Estudos Sociedade e Agricultura

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Gian Mario Giuliani & Elisa Guaraná de Castro

Recriando espaços sociais: uma análise de dois assentamentos rurais no Estado do Rio de Janeiro


Estudos Sociedade e Agricultura, 6, julho 1996, 138-169.

O presente trabalho tem como base os dados de uma pesquisa realizada em dois assentamentos rurais do Estado do Rio de Janeiro em 1994. Sua execução foi patrocinada pelo Instituto de Desenvolvimento de Ação Comunitária (Idaco/RJ), pelo Acteurs dans le Monde Agricole et Rurale - Amar (França) e pelo Núcleo de Estudos Rurais (Nuer do IFCS-UFRJ) e conduzida, em colaboração, por duas equipes de pesquisadores: uma do PPGS-IFCS-UFRJ, composta pelas então mestrandas do programa: Vanessa Tavares de Jesus Dias e Elisa Guaraná de Castro sob a coordenação de Gian Mario Giuliani; outra, composta pelos estudantes da École Superieure d’Agronomie Tropicale (Esat) de Montpellier (França): Stephane David e Philippe Rainbault, sob a coordenação de Augustinho Guerreiro, diretor do Idaco e de Gisélia Franco Potengy.

Gian Mario Giuliani é professor da UFRJ; Elisa Guaraná de Castro é pesquisadora da UFRJ/IFCS.


Introdução

Os assentamentos rurais podem ser considerados como um dos resultados das lutas pela reforma agrária que estão sendo levadas a cabo no Brasil há quatro décadas. O processo de modernização da agricultura, fortemente incentivado pelo Estado a partir da década de 1960, seguia levando os grandes proprietários a substantivas mudanças não somente na utilização da terra, substituindo culturas, mas, e sobretudo, nas relações de trabalho, utilizando mão-de-obra assalariada em lugar das diferentes categorias de produtores residentes nas fazendas. Como o regime militar conseguiu silenciar só temporariamente os anseios por uma Reforma, na segunda metade dos anos de 1970, à medida que as forças democráticas voltavam a se manifestar, espalharam-se por todo o país movimentos de luta de resistência às expulsões. Com a progressiva abertura democrática dos anos 80, essas reivindicações de terras ganharam legitimidade e o Estado começou a desapropriar as áreas em conflito e a transformá-las nos primeiros assentamentos. Os assentamentos rurais começaram a ser implementados no início da década de 1980,[1] principalmente em áreas de conflito entre os proprietários (verdadeiros ou não) das fazendas e os produtores nelas residentes (moradores, meeiros, arrendatários, colonos, etc.).

O caráter concentrador da modernização do campo brasileiro havia assim levado ao surgimento de um novo ator social nos conflitos agrários; havia reunido trabalhadores rurais, arrendatários, posseiros, pequenos proprietários, filhos de pequenos proprietários e demais excluídos do acesso à terra em uma numerosa população que ia se identificando como “sem-terra”. É dessa população que nasceu em 1984 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, realizando seu I Congresso Nacional em 1985.

No mesmo período, o Estado criou o Ministério de Reforma Agrária e do Desenvolvimento (Mirad) e formulou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Na busca de uma feição “democrática” mais apropriada à fase de transição política, o Estado acabou institucionalizando o conflito agrário e assumindo o papel de árbitro nos conflitos que eclodiam sempre mais numerosos. As lutas desses movimentos, além de crescer em número, tinham mudado também no plano qualitativo: os Sem-terra passaram a tomar a iniciativa de ocupar as terras consideradas inutilizadas. No início, o procedimento tático era a formação de acampamentos em beira-de-estrada, próximos de áreas em processo de desapropriação, processos que podiam se estender durante anos. Mais tarde, após a derrota da proposta de uma reforma agrária ampla e geral sofrida na Assembléia Constituinte, o Movimento dos Sem-terra (MST) passou a ocupar diretamente as áreas visadas, começando desde logo a cultivá-las para melhor resistir às tentativas de desocupação. “Ocupar, produzir e resistir” tornou-se de fato o lema que passou a orientar a forma de luta. A resposta porém não se fez esperar e os grandes proprietários, no intuito de barrar as iniciativas dos Movimentos dos Sem-terra, criaram a União Democrática Ruralista (UDR) que, além de pressionar o Congresso no sentido de esvaziar as propostas de reforma agrária, atuava praticamente em apoio às forças policiais, ou com milícias armadas próprias, para enfrentar os ocupantes.

O Plano Nacional de reforma agrária, mesmo estando muito aquém dos anseios dos que clamavam por terra, havia aberto o caminho para a legitimação de todas as iniciativas que visassem a obtenção desse bem tão abundante e proibido. Muitas entidades organizadas da sociedade apoiaram materialmente e ideologicamente as lutas desses movimentos, fazendo ao mesmo tempo pressão política sobre o Estado, o qual na maioria das vezes acabava finalmente por encontrar uma área disponível para assentar os postulantes. É dessa maneira que os assentamentos e os assentados se tornaram parte importante da realidade do campo brasileiro dessa última década.

Os estudos sobre os assentamentos geralmente têm concentrado suas preocupações nas questões políticas, dando a maior ênfase à organização dos movimentos em suas diversas fases de luta: luta pela terra, luta pela obtenção de benfeitorias para o assentamento, luta para obter os meios para a produção e comercialização de seus produtos e, muito importante, luta pela obtenção do título de propriedade dos lotes.

Os aspectos da vida econômica dos assentamentos, até o início dos anos de 1990, não despertaram muitos interesses, talvez porque nos anos em que os assentamentos surgiam em todas as regiões do país, prevaleceu a convicção de que estas novas estruturas não passavam de remendos sociais, cuja função principal era a de atenuar a miséria crescente no campo e reduzir os fluxos migratórios para as cidades, sem possibilidades de alcançar a menor expressividade no plano econômico.

Em 1992 a FAO financiou uma pesquisa sobre uma amostra de assentamentos em todo o país, buscando traçar um perfil de seu funcionamento econômico e produtivo. O relatório publicado pela FAO em 1994 (Palmeira, 1994) concluía que os assentamentos poderiam ser considerados viáveis economicamente. Os autores da pesquisa argumentavam que, mesmo relativizando as vantagens deste modelo produtivo devido ao fato de que seu baixíssimo nível tecnológico e de mecanização impunha um grande acúmulo de trabalho vivo e obrigava à inserção de todos os membros da família no processo produtivo; mesmo que o nível de produtividade alcançado fosse bastante baixo e que o ritmo de capitalização se demonstrasse muito lento, ainda assim, os assentamentos já seriam uma conquista pelo fato de terem inserido os produtores no mercado. O argumento mais forte, porém, era o de que os assentamentos são viáveis economicamente porque a renda média de uma família assentada, graças às diversas estratégias implementadas, seria mais alta que a renda média de uma família de trabalhadores rurais na mesma região.

Observações críticas foram dirigidas a diferentes aspectos da pesquisa da FAO,[2] porém deve-se reconhecer que a abertura de uma perspectiva de análise das dimensões econômicas dos assentamentos já significa o reconhecimento de que estes são também estruturas produtivas e não somente unidades resultantes de conjunturas meramente políticas.[3] Esta mudança de abordagem é muito importante, porque começa a reconhecer os assentamentos como resultados concretos de um tipo de reforma agrária, colocando assim a necessidade de aprofundar os estudos que permitam compreender com maior clareza se as lutas históricas para esta reforma e as necessidades da sociedade brasileira contemporânea terão uma resposta satisfatória se este for, como parece até agora ser, o único caminho de reforma a ser implementado.

As dimensões culturais dos assentamentos rurais têm sido até agora pouco analisadas. Após mais de uma década de funcionamento, já é possível, e oportuno, avaliar as dinâmicas internas geradas pela convivência de famílias que passaram por períodos de atuação comunitária (organização da luta), mas que levaram consigo origem, cultura, disponibilidade patrimonial, composição familiar, motivações, aspirações, etc. bastante diferentes. É razoável supor que nesse plano, assim como muitas vezes já foi sublinhado para os aspectos organizativo-políticos, as dimensões específicas de cada assentamento sejam predominantes e que cada caso seja um caso. Porém, é também possível pensar que surjam novas formas típicas de sociabilidade entre assentados e entre estes e a sociedade maior, a partir justamente do processo de constituição e desenvolvimento das comunidades que, embora singulares, mantêm elementos comuns.

Aparece, portanto, claro, um aspecto importante dos assentamentos ao qual nem sempre é dada a devida atenção, talvez por ser considerado óbvio: o fato de que o assentamento é na realidade um processo político, social e cultural que passa necessariamente por diferentes fases, nas quais os diversos elementos e manifestações culturais sofrem mudanças devido à transformação do ambiente, das relações sociais e de vizinhança, das técnicas produtivas. É importante, assim, refletir sobre os tensionamentos e os limites da ação dos indivíduos no interior destes projetos e perceber em que sentido as estratégias coletivas inspiradas na luta pela terra ou nos programas do Estado podem entrar em atrito com outras formas anteriores de organização inspiradas na posse da terra. É importante avaliar a possibilidade do indivíduo ou da família optar pelas estratégias a serem adotadas e considerar a possibilidade do surgimento de novas formas organizativas e de cooperação a partir da inserção individual no mercado, ou da proximidade com núcleos urbanos.

