo, pelo menos em algum grau, com a renda monetária gerada por atividades competitivas. Se o extrativismo não se sustentar no mercado e se não gerar bem-estar, tenho certeza de que ele será deslocado por outras atividades.

As razões pelas quais considero as reservas extrativistas desejáveis são as seguintes:

a) Do ponto de vista do pluralismo cultural e político, um setor extrativo saudável permitirá a sobrevivência e a cidadania plena de setores tradicionais da população amazônica.

b) Em termos de política fundiária nacional, as reservas extrativistas representam um significativo avanço para a causa da reforma agrária democrática. Elas podem ser um ponto de partida para iniciativas equivalentes em outras partes do país, mesmo naquelas em que o extrativismo é inteiramente inviável, pois o que importa mais nesse particular é o inédito conceito de cessão de terras públicas a agricultores pobres.

c) Do ponto de vista da política nacional de preservação ambiental, as reservas extrativistas representam uma forma "mais leve" de pressão sobre as unidades de conservação. Como foi dito acima, na verdade elas podem até ter o papel de áreas de proteção ou de transição em torno dessas unidades.

d) Do ponto de vista estritamente técnico (em termos da racionalidade econômica moderna), parece-me que muitas terras florestadas amazônicas são mais racionalmente usadas sob um modo extrativo de produção. Embora o extrativismo de baixa tecnologia seja o tipo de atividade econômica que menos incorpora tecnologias modernas, nem por isso ele é uma forma irracional de exploração de recursos naturais.

Em suma, a extração pode permanecer como uma forma tradicional de vida para habitantes de muitas partes da Amazônia brasileira, contribuindo com valores econômicos e ambientais para o bem-estar dos amazônidas. Com planejamento e zoneamento adequados, as pessoas e os bens naturais das áreas dedicadas ao extrativismo podem conviver com outras formas mais impactantes de uso de recursos. Embora a preservação das florestas amazônicas seja um objetivo complexo e sujeito a debates acalorados, a verdade é que no mundo moderno e contemporâneo nenhum trecho de floresta habitado por povos "tradicionais" desapareceu antes que esses povos fossem removidos, subjugados ou extintos. A presença dos coletadores amazônicos, organizados em suas reservas extrativistas, é parte necessária de uma política geral de preservação e conservação das florestas amazônicas.

 

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