Estudos Sociedade e Agricultura

autores | sumário  

 

Regina Bruno & Abdias Vilar de Carvalho

Entrevistam José Gomes da Silva


Estudos Sociedade Agricultura, 6, julho 1996: 36-48.

Concedida em São Paulo, setembro de 1994.

Regina Bruno é professora da UFRRJ/CPDA; Abdias Vilar de Carvalho pertence ao Incra-SP.


Apresentação de Regina Bruno

Em homenagem a José Gomes da Silva, uma das figuras mais expressivas na defesa de uma reforma agrária no Brasil, a revista Estudos Sociedade e Agricultura resolveu publicar esta entrevista realizada em setembro de 1984 na cidade de São Paulo.

A entrevista destaca um momento menos conhecido de sua trajetória - a época da elaboração do Estatuto da Terra. Procuramos resgatar muito mais a pessoa no cotidiano da luta pela reforma agrária, enfatizando-se as negociações e os inúmeros impasses, as derrotas e vitórias do jogo político que deram origem e se sucederam ao Estatuto da Terra.

A entrevista foi realizada numa conjuntura em que a reforma agrária, por força da intensificação dos conflitos no campo, voltava à ordem do dia, e antecedeu o momento em que José Gomes da Silva foi chamado para ser um dos elaboradores do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e dirigir o Incra - experiências que são relatadas nos seus livros Buraco Negro: a Reforma Agrária na Constituinte e Caindo por Terra (Crises da Reforma Agrária na Nova República).

Gomes da Silva foi incansável na luta pela melhor distribuição de terras no Brasil, a sua posição e suas análises são conhecidas por todos. Dentre suas principais atividades ele foi fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), autor de inúmeras publicações sobre o tema agrário, secretário de Agricultura e Abastecimento do governo Franco Montoro, presidente do Incra na Nova República e coordenador da área de agricultura e reforma agrária do “governo paralelo” do Partido dos Trabalhadores (PT).

Na sua trajetória política, Gomes da Silva se destacou, sobretudo, pela defesa da desapropriação como instrumento prioritário da reforma agrária e pela coerência política, e apesar de hábil negociador, não hesitou em abrir mão de cargos públicos quando viu que o eixo de suas teses reformistas fora desviado.

 

Entrevista: José Gomes da Silva

Quando o senhor começou a se preocupar com a questão da reforma agrária no Brasil?

A minha entrada no assunto começou com o governo Carvalho Pinto. O governo Carvalho Pinto também tem o seu folclore, a sua história secreta. Havia uma assessoria particular, da qual fazia parte o Diogo Nunes Gaspar, que trabalhava no Banco do Nordeste. Ele era um cara ligado ao Jango. O Diogo tinha estado numa reunião das Nações Unidas, onde foi discutido o informe da Aliança para o Progresso sobre Reforma Agrária. Ele trouxe o informe e deu para o José Bonifácio, que era o Secretário da Agricultura. O Diogo era homem de esquerda mesmo. E o José Bonifácio tinha alguma ligação com a esquerda. Não digo que fosse de uma esquerda muito avançada, mas ele era uma pessoa aberta. E os dois convenceram o Carvalho Pinto da importância de São Paulo começar a fazer alguma coisa. Embora São Paulo não tivesse uma questão agrária tão séria, tinha uma presença na Federação. E o Carvalho Pinto topou. Então, eles prepararam um projeto de lei estadual. Naquela ocasião o Imposto Territorial Rural era dos estados. Então, pegaria o ITR e financiaria alguns projetos de redistribuição. E, além disso, haveria uma ação do ITR de forma progressiva. Mais ou menos os dois instrumentos do Estatuto da Terra, com uma diferença de que tem que pagar em dinheiro - a Constituição não permitiria pagar em títulos - teria que se antecipar. Mas São Paulo tinha muito dinheiro, tem gente numa situação muito boa. O fato é que eles prepararam um projeto de lei, mas que eu não participei. O governador convocou uma reunião no Palácio. E entregou um boletim com este texto. Foi uma festa geral. Aí o pessoal levou o boletim para casa, leu à noite e no dia seguinte foi uma pauleira.

Enfim, o pessoal viu aquilo como um perigo, que iria abrir precedentes e iria mexer com os latifundiários mesmo. O José Bonifácio era o secretário que tinha mais força e mais intimidade com o campo, a agricultura. Ele era o pai da criança. Então, ele ficou numa dificuldade tremenda.