É nessa direção que temos orientado nosso estudo. Partimos do pressuposto de que os assentamentos não são unidades internamente uniformes, mas se constituem em realidades complexas que adquirem especificidade a partir não somente de seu processo de constituição (organização do movimento e luta), mas também de uma série de componentes socioculturais das famílias, assim como do contexto regional em que estão inseridos. Decidimos, portanto, pesquisar dois assentamentos que no Estado do Rio de Janeiro deveriam nos permitir relacionar suas dimensões específicas com problemáticas mais gerais que preocupam estudiosos, políticos e mediadores envolvidos e, sobretudo, os assentados como protagonistas dessas problemáticas. O critério de escolha dos dois assentamentos responde substancialmente à diversa origem dos seus assentados: São José da Boa Morte, localizado no município de Cachoeira de Macacu, com uma população de origem predominantemente rural e o Sol da Manhã, situado no município de Itaguaí, na Baixada Fluminense, com uma população predominantemente de origem urbana. A escolha baseada nesta diversidade deve-se ao fato de que a relação entre o urbano e o rural, como mostraremos a seguir, é de grande relevância no caso específico do Estado do Rio de Janeiro. O confronto permitirá compreender em que medida os traços culturais originários destes grupos interferem na integração dos assentados em sua nova condição de produtores e na sua inserção socioeconômica.

Especificidades dos assentamentos rurais no Estado do Rio de Janeiro[4]

No Estado já existem mais de 52 assentamentos rurais consolidados, porém são poucos os estudos que têm procurado reconstruir ou avaliar sua constituição.[5] Talvez as razões deste escasso interesse deva-se à combinação de uma série de elementos característicos envolvidos nesta problemática: a) as específicas condições do setor primário fluminense, considerado pouco expressivo e em franca decadência; b) a forte preponderância das cidades, sobretudo da metrópole Rio de Janeiro, sobre a vida social e econômica rural; c) as relações que os movimentos sociais rurais mantiveram com o governo do Estado e suas agências. Vejamos rapidamente cada um desses aspectos.

O Rio de Janeiro costuma ser visto como um estado cujo setor agropecuário é pouco expressivo e com vocação agrícola em decadência. Alguns dados estariam confirmando esta idéia: a população rural representa cerca de 6% dos 14 milhões de pessoas que são a população total do Estado; a população ativa na agricultura representa 5% da ativa do Estado e o PIB do setor somente 2% do PIB do Estado. Ainda em 1980 a maior parte da produção vegetal do Estado estava concentrada em três culturas: cana-de-açúcar (34,5%), banana (19%) e cítricos (13,8%) e grande parte dos alimentos consumidos provinha de outros estados. De fato houve uma efetiva decadência das culturas tradicionais; porém deve-se reconhecer que se desenvolveu também uma significativa diversificação da produção agropecuária, que tem feito do setor primário do Estado palco de um específico e interessante processo de diferenciação da agricultura. Estas mudanças, acompanhadas por um crescente processo de expansão das áreas periféricas metropolitanas, contribuíram para manter alta a pressão social sobre a terra, já que a propriedade fundiária permaneceu muito concentrada. Em 1987 o Incra estimava que 57 % dos imóveis tinham menos de 10 hectares ocupando 5% da área total, enquanto 1 % dos imóveis com 500 e mais hectares dispõe de 30% da área total.

Um segundo elemento imbricado nesta questão é a rápida urbanização do Estado e das fronteiras agrícolas. Se hoje menos de 30% da população brasileira vive em áreas rurais, o Estado do Rio de Janeiro já desde a década de 50 apresenta uma altíssima taxa de urbanização e sua própria história dos movimentos sociais no campo é marcada pelo peso da cidade. Os primeiros assentamentos, criados nessa região já em 1979, envolviam um número limitado de famílias, com o apoio principalmente da CPT regional. Foi a partir dos meados dos anos 80 quando se rearticularam os movimentos de reivindicação e ocupação de terra, que se formou o primeiro assentamento de porte médio, “Campo Alegre”, criado a partir de uma ocupação em 1986 e a CPT, mais uma vez, teve participação importante.[6] No ano anterior havia começado o assentamento de famílias em São José da Boa Morte.

Naquele período a tensão entre o urbano e o rural apareceu antes de tudo no plano político, quando o próprio Movimento dos Sem-terra (MST), em um primeiro momento, avaliou a luta pela terra no Estado do Rio como sendo conduzida por movimentos de “sem teto” e não de “sem terra”. Esta avaliação levou o MST a se afastar desse processo em 1988 e surgiu a NAF (Núcleo de Agricultores Fluminenses), como organização das lutas por terra no Rio de Janeiro.[7] No mesmo ano as lideranças locais dos diversos assentamentos unificaram os movimentos atuantes no Estado e criaram, principalmente com o apoio da CPT, a Comissão de Assentados do Rio de Janeiro. A crescente tendência à urbanização e especulação imobiliária, somado ao déficit de moradia, levaram a região metropolitana a se estender, unindo municípios mais distantes (ex. os da Baixada Fluminense), em um “Grande Rio”, com uma infra-estrutura bastante precária, mantendo assim essa área como palco da maioria dos conflitos agrários do Estado.

Hoje 80% dos assentamentos rurais do Estado estão na região metropolitana e na Baixada Fluminense (Novicki, 1994), isto é, localizam-se em áreas de fortíssima influência urbana, porém, o MST tem retomado sua atuação no Estado do Rio de Janeiro, através da fundação da Secretaria Regional do MST (1993), com a participação das lideranças locais que antes se organizavam através da Comissão de Assentados. O perfil dos assentados era e é ainda polêmico. Nas regiões metropolitanas a maioria não vem de outras áreas rurais, mas tem percorrido a trajetória rural-urbano-rural. Outros assentados vêm diretamente de áreas urbanas, sem jamais terem trabalhado na terra.

Um terceiro elemento decisivo, que caracterizou os processos de assentamento do Rio de Janeiro, foi a relação dos movimentos sociais rurais com o aparato estatal. O governo estadual interveio nas áreas de conflitos rurais no período do governo Roberto da Silveira (1959/1962), tendo sido a única intervenção efetiva até o governo Brizola (Novicki, 1994). A partir dos relatos de José Pureza (1982) podemos verificar o tipo de pressão exercida na época pelo movimento sobre esse governo estadual e suas realizações.

O governo Brizola de 1982 tomou a questão fundiária como bandeira de seu governo e investiu fortemente, nos limites do poder estadual, na realização dos assentamentos. Através da criação da Secretaria de Assuntos Fundiários (Seaf), procurou garantir a implantação e permanência dos assentamentos rurais locais, suprimindo a falta de projetos do governo federal para a questão agrária no Estado, na década de 80 (Novicki,1992).

A criação da Seaf foi apresentada como central para a política do governo Brizola. Os processos de desapropriação e assentamentos deviam ser discutidos caso a caso. O governo distribuía auxílios financeiros para insumos, máquinas e para a sobrevivência dos assentados até a primeira colheita; dificultava as ações jurídicas e desmobilizava a polícia nos casos de reintegração de posse nas áreas de conflito. Como os assentados mantinham suas relações com o governo a partir de um representante do próprio assentamento, segundo Novicki (1992), teve como resultado o surgimento das “chefias” e, conseqüentemente, uma forte personalização do movimento. Hoje a dupla intervenção do governo federal (Incra) e do governo estadual (Seaf), é fonte de sérios problemas. Em alguns assentamentos, parte das famílias são assentadas pelo Incra e parte pela Seaf, situação que cria falta de sintonia nos processos de legalização dos assentados e que dificulta ações conjuntas nas solicitações de recursos, créditos, implementos, etc.

Os assentamentos escolhidos: breve histórico

O Mutirão do Sol da Manhã (SDM)

O assentamento Mutirão Sol da Manhã se localiza no distrito de Seropédica no município de Itaguaí (Baixada Fluminense), a 80 km da cidade do Rio Janeiro.[8] O assentamento ocupa uma área de 520 hectares, com um total de 72 famílias, distribuídas em lotes com uma área que varia entre 2 e 8 hectares.

Até meados do século XVII a riqueza da região esteve ligada à produção de açúcar do Engenho de Itaguaí e com a decadência deste, a prosperidade voltou somente com a produção de café no século XIX. Itaguaí, município fundado no século XVIII por jesuítas provenientes da vizinha localidade de Santa Cruz, aproveitou-se de sua posição de confluência das áreas de produção cafeeira do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e se tornou um centro com certa importância comercial (os mineiros de Minas Gerais aprovisionavam-se nesta localidade). Mais tarde, porém, com a transferência das áreas cafeeiras para São Paulo e a construção da ferrovia Rio-São Paulo em 1875, a produção do Vale do Paraíba que antes confluía para Itaguaí, foi desviada para o próprio Estado de São Paulo. A construção da ferrovia de Mangaratiba não conseguiu segurar o progressivo abandono da região que trouxe de volta pântanos e malária na área rural (Seaf, 1991: 64; David, 1994).

A partir dos anos de 1940, devido à proximidade com a metrópole e capital federal Rio de Janeiro, o governo federal pensou transformar a região em um cinturão verde para o abastecimento de uma população urbana em rápido crescimento. Nos anos 50 começaram obras de recuperação dos terrenos e fortes incentivos foram alocados para a transformação de pastagens e culturas e também foram assentados vários núcleos de produtores que se tornaram bastante produtivos. Este processo, associado à intensa e rápida expansão urbana, reduziu bastante a disponibilidade de terra e aumentou substantivamente a pressão social dos produtores sobre esse bem. Pelos dados do Atlas Fundiário da Seaf até 1990, no município eclodiram quatro conflitos pela terra: dois nos anos de 1950 e dois nos anos 80, resultando no assentamento de 2.240 famílias nas quatro áreas. Um quinto conflito surgiu nos anos 90 no distrito de Seropédica (hoje emancipado), dando origem ao assentamento “Eldorado”.

O assentamento “Mutirão do Sol da Manhã” foi criado em 1988, após uma luta de ocupação da área que durou oito meses, sendo que parte das famílias fora assentada pelo Incra e outra pela Seaf.

São José da Boa Morte (SJBM)

São José da Boa Morte se localiza no município de Cachoeiras de Macacu, a 120 quilômetros ao norte da cidade do Rio de Janeiro e ocupa uma área de 3.438 hectares, dos quais 1.329 cultivados, com um total de cerca de 400 famílias residentes.

O assentamento surgiu em uma região marcada por diversos e antigos conflitos. Segundo o livro de Tombo da Paróquia de Cachoeiras de Macacu, o povoado de São José da Boa Morte sofreu por muito tempo uma epidemia de febre amarela que teve seu momento mais crítico entre os anos de 1831 e 1835.[9] Esta febre conhecida na época por “Febre de Macacu” provocou o extermínio em massa e êxodo da população (Coleção Perfis Municipais, 1988).

O esvaziamento da região marcou profundamente a sua forma de ocupação. Cada vez que cessavam os surtos epidêmicos, os antigos donos retornavam e encontravam as terras ocupadas por colonos, o que foi caracterizando a área como palco de intensos conflitos (Relatório do Inepac). No início dos anos 30, os rios Macacu e Guapiaçu foram drenados e retificados; nos anos 40, com a introdução do DDT, foi erradicada a malária, contribuindo esses fatos para uma valorização dos terrenos, antes pantanosos e malarígenos e para a revitalização das lutas entre latifundiários e posseiros (relatório do Inepac). Alguns anos mais tarde, mas ainda nos anos 40, o município sofreu uma forte transformação quando foram fundados núcleos de colonização promovidos pelo INIC (organismo criado pelo Ministério da Fazenda para diminuir os conflitos agrários e realizar as condições para desenvolver o cinturão verde) e cerca de 500 famílias foram deslocadas das áreas citricultoras da baixada fluminense e formaram as colônias agrícolas de Japuíba e Papucaia (Coleção Perfis Municipais, 1988).

Naquela época São José da Boa Morte era somente uma área de mata atlântica densa e improdutiva. Mas esta área fazia parte da fazenda de 200 alqueires de Papucaia e o número excessivo de famílias que chegaram em condições extremamente precárias na região, tornaram a convivência extremamente tensa e conflitiva. A fazenda de São José da Boa Morte com 4.828 hectares, nos anos 50, já estava ocupada por dezenas de famílias de lavradores, quando passou a ser reclamada pela família Cunha Bueno. A disputa pela terra se arrastou até a sua desapropriação para fins de reforma agrária, executada pela Superintendência de Reforma Agrária (Supra) em janeiro de 1964 sob o governo do presidente João Goulart (Decreto 53.404/64). Os lavradores, porém, não chegaram a tomar posse das terras.

Em 1965 os proprietários conseguiram um decreto presidencial que mandou o IBRA estabelecê-los à reintegração de posse. Também pelo intermédio do mesmo decreto puderam expulsar os posseiros de suas terras. Em 1968 o Processo nº 981/68 do Incra anulou definitivamente o Decreto nº 53.404/64, reintegrou a Agrobrasil da família Cunha Bueno, como proprietária. Seu administrador ordenou a imediata evacuação de todos os ocupantes. Em 1979 cerca de 100 famílias ocuparam a fazenda com o auxílio da CPT local, e o administrador da fazenda contratado pela família Cunha Bueno, chamou a polícia para retirá-las. Muitos ocupantes foram levados para a delegacia, juntamente com o padre católico local que estava à frente do conflito. Esta ação provocou uma forte mobilização dos moradores da cidade de Cachoeiras de Macacu, de trabalhadores rurais até de outras localidades, de jornalistas locais e do Estado, além de representantes de diversas entidades. Com isso os presos foram soltos e o Incra começou o processo de desapropriação da área. Em 22 de janeiro do ano seguinte, o Decreto nº 85.661/81 desapropriou a área destinando-a para fins de reforma agrária e tal decreto é ainda o que está vigorando.[10]

Observando e comparando os dois assentamentos

A formação dos assentamentos

Os processos muito diferentes que levaram à formação dos dois assentamentos influem de forma decisiva sobre suas organizações e sobre as respectivas formas de sociabilidade dos trabalhadores e de seus familiares.

O assentamento Mutirão do Sol da Manhã (SDM) surgiu da onda mais recente de conflitos, com a ocupação em 1986 de um terreno onde a empresa José Mizarhy Engenharia Ltda. havia criado um loteamento e do qual havia cedido 270 hectares à outra empresa, a Minério Gerais Ltda., para explorar a extração de areia. A área permaneceu durante alguns anos praticamente abandonada, até que em setembro de 1986 um grupo de famílias resolveu ocupá-la, entrando em conflito com a empresa José Mizarhy que ainda mantinha seu projeto de loteamento. Em agosto de 1987 houve um desdobramento da ocupação, e parte das famílias montou outro acampamento no local junto com as outras que chegavam. Um mês mais tarde o tribunal de Itaguaí concedeu a reintegração da propriedade à empresa, intimando a ação de despejo, com a ameaça de execução pela polícia. Ainda hoje, na memória dos assentados, aquele período é lembrado como o mais tenso de todo o processo. Os ocupantes, apoiados pela CPT e sua advogada, recorreram ao Incra, solicitando a revogação do despejo e a expropriação da área para fins de reforma agrária. O grupo conseguiu revogar a ação de despejo, sem porém conseguir evitar a expulsão de alguns moradores. No dia 2 de junho de 1988, o Mirad/INTER expropriou 271 hectares, classificados como “latifúndio por exploração” e área de interesse social. A área e os lotes foram demarcados pelo Incra em acordo e com a participação dos moradores, representados pela Associação dos Produtores. Nesse período de constituição os assentados não receberam qualquer auxílio financeiro ou crédito por parte do governo federal, porém os parceleiros assentados nessa parte estão hoje recebendo os títulos de propriedade. As famílias que foram assentadas nos restantes 230 hectares expropriados pela Seaf, ainda não conseguiram a legalização de sua propriedade e, em alguns casos, nem da posse do lote. A falta de titulação dificulta sobremaneira a obtenção de crédito junto aos órgãos financiadores, como o Crédito Verde do Banerj e o Procera.

Em São José da Boa Morte (SJBM) as lutas não consolidaram um grupo cuja organização fosse capaz de participar da definição das regras de formação do assentamento. Neste caso o Incra foi o dono absoluto do processo e decidiu praticamente tudo: a forma de reestruturação da área, a escolha dos assentados, a distribuição dos lotes. Os assentados foram recrutados na região, e entre os meeiros das áreas próximas. Interessante observar que desta seleção foram excluídos os participantes da invasão da fazenda.

Grande parte da área era de várzea, facilmente sujeita a enchentes provocadas pelo transbordamento do rio por isso, o Incra elaborou um projeto de terraplanagem, que deveria ter permitido a implantação de um sistema de irrigação e drenagem e que foi efetivamente realizado pela empresa de construção Andrade Gutierrez. A empresa criou também no local uma cooperativa à qual todos os assentados, como parte do acordo para a entrega do lote, deveriam se associar e seguir o planejamento proposto pelos técnicos agrícolas da empresa. O número inicial de parceleiros foi definido em 500 e eles seriam selecionados de acordo com critérios de avaliação do Incra. A escolha dos assentados foi feita em 1986, às vésperas da terra ser entregue junto ao título provisório. Uma cerimônia, que contou com a presença de representantes do então Mirad, celebrou o ato de entrega da terra.