A função do governo era interiorizar a Secretaria (a Secretaria funcionava na Rua Quinze, em cima do Banco Canadá). Então, dentro do tal plano de ação constava a interiorização da Secretaria e eu fiquei encarregado de fazer isso. A primeira coisa foi convencer o governador que não devia mudar a Secretaria, mas sim os órgãos técnicos, e reconverter a linha de atuação que era muito antiquada. Por exemplo, nós não tínhamos serviço nenhum de comunicação. Nós teríamos que modernizar nosso sistema de trabalho.

Um dia que eu fui falar com o José Bonifácio sobre um assunto qualquer, ele estava com a mão na cabeça assim, com cara de vencido, como se tivesse sido derrotado. O que é isso? perguntei. Entrei num vôo cego com esse negócio de Revisão Agrária. Estou sozinho! Todo mundo estava de acordo. Não é possível que aconteça um negócio desse!”. Eu dei aquela consolada, mas quem era eu para consolá-lo? Mas, enfim, voltei para minha casa e fiquei pensando em como é que a gente pode ajudar. E tentei alinhar esse programa à mudança de orientação. Bom, agora nós temos um cara que entende de televisão, outro entende de rádio, outro entende de jornalismo rural. Vamos mobilizar esse pessoal, vamos defender o projeto. E preparamos nove equipes. E o debate se decidiu em encontros públicos que tinham de um lado o pessoal da Faresp (a Federação das Associações da Agricultura do Estado de São Paulo - entidade de representação patronal) e do outro a Confederação dos Trabalhadores no campo. E nós como governo éramos para responder as perguntas e o público julgava. Fizemos isso no interior inteiro. E me envolvi de tal maneira que acabei entrando no assunto. Foi em 1961.

O projeto da Revisão Agrária foi aprovado. Mas assim que foi aprovado, foi feita uma manobra no Senado em cima de um projeto de lei que estava lá há duzentos anos, transferindo o ITR para os municípios. Aprovaram o projeto, mas nos tiraram a fonte de recursos.

Então eu fiquei, além de todo o estigma da reforma, interessado no assunto. Em 1963, quando teve início o III Curso Internacional da FAO, eu pensei “agora é hora de eu tentar adquirir uma base melhor sobre o assunto”.

A Aliança para o Progresso estabeleceu como prioridades o saneamento básico, educação e questão agrária. Eles chegaram a conclusão de que na América Latina tinha pouca gente com formação fidedigna na questão agrária. Então, a FAO, o IICA, a Cepal se reuniram e começaram a dar o Curso Internacional de Reforma Agrária. O primeiro foi no Chile e o segundo foi na Colômbia. Nós tínhamos acabado de construir este Centro de Treinamento aqui, tentando mudar a nossa linha de trabalho, de uma linha instrumentista para uma linha mais educacional. Um dos participantes achou que o único lugar que serviria para fazer um curso daquele nível seria na CATE. Então, nós fizemos um convênio para dar o curso aqui em Campinas. Eu era diretor e estava muito motivado pelo negócio do problema da terra, devido à minha participação no governo Carvalho Pinto.

Um dos princípios que nós aprendemos no curso da FAO era o princípio da mística. Para fazer a reforma agrária é preciso ter um pouco de mística. O órgão responsável pela reforma precisa ser zero quilômetro, não pode estar comprometido com o Ministério da Agricultura, nem com nada do passado.

O curso era muito bom. Acho que foi o curso mais caro realizado no Brasil. Foram dois meses de parte teórica, e depois, em plena efervescência, nós fomos fazer um projeto sobre uma das invasões do Brizola no Rio Grande do Sul, na Fazenda Anoni.[1] Depois fomos conhecer as Ligas Camponesas no Nordeste. O curso terminou em Recife com a presença do Castello Branco - ele era o comandante do IV Exército. Então, daí eu me engajei mais ainda no negócio. Naquela época havia muito debate, nas universidades, nos centros acadêmicos.

Aí veio o golpe de 64. Em 64, nós já estávamos instalados aqui em Campinas. Os tanques passaram na minha porta, porque tem um quartel aqui, que faz fundos com a minha porta. Nós víamos os tanques passando. Os tanques iam em cima dos caminhões. No dia 9 de abril saiu o primeiro comunicado dos generais - eles diziam que a revolução era para combater a corrupção, evitar a subversão e realizar as reformas.