Da análise das entrevistas feitas com os assentados e seus familiares, escolhemos para a comparação alguns aspectos do processo de formação dos dois assentamentos.

A) As atividades anteriores dos assentados

Em SJBM a maioria dos assentados afirma sempre ter sido agricultor. Muitos trabalhavam em terras de outros como meeiros, alguns são filhos de pequenos proprietários com os quais trabalhavam, em geral produzindo o que ainda produzem no assentamento (arroz, feijão, quiabo, pimentão, jiló e mandioca) quando então o pai ficou velho, vendeu a terra, ou morreu, e a herança dividida entre numerosos filhos os deixou sem terra.

No SDM a trajetória dos assentados pode ser até a mesma dos assentados de São José, mas em geral, eles têm um período mais ou menos longo passado na cidade e vários encontram-se hoje no campo pela primeira vez. São filhos ou netos de agricultores que tiveram que abandonar sua atividade por não conseguirem mais manter a família.

B) Como os assentados tomaram conhecimento do assentamento

Em SJBM a grande maioria morava próxima da área onde foi implantado o assentamento, e mesmo sem participar diretamente das lutas, tinham conhecimento de algum modo do processo que ali ocorria, assim como da possibilidade do Incra expropriar a fazenda. Assim, fizeram demanda de terra ao Incra, se cadastraram e esperaram serem chamados.

Em SDM, familiares e amigos dos que participavam do acampamento, espalharam a notícia de que havia disponibilidade de terra. Chamaram os parentes para participar da luta e conversaram no sentido de convencer os que não estavam muito seguros, de que os sacrifícios valiam a pena.

C) Porque decidiram participar do assentamento

O motivo de fundo é o mesmo de todos os trabalhadores que ainda não romperam com o vínculo à terra, no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo: a busca da autonomia e da independência. Consideram que dispor de um pedaço de terra própria pode não proporcionar riqueza, mas origina uma perspectiva de estabilidade no presente e de tranqüilidade para o futuro.

Há, porém, uma diferença importante entre os dois grupos de assentados. Enquanto em SJBM a maioria tem a esperança de que o lote recebido poderia ser um meio para progredir com a produção agrícola e atingir um relativo bem-estar; no SDM, o lote aparece mais como um meio de sobrevivência entre outros que já praticavam. Em outras palavras, há uma tendência entre os assentados do SDM em combinar o trabalho no lote com uma outra atividade, geralmente urbana.[11]

D) O processo de seleção

Em SJBM os assentados foram selecionados entre aqueles que haviam solicitado um lote e se cadastrado. Nas entrevistas para a seleção, os candidatos tinham que saber um pouco de tudo sobre a agricultura. Percebiam que as perguntas não pretendiam averiguar só o saber técnico, mas também visavam avaliar a aptidão e o gosto para a lavoura. Fizeram perguntas como: qual cultura estavam acostumados a plantar, quantos quilos de semente por hectare, quanto adubo para uma certa plantação, quantas horas de trator, quantos pés de aipim por hectare, que quantidade de remédio e para que tipo de inseto, etc. Os entrevistados reconhecem ter tido alguma dificuldade em responder, porém demonstram a convicção comum de que só foi selecionada gente que queria efetivamente trabalhar na terra. Há, porém, uma observação a fazer: vários de nossos entrevistados dizem não lembrar como foi a entrevista da seleção, o que poderia indicar que nem todos passaram pela seleção do Incra, ou que entraram quando o assentamento já estava consolidado.

No SDM não houve seleção por parte do Incra. A distribuição foi formalizada tendo por base o acordo entre Incra e Associação dos Produtores Rurais. A divisão da terra procedeu a partir de reuniões ainda no período de acampamento e foi administrado pela coordenação do acampamento. Em seguida foram sorteados os lotes (em primeiro lugar os da baixada) entre os presentes. O único compromisso assumido era o de morar no assentamento. Os que tinham viajado naquele fim de semana para visitar parentes, voltaram e encontraram o lote que lhes foi atribuído. Vários tiveram que se assentar do outro lado da estrada de ferro, tendo que entrar em negociação com um grupo de pecuaristas que criavam seus bois nos pastos daquela área. Após a legalização do assentamento, a principal rua que tinha sido aberta por eles foi batizada de Avenida Sete de Setembro (dia da legalização), os lotes tinham sido delimitados com 100 metros de frente ao longo da mesma. O tamanho dos lotes varia entre 2 e 8 hectares, sendo os menores os da área de baixada. Os assentados que chegaram depois destes assentaram-se na periferia do primeiro grupo, isto é, nas terras dos morros. Hoje é difícil de se dizer qual foi o critério da distribuição dos lotes, parece que a relação entre tamanho da família e o do lote pode não ter tido grande importância (cf. David, 1994).

E) Os primeiros anos

Em SJBM as maiores queixas são a respeito da “atribuição” do lote, sem possibilidade de escolha e com vários agravantes: a promessa, não cumprida, de que a companhia teria deixado tudo pronto para plantar; o tamanho do lote que muitos consideraram pequeno e a baixa qualidade da terra. Quando entraram na área os assentados descobriram que o projeto de irrigação e drenagem não estava completo e que a terraplanagem feita pela empresa havia esterilizado o solo para o plantio.[12] Diante disso, os escolhidos para o assentamento recusaram-se a ocupar a terra, alegando não ter recursos para recuperá-la e torná-la produtiva. O Incra contornou o impasse liberando uma verba para insumo a fundo perdido. Os assentados, mesmo avaliando tal proposta como um remendo impróprio e insuficiente, resolveram arriscar e acabaram aceitando.

Em um primeiro momento, não havia muitas opções para os agricultores: ou dedicavam-se à extração da madeira resultante do desmatamento necessário à preparação do solo para o cultivo, até ter condições de plantar a sua roça e ter a primeira colheita; ou buscavam assalariarem-se dentro ou fora do assentamento. Vários tiveram que vender máquinas ou automóvel para poderem investir na produção. Alguns poucos conseguiram recuperar mais do que haviam investido, em compensação outros nunca conseguiram comprar de novo o que venderam. Muitos quando chegaram tiveram que fazer a casa (em madeira, em palha, de estuque) que aos poucos foi ampliada e acabada em alvenaria. Vários, enquanto faziam a casa, arrendaram o lote para outros parceleiros.

Se nesse assentamento os primeiros anos foram duros, em SDM não foram mais fáceis. Em primeiro lugar, os que foram à luta, moraram 8 meses em barracas da Defesa Civil, esperando a tramitação no Incra do pedido de desapropriação. Devido às dificuldades, se organizavam coletivamente e dividiam as tarefas: as mulheres cozinhavam em uma cozinha coletiva e os homens abriam estradas, faziam obras, organizavam a defesa. Nos primeiros tempos exploravam um terreno que não conheciam, quase experimentando diversas culturas, comerciais e de subsistência, sempre esperando que alguém de fora pudesse ajudá-los com meios e conselhos técnicos. Aqui também as casas foram construídas aos poucos, à medida que as diversas rendas o permitissem.

F) Desistência e saída

A desistência e saída dos assentamentos por alguns produtores, são vistas pelos assentados de SJBM como pouco freqüentes; e tal decisão é sempre justificada pelas péssimas condições da terra. O que é interessante observar é que a saída é vista como o primeiro passo em direção do inexorável fim da autonomia. Estão convencidos de que os que repassam o lote e saem não vão muito longe dali (Cachoeiras, Parada Modelo, etc.), e que depois de pouco tempo estarão trabalhando como empregados para outros: “As pessoas vêm aqui sem recurso nenhum, recebem um terreno fraco e é obrigado a pegar assim mesmo, aí começam a trabalhar fora, depois pega e vende para outro, pega um trocadinho e vai para a favela na cidade grande.” Em geral a desistência só é admitida em caso de doença. A transferência do lote é feita através do Incra.

No SDM também tiveram e têm desistentes. Em geral, diz-se que as desistências ocorrem porque o assentado, “não consegue as coisas e desanima”. A desistência porém, não é vista como a saída do mundo da autonomia para a queda no mundo da sujeição, mas simplesmente como o abandono de uma alternativa que não deu frutos, para buscar outra alternativa mais frutífera. Quando alguém desiste tem que ir à Associação e esta dá o terreno para o primeiro de uma lista de candidatos que estão esperando.

Formas da sociabilidade

Os assentamentos, em sua grande maioria, acabam sendo processos que deslocam pessoas de um lugar para outro, recompondo uma comunidade que cria necessariamente dinâmicas de sociabilidade. Estas, em parte, são adaptações das experiências passadas, mas há também outras que são novas, criadas pela nova situação e pelo novo meio.

A) As relações familiares

A família permanece o núcleo privilegiado da sociabilidade. É o centro das decisões e de grande parte da circulação das informações. Em qualquer relato sempre há alguma citação ao pai, à mãe, à nora, aos filhos, ao genro, ao sogro etc.

Em SJBM o tamanho pequeno dos lotes tende a transformar a família de ampliada em nuclear. Porém, como as relações familiares se mantêm de forma muito importante, os novos núcleos familiares buscam ocupar lotes que os aproximem fisicamente à família de origem, do esposo ou da esposa. No SDM as famílias já eram nucleares quando chegaram ao assentamento, mesmo assim permanecem muito freqüentes as referências aos parentes e aqui também procura-se criar situações para que os parentes se assentem em lotes mais próximos possíveis. Como o lugar de proveniência da família é na maioria dos casos a cidade, cabe observar como os entrevistados enfatizam a convicção de que as visitas de filhos ou parentes que continuam morando na cidade são feitas com a atitude de quem está visitando alguém que vive em um mundo muito diferente (bucólico ou de lazer) do urbano. Nesta ênfase os assentados parecem querer reafirmar sua identidade rural, como se esta estivesse sempre posta em dúvida por eles aspirarem à condições de vida que contemplam estruturas típicas da cidade.

O que nos parece importante ressaltar é o esforço que em ambos os assentamentos os pais fazem para manterem seus filhos estudando, até o nível mais alto possível, nas escolas locais. É claro que os filhos trabalham e são parte da mão-de-obra, que é fundamentalmente familiar, porém, parece que o lugar principal pensado para os filhos não é nas atividades do lote, mas na escola. Eles desejam para os filhos uma atividade diferente da sua, uma atividade que apresente a perspectiva de uma promoção social. Nos relatos, quando são abordadas as atividades escolares dos filhos, sempre transparece um certo orgulho e também um forte apreço pelos sacrifícios que eles reconhecem que os jovem estão enfrentando para continuarem freqüentando a escola.

B) O Mutirão, as festas e a religião

As relações de vizinhança, as festas e as formas de ajuda mútua sofrem transformações devido à sua nova inserção e à incorporação de novas técnicas produtivas. Em ambos assentamentos, encontramos a preocupação de estarem vivendo uma situação de transição, onde elementos tradicionais, como a solidariedade e as festas, antes freqüentes, estariam desaparecendo. As relações de vizinhança parecem ser muito importantes; é através destas que se recriam os laços que permitem enfrentar dificuldades e a própria solidão causadas pela mudança para uma área onde a princípio não conheciam ninguém. Mas estas relações de vizinhança parecem marcadas por algumas diferenças entre os dois assentamentos.

Já no SJBM as relações parecem estabelecer-se muito mais em função das igrejas evangélicas, na medida em que existem 8 delas e os assentados costumam freqüentar a mais próxima de sua casa. As numerosas igrejas evangélicas do assentamento não são muito grandes e reúnem em média umas 30 pessoas. É interessante observar que todos os que freqüentam alguma igreja evangélica ou outra protestante, já eram praticantes antes de entrar no assentamento e este fato poderia reforçar a idéia, já levantada anteriormente, de que a seleção inicial privilegiou os solicitantes do protestantismo em detrimento dos católicos. A escolha de qual igreja freqüentar parece ser principalmente baseada no critério da proximidade à habitação, talvez não tanto por uma questão de comodidade, mas pela idéia de estarem mais próximos de seus “irmãos” e ser mais fácil dar ou receber ajuda em caso de necessidade. Com efeito, de um ponto de vista laico, a igreja parece funcionar como uma previdência voluntária para a qual os fiéis contribuem com dízimos. As festas acontecem dentro das igrejas e, entre elas, em encontros mais esporádicos. A prática do mutirão também é limitada a determinadas situações e sempre nos limites da igreja da qual participam; quando por exemplo, um colega que está doente e precisa da ajuda dos vizinhos, ou quando se exige um esforço comum para construir uma igreja.

Os casamentos entre fiéis de igrejas diferentes são costumeiros e acontecem freqüentemente entre os familiares dos assentados. O que aproxima os casais não parece ser somente a igreja, mas ainda parece forte a influência das relações de vizinhança e de compadrio, assim como as festas são importantes para provocar os encontros entre os casais. A descrição dessas festas enfatiza sua base religiosa: “... na festa vem muita gente, tem muita música, música evangélica. Tem a leitura da Bíblia, oração, as pessoas têm oportunidade de dizer alguma coisa: como está sentindo a religião, se gosta, se está se sentindo bem.” Festas e casamentos são também eventos que criam oportunidades de trabalho remunerado para as mulheres.

Além das reuniões que cada igreja promove durante a semana, tem ocasiões em que as diversas comunidades religiosas se reúnem ou se visitam reciprocamente. Esta prática religiosa freqüente e regular fortalece nos evangélicos a idéia de que as outras religiões não são grande coisa: “A Igreja Batista funciona, mas não é uma igreja, é uma congregaçãozinha. Nem sei mais onde está. Eles iam fazer uma, eu acho que estava funcionando na casa do Jorge que é o dono do terreno. Lá em baixo tem a Congregacional.” O menor apreço, porém é reservado aos católicos dos quais os evangélicos sublinham principalmente dois aspectos: não praticam a religião e não são unidos. A igreja de São José da Boa Morte, apontada pelos católicos com orgulho, é vista com bastante indiferença pelos diversos evangélicos, que também criticam o descaso dos católicos com esse seu “patrimônio”, tanto por não conservar as ruínas, como por não terem reagido à invasão da área do antigo cemitério associado à igreja.

No Sol da Manhã, a forma como o acampamento foi divulgado, de boca em boca, atraiu para a área pessoas da mesma família. Com isso estreitaram-se os laços de parentesco que deram também forma às relações de vizinhança. Diversos assentados afirmaram que isso lhes permite trabalharem juntos e se ajudarem mutuamente em caso de necessidades, além das mulheres se sentirem mais seguras na ausência dos maridos.

No SDM a igreja não aparece de forma tão presente nos discursos dos assentados. Quando alguém fala dela é para dizer que existe a idéia de se construir uma igreja, mas que ainda é só uma idéia, porque não há meios para que esse projeto avance concretamente, ao contrário de SJBM, onde sempre se encontram os meios para ter uma igreja antes mesmo de construí-la. As poucas referências que foram espontaneamente feitas à religião, foram relativas à CPT e a sua participação nas lutas pela terra, portanto de uma religião que se combina com a política. O que deve ser apontado é que no Sol da Manhã a política parece ser muito mais presente e se estende em várias dimensões com participação em âmbitos externos ao assentamento.[13]

As festas aqui parecem diferentes. Fala-se de festas juninas, cantorias, ou oportunidades para se reunir, mesmo que as pessoas considerem que a tradição esteja se perdendo e que a cada dia que passa as festas e as ocasiões de se reunir estejam diminuindo. O que prevalece e que é bastante forte sobretudo entre as mulheres, é uma visão de sociabilidade mais típica da cidade: fala-se de dançar, festejar aniversário, “festinhas americanas”, brincar. Assim, o julgamento de quem vem da cidade sobre a vida social no assentamento é drástica: não tem divertimento nenhum, cada um fica na sua casa (muito em função da necessidade de se precaver dos freqüentes furtos que acontecem em casas e propriedades sem vigilância). As verdadeiras festas parecem acontecer quando da visita de amigos ou parentes que moram fora do assentamento e na cidade.

Entre o rural e o urbano: um espaço em reconstrução

A análise dos assentamentos rurais no Estado do Rio de Janeiro pressupõe um maior aprofundamento das relações entre o rural e o urbano, no plano mais amplo das dimensões culturais. Acreditamos que tais relações possam ser observadas no discurso dos assentados, sob dois amplos prismas: por um lado, como um processo formador de identidade, sobretudo através da utilização da dicotomia campo-cidade, e por outro, como a reconstrução de novos espaços sociais onde campo e cidade estão próximos ou inter-relacionados.

Pensamos em um “processo de construção de identidade” porque, no Estado do Rio de Janeiro, os movimentos dos assentados parecem ter uma legitimidade menor da que os mesmos movimentos têm em outros estados, sobretudo Rio Grande do Sul, São Paulo e no Norte. Como já observamos, tanto as coordenações dos MSTs, como os órgãos governamentais responsáveis pelos projetos de assentamento e até os próprios mediadores (como ONGs e a CPT), têm demonstrado considerar a grande maioria dos movimentos no Estado do Rio como conduzidos por “sem teto” mais que por “sem terra”. No entanto, é oportuno mostrar como, também no nosso Estado, a identidade rural acaba se firmando ao longo do processo de disputa pela terra, mesmo que esta seja conduzida muitas vezes por indivíduos de origem urbana. É emblemática a confissão que alguns deles reconhecem “estarem virando rural” já no próprio acampamento.

Podemos observar, em primeiro lugar, que as tensões e a heterogeneidade existentes nos assentamentos não impedem a formação de certos níveis de identidade coletiva. Tais níveis de identidade estão ligados às especificidades de três dinâmicas, contínuas mas distintas: ao movimento de luta pela terra, à formação do assentamento como dinâmica de reconstrução desse espaço social, e às trajetórias individuais e familiares dos próprios assentados. Considerando os assentamentos como espaços da construção da identidade rural, destacamos as diversas formas de sociabilidade que ali surgem, abrangendo as redes familiares, as relações de vizinhança e religiosas. Buscamos agora perceber tais formas de sociabilidade, principalmente à luz das novas condições produtivas e da relação rural-urbano.