Eu e mais um grupo de amigos que tinha feito o curso da FAO, o Carlos Lorena, o Fernando Sodero, o Copérnico, e o então presidente da Contag, o José Rotta, reunimo-nos e dissemos: Bom, vamos fazer um teste sobre a sinceridade dos militares. Nós começamos a preparar as linhas gerais de um projeto de reforma agrária para enviar aos militares. Começamos a nos reunir toda noite para traçarmos as linhas da reforma inicial que era exeqüível, a partir daquela doutrina que a gente tinha aprendido no curso.

E toda noite em plena poesia nós nos reuníamos. Tínhamos uma combinação inclusive de que o grupo se reuniria com qualquer número. Uma noite nós estávamos lá e tocou o telefone. Queriam falar com Drummond. Uma pessoa de pouco barro, mas muito interessado em política agrícola, mais na linha de financiamento, de crédito, de preços mínimos etc. O Drummond havia trabalhado como assessor na Consultec, com o Roberto Campos e conhecia o Paulo de Assis Ribeiro.[2] Esse era um homem extremamente inteligente, com uma capacidade de trabalho incrível, desses de passar três noites sem dormir. Era a minha dor de barriga. Mas quem estava ao telefone era o Roberto Campos. O Drummond falou para o Roberto Campos o que nós estávamos fazendo aqui, em Campinas. O Roberto Campos perguntou: “Drummond, quem está coordenando?” “É um tal de José Gomes da Silva”. “Então, chama ele. Gostaria de conversar com ele no telefone”. Aí ele pôs a mão no telefone e falou: “Zé Gomes, o dr. Roberto Campos quer falar com você”. Aí o pessoal falou que era um trote. “Deixa de piada”. Todo mundo pensava que era gozação. Mas era o próprio. E eu fui lá. E ele falou: “Vocês não querem fundir os dois grupos? Venham para cá para trabalhar junto”. “Eu vou conversar com o pessoal”, eu disse. Então, o grupo achou que eu deveria ir para lá. Eles continuariam trabalhando e eu ficaria numa espécie de articulação. E quando eu me dei conta, eu estava sentado na ante-sala do Roberto Campos, no sexto andar do Palácio da Fazenda, no Rio de Janeiro.

Então, nós começamos a participar do projeto, com todas as suas marchas e contramarchas. Quando o projeto foi remetido ao Congresso, nós praticamente morávamos no Congresso. Saíamos depois que encerravam as sessões, e havia sessões que iam até de madrugada. Toda a discussão era muito difícil e muito acidentada. Acho inclusive que foi a primeira vez na história em que se derrubou um relator. O fato é que, enfim, o projeto foi aprovado e aquilo que não aconteceu na tramitação, e que foi de certa maneira imposto pelo governo, acabou acontecendo na implantação.

Comecemos por sua experiência no governo Carvalho Pinto. Por que a denominação revisão agrária ao invés de reforma agrária?

Bom, porque o pessoal do Carvalho Pinto não era tão avançado assim. A reforma agrária era uma expressão muito marcada, para um governo com o feitio do Carvalho Pinto. E a maneira de fazer “média” foi chamar de revisão agrária, embora todas as suas linhas principais estivessem depois presentes no Estatuto da Terra.

Houve pressão de algum grupo? Da Igreja ou de alguma associação?

A Igreja ajudou muito, talvez tenha decidido em favor dele. D. Evaristo, que já existia naquela época, D. Hélder Câmara, e, por incrível que pareça, houve uma posição assim, mais ou menos, não digo unânime, mas de uma maioria muito grande, de alguns conservadores. Na época a Manchete publicou uma reportagem muito boa - eu ainda guardo em um álbum na fazenda. De um lado nós temos a favor, a Igreja, a Federação dos Trabalhadores Cristãos (o movimento sindical era muito incipiente). E contra, violentamente contra, a Faresp e uma boa parte do legislativo estadual. A classe média estava assustada. Houve alguma dificuldade entre os pequenos proprietários. Eles ficaram um pouco assustados de virem a ser atingidos também. Mas os debates no interior ajudaram muito. Eles nos perguntavam “então, vai tomar a terra do sujeito?”. Nós respondíamos, “Não, só se tivesse sido abandonada”. “Reforma agrária não é coisa de comunista. Reforma agrária foi feita pelos americanos.”