Vejamos antes de tudo algumas características dos dois assentamentos no que se refere às atividades produtivas e à visão que os assentados têm de sua situação e do conjunto do assentamento. No Sol da Manhã todos os assentados se definem como produtores agrícolas, mesmo mantendo outras atividades. Muitos informam que saem para trabalhar em outras terras (arrendadas, a meia ou como trabalhador sazonal contratado), mas sem abandonar seu lote. Os agricultores de tempo integral são cerca de 10%. Apesar de serem os que obtêm o melhor rendimento do assentamento, ainda estão longe da produtividade regional média avaliada pelos técnicos da Emater. De um modo geral, diversas formas de mão-de-obra são utilizadas na produção: há quem use apenas a mão-de-obra familiar, há quem contrate mão-de-obra, sempre por empreitada, e encontramos casos de trabalhadores residentes no lote apresentados como “agregados”.

Em São José da Boa Morte, os assentados poderiam ser assim classificados [14]: a) os que se dedicam à produção agrícola para o mercado; b) os que mantêm uma pequena plantação para a subsistência, possuem gado, porém poucas cabeças, e cuidam do gado de terceiros em regime de parceria; c) os que arrendam o pasto (natural ou plantado) de sua terra para terceiros e também mantêm uma pequena produção para a subsistência e 1 ou 2 cabeças de gado; d) os que trabalham fora; na cidade ou tomando conta de sítios em outras áreas, não plantam e podem ter 1 ou 2 cabeças de gado. Os que não produzem para o mercado geralmente se justificam com a péssima qualidade da terra; todos afirmam ter tentado a agricultura sem sucesso, já que o solo fértil foi raspado nas obras de aterro e terraplanagem, perdendo o seu potencial produtivo natural e impondo uma crescente utilização de adubo e fertilizante. A utilização da mão-de-obra é similar à do Sol da Manhã, com a diferença de que o trabalho contratado por empreitada aqui é usado em maior escala. Também nesse assentamento encontramos casos de uso de trabalhadores “agregados”.

É possível notar como em ambos assentamentos são implementadas diversas estratégias de utilização de mão-de-obra, desde o resgate do tradicional “agregado” até a parceria e o assalariamento, assim como, em ambos, todas essas relações são apontadas como sendo, dadas as características, as mais “convenientes” para um objetivo que é reconhecido por todos como o principal: a manutenção do lote.

Os discursos podem expressar certos valores dos assentados. No Sol da Manhã é muito presente o discurso que afirma a necessidade de plantar a terra do lote e que, portanto, torna ilegítimo qualquer trabalho fora do assentamento, com certas desculpas no caso deste continuar sendo agrícola.

Em São José, no entanto, os assentados não mostram constrangimento em afirmar, quando é o caso, que não plantam. A justificação de que a terra é fraca já se tornou um argumento suficiente para invalidar o caráter imperativo de tal prática, tanto para os que foram assentados logo no começo, quanto para aqueles que chegaram depois. Já que a terra foi qualificada por todos que entraram como de baixa fertilidade, seu cultivo não dependerá mais de “ser” ou “não ser” camponês e sim de “ter” ou “não ter” os meios para comprar o adubo necessário para tornar a produção rentável.

Entre os que não conseguiram melhorar seu lote, vários têm desistido de plantar. Nestes casos transformam suas áreas em pastagens para alugar a outros assentados que criam gado. Os que só alugam pasto geralmente trabalham fora, como caseiros ou empregadas domésticas, e alguns acabam desistindo do assentamento. Este mecanismo gera um certo rodízio dos lotes, acabando por fortalecer nos que permanecem uma mais clara percepção e avaliação de sua situação de assentado. Grosso modo poderíamos apontar os dois extremos de tais avaliações: os que têm um certo capital e produzem para o mercado se lamentam de que a reduzida área não lhes permite expandir sua produção; os que não têm capital e eventualmente têm que recorrer a fontes externas de renda consideram que já é bastante tranqüilizador ter um lugar para morar e poder plantar, mesmo que só uma horta.

As diferentes origens dos assentados não parecem ter determinado grandes diferenças em relação aos sistemas produtivos nos dois assentamentos. Embora em São José a maioria dos assentados, seja agricultor de tempo integral, e no Sol da Manhã pluriativos, em ambos podem ser encontradas formas bastante diversas de se relacionar com o lote: tanto em um quanto no outro assentamento existem os que não plantam e outros que plantam apenas para a subsistência. A trajetória rural-urbano-rural aparece nos dois assentamentos, apesar de ser mais comum no Sol da Manhã e, em ambos são ressaltados a competência e o saber técnico adquiridos ao longo da experiência de vida e da tradição familiar.

A visão que os assentados têm do conjunto do assentamento aparece bastante clara com relação às avaliações que estes fazem face à desistência. As justificativas para deixar o assentamento se referem a causas contingentes bastante diferentes, mas acabam sempre se reportando às expectativas iniciais com relação ao lote e também à finalidade que lhe é dada. Assim, no Sol da Manhã, os assentados tendem a justificar as desistências em termos subjetivos, atribuindo aos desistentes “incapacidade” e “falta de desejo de plantar”, o que os torna inaptos a permanecer no assentamento. Em São José a desistência é justificada pelas condições objetivas, pelas difíceis condições da produção, pela indisponibilidade de investimentos. Interessante, porém, é ressaltar como a desistência é vista em ambos assentamentos como uma derrota, uma perda, como uma decisão muito penosa e geralmente como o caminho que acaba levando a situações ainda piores que as enfrentadas no assentamento. De acordo com os depoimentos, a tendência dos que desistem no Sol da Manhã é a de ir para áreas urbanas, enquanto em São José os que saem tendem a buscar áreas próximas ao assentamento e, às vezes, voltam para trabalhar como diaristas para outros assentados.

A relação com o lote, portanto, é um dos elementos importantes de sociabilização e reconstrução de espaços sociais, contribuindo para a formação de imagens sobre o assentamento, até para as próprias identidades dos assentados. Deve-se observar, porém, que a construção de identidades passa também por sistemas de diferenciação internos, entre assentados, e externos, entre os assentados e “os outros”, estando tais sistemas relacionados com imagens do próprio assentamento idealmente construídas a partir especialmente de elementos de diferenciação com a cidade.

Em São José os assentados não precisam insistir sobre sua condição de agricultor, já que foram legitimados, no processo de seleção inicial, pelo próprio Incra e já que suas trajetórias não os têm afastado muito do campo. Assim, no São José, fala-se menos na cidade e mais de outras realidades, também rurais, pelas quais passaram antes de vir para o assentamento. Mas uma vez estabelecidos, os assentados buscam uma aproximação com a cidade quanto às suas formas de vida. Começa a se difundir a convicção de que as diferenças entre o homem do campo e o da cidade estão mais relacionadas ao trabalho do que à forma de vida, já que eles também aspiram a ter o que os habitantes da cidade têm.

No Sol da Manhã a legitimidade na condição de agricultor não é imediata, nem para os próprios assentados. Como em sua trajetória estes foram camponeses em tempos remotos, necessitam demonstrar a si próprios, aos colegas e ao Incra que eles podem voltar a ser rurais. Assim, seu discurso sobre a cidade é sempre presente, ressaltando profundas diferenças entre os “dois mundos” e reafirmando uma decidida preferência pela vida no campo. Os assentados evocam sua condição rural a toda hora, buscando minimizar, ou negar, as relações cotidianas com a cidade (local), utilizando-se de vários argumentos: reconhecendo que mantêm o trabalho urbano somente como um “bico”, ou qualificando suas constantes idas à cidade só pelo lazer ou por necessidades eventuais (doença, religião, escola, etc.), ou afirmando que “sempre” foram agricultores, mesmo quando não o são mais há várias décadas.

Se a construção das identidades está relacionada às trajetórias individuais e do grupo familiar, é possível reconhecer que os desejos dos indivíduos e a nova realidade podem gerar novas perspectivas, como, nesse caso, um urbano poder “virar rural”. O assentamento pode ter a força de reordenar as diferentes trajetórias, através da unidade espacial da convivência e da unidade gerada no processo de conflito que levou ao assentamento.

De toda maneira, pode ser importante, no plano das relações campo-cidade, ressaltar algumas diferença entre os homens e as mulheres. No Sol da Manhã foram as mulheres que de fato ocuparam o acampamento, em alguns casos até sem o consentimento inicial dos maridos, os quais juntaram-se depois. Com a necessidade de manterem uma fonte de renda, os homens trabalhavam no local de origem durante toda a semana, retornando para o acampamento, onde as mulheres tinham permanecido, só no fim de semana. Algumas mulheres não casadas reivindicaram o direito ao lote, fato não comum, já que os processos de assentamento consideram o homem como o chefe-de-família. As mulheres participaram, portanto, de forma ativa e decisiva para a construção e consolidação do assentamento.

Em São José, o processo teve início entre os chefes-de-família-homens e o Incra. Porém, em face das dificuldades causadas por um projeto inacabado e mal executado, as mulheres tiveram que complementar a renda dos maridos com o artesanato. Aqui também sua contribuição foi determinante.

O passado urbano está presente em muitas trajetórias de mulheres nos dois assentamentos e a mudança para o campo levou a uma mudança em sua vida social e em suas relações com o meio urbano. No Sol da Manhã é mais freqüente as mulheres nunca terem tido contato com a terra e com a vida no campo. Neste caso é comum elas se sentirem sozinhas e considerarem aquela vida um grande sacrifício. A mesma atitude faz-se presente também nas mulheres que tiveram contato com a terra na infância, mas que passaram a viver na cidade. Todas apontam para a falta de comércio próximo, de melhores condições de transporte e de assistência médica como sendo os maiores problemas. Paradoxalmente, as mulheres parecem ser o elo mais forte com o urbano e ao mesmo tempo com o assentamento. A relação entre o rural e o urbano aparece da forma mais realizada nos desejos destas mulheres; os dois espaços têm algo bom a oferecer, o espaço da nova vida conquistada e a memória recente da vida que tinham.

Observações conclusivas

1. Os projetos de assentamento rural promovidos pelo Estado não parecem ter regras uniformes para se concretizar. Às vezes a redistribuição da terra em uma determinada área vem acompanhada de uma espécie de “pacote fechado” de propostas que já contêm todas as definições fundamentais tomadas pelo Estado, desde o número e tipo de famílias a serem assentadas, ao tamanho e forma dos lotes, até a própria organização produtiva e a assistência técnica. Estas propostas aparecem como imposições, já que ocorrem sem um diálogo prévio com as entidades representativas dos solicitantes, mesmo que, após estabelecido o assentamento, estas possam ser aperfeiçoadas com certos ajustes às características singulares dos produtores.

Outras vezes o Estado simplesmente demonstra não ter nenhuma política; distribui a terra e deixa que os assentados organizem sua própria vida, como se as condições para eles se tornarem produtores, todos capazes de evoluírem economicamente, já estivessem dadas com a posse da terra.

Em ambos os casos, porém, o Estado sempre trata com os assentados somente no plano coletivo. Ao fazer isso, está recriando uma idéia de “produtor rural” na qual prevalece a uniformidade dada pelo “local”, ou seja, neste caso, dada pela própria estrutura do assentamento. Não entraremos aqui na discussão de como, onde e quando se formou esta “idéia” de produtor rural, nem se ela corresponde a formas sociais passadas ou simplesmente a ideal-tipos equivocados. Queremos tão-somente sublinhar como o Estado, assim fazendo, desconhece, ou evita propositadamente conhecer, as diferenças internas dos assentados.

2. Na comparação entre os dois assentamentos é possível observar o peso e as conseqüências da diferenciação dos assentados nos diversos níveis e âmbitos. Em primeiro lugar, os lotes são diferentes quanto às condições ecogeográficas e à fertilidade do solo, portanto sua distribuição é uma fonte natural de diferenciação que, como temos visto, pode até atuar de maneira perversa. O assentado que entra com um certo capital, pode perder tudo que tem, caso o lote não seja adequado as suas condições produtivas tanto em um tipo de assentamento quanto no outro. Em segundo lugar, os assentados chegam ao lote dispondo de bases econômicas, meios tecnológicos, preparo técnico e universo cultural bastante diferentes e as formas de diferenciação na entrada, obviamente, marcam as trajetórias futuras. Mas não somente. A diferenciação na entrada marca também o grau de aceitação da situação: quem chega com certos meios, depois de alguns anos tende a se dizer insatisfeito e com suas esperanças iniciais frustradas; os que se assentaram sem nenhum meio, se demonstram mais satisfeitos e com a sensação de ter realizado algo.

3. Um dos aspectos mais problemáticos, que poderia ser considerado comum à maioria dos assentamentos, é a relação entre o individual e o coletivo e isto se deve em grande parte à maneira pela qual tal relação foi tratada tanto pelos movimentos e seus mediadores, como pelos próprios estudiosos. Com efeito, os pequenos proprietários, que conduzem sua lavoura com mão-de-obra familiar, têm sido observados como portadores de duas características fundamentais que os distinguiriam de outros grupos. Por um lado, têm sido parte de uma comunidade e, por isso, orientados a práticas mais coletivas do que individuais. Exaltava-se a solidariedade entre vizinhos; observava-se como o trabalho, em face das necessidades conjunturais de um colega; tornava-se espontaneamente coletivo como forma de assistência; mostrava-se como a celebração das festas que acompanhavam as fases produtivas, além de proporcionar lazer, reproduzia a sociabilidade e como a prática religiosa também era uma forma tradicional importante de reprodução cultural; sublinhava-se como não havia diferenciação entre o espaço produtivo e reprodutivo e como as relações familiares permitiam a transmissão dos conhecimentos técnicos típicos de comunidades ou regiões. Por outro lado, eram vistos como sujeitos capazes de elaborar estratégias de sobrevivência que sempre eram familiares.[15]

A maioria das entidades que buscam organizar os assentamentos (Movimento, Estado, partners ou mediadores) tendem a adotar uma filosofia organizativa de tipo predominantemente coletivista, fundada talvez na idéia de que “o coletivo” esteja arraigado nas tradições do segmento social que compõe essa estrutura e, sem dúvida, muito influenciada por um tipo de processo de constituição dos assentamentos, o da luta pela ocupação da terra. Se o projeto de conquista da terra quase sempre tem se realizado como projeto coletivo, após a sua conquista passa-se para uma outra etapa, na qual a organização coletiva nem sempre responde às exigências e aos desejos dos assentados.[16] Uma vez na terra, começam a ser postas em práticas estratégias individuais de reprodução familiar e fala-se muito em “desunião”, “brigas” e “individualismo”.[17] É interessante observar que os próprios assentados reconhecem, em princípio, que a inserção do pequeno produtor no mercado, assim como a sua modernização (aquisição de máquinas, obtenção de crédito, organização do transporte e da comercialização, difusão de novas técnicas, instalação de infra-estrutura básica, etc.) é facilitada quando de uma ação conjunta. Porém, aparecem diferentes campos de tensão entre o individual e o coletivo. Um destes campos de tensão, no plano da atuação e intervenção política, pode corresponder à dupla pressão contraditória à qual estão sujeitos: são pressionados para uma atuação em conjunto e são cobrados para se tornarem produtores modernos, inseridos no mercado, isto é, são avaliados em sua produção organizada individualmente. Outro campo de tensão pode estar situado nas próprias raízes culturais desse grupo: a inserção de pequenos proprietários familiares em um projeto coletivo, acaba provocando sérias incompatibilidades e, em primeiro lugar, entre a autonomia na definição das estratégias de reprodução familiar, também arraigada em suas tradições, e as diretrizes traçadas para o conjunto. Nesse sentido podem surgir atritos entre as formas de organização produtiva e social, propostas pelas associações ou movimentos, e as decisões dos produtores e suas famílias (cf. Medeiros, 1994; Castro, 1995).

4. Em ambos assentamentos, os assentados querem melhorar suas condições de vida, buscando uma infra-estrutura melhor: querem luz elétrica, transporte, saúde, educação, etc. para diminuir sua dependência em relação aos núcleos urbanos. As aspirações a tais melhorias são interpretadas, muitas vezes, ou como um processo de “regressão” cultural ou como perda de identidade rural, quando na realidade correspondem a um processo de transformação cultural no conjunto da sociedade. Com isso, torna-se importante percebermos a cultura do meio rural como estando em movimento, em busca de transformações que lhes proporcionem os serviços disponíveis na vida urbana e o desenvolvimento da modernidade. A origem dos assentados, portanto, parece-nos ser mais uma questão do que um problema, no sentido de que não necessariamente todos aqueles que demandam terra e lutam por ela tenham que ser “camponeses” no sentido mais canônico do termo. Dadas as condições precárias e espoliativas em que o capitalismo se desenvolveu e tende a se desenvolver no Brasil, uma política de reforma agrária responsável e eficaz tem que assumir o fato, real e legítimo, de que também outros setores sociais possam procurar o acesso à terra como forma de fugir às difíceis condições de vida impostas pelas cidades. Nesse sentido, qualquer projeto de reforma agrária, ou de assentamento, tem que propor linhas específicas de atuação a partir das origens e das formas de diferenciação dos grupos que aspiram a terra e se dispõem a ampliar o setor dos produtores rurais independentes e inseridos no mercado.