Mas, eu acho que o mais importante nisso tudo, mais importante que o próprio projeto foi o subproduto. Primeiro ter partido de São Paulo; segundo, ter propiciado inteiramente a uma porção de gente que, a partir daí, começou a falar disso com melhor conhecimento de causa.

Como o senhor analisa no período Goulart a discussão sobre a reforma agrária? Por que ela não saiu nesse período? Qual era o temor maior de uma reforma agrária?

Bom, eu acho que uma das causas foi que ela foi muito mal formulada do ponto de vista da concepção operativa da reforma. Eu, inclusive, fui nomeado presidente da Supra (Superintendência da Reforma Agrária - organismo criado no governo João Goulart), depois do João Pinheiro Neto. E não tinha nada, nada, absolutamente nada efetivo. Tudo estava na cabeça dos caras. Na cabeça do Pinheiro Neto, do Francisco Ítalo de Oliveira. Mas eles não operacionalizaram nada. Eles se envolveram tanto no debate político, da promoção política da coisa, que não chegaram a formular projetos corretos, de modo que a classe média pudesse vislumbrar o que seria uma reforma na prática. Ela foi dificultada também pelo racha entre as Ligas Camponesas e os sindicatos, pela Igreja. No Nordeste ficou de um lado Julião, do outro, o Padre Melo, e isso dividiu um pouco.

Essas divergências se refletiram na reforma agrária?

Refletiram sim. Se eles estivessem juntos teria sido mais fácil de pressionar. A divisão apareceu como uma coisa muito polêmica, mesmo o pessoal da reforma não se entendia. O órgão da reforma, a Supra, teve uma origem muito suspeita. A Supra foi criada por uma lei delegada e puseram um conciliador, o Costa Lima, como ministro. Quando eu fui presidente da Supra, a minha estratégia foi outra. Eu tentei criar alguns fatos consumados que não pudessem ser desmanchados, como por exemplo desapropriar uma usina, mas não deu tempo. A Supra, enquanto estrutura de reforma, era muito tumultuada. Uma de suas linhas de atuação, era a de criar sindicatos para pressionar pela reforma. Mas na parte operativa não funcionava. Na reforma agrária ou você faz de uma maneira impositiva, ou você tem que ganhar a opinião pública. E dentro da opinião pública tem um grupo a favor, que é os sem terra, um grupo contra, que são os latifundiários, e a classe média fica assim como uma espécie de árbitro nisso tudo. A classe média no Brasil nunca teve uma noção de como poderia ser a reforma. No governo Castello Branco, as divergências na Supra eram mais de ordem política. O pessoal que tinha sido derrotado no Congresso procurava depois criar dificuldades. Foi um período de transição muito difícil e minha tarefa lá era ajudar, ver o que se aproveitava para formar um órgão de reforma agrária de verdade. Tanto que uma das coisas que nós conseguimos ganhar em briga no tempo do Castello Branco foi que o órgão de reforma fosse específico de reforma. Não fosse um órgão que cuidasse também de colonização, extensão rural e eletrificação. Coisa assim que a contra-reforma, logo que teve oportunidade, conseguiu fazer ao acabar com o Ibra e criar o Incra.

Por que o medo da classe média com a reforma agrária?

O pequeno proprietário tinha medo de também ser desapropriado. E aquele sujeito que tinha uma casinha, tinha medo de que o precedente da expropriação trouxesse confisco geral de todos os bens.

Como o senhor explica o interesse do Castello Branco pela reforma agrária?

Isso é uma coisa que eu sempre me perguntei. E às vezes eu me sentia preocupado. Será que nós fomos usados ou não? Mas a análise que eu faço, com os elementos de que eu dispunha naquela época, é a seguinte: o primeiro fato concreto é a origem nordestina do Castello Branco. Ele viu e viveu o problema lá no Nordeste. O Castello Branco era um homem muito preocupado com o campo. Era um homem obstinado, interessado e motivado. Ele gostava de conversar, às vezes ele nos procurava e nos instigava apresentando um problema. Ele dizia: “Bom, e o meu compadre do Ceará? Ele tem 10 mil hectares, mas ele quer colocá-los em cultivo, quer deixar de ser latifundiário. Qual é a saída para ele?”

Um segundo aspecto é o empenho pessoal do Castello Branco, ele inclusive havia participado do seminário promovido pelo Instituto Joaquim Nabuco sobre “Reforma Agrária e Cana-de-açúcar”. Numa ocasião ele nos disse que não havia perdido nenhuma das sessões do seminário. Se isso explica o seu interesse eu não sei. Mas são fatos, fatos históricos.

Nós também vivíamos um momento histórico porque havia o modismo da Aliança para o Progresso, aliás esta é a minha única explicação para o interesse do Roberto Campos pela reforma agrária. Ele era embaixador de Washington e deveria se sentir meio mal, pois na Colômbia se falava em reforma agrária; no Equador havia reforma agrária. Ele fazia uma análise sobre a importância do setor agrícola, ele valorizava muito a agricultura e tinha uma postura muito mais favorável do que se encontra nos atuais economistas da Oposição.

Havia divergências entre os componentes do grupo de trabalho responsável pela elaboração do Estatuto da Terra?

Existia um divisor de águas muito claro entre o grupo de São Paulo, que tinha experiência no campo, e o grupo do Rio, que era um grupo muito teórico. Eles falavam em reforma agrária em termos de Aliança para o Progresso. Participavam do grupo do Rio o Roberto Campos, Garrido Torres, Paulo de Assis Ribeiro, Simonsen e o Nascimento e Silva. Eles tinham recebido uma instrução do presidente Castello Branco, mas não tinham a prática de campo, não sabiam o que era um camponês.

O Castello Branco tinha um fascínio pela inteligência e a capacidade de argumentação do Paulo de Assis. O Roberto Campos não acreditava muito nele mas ele convenceu o presidente que a reforma agrária tinha que ser feita via imposto. O Paulo vendeu o peixe da tributação para o Castello, porque a única coisa que ele sabia de reforma agrária era tributação. A especialidade dele dentro da Consultec era montar sistemas de tributação e cadastros, em prefeituras. O Paulo também coordenou o livrão do IPES intitulado Reforma Agrária - problemas, bases e solução.

No transcorrer deste processo a polarização ficou muito clara, a ponto de a gente, em um determinado momento, pensar em sair. Mas, nós examinamos a situação e resolvemos ficar. O grupo achou que seria melhor a gente engolir o sapo. Seria um sacrifício muito grande, calar até o final para tentar dar essa contribuição de campo que necessitava principalmente do Lorena, que trabalhara na Revisão Agrária em São Paulo, e tinha participado dos projetos de campo e sabia pelo menos como não-fazer, como evitar os erros que tinham sido cometidos aqui.

O nosso grupo era composto do Fernando Sodero, o Carlos Lorena, e eu. Às vezes nós consultávamos o José Agostinho Drummond Gonçalves, que foi presidente da Comissão de Financiamento da Produção. Ele trabalhava aqui conosco na Abra. Hoje ele está no grande mundo das multinacionais - na Sanbra. O Drummond foi o responsável pela nossa ida para o Grupo de Trabalho do Estatuto da Terra do governo Castello Branco. Ele tinha ligações com o pessoal do Rio e de Brasília.

Houve muita reação ao Estatuto da Terra?

Inúmeras. Um dia eu estava lendo no trem uma das últimas versões do Estatuto da Terra que tinha trazido para estudar em casa. Eu comprei o Estadão e quando o abri, eu falei: “pegaram o meu documento! Acharam!”. Estava lá a versão do Estatuto publicada com todos os carimbos de “secreto” e “confidencial”. Isso foi uma das falsetas que a chamada contra-reforma tinha nos pregado. O Ministro da Agricultura Oscar Thompson Filho havia dado o texto para “O Estadão”. Foi uma maneira de torná-lo público. O Castello Branco o chamou e o demitiu.

Mas, num primeiro momento, houve o fator surpresa, mesmo dentro da própria Oposição. Havia tantos problemas políticos na época que a reforma agrária não apareceu isolada, com o seu perigo, o seu potencial, com aquilo que ela poderia significar. Um dia eu fui fazer uma palestra no Senado e o presidente da Comissão de Agricultura olhava assustado - o texto do Estatuto da Terra tinha sido impresso pelo Senado. O pessoal não se dava conta da coisa.

Já existia no momento algum debate sobre a colonização como alternativa à reforma agrária?

Ah, já existia! Inclusive argumentava-se que não precisaria fazer a reforma porque a colonização resolveria tudo. Isso estava melhor articulado em Minas e em São Paulo. O presidente prometeu que só remeteria o projeto ao Congresso depois de ouvir o grupo de São Paulo. Nós fizemos uma reunião, foi uma barra!

Quem estava presente na reunião de São Paulo?

O Delfim Neto, o Paulo de Assis Ribeiro, Roberto Campos, o Saulo de Almeida Prado da Sociedade Rural Brasileira (SRB), o Plínio Correia de Oliveira. Não me lembro dos outros.

Qual era o papel do Delfim Neto?

O Delfim era assessor. Eles pegaram o Delfim como assessor, mas na reunião com os representantes de São Paulo ele quase não falou nada. O pessoal de São Paulo era muito arrogante, muito agressivo, e logo no começo da reunião eles partiram para o pau em cima do Paulo e de mim, que éramos assessores do Roberto Campos. Essa reunião já estava comprometida porque eles estavam vendo ali a figura da Cepal e um discípulo do prof. Carvalho Pinto. Se dependesse dessa reunião a gente teria perdido feio. Depois da reunião o Castello Branco então me chamou e disse que estava resolvido a ficar com a gente.

No seu livro o senhor faz referência a participação do Golbery, como o senhor avalia a posição do Golbery neste processo?

É muito difícil. Eu acho que muitas coisas têm que ser feitas com o defunto ainda quente, como Guariba[3] por exemplo, inclusive me propus até a fazer uma pesquisa sobre Guariba. Outros especialistas dizem que não, que tem que se esperar uma perspectiva histórica. E agora, com uma perspectiva histórica, como é que você vai falar do Golbery? Falar do Golbery agora... Não dá para falar. Mas francamente, eu não acredito, em certas coisas organizadas, certos complôs. Não havia um complô. Havia talvez uma confiança no arbítrio, tipo “aconteça o que acontecer nós temos o controle da situação”. O que era certo é que eles sabiam que seriam tão fortes que seriam capazes de controlar qualquer coisa. E o sentimento do governo de débito com a consciência, com a nação, era com os camponeses. Tipo “temos que fazer alguma coisa para livrar a nossa cara”. Eu acho que era uma dívida que o governo tinha para saldar por ter dado o golpe. E isto está escrito na Mensagem 33.[4] Aliás o original da Mensagem que o Castello Branco aprovou era muito mais dura. Aí ele pediu para o Nascimento e Silva corrigir o português e o Nascimento mudou uma porção de coisa.

O Nascimento e Silva corrigiu além do português?

Muito além. O original da Mensagem 33, eu acho, nem o Goulart teria escrito.

Como vocês viam a questão Nordeste? A reforma agrária estava ligada à questão Nordeste?

Havia um pessoal muito ativo, principalmente o Padre Crespo, no debate sobre o Estatuto. Um dia ele nos procurou para discutir especialmente a proposta dos dois hectares, ele queria incluir no projeto a obrigatoriedade dos dois hectares. E o argumento do grupo foi que “não, aquilo já era um decreto-lei”. E depois, se o governo estava disposto a distribuir módulos, por que distribuir dois hectares?

Tinha um endurecimento quanto ao Nordeste. E parte, vamos dizer, da minha cristalização nesse programa foi o fato de conhecer o Nordeste. Eu tinha tido alguma participação no movimento sindical que então se iniciava. Eu participei do II Congresso em Natal, no final dos anos 50 e começo dos 60. Eu fui lá por minha conta e quase fui linchado, eu aproveitei uma carona e nessa carona tinha um sujeito de Santa Catarina que era visto lá pelo pessoal como reacionário, e um dos dirigentes da mesa, o Nestor Veras, quando viu essa pessoa, que era um padre, também se assustou. Nós fomos quase linchados. Eu também tentei falar com Julião, não consegui, mas falei lá com a assessoria dele. Eu tinha contato com Padre Melo e principalmente o Padre Crespo. E também tinha ligações no Nordeste em termos intelectuais.

As Ligas Camponesas pesaram nesta nova discussão sobre a reforma agrária?

Eu acho que pesaram muito, principalmente em termos de ameaça. Como Guariba agora pesou, era um marco do que poderia acontecer se o pessoal se organizasse. A mística em torno das Ligas Camponesas era muito forte. Mas quem conheceu as Ligas por dentro sabe que elas eram é muito frágeis. Acho que era um negócio muito mais em termos do político do que propriamente de organização. Essa foi a impressão que eu tive. Em maio, Afonso Carneiro distribuiu um trabalho que foi feito pelo CIDA e mostrava as Ligas com um grande potencial, mas muito frágil, mais como caixa de ressonância.

Com relação ao debate no Congresso Nacional, qual era o clima naquele momento?

A primeira coisa foi a perplexidade. O Congresso não esperava por isso, que o anteprojeto fosse remetido para votação. Eles contavam em segurar o anteprojeto no debate interno. E houve dois fatos assim muito fortes. Primeiro foi esse almoço com os representantes de São Paulo. Em segundo lugar, o lobby contra a reforma era uma coisa impressionante. E eram exatamente figuras que o Castello Branco admirava pessoalmente. Ele gostava muito de conversar com o Bilac Pinto e o Bilac Pinto tinha ojeriza à reforma agrária, era uma ferocidade.

Além disso, no nível político os três governadores Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto eram contra mesmo e eram muito fortes. Eles foram lá no Congresso diversas vezes. O Ademar se exercia mais através do Ministério da Agricultura. O Magalhães Pinto também conseguiu um compromisso com o Castello Branco de, antes de remeter o anteprojeto ao Congresso, fazer uma reunião com todos os secretários da Agricultura dos estados. Ele aliciou o pessoal e preparou uma jogada em Viçosa. A começar pelo lugar. Viçosa era inacessível. Nós levávamos vinte e uma horas para ir de automóvel a Viçosa, em estrada de terra. Ele montou um negócio fechado, sem imprensa, aliciou os secretários de agricultura e publicou um estudo contra o projeto.

Essas foram as pressões antes da remessa do projeto ao Congresso. Lá no Congresso foi duro porque o latifúndio tinha muito prestígio. O Presidente da Câmara era contra, o relator era contra, e o Último de Carvalho era um dos caras mais ferozes.

Como usineiros nordestinos se comportaram?

Eles até que... Não digo que tivessem assim uma atitude de simpatia, mas ficavam muito de fora, ficaram um pouco distanciados. Eu acho que eles estavam muito escaldados, para intervir no debate. Houve alguma atuação do Cid Sampaio. Essa foi a impressão que eu tive. Se bem que depois fiquei sabendo que a minha derrubada foi articulada pelo pessoal do Nordeste, mais especificamente foi um ex-proprietário de Caxangá. Nós desapropriamos Caxangá.

Como foi a desapropriação de Caxangá?

Caxangá foi desapropriada em abril de 1965. Houve uma greve, foi a primeira greve depois da revolução. No Jornal do Brasil a fotografia dos camponeses, todos sujos de leite em pó. Os americanos mandaram leite em pó lá para o pessoal e eles pensaram que era farinha, começaram a comer e não gostaram, então um deles começou a jogar no outro e aquilo virou uma anarquia. Aquela fotografia impressionou muito o Castello. Ele chamou todo mundo lá no Palácio e foi perguntando de um a um: como é que se resolve isso? O Presidente do Banco do Brasil, o Luiz Moraes Barros disse: “não posso executar o pessoal, porque é aí que eles não pagam, o pessoal quebra e aí como é que se vai fazer”. Castello Branco perguntou ao Viana Filho, Ministro do Trabalho: “e você?” “Bom, nós podemos forçar a legislação. Há sempre um débito no INPS, mas não é isso que vai resolver”. Chegou na minha vez: “você tem uma solução?” Eu falei: “Tenho. O senhor acabou de promulgar uma lei pela qual nós podemos desapropriar. Podemos ou não?” “ - Então, amanhã cedo, às sete horas, o senhor me traz o decreto”.

E a reação dos demais?

Cada um falou para se ver livre da bomba e foi embora para casa. Eu mandei o Sodero lá para Pernambuco, ele foi ao cartório para citar os confrontantes para desapropriar. Sodero chegou, mandei o decreto para Brasília. Fizemos isso em 24 horas. Logo depois, eu sai.

Notas

[1] No início dos anos 60, ocorreram algumas ocupações de terra no Rio Grande do Sul, sob a liderança do Movimento dos Agricultores Sem-terra do Rio Grande do Sul (Master).

[2] Essas pessoas estavam envolvidas no debate sobre a reforma agrária e participaram do Ipes.

[3] Guariba, cidade da região canavieira paulista. Em 1983 foi palco de uma greve marcada pela violência, por muitos considerada um marco nos movimentos grevistas em São Paulo.

[4] Mensagem elaborada pelo presidente da república Castello Branco que acompanhou a apresentação do Estatuto da Terra no Congresso Nacional.