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Notas

A pesquisa seguiu sucessivas etapas, nas quais foi realizado um levantamento bibliográfico, foram coletados dados institucionais em órgãos governamentais e foram entrevistados técnicos do Idaco que atuam nas áreas estudadas. Elaborou-se, em seguida, um roteiro para a pesquisa de campo, que contou com a permanência nos dois assentamentos dos estudantes David e Rainbault e de incursões periódicas das sociólogas para a realização de 40 entrevistas gravadas, além de um diagnóstico detalhado das duas localidades. Da pesquisa resultaram: 1) o relatório de David e Rainbault, Étude de deux assentamentos dans l’ État de Rio de Janeiro, Montpellier, 1994; 2) o Mémoire de Stephane David, Étude des strategies des producteurs de l’assentamento de Sol da Manhã (État de Rio de Janeiro), Dijon, 1994; 3) o relatório A origem dos assentados: um problema ou uma questão, 1995 ; 4) a dissertação de Elisa Guaraná de Castro, Entre o rural e o urbano: dimensões culturais dos assentamentos rurais no Estado do Rio de Janeiro, UFRJ, 1995.

Este trabalho é uma síntese de parte dos resultados da pesquisa e foi elaborado a partir dos quatro produtos acima citados.

[1] Entre 1985 e 1988, segundo Palmeira, o governo criou em todo o território nacional 524 assentamentos de reforma agrária, num total de 4.713.910 hectares, com 94.026 famílias de agricultores assentados. O mesmo autor comenta esse feito da seguinte maneira: “...os assentamentos de trabalhadores rurais... sem serem exatamente massivos;... atingiram diferentes regiões do território nacional; possuíam no horizonte um plano nacional de reforma agrária e, contemplando basicamente áreas de conflito, tiveram por trás uma mobilização de trabalhadores sem equivalente em casos anteriores” (Palmeira, 1994: 7).

[2] Uma das críticas ao relatório da FAO refere-se à conclusão de que a terra recebida pelas famílias é suficiente. Argumenta que poderia até ser suficiente hoje, no momento em que os assentados iniciam sua plantação, ainda com poucos investimentos técnicos e econômicos realizados, mas não significa terra em quantidade adequada mais a frente no tempo, quando devem ser atingidas as metas de absorção de toda a força de trabalho familiar e de garantia de renda que assegure a sobrevivência e o progresso social e econômico da família assentada. O risco de minifundização é real nos assentamentos (Beze, 1994).

[3] Guanziroli (1994) observa como a chamada “viabilidade econômica” dos assentamentos é abordada de três diferentes maneiras: 1) negando a discussão, porque esta ocultaria o caráter político da reforma agrária e faria o jogo da UDR; 2) em termos de “custo de oportunidade”, quando se compara a renda obtida nos assentamentos com a renda que os trabalhadores assentados obteriam como alternativa fora do assentamento; 3) comparando a economia dos assentamentos com a agricultura comercial capitalista.

[4] Esta seção faz parte da dissertação de Castro (1995).

[5] Segundo Lavinas (1990), na época eram 30 assentamentos, ocupando uma área total de 31.946 hectares e abrangendo 3.387 famílias. Atualmente, são 52, segundo os dados do Incra e da CPT do RJ (documento CPT, mimeo).

[6] A CPT do Rio de Janeiro surgiu em 1976, em Angra dos Reis. Atualmente são 6 áreas de atuação: Nova Iguaçu, Valença, Volta Redonda, Itaguaí, Nova Friburgo e Conceição de Macabu. Os agentes pastorais atuaram intensamente nos conflitos e nos processos de assentamento no Estado, através de um acompanhamento direto nas áreas, contribuindo dessa maneira para a feição que os assentamentos assumem hoje. Informações de documentos da CPT/RJ, (mimeo).

[7] Estes dados foram apresentados, no GT Pequena Propriedade Familiar, no Encontro Regional do PIPSA, SUL/SE, , realizado no Rio de Janeiro em 1994.

[8] Este município não é um dos mais prósperos; sua população representa 0,9% da população de Estado, mas seu PIB somente 0,38%. Desse PIB municipal, 48% é dado pelo setor do comércio e serviços; 43% pela indústria, sobretudo metalúrgica e somente 9% pela agricultura. Deve-se, porém, destacar a importância desse setor já que a agricultura do município que ocupa 15% da mão-de-obra ativa e contribui em 2,5% para o PIB agrícola do Estado, mesmo que sua área represente somente 1,2% da área total. Os pilares da agricultura de Itaguaí são a produção de banana, mandioca, quiabo e também a criação de porcos, cavalos e bovinos. Hoje os 523 km2 de terra do município de Itaguaí pertencem em 24% à União Federal, 10% ao Estado, 14% à Prefeitura, 41% a particulares e 11% são propriedades mistas, públicas-particulares (Seaf, 1991: 64; David, 1994).

[9] O nome da localidade São José da Boa Morte tem diferentes explicações e todas tem relação com as febres que assolaram aquela região. A versão que prevalece explica que as febres que estenderam-se do século passado até meados do século XX, dizimaram os camponeses que, para terem “uma boa morte” eram aconselhados a irem para a Igreja de São José. Esta igreja, que foi construída em 1612 e abrigou muitos lavradores na época da peste é hoje somente uma ruína, mas é considerada pelos políticos locais um símbolo de luta e prosperidade, ligada em um certo sentido ao direito de acesso à terra. Diversos prefeitos pediram ao governo de Estado a recuperação e o tombamento da igreja, que finalmente veio em despacho publicado no diário oficial de 9 de junho de 1988.

[10] O projeto do Incra formulado em 1981 previa o assentamento de 410 famílias e que se fizesse olericultura nos lotes das áreas planas e fruticultura, avicultura e suinocultura nos lotes com morros. Grande parte das dotações do projeto (512.856,18 Ortns) seriam destinadas às obras de drenagem (304.205,34 Ortns) e construção de estradas (192.145,39 Ortns) (David e rainbault, 1994). Segundo estimativas da época, a maioria dos trabalhadores deveria ser assentada até dezembro de 1982 (Inepac). Os candidatos teriam primeiramente que fazer sua inscrição no Incra; depois seriam chamados para entrevista segundo a ordem de inscrição.

[11] Ver também a tipologia traçada por David (1995).

[12] Para criar o sistema de valas que seria utilizado para escoar e armazenar a água das cheias e para levantar o terreno, a companhia havia raspado os morros, retirado terra, entulhos e pedras e usado esse material para nivelar os lotes. Como se não bastasse, os terrenos foram compactados com vibrações de 30 toneladas e as camadas férteis de vários sítios foram usadas para construir as estradas vicinais.

[13] Um grupo do assentamento participou ativamente de eventos da Rio-Eco-92 junto às (ONGs) e o seu grupo de “Teatro do Oprimido” também teve suas apresentações em vários âmbitos da grande conferência.

[14] Esses “tipos” não são puros. Podemos encontrar casos que misturam as características, assim como características que não foram citadas.

[15] Cândido (1987) aprofunda esta idéia de cultura camponesa tendo por base a solidariedade.

[16] Mesmo nos casos bem-sucedidos de coletivismo, parece que as tensões são atenuadas por circunstâncias bastante excepcionais, como no caso da fazenda Quissamã, no município de Nossa Senhora do Socorro a 17 quilômetros de Aracajú, onde 37 famílias ocupam legalmente, desde 1993, uma área de 355 hectares que pertencia a uma estação experimental da Embrapa. Todos os trabalhadores do projeto são divididos por área de especialização (grupo para cuidar do gado, do arroz, etc.) e têm suas horas de trabalho contadas por um coordenador. No final do mês tudo que é produzido e o eventual lucro é dividido de acordo com a participação de cada um. Desde que o projeto foi implantado cerca de 30% das famílias não se adaptaram à organização coletiva da produção, e foram transferidas pelo Incra para assentamentos onde este sistema não é praticado. A liderança admite que o eventual sucesso com a experiência coletiva deverá, em parte, ser creditado para a boa infra-estrutura deixada pela Embrapa. Os Sem-terra herdaram 13 casas de tijolos, além de benfeitorias incomuns em assentamentos, como curral, cerca, etc. e recuperaram boa parte do que estava se estragando (Alves, 1995).

[17] Bergamasco (1994), observa como as associações, num primeiro momento, são vividas como formas de reivindicação, para transformar-se em uma etapa seguinte em entidades preocupadas com o processo produtivo sem, no entanto, perder o caráter reivindicatório. Nessa passagem sua continuidade é posta em risco, porque se colocar como iguais no momento da luta não significa dispor-se a uma organização social da produção coletiva. Segundo a autora, os observadores avaliavam que havia um processo de desestruturação das associações interpretado como sendo um refluxo da organização sociopolítica e econômica dos associados. No entanto ela considera que este processo pode ser interpretado como “busca de novas estratégias” de produção e reprodução dos assentados; isto é, poderia ser um processo de reacomodação. Reconhece, portanto, que a avaliação da disponibilidade à organização coletiva ou individual, em termos de sucesso ou fracasso de um assentamento, deve ser revista